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INSTITUTO BRASILEIRO
DE CIÊNCIAS CRIMINAIS
4
PEPG CIÊNCIAS SOCIAIS P U C /S P
Organizadores
Edson Passetti
Roberto B. Dias da Silva
CONVERSAÇÕES ABOLICIONISTAS
U M A C R ÍT IC A D O SISTEM A P E N A L
E D A SO C IE D A D E P U N IT IV A
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Vários autores.
Participação: Programa de Estudos Pós-Graduação em Ciências
Sociais — PUC/SP.
97-4741 CDU-343:84
CONVERSAÇÕES
ABOLICIONISTAS
UMA CRÍTICA DO SISTEMA PENAL
E DA SOCIEDADE PUNITIVA
Autores
C a rm e n Ju n q u eira / Edson P assetti / E d w ard M acRae
Francisca V ergínio Soares / José Luis Soiazzi / Lia Junqueira
L ouk H u lsm a n / L ycurgo d e C astro Santos
M árcia R egina da C osta / M aria Lúcia K aram
O svaldo F e rn an d e z N ils C hristie
P ed ro A rm an d o E gydio de C arvalho
Roberto Baptista Dias d a Silva / Salete M a g d a de O liveira
S ebastian Scheerer / Sérgio Salom ão Shecaira
T hom as M athiesen
Co-edição:
INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS (IBCCrim)
Programa de Estudos Pós-Graduação em Ciências Sociais - PUC/SP
3.° Secretário: R o s ie r B. C u s t ó d io
Tesoureiro: S é r g io M a z in a M a r tin s
Im presso no Brasil
Printed in Brazil
1997
" H á h is tó ria s tã o v e rd a d e ir a s q u e
v e z e s p a re c e q u e s ã o in v e n ta d a s ."
(M a n o el de B a rro s)
APRESENTAÇÕES
O d is c u rs o p u n itiv o m o d e rn o te m e n c o n tra d o n o s a u to re s
a b o licio n istas seu s m a io re s crítico s. H is to ric a m e n te , a p ó s a
c o m p r e e n s iv a a n á lis e d o s te ó r ic o s d o " la b e lin g a p p r o a c h " ,
fe ita a p a r t i r d o s a n o s 60, s u r g e u m g r u p o d e p e n s a d o r e s
q u e a p r o f u n d a a a n á lis e c rim in o ló g ic a , a m p l ia n d o a c rític a
a o s is te m a p u n itiv o . E s te s te ó ric o s , c h a m a d o s p o r a lg u n s d e
c rític o s , o u ra d ic a is , s ã o t a m b é m g e n e r ic a m e n te c o n h e c id o s
p o r a b o lic io n is ta s .
A p a r t i r d a c o n s ta ta ç ã o d e q u e o d i r e i to p e n a l é u m a
in s tâ n c ia s e le tiv a e e litis ta , c o n s tr o e m o s a b o lic io n is ta s u m a
c rític a a n a lític a , c o m p r e e n s iv a e d e s c r itiv a q u e p e r m i te r e p e n
s a r a s in s tâ n c ia s p u n itiv a s . S ã o le g a d o s d o s a b o lic io n is ta s ,
d e n tr e o u tro s , o im p u ls o a o e s tu d o d a c r im in a lid a d e d o
c o la r in h o b ra n c o , d o r a c is m o , im p e r ia lis m o , d is c r im in a ç ã o
s e x u a l, b e lic is m o e d e lito s e c o ló g ic o s .
I n ú m e r o s s ã o o s p e n s a d o r e s q u e tê m u m a p e r s p e c tiv a
a b o lic io n is ta . P o ré m , s o m e n te a g o ra , q u a tr o d o s p r in c ip a is
a u to r e s d e s ta c o r r e n te d e p e n s a m e n to s ã o tr a z id o s p a r a u m
ú n ic o e v e n to n o B ra sil. L o u k H u l s m a n d a H o l a n d a , T h o m a s
8 C O N V ER SA Ç Õ ES A B O LIC IO N ISTA S
A lg u n s d o s te m a s o b je to d e d is c u s s ã o e s tã o r e u n i d o s n e s te
liv ro , p e q u e n a s ín te s e d o s e m in á r io r e a l iz a d o e n tr e os d ia s
18 e 21 d e n o v e m b r o d e s te a n o . É e s te , p o is , o tr a b a lh o q u e
o r a se a p r e s e n ta a o p ú b lic o le ito r c o m o 4.° v o l u m e d a s é rie
d e m o n o g ra f ia s d o I n s titu to B ra s ile iro d e C iê n c ia s C rim in a is ,
p a r a a p r o f u n d a m e n t o d a d is c u s s ã o a c e rc a d a s c iê n c ia s p e n a is .
S ão P a u lo , n a p r im a v e r a d e 1997.
S é r g io S a l o m ã o S h e c a ir a
P re sid e n te do IBCCrim
N u m m o m e n to e m q u e se m u ltip lic a m a s r e b e liõ e s n o s
p r e s íd io s e q u e m a s s a c r e s e e x te r m ín io s to r n a m - s e a lv o s d o s
e s p e tá c u lo s d a m íd ia e d o s d e b a te s e m d e fe s a d o s d ir e ito s
h u m a n o s , t r a t a r d a a b o liç ã o d o s is te m a p e n a l c o n s titu i e m
p r e e n d im e n to , n o m ín im o , p o lê m ic o .
