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Comentário ao Acórdão:

Iaszlo Hadadi (Hadady)


Contra
Csilla Marta Mesko, Hadadi pelo casamento (Hadady)

De: Gabriel Nogueira Calado [Aluno nº 28238 – Subturma B10]


Avaliado por: Mestre Paula Meira Lourenço
Disciplina: Direito Processual Civil I

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1- Introdução

O caso objeto de avaliação apresenta elementos de conexão com mais do que uma
ordem jurídica europeia. Colocando-se a questão de qual é o tribunal competente para
decidir em matéria de divórcio – o húngaro ou o francês – num caso em que as partes
têm nacionalidade francesa e húngara.

Desde logo, o âmbito temporal suscitou dúvidas. Isto porque Hadadi apresentou o
pedido de divórcio na Hungria, no tribunal de Pest, num momento em que o
Regulamento nº 2201/2003 ainda não era aplicável. Contudo, entendeu-se serem
aplicáveis as disposições transitórias, que constam do artigo 64º do Regulamento nº
2201/2003, mais especificamente o nº4 do artigo, relativo a decisões de divórcio
proferidas antes da data de aplicação do Regulamento nº 2201/2003, mas após a data
de entrada em vigor do Regulamento (CE) nº 1347/2000.

A decisão que decretou divórcio, na Hungria, foi proferida em 4 de Maio de 2004,


e foi reconhecida, portanto, nos termos do Regulamento nº 2201/2003.

C.M. Mesko, por sua vez, na sequência de um pedido de divórcio em França,


considerado inadmissível, interpõe recurso desta decisão para a Cour d’Appel, que
por sua vez revogou a decisão do tribunal de primeira instância. Tal decisão confronta
o disposto no Regulamento 2201/2003, no que diz respeito ao artigo 21º nº1, por não
ter sido reconhecida a decisão do tribunal húngaro, que já havia decretado o divórcio
em 2004.

Os tribunais franceses, contudo, não se veem impedidos de decidir na matéria por


estar em causa o artigo 21 nº1. Estes podem decidir na matéria porque o
reconhecimento da sentença de divórcio proferida pelo tribunal de Pest constitui uma
questão incidental. E foi neste contexto que a Cour de cassation acabou por colocar
questões prejudiciais ao TJ.

Cada parte defende a sua solução para o caso. Soluções estas que foram, por fim,
colocadas enquanto questões ao Tribunal de Justiça, para decisão a título prejudicial,
ao abrigo do mecanismo que, nos dias de hoje, se encontra no artigo 267º TFUE
(antigo artigo 234º TCE).

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2- Apreciação Jurídica

O âmbito de aplicação do Regulamento 2201/2003 encontra-se no seu artigo 1º, sendo


que para o caso concreto importa a alínea a) que diz respeito a matéria civil relacionada
ao divórcio, à separação e à anulação do casamento.

As partes discutem qual dos tribunais é competente para julgar a ação, e tal discussão
levou a interpretações diferentes do artigo 3º nº1 alínea b) do Regulamento.

Independentemente das vantagens que qualquer uma das partes possa ter em a ação ser
julgada em determinado tribunal (tal como os custos e a proximidade ao tribunal
competente para julgar a ação), o problema que aqui se coloca é uma omissão. O
regulamento 2201/2003 é omisso quanto à situação dos cônjuges terem dupla
nacionalidade.

Conjugando a omissão do Regulamento, com a possibilidade que este confere de a ação


poder ser intentada no tribunal do Estado-Membro da nacionalidade de ambos os
cônjuges (artigo 3º nº1 alínea b) do Regulamento, surge uma nova questão: deverão ser
tidos em conta outros fatores de conexão e critérios suplementares, além da
nacionalidade, para averiguar qual é a “nacionalidade mais efetiva”?

O critério da nacionalidade mais efetiva foi sustentado por C.M. Mesko, e caso fosse
este o adotado na decisão, só o tribunal do Estado-Membro da nacionalidade mais efetiva
é que seria competente, nos termos do artigo 3º nº1 alínea b). E por sua vez, os Estados-
Membros da nacionalidade menos efetiva seriam então incompetentes.

Tal tese, a ser tida em consideração, levaria a que o tribunal húngaro tivesse de se
declarar incompetente para julgar a ação (Artigo 17º do Regulamento 2201/2003). Isto
porque a matéria de facto joga claramente a favor de C.M. Mesko, desde logo porque
ambos os cônjuges se encontravam domiciliados, há mais de 20 anos, na França.

É apresentada uma outra solução para o caso, por parte de Hadadi, que é a seguida pelo
Tribunal de Justiça na resposta às questões prejudiciais. A possibilidade de as duas
nacionalidades comuns constituírem fundamento para a competência de duas
jurisdições hierarquicamente equiparadas. Tal tese, por sua vez, levaria a que o

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tribunal onde o processo fosse intentado em segundo lugar tivesse de se declarar
incompetente para julgar a ação (Artigo 19º nº3 do Regulamento 2201/2003).

3- Crítica às duas posições

Ambas as soluções são criticáveis, pelo que convém aprofundar as implicâncias de se


seguir qualquer uma das posições:

Quanto ao critério da nacionalidade mais efetiva, de tradição francesa, apesar de (à


partida) se demonstrar como o critério mais racional e lógico, por ter em conta outros
elementos além da nacionalidade para aferir da competência do tribunal para julgar a
ação, este critério peca por ferir princípios como a igualdade e a segurança jurídica.