R e u n in d o p e s q u is a d o re s e id e ó lo g o s q u e v ê m re fle tin d o
s o b re as d ife r e n te s d im e n s õ e s d a s o c ie d a d e p u n i ti v a , n a s su a s
m a is d is tin ta s f o rm a s d e o r g a n iz a ç ã o , d e s d e a s s o c ie d a d e s
i n d íg e n a s a té a s m o d e r n a s s o c ie d a d e s c a p ita lis ta s i n d u s tr ia is
e p ó s - in d u s tr ia is , e s te liv r o r e p r e s e n ta u m p a s s o im p o r ta n te
n a d e s m is tific a ç ã o d a e fic á c ia d a s in s titu iç õ e s p e n a is . A p o n ta
p a r a a p o s s ib ilid a d e d e n o v a s fo rm a s d e o r g a n iz a ç ã o so c ia l
e r e v e la q u e a g u e r r a c o n tr a o c rim e se tr a n s f o r m a e m g u e rr a
c o n tr a o s p o b r e s , d e m o n i z a d o s p e la m a io r p a r t e d a s o c ie d a d e
e, p a r tic u la r m e n te , p e la m íd ia . É e n tr e e le s, o s p a s s ív e is d e
e n c a r c e r a m e n to , q u e e n c o n tr a m o s o s m a io r e s ín d ic e s o fic iais
d e c rim in a lid a d e .
O s a u to r e s q u e p a r t i c i p a m d e s te a c o n te c im e n to s ã o " p e n
s a d o r e s d e ris c o " , p e s s o a s c o m p r o m e tid a s c o m o s p r o b le m a s
d e s e u te m p o , e m q u e a v io lê n c ia u r b a n a , o d e s r e s p e ito a
d ire ito s d e c ria n ç a s , a d o le s c e n te s e id o s o s , a o s e r h u m a n o
g e n é ric o , e n fim , t o r n a r a m - s e q u e s tõ e s c o rr iq u e ira s .
N a v e r d a d e , a fa lsa c o n v ic ç ã o s o b re a id é ia d e v io lê n c ia ,
r e d u z in d o - a a c e rta s a ç õ e s c r im in a liz a d a s , o c u lta o c a r á te r
v io le n to d e o u tr o s fa to s , n ã o c r im in a liz a d o s , m a s p r o f u n d a
10 CO N V ERSA ÇÕ ES AB O LICIO N ISTA S
m e n te d e v a s ta d o re s . U m a c o n c e p ç ã o c o m p r o m e tid a c o m a
r e a lid a d e h á d e e n c a r a r a s n e c e s s id a d e s e d ir e ito s f u n d a m e n
ta is d o s e r h u m a n o , d a a lim e n ta ç ã o à m o r a d ia , d a s a ú d e à
e d u c a ç ã o , d o tr a b a lh o a o la z e r. O d e s r e s p e ito à v id a d e v e s e r
e n c a r a d o c o m o a to v io le n to e a p r ó p r i a s o c ie d a d e d e v e s e r
c u lp a b iliz a d a c o m s u a s f o r m a s d e c o n tro le e p r e v e n ç ã o .
A p o ia n d o - s e n u m a v is ã o m a n iq u e is ta q u e c la s s ific a as
p e s s o a s e m b o a s e m á s , a s id é ia s d e p u n iç ã o e a f a s ta m e n to
d o c o n v ív io so c ia l a te n d e m à n e c e s s id a d e d e c ria ç ã o d e b o d e s
e x p ia tó r ia s c u lp a b iliz a d o s i n d iv i d u a l m e n t e , o s c h a m a d o s
d e lin q ü e n te s , q u e s ã o o p o s ito r e s d o s c h a m a d o s " c id a d ã o s d e
bem ".
O liv ro ta m b é m d e s ta c a o c a r á te r s o c ia lm e n te d e s ig u a l d o
s is te m a p e n a l, re c a in d o , p r e f e r e n c ia lm e n te , o sta tu s d e c r im i
n o s o s o b re os m e m b ro s d a s c la s s e s s u b a lte r n iz a d a s , d e ix a n d o
d e la d o c e rta s c o n d u ta s c o n s id e r a d a s s o c ia lm e n te n e g a tiv a s
q u e e m e r g e m n o m e io d a s c la s s e s d o m in a n te s .
L ú c ia B ó g u s
C o ordenadora do P rogram a de E studos P ós-G raduados
em C iências Sociais d a P U C /S P
PREFÁCIO
O a b o lic io n is m o é u m e s tilo d e v id a . É u m a f o rm a d e
i n te r r o g a r o s ig n if ic a d o d a s p u n iç õ e s e s u a s in s titu iç õ e s , d e
s in a liz a r o u tr a s p o s s ib ilid a d e s d e l i b e r d a d e e d e b u s c a r
ju stiç a .
O a n tr o p ó lo g o C la u d e L é v i-S tra u s s , e m T ristes Trópicos,
fala d o s c o s tu m e s ju d ic iá r io s e p e n ite n c iá r io s , c o n tr a p o n d o
s o c ie d a d e s a n tr o p o f á g ic a s — q u e a b s o r v e m i n d i v í d u o s d e te n
to re s d e g r a n d e fo rç a , p a r a n e u tr a liz á - lo s , e b e n e fic ia re m -s e
d e la — a s o c ie d a d e s q u e a d o ta m a antropem ia ( d o g r e g o em ein,
" v o m ita r " ) , c o m o a n o s s a , q u e , d ia n te d o m e s m o p r o b le m a ,
c a m in h a n o s e n tid o in v e r s o , m a n te n d o - o s t e m p o r á r ia o u
d e f in itiv a m e n te is o la d o s o u a té e x p u ls a n d o - o s . É a
" in f a n tiliz a ç ã o " d o c u lp a d o g e r a n d o r e s u l t a d o s c o n tr á r io s a o
q u e p r e te n d ia ; é, a o m e s m o te m p o , o c u l p a d o t r a t a d o c o m o
u m a d u lto a q u e m se r e c u s a o c o n s o lo ; é a c r e d it a r q u e n a
n o s s a s o c ie d a d e , e m n o m e d o p r o g r e s s o e s p ir it u a l, p r e f e r im o s
a m u tila ç ã o física e m o r a l a a lg u n s s e m e lh a n te s e m v e z d e
c o n s u m i-lo s .
É im p o s s ív e l t r a t a r o te m a d a p u n i ç ã o c o m o s e n d o
e x c lu s iv o d e n o s s a s o c ie d a d e o u d o s e u s is te m a ju ríd ic o . E le
a tr a v e s s a a h is tó r ia e e s ta m e s m a h is tó r ia , e m te m p o s d if e
re n te s , a p r e s e n ta r e s p o s ta s d iv e r s a s p a r a a p u n i ç ã o . M u ita s
v e z e s , s o c ie d a d e s c o m o a n o s s a e a d o s a s te c a s u s a r a m d e la
d e m a n e ir a d e s m e d id a . O u tr a s s o c ie d a d e s s ã o s u ti s o s u f i
c ie n te n a e d u c a ç ã o d e s e u s m e m b r o s p a r a e v it a r q u e , m e s m o
c o m a s o c ie d a d e c a p ita lis ta lh e s p r e s s i o n a n d o , se e n tr e g u e m
à s fo rm a s e x c e s s iv a s d o c o n tr o le so cial.
12 C O N V ER SA Ç Õ ES A B O LIC IO N ISTA S
A s s o c ie d a d e s p r im itiv a s s ã o c o n s e r v a d o r a s e b a s e ia m
m u ita s v e z e s a s u a c o n ti n u id a d e n a p r e s e r v a ç ã o d a d iv e r s i
d a d e , e n q u a n t o q u e a s o c ie d a d e a t u a l t r a n s v e s t e s e u
c o n s e r v a d o r is m o e m d e m o c r a c ia e, e m n o m e d o s u f r á g io
u n iv e r s a l, d o p a r la m e n to , d a lib e r d a d e d e e x p r e s s ã o e d a
s u p o s ta d e fe s a d e d ir e ito s s o c ia is, m id ia tiz a , p e la te le v is ã o e
p o r s o n d a g e n s , a c o n ti n u id a d e d o e s p e tá c u lo d a p u n iç ã o ,
N ã o h á m a is lu g a r p a r a o in te le c tu a l p r o f e ta o u g u a r d iã o ,
m a s , n o s te m p o s d e a g o r a — q u e o a b o lic io n is m o s a b e
r e c o n h e c e r tã o b e m — , o e s s e n c ia l é d e s n u d a r a r e a lid a d e ,
p a r a o c o n h e c im e n to p ú b lic o , a p r e s e n ta n d o s e u s m e c a n is m o s
d is c ip lin a r e s e a e le trô n ic a d o c o n tr o le . N e s s e s te m p o s ,
a p a r e c e m , ta m b é m , o s r e f o r m a d o r e s , o s r e s t a u r a d o r e s e, n o
m e io d o s u p o s to e m b a te e n tr e a m b o s , o a b o lic io n is m o s u r g e
in te r r o g a n d o s e u s o p o s ito r e s , b u s c a n d o p a r c e ir o s e in te r p e
la n d o a si p r ó p r i o , m o s tr a n d o o p e r ig o d e se v e r r e d u z i d o
a u m a b o lic io n is m o d e c á te d ra .
O a b o lic io n is m o fu n c io n a , s im u lta n e a m e n te , e m d o is p l a
n o s : o a c a d ê m ic o e o d o m o v im e n to s o c ia l. O p r im e ir o d ia lo g a
c o m o s in te le c tu a is d o s is te m a p e n a l — a p r e s e n ta n d o a
p o s s ib ilid a d e d e a b a n d o n o d a s e s p e c ia lid a d e s e m fa v o r d a
p o liv a lê n c ia — e c o m o s c id a d ã o s , c r i a n d o p a rc e r ia s . O
s e g u n d o m o s tr a o s e q u ív o c o s d o s is te m a p e n a l e p r o p ic ia a
v iv ê n c ia d e n o v a s p r á tic a s , p r e t e n d e n d o n e la s c o n s o lid a r
p o s s ib ilid a d e s q u e e v ite m r e d im e n s io n a m e n to s o u r e s t a u r a
ç õ e s p u n itiv a s .
O a b o lic io n is m o d e s c a r ta r e v o lu ç õ e s g lo b a liz a n te s , n ã o
o b je tiv a t o m a r o l u g a r d o s a tu a is le g is la d o r e s , n ã o se c o lo c a
c o m o o d i s c u r s o d a v e r d a d e e ta m p o u c o te m a p r e te n s ã o d e
a c u s a r o u i n o c e n ta r in d iv í d u o s o u g r u p o s s o c ia is . E le a p e n a s
m o s tr a q u e , m u it a s v e z e s , n o â m b ito m ic r o , a s c o is a s p o d e m
a c o n te c e r m a is r á p i d o d o q u e n o s n ív e is m e s o o u m a c ro , e
q u e a p a r c e r ia e n t r e le g is la d o r e s e c id a d ã o s é f u n d a m e n ta l
p a r a se e s ta b e le c e r o p r in c íp io c o n c ilia tó rio . D e s ta m a n e ira ,
d e ix a m o s d e o l h a r p a r a u m " c r im e " c o m o re c ria ç ã o d e u m
fa to q u e e x ig e m e d ia ç õ e s h i e r a r q u i z a d a s p a r a e s tu d a r m o s
PREFÁCIO 13
s itu a ç õ e s - p r o b le m a c o m o o a c o n te c im e n to e m q u e a re la ç ã o
i n d iv í d u o - i n d iv í d u o a s s u m e o p r im e ir o p la n o ,
Foi c o m e s ta in te n ç ã o q u e o P r o g r a m a d e E s tu d o s P ó s-
G r a d u a d o s e m C iê n c ia s S o c ia is d a P U C / S P f ir m o u p a r c e r ia
c o m o I n s titu to B ra s ile iro d e C iê n c ia s C r im in a is - IB C C rim
p a r a r e a liz a ç ã o d o S e m in á r io I n te r n a c io n a l A bo licio n ism o Penal,
e s u a tr a d u ç ã o e m liv ro , in ic ia n d o u m a p o s s ív e l a m iz a d e
d u rad o u ra .
E m Conversações abolicionistas (um a crítica do sistem a penal
e da sociedade p u n itiv a ) o le ito r e s ta r á f r e n te a d u a s s itu a ç õ e s .