Os regulamentos que regulam a competência internacional têm, por objetivo,


harmonizar as legislações dos diferentes países que compõem a União. Tal tarefa
complica-se quando um dos Estados faz sobrepor o seu direito interno ao direito da união,
através da instalação de um costume contra-legem.

Deixar de se atender a uma norma do Regulamento, ou fazer uma interpretação além


do possível sentido das palavras do artigo 3º nº1 b) do Regulamento 2201/2003, de modo
a considerar, para além da nacionalidade, outros elementos externos, leva a uma violação
do princípio da igualdade dos Estados perante a lei que rege a União. Para além de levar
a uma descriminação das pessoas que possuem dupla nacionalidade, que em consequência
das imposições de um Estado da União deixam de se poder fazer valer do mecanismo do
artigo 3º nº1 b).

Será, portanto, dúbio, que qualquer Estado possa, assim que seja conveniente, remeter
para o seu direito interno de modo a preencher lacunas na lei.

Uma outra crítica à tese da nacionalidade efetiva, será o facto de esta introduzir um
conceito indeterminado na lei. Se o principal objetivo dos regulamentos que regem a
competência internacional é harmonizar o direito aplicável aos Estados da União, pode
colocar-se a questão de se a introdução de um conceito indeterminado (nacionalidade
efetiva), que frequentemente teria que ser alvo de fiscalização, não levaria a incertezas e
mais burocracia na aplicação do direito da União, tornando-o inviável e juridicamente
incerto.

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Quanto à solução que veio a ser seguida pelo TJ, defendida por Hadadi, esta sustenta-
se sobretudo na segurança jurídica e na aplicação uniforme dos regulamentos que regem
a competência internacional dos tribunais para julgar as ações.

Todavia, há que se questionar se a segurança jurídica aqui alegada não é, apesar de tudo,
vaga. Isto porque o que está em causa é a previsibilidade das condutas dos Estados, que
sem dúvida fica assegurada se todos os Estados aplicarem o mesmo direito. Contudo, da
mesma forma que um particular não deve poder se confrontado pelas imposições de um
Estado, que se sobrepõem ao direito da União, não será de se esperar que se acautele a
previsibilidade das condutas das partes?

C.M. Mesko vê-se confrontada com um processo que terá o seu desenvolvimento na
Hungria, país em que, nem Mesko nem Hadadi se encontravam domiciliados há mais de
20 anos. O facto de as partes se encontrarem domiciliadas em França há mais de 20 anos
leva a que a cognoscibilidade da ordem jurídica deste país seja maior do que da ordem
jurídica húngara.

Do ponto de vista do direito substancial, um dos factos que C.M. Mesko considerou
inadequado (o mais gravoso, por sinal) é o “forum shopping” levar a uma corrida aos
tribunais, que por sua vez não acautela devidamente os direitos dos particulares. Partindo
C.M. Mesko do princípio que o seu marido requereu o divórcio na Húngria com o objetivo
de se subtrair às consequências de um divórcio com fundamento em violação culposa de
deveres conjugais, para além da “fuga” à moldura em que seriam enquadrados os anos de
maltratos que C.M. Mesko sofreu por parte do marido.

4- Posição Adotada

O princípio da prevalência da nacionalidade mais efetiva é um princípio aliciante.


Todavia, é de se concluir que é um princípio que acarreta perigos, porque põe em causa
o sistema normativo que rege a competência internacional.

Mesmo considerando que a justa composição do litígio, na sua forma perfeita, só


poderia ser atingida em França, há que pôr os dois pratos na balança. Neste caso não é
possível, simultaneamente, alcançar segurança jurídica do sistema (promovida pela

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solução de Hadadi, que vem a ser seguida pelo TJ) e assegurar que ao divórcio em causa
fossem aditadas as consequências da violação culposa de deveres conjugais que o direito
francês assegura (moldura esta pretendida por C.M. Mesko).

O artigo 3º nº1 do Regulamento 2201/2003 não faz qualquer tipo de remissão, nem para
uma ordem jurídica individualmente considerada, nem para conceitos vagos tal como
“nacionalidade mais efetiva”, que levariam a uma crescente fiscalização e
impraticabilidade do direito que consta dos regulamentos, por este se tornar inseguro e
sujeito a interpretações extensivas por parte dos Estados que compõem a União. Tudo o
que se pretende evitar é, portanto, uma atividade criativa indesejável.

Na linha do parecer do TJ, o artigo 3º nº1 estabelece critérios alternativos, não se


podendo descriminar as partes quanto à nacionalidade que têm, pelo que, o mecanismo
da alínea b) do artigo será sempre uma opção ao dispor de qualquer um dos cônjuges.

Ao contrário do que foi alegado pela defesa de C.M. Mesko, não há necessidade de
subtrair opções a quem tem mais do que uma nacionalidade, pelo que Hadadi podia, como
veio a ser reiterado pelo TJ, ter colocado a ação tanto na Hungria como em França.

Concluo, após esta análise, que a solução proposta pela defesa de Laszlo Hadadi, que
foi confirmada como a mais acertada pelo TJ, é a única que pode acautelar, com juízo de
razoabilidade, o caso concreto em causa.

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