N a p r im e ir a p a r t e (dialogias), v a le n d o - n o s d o p r ó p r i o p r in c íp io
a b o lic io n is ta q u e f a v o re c e o d iá lo g o , m o s tr a m o s d iv e r s a s
p r o c e d ê n c ia s q u e a u to r e s b r a s ile iro s e s ta b e le c e m e m r e la ç ã o
a o te m a . N a s e g u n d a p a r te , a p r e s e n ta m o s o s d is c u r s o s
instaur adores, d e a u to r e s e s tr a n g e iro s , a c o m p a n h a d o s d e c o
m e n tá rio s , d im e n s io n a n d o p e r s p e c tiv a s p o s s ív e is a té e n tã o
v is ta s c o m o a b s u r d a s .
O a b o lic io n is m o fa c ilita o tr â n s ito e n tr e o s d iv e r s o s d is
c u rs o s d e lib e r d a d e , e x p lic ita n d o a p o liv a lê n c ia tá tic a e m
c ir c u n s tâ n c ia s h is tó r ic a s n a s q u a is , c o m o p r o d u t o d e e s tr a té
g ias, se a f ir m a a p o lític a d o v e r d a d e ir o . H o je e m d ia , o
a b o lic io n is m o é u m a v e r d a d e p o s s ív e l. Q u e m p o d e r i a im a
g in a r, 20 a n o s a tr á s , q u e n o B rasil s e r ia m d is c u tid a s , c o m
d e s e n v o ltu r a , d e s c r im in a liz a ç õ e s e d e s p e n a liz a ç õ e s ? Q u e m
sa b e, e m m u ito m e n o s te m p o , o a b o lic io n is m o n ã o v e n h a se
tr a n s f o r m a r n a v e r d a d e re a l?
E dso n P assetti e R o b e r t o B a p t is t a D ia s d a S il v a
P U C /S P
SU M ARIO
DIALOGIAS
A N T R O PO L Ó G IC A S
DO DIREITO
DAS DROGAS
DAS PRISÕES
LIBERTÁRIAS
S eg u nd a P arte
INSTAURAÇÕES
LOUK HULSM AN
C om entários
Roberto Baptista Dias da Silva. A bolicionism o, C riatividade e
S a tis fa ç ã o ......................................................................................... 214
SUMÁRIO 17
SEBASTIA N SC H EER ER
C om entários
Salete Magda de Oliveira. U m Desafio à D issuasão P e n a l ........ 236
NILS C H R IST IE
Com entários
Pedro Armando Egi/dio de Carvalho. Sociedade e Estado: a Recusa
da T ra n sc e n d ê n c ia ....................................................................... 258
T H O M A S M A T H IE SE N
C om entários
Edson Passetti. Abolição, um A contecim ento P o s s ív e l............. 288
P r im e ir a P arte
DIALOGIAS
ANTROPOLÓGICAS
Carmen Junqueira
Professora do Departamento de Antropologia e
do Programa de Estudos Pós-Graduados ém
Ciências Sociais da PUC/SP,
1. INTRODUÇÃO
2. ILUSÃ O DA IGUALDADE
3, DISCIPLINA
marido m uito triste. (...) Depois de alguns dias, estava ele caçando
quando ouviu o zum bido de abelhas. Falou com elas e quis conhecer
sua casa. Lá se apaixonou pela filha da abelha e novam ente quis
se casar. A m esm a advertência fez seu pai: “Se a m ulher dele tiver
ciúme, você volta...”
A cena se repete com a cium enta m ulher-rato e a abelha volta
para sua família, deixando o homem desolado. Ele, entretanto, reage
e resolve abandonar a casa e a mulher-rato. Depois de muitas
peripécias consegue aprender a voar e, com sua mãe, vai morar
com a mulher-abei ha. A rata ficou triste e só (Pichuvy Cinta Larga,
1988: 91-93).
Kanarati e Kcinarawari (narrativa Kamaiurá).
Kanarati passeando com um amigo pegou uma flor e com um
sorriso maroto com entou: “Parece a ham a (vagina) da m ulher do
meu irm ão” . O que ele não sabia é que o irmão traído, Kanarawari,
estava por perto, ouviu a confidência e na aldeia passou a tram ar
sua vingança.
Fez um a cobra venenosa que colocou num oco de árvore e
quando Kanarati chegou, ele, sem dem onstrar qualquer sinal de
raiva, pediu-lhe: “V á no buraco da árvore pegar meus filhotes de
arara” . M avutsinin (herói civilizador), que tudo ouvira, alerta o neto:
“Cuidado que seu irmão pôs um a cobra lá dentro. Leve um pau
de buriti para pegá-la” . Kanarati foi e em lugar da mão enfiou o
pau para a cobra morder...
O m arido cium ento não desistiu e tentou de muitas outras
m aneiras m atar o jovem irmão que, entretanto, era sempre ajudado
pelo avô M avutsinin. A certa altura, Kanarati cansou-se de tanta
perseguição. Fez um veado com chifres bem pontiagudos, escondeu-
o no mato e convidou Kanarawari para ir com ele caçar. Furti
vamente, espantou o bicho em direção a Kanarawari, que foi morto
a chifradas. Livre das ameaças, Kanarati casou-se com a viúva...” .
(Samain, • 1980: 19/48).
O ciúm e, que pode ser um com ponente saudável na vida dos
am antes, torna-se um defeito insuportável quando excessivo. Os
K am aiurá lem bram que quando deuses e homens viviam juntos na
terra, as m ulheres de certa feita se queixaram da falta do ciúme
DIALOGIAS 31
5. TRANSGRESSÕES PERIGOSAS
6. RECIPRO CID A D E
7. DISPUTAS PESSOAIS
sobre a vítim a que pode ser tanto o marido que a desprezou, com o
uma co-esposa concorrente. Ela contrata então secretam ente o
serviço de um homem para assim poder executar seu plano. Quando
advém o desastre, em forma de aleijão ou morte, com eça o
burburinho e, surpreendentem ente, o evento aos poucos deixa de
ser com entado. A primeira vista parece difícil identificar o agressor,
mas na prática sabe-se que os parentes afins devem ser vistos com
desconfiança, pois é deles que se pode esperar agressões desse tipo.
As alianças seladas entre famílias e grupos são cruciais para a defesa
da com unidade, mas ao mesmo tem po são potencialm ente perigosas,
pois um desejo de vingança pessoa! pode traiçoeiram ente romper
o acordo mútuo. Por isso mesmo os Cinta Larga procuram não
aprofundar suas suspeitas e encaram com aparente serenidade tais
acontecimentos.
Entre os Kamaiurá as disputas seguem um outro caminho. Lá
a luta interna por maior poder é consistente e continuada. A aldeia
é form ada por diversas casas de grandes dim ensões que abrigam
famílias extensas, com postas de até 30 pessoas. O dono da casa,
ou seja, aquele que teve a iniciativa de construí-la, reúne em torno
de si a parentela que conseguiu atrair para erguer a construção.
Essas pessoas são geralmente irmãos, primos, um ou outro cunhado,
afora esposas e filhos. Para m anter o grupo familiar ou mesmo
aum entá-lo o dono da casa deve necessariam ente exercitar certas
qualidades. Se for trabalhador, garantindo bons estoques de com ida
e estim ulando os demais a seguir^seu exem plo, e além disso
apaziguador, harm onizando as relações domésticas, ele terá boas
chances de ter prestígio na aldeia. Se som ar a isso duas outras
qualidades — ser generoso e bom orador — seguramente se tornará
um homem de poder.
A generosidade é incutida na criança desde tenra idade. Muito
cedo ela aprende que as pessoas mais fortes são desprendidas dos
bens m ateriais e sabem atender o desejo dos mais frágeis. Desse
modo, um a criança cede sem esforço seu brinquedo a um a mais
jovem e im atura. Os pais são bastante tolerantes com os filhos,
esperando que eles façam o mesm o com os demais, pois dem onstrar
grandeza é ter acesso ao poder; poder de controlar muitas ações
das pessoas, de planejar e ter possibilidade de realizar tarefas
DIALOGIAS 39
8. ROMPIMENTO DE REGRAS
a tradição recom enda nao perm ite que isso aconteça, deixando o
jogo pesado do poder confinado a confabulações conspiratórias.
9, ESV A Z IA N D O T E N S Õ E S
índios em sua aldeia, foi m orar no Alto X ingu, região onde vivem
os Kamaiurá. Consta que esse rapaz de 30 anos saiu para pescar
sozinho e apareceu morto no rio. Segundo seus parentes, o corpo
apresentava sinais de um golpe profundo no rosto, justificando-se
a suspeita de homicídio. M as para os Kamaiurá, principais acusados,
não havia motivo para suspeita, pois todos gostavam do jovem
morto que deve ter sido vítima de afogam ento, após um ataque
de epilepsia mas, continuam , “se há algum a suspeita, nós pode
ríamos pedir a necrópsia” (Folha de São Paulo 7/4/96).
Finalmente, em maio do mesmo ano, aparece no Painel do Leitor
desse mesmo jornal carta assinada por um parente do morto, figura
de destaque no indigenism o que adm inistrou durante muitos anos,
com sucesso, o Parque Indígena do Xingu. R eproduzo trechos da
carta que contém referências interessantes:
“(...) Nós, os caiapós do Mato Grosso e do Xingu, vimos muita
gente que os cam aiurás m ataram .(...) Enquanto eles matavam seu
próprio pessoal, a gente não fez nada, porque era um problem a entre
eles. Agora eles mandaram matar X sem nenhum motivo. (...) E
verdade a história de que X matou duas pessoas. Só que ele fez
isso sem saber o que estava fazendo, por causa do cigarro que o
pajé deu para ele quando estava com crise de epilepsia. Ele piorou
e não conhecia as pessoas. Achava que estava matando bicho.
Quando voltou ao normal, ficou muito triste.
“(O pai da vítima X) achou que o (pajé Kamaiurá) ia curar
ele com raízes. Por isso deixou-o sob a responsabilidade dos
camaiurás. (Os pajés kamaiurá) são grandes feiticeiros. Eles já
devem estar fazendo feitiço para os caiapós.
“(O pai da vítima) vai no local da morte (...) para fazer
pajelança. O espírito de X é que vai falar com o e por que ele morreu.
Como têm três cam aiurás envolvidos na morte, ele vai falar os
nomes. (...) (o pajé Kamaiurá) é grande pajé e grande feiticeiro”
(Folha de São Paulo 3/5/96).
Apesar das muitas décadas de contacto com a sociedade
nacional, as com unidades indígenas retêm princípios que sustentam
e dão significado ao seu universo, sem interferência significativa
das novas informações a que tiveram acesso.
46 CONVERSAÇÕES ABOLICIONISTAS
10. A T R A Ç Ã O P E R IG O S A
BIBLIOGRAFIA
A CULPABILIDADE D E N TR O E FORA
DO D IREITO PENAL
Cristã, é um ser pecador, redim ido pela vinda de Jesus C risto que,
com seu sofrim ento purgou aquele pecado original. Os dem ais
pecados serão objeto de julgam ento por ocasião da m orte; e, em
segunda instância, com a vinda gloriosa de Jesus Cristo, por ocasião
do julgam ento final.
M eu Deus, que peso para a nossa civilização!
Foi exatam ente neste preceito religioso que a justiça penal-
eclesiástica esteve fundam entada para exercer poder sobre os
indivíduos durante a Idade Média, para proferir seus editos
condenatórios durante a Santa Inquisição, abolindo qualquer con
frontação, qualquer manifestação individual ou coletiva que aten
tasse contra uma sociedade edificada em torno da Igreja, o centro
com um para onde todos deveriam convergir. N aquele contexto, não
há com o se negar que a punição tinha um caráter essencialm ente
reprovador, repreensão e castigo pelo pecado com etido, sendo este
o fator desencadeante da autorização concedida à Igreja e ao Estado
como m andatários de Deus na terra para penalizar o indivíduo.
A invasão dos árabes a partir do século XIII d.C., todavia, deu
início a um a nova concepção do indivíduo que se desenvolveria
nos séculos seguintes. Podem os distinguir essa nova concepção já
no século XII, na m aravilhosa poesia dos trovadores e nos rom ances
da Távola Redonda, mais precisam ente na busca do Santo Graal.
Tristão e Isolda, personagens da obra prima do poeta alemão
G ottfried Von Strassburg, retratam a busca do indivíduo pela
em ancipação do espírito, a busca do ser andrógino, a união além
dos braços sufocantes do Estado, da Igreja e da própria sociedade.
E nesta época que surge o que conhecem os, hoje, no ocidente, como
AM OR (RO M A ao contrário), para fazer frente aos casam entos
com binados que vigoravam àquela época e que em alguns casos
e sob condições especiais ainda vigoram. Tristão atesta, sem medo,
que pelo am or de Isolda aceitaria ele uma “eterna morte no inferno” .
Esta fórm ula foi repetida posteriorm ente por Jam es Jeyce, através
de seu alter ego Stephan D edalus em “Um retrato do artista quando
moço” , N on Serviam: “não mais servirei aquilo em que não acredito,
cham e ele m inha casa, a Igreja ou o Estado. E eu não tenho medo
de com eter um erro, nem mesm o um grande erro, um erro para
toda a vida, talvez tão longo quanto a eternidade” .
DIALOGIAS 53
Jo sé Lu is Solazzi
Mestre em Ciências Sociais pela PUC/SP.
1. A “POLITIZAÇÃO DA NORMALIDADE”
2. A POLÍTICA DA PREVENÇÃO
BIBLIOGRAFIA
2, B astante elo q ü en tes são os resu ltad o s de pesq u isa re a liz ad a pelo Instituto
D atab rasil, no R io de Jan eiro , em d ezem b ro de 1992, em q u e os en trev istad o s
av aliavam C opacab an a co m o o b airro m ais violento d aq u ela cid a d e e Jacarep ag u á
com o o segundo m enos v io len to , e n q u an to dad o s da S ecretaria d e P o lícia C ivil,
referen tes ao período de ja n e iro a o u tu b ro d aq u ele ano, reg istrav am 17 hom icíd io s
em C o p acab an a e 109 em Jacarep ag u á.
DIALOGIAS 71
B IB L IO G R A F IA
VIOLÊNCIA E MORTE
NA CIDADE DE SÃO PAULO
1. A s m ilíc ia s d e e x tre m a d ire ita que se m u ltip licam nos E stad o s U nid o s p o d em
e x e m p lific a r e ss a situ ação .
DIALOGIAS 89
BIBLIOGRAFIA ■
C O S T A , M árcia R eg in a da, L ippi, L uzia F átim a B. & O liv e ira , Isau ra Isoldi M.
C. “Ju v e n tu d e e V io lên cia: H om icíd io s na C id a d e d e S ão P au lo ” , São P aulo,
R evista Saúde, C u ltu ra e S o cied ad e , n ° 2, d e z e m b ro d e 1996a, C E S A C S ,
U SP , F acu ld a d e S aúde P ública.
C O S T A , M árcia R eg ina da, L ippi, L uzia F átim a B. & O liv e ira , Isaura Isoldi M.
C . “ M ortes V io len tas, V ítim as e H o m ic íd io s” S ão P au lo , R ev ista São P au lo
em P ersp ectiv a, F u n d a ç ã o S E A D E , vol. 9/n.° 3, ju lh o -sc te m b ro de 1995.
B IB L IO G R A F IA
Edward MacRae
Professor Adjunto da FFCH/UFBA e pesquisador
associado do CETAD/UFBA.
B IB L IO G R A F IA
Osvaldo Fernandez
Doutorando em Sociologia da USP e pesquisador
financiado pelo CNPq.
3. C O N SID ER A Ç Õ E S FIN A IS
B IB L IO G R A F IA
ABOLICIONISM O PENAL
E OS ADOLESCENTES N O BRASIL
“O vento experimenta
o que irá fa ze r
com sua liberdade..."
(Guimarães Rosa)
que deve ser com batida, não para substituí-la por “penas alterna
tivas”, enquanto imposição de modelos pré-estabelecidos de respos
tas, tidos com o axiomas que preservam a centralização do poder,
mas com o intuito de, através de uma educação horizontalizada e
que valoriza a conciliação, atingir m aior grau de liberdade.
Para isso, ao invés de lutar por reformas das instituições
encarceradoras voltadas para adolescentes, tendo em vista a crise
em que sem pre se encontram, os abolicionistas apontam para a sua
extinção, o que não só é possível, com o mostra-se necessário para
que efetivam ente, no futuro, tenham os cidadãos.
3. VIOLENTADOS: OS PADRÕES
4. L I B E R D A D E E E D U C A Ç Ã O .
poderiam ser vistas fora do cam po penal para serem tratadas sob
a ótica civil, em que a conciliação é o principal meio para se chegar
às soluções dos conflitos.
No entanto, não se pode confundir esta proposta abolicionista —
que se soma às expostas acima — com despenalização ou
descriminaiização. Estas defendem a redução do aparato criminal —•
o que, sem dúvida, é um avanço diante do que se tem hoje. Todavia,
mais do que isso, sustentam o circuito das reformas cíclicas em razão
das crises vividas pelo sistema penal, impondo “penas alternativas”
que o perturbam mas, ao mesmo tempo, preservam o sistema,
mantendo inalterada hierarquia de poderes dentro dele.
Com o abolicionism o, aquela sensação de “m issão cum prida”
expressa por aqueles que buscam a pacificação artificial da violência
através da im posição da pena dá lugar à substancial satisfação das
pessoas que efetivam ente vivenciaram o problem a, sem a perspec
tiva do encarceram ento, levando em conta seus potenciais criativos
e generosos através da liberdade.
5. O S A D O L E S C E N T E S E O A B O L IC IO N IS M O
BIBLIOGRAFIA
D O N Z E L O T , Jacques. A p o lícia das fam ílias. Rio de Jan eiro , Graai, 1986.
G O D W IN , W iliian. Investigacion a c e rc a de Ia J u sticia P olítica y su influencia
en la virtud y ta d ich a g en era le s. Editorial A m ericalee, Buenos A ir e s ,1945.
138 CONVERSAÇÕES ABOLICIONISTAS
1. IN T R O D U Ç Ã O
2. A CRENÇA NA PRISÃO
3. OSCILAÇÕES
4. A IDÉIA ABOLICIONISTA
8. Platão, Górgías, 4 7 4 b.
DIALOGIAS 151
5. C O N C L U S Ã O
B IB L IO G R A F IA
1. OS ADOLESCENTES
2. O S R E S P O N S Á V E IS
3. O P R IN C ÍP IO B IN Á R IO E O N O M E DO UM
BIBLIOGRAFIA
L ia J u n q u e ir a
C o o r d e n a d o r a d o C e n tro de R eferência d a
C riança e do Adolescente - C ER C A.
pelo controle (formal). Q uando este falha — e falha cada vez mais
— exacerba-se mais e mais e mais...
A segunda alternativa aponta para o caminho da m itigação. O
controle regulador das relações far-se-á informalmente, por d ife
rentes instâncias: escolas, igrejas, com unidades de bairro, associ
ações, família, círculos de am izade etc. Trata-se de um controle
através das ideologias com vistas a postergar uma eventual inter
venção do Estado. E o pensar que aquilo que fazemos possa servir
não a alguns, mas a todos; não aos que querem a realim entação
do sistem a, mas àqueles que pensam que algo melhor seja
construído. V
Esta idéia de dom inação nos remete ao pensamento do que são
as sociedades dem ocráticas. De um lado o sistem a escolar, a m ídia
im pressa, as televisões que apontam para um controle baseado no
consenso, enfim , a sociedade civil. E, em contra partida, a sociedade
política que — ao contrário — vê sua dominação de form a
coercitiva, através do aparelho estatal, aí com preendendo o exército,
a polícia, os órgãos realim entadores dessa ideologia como o Poder
Judiciário e o M inistério Público, mas, principalm ente as prisões.
No Brasil ainda é corrente a linguagem da crim inalidade com o
im pureza social que precisa ser extirpada. Tal ideologia repressiva,
que vem desde os tempos coloniais, faz com que o policial seja
o único intérprete dessa linguagem , agindo sempre com violência,
como se esses aspectos m erecessem uma reação armada e im pla
cável. Essa confrontação entre o crim e e a violência policial gera
uma crescente violacjao dos direitos humanos, atingindo, de resto,
a dignidade dos cidadãos. N ão são poucos os casos de excesso,
de torturas, de violação de direitos, daí a necessidade de ser
exam inado o poder com o elem ento condicionador da crim inalidade.
T er para o agente de um delito a decretação da prisão, única
linguagem que satisfaz a engrenagem penal, é ter todas as con
seqüências que a violência institucional pode acarretar através da
pena privativa de liberdade. Perdendo o direito de se locom over
livrem ente, o preso perde sua identidade social e a possibilidade
de escolha entre as alternativas de com portamento, o exercício da
propriedade de certos bens m ateriais, a possibilidade de relação
normal com as pessoas e um a série de outras características do
DIALOGIAS 173
Edson Passetti
Professor do Departamento de Política e do
Programa de Estudos Pós-Graduados em
Ciências Sociais da PUC/SP.
implore por isso de joelhos... O que quero que você faça é ler estas
páginas, seja com indiferença, seja com repulsa. Porque parte delas
é também indiferente e repulsiva. Porque — e esta é a razão porque
o quero — aquilo que me é mais caro e difícil é apenas frio, a
despeito do sol, e sei que os olhos de um estranho irão tornar tudo
mais cálido e mais dinâm ico, sim plesm ente por olharem . ... Bem,
por que todo esse alarde? ... Estou retirando um pedaço de meu
coração, em brulhando-o cuidadosam ente em algumas páginas es
critas e entregando-o a você” (Pawel, 1986: 91-92).
Kafka não queria o pai nem o Direito. Foi fazer literatura e
com ela pôde perm anecer em Praga, uma praga que desejava atear
fogo, incendiando seu cotidiano de burocrata do império austro-
húngaro, numa fam ília tida com o perfeita. Por medo do fracasso,
do excesso de trabalho, de doenças, da dúvida quanto à sexualidade,
por tantas pequenas coisas, não faltava em Kafka, nesta época,
disposição para uma crise nervosa.
Depois de Polo, conheceu dois amigos de Brod, Felix W eltsch
e O skar Baum, form ando um quarteto. Com eles ia sem medo de
doenças aos prostíbulos, um a cam aradagem entre solteiros que se
formalizou depois do casam ento dos três. Kafka ficou noivo mais
de uma vez, outras vezes com a m esm a mulher, mas se recusou
a casar. Foi sim patizante do anarquism o de Theodore Herzen e
Kropotkin mas não foi um ativista; diz-se que conheceu os
agitadores M ichal M ares, do Clube dos Jovens e Jroslav Hasek,
mas Kakfa não queria chefes nem casam entos. M uito menos o pai,
o cargo burocrático, as recom pensas.
Kafka e F. (Felice) foi, segundo Canetti (1990), um noivado
de correspondência diária a serviço de sua criação literária. D ela
saíram O Veredicto e M etam orfose. Parece que não tinha ciúm e
de Felice com o de O skar e Max, que após o casam ento passou
a ter a sua casa freqüentada por K afka como a desejada casa paterna.
Max Brod, mais que am igo e guardião podia ser o pai predileto;
austero e religioso m as tam bém próxim o e literato, escrevendo e
publicando com regularidade.
Kafka detestava sua m agreza. O físico invejado do pai Hermann
também o sufocava da m esm a maneira que o pai de G eorg
Bandem an o condena ao afogam ento em O veredicto e o de G regor
DIALOGIAS 181
BIBLIOGRAFIA
H U LSM AN , Louk. “A morte das penas” , in R evista Plural, São Paulo, Depar
tamento d e S ociologia - FFC LH -U SP, 1995,
KAFKA, Franz. Carta ao pai, São Paulo, C o m p a n h ia das Letras, 1997 (tradução
de M o d e s to Carone).
186 CONVERSAÇÕES ABOLICIONISTAS
INSTAURAÇÕES
LOUK HULSMAN
Professor Emérito da Universidade de Roterdã.
5. R efiro-m e aqui, em prim eiro lugar, ao valor crítico acadêm ico incorporado
na expressão: “não necessariam ente” : um valor crítico em aneipatório. U rn a parte
m uito importante da produção a c a d ê m ic a refere-se a valores que não são de maneira
a lg u m a em ancipatórios.
6. Explicarei mais tarde, com m ais detalhes, que o fato d e que u m a situação
possa catalisar processos de crim inalização (primária ou secundária) n ão im plica
de maneira algum a que a situação seja problem ática. O rg a n iz a ç õ e s com o a polícia,
tr ib u n a is , o execu tiv o e o p a rla m e n to en v o lv em -se, em primeiro lugar, em
atividades de crim inalização porque isto é visto com o seu interesse ou porque não
fa z ê -lo é visto co m o prejudicial a e la s; a m esm a co isa é, em muitos aspectos,
verdadeira para o s atores individuais dentro destas o rg a n iz a ç õ e s . S o b a perspectiva
INSTAURAÇÕES 193
Valores
8. Quero dizer acordo no fato d e que as estruturas estatais devem ser seculares
e não fundamentalistas. T od o m undo tem consciência do fato de que esta exigên cia
não é, em muitas áreas, satisfeita de maneira alguma. M uitas práticas estatais ainda
seguem o m odelo de religiões totalitárias e autoritárias.
9. M enciono-as aqui de forma “estenográfica”, com o as apresentei anterior
m ente em Hulsman, 1996. Elas foram mais desenvolvidas em Faugeron e Hulsman,
1996.
INSTAURAÇÕES 195
c) Validade de reconstrução
Conceitos
a) Crime
b) Abolição
O que é a justiça crim inal? Para nós, a justiça crim inal é uma
form a específica de interação entre um certo número de agências
tais com o a polícia, os tribunais (no sentido mais amplo, isto é,
não só os juizes, mas tam bém o prom otor público, os procuradores
etc), o serviço de prisões e de sitrsis, departamentos de direito e
crim inologia no inundo acadêm ico, o Ministro da Justiça e o
Parlam ento. N enhum a destas organizações são, em si, ligadas à
justiça criminal, elas têm (m esm o se forem ligadas a elas) vida
própria. A maioria das atividades da polícia, por exem plo, não
ocorre dentro do modelo daquele tipo especial de interação.
Sim ilarm ente, a maioria das atividades dos tribunais não acontece
dentro de um modelo da ju stiça crim inal: freqüentemente elas agem
no m odelo da justiça civil ou adm inistrativa.
Qual é, então, esse tipo específico de interação ou, em outras
palavras, de organização social e cultural (Gusfield, 1981), que
produz a crim inalização? Serei m uito breve e apenas sublinharei
um certo número de aspectos que me parecem im portantes para
nosso assunto imediato.
A prim eira especificidade da organização cultural é que a justiça
crim inal é o ato de construir (ou reconstruir) a realidade de uma
form a muito específica. Ela produz um a construção da realidade
ao enfocar um incidente, estreitam ente definido num tempo e lugar
e congela a ação ali e olha, a respeito daquele incidente, para uma
pessoa, um indivíduo, a quem instrum entalidade (causalidade) e
culpa possam ser atribuídas. O resultado é que o indivíduo então
é discrim inado. Ele é isolado, por causa daquele incidente, de seu
m eio-am biente, de seus am igos, de sua família, do substrato material
INSTAURAÇÕES 199
de seu mundo. Ele tam bém é separado das pessoas que sentem -
se vitim izadas numa situação que pode, de algum a m aneira, ser
atribuída à sua ação. Estas “ vítim as” são separadas de m aneira
sem elhante. Então, a organização cultural de referência separa
artificialm ente alguns indivíduos de seu m eio-am biente e separa
pessoas que se sentem vitim adas das pessoas que são consideradas
nesta situação específica com o “violadores” . Neste sentido, a
organização cultural de justiça crim inal cria “indivíduos fictícios”
e uma interação “fictícia” entre eles.
O utra característica da organização cultural da ju stiça crim ina!
é a sua ênfase na “alocação da culpa” . Há uma forte tendência na
justiça crim inal de agrupar eventos e com portam entos com os quais
lida e as sanções aplicadas num padrão consistente e coerente ao
redor de um a hierarquia de “ g ravidade” .10 Esta hierarquia de
gravidade é construída principalm ente sobre a experiência de um a
variedade limitada de eventos na c om petência real (ou considerada)
do sistema. Nesta pirâm ide, praticam ente nenhum a c o m p a ra ç ã o é
feita com eventos e com portam entos fora desta variedade. A
classificação ocorre num universo separado, determ inado pela
própria estrutura da justiça crim inal. A consistência da escala dentro
do sistem a leva necessariam ente a inconsistências com as escalas
daqueles diretamente envolvidos fora do sistema, já que valores e
percepções numa sociedade não são uniform es. O “program a” para
alocação da culpa típico da ju stiça crim inal é uma verdadeira cópia
da doutrina do “julgam ento final” e do “purgatório” desenvolvida
em algumas variedades da teologia cristã ocidental. É tam bém
d) Política criminal
P A R T E I I — P O R QUE A B O L IÇ Ã O ?
cidades n o rte-am erican as, m ais da m etad e da p o p u lação m ascu lin a n eg ra e n tre 18
e 45 anos está na prisão, sob con d icio n al ou em sursis.
15. E stas são as palavras usad as na C o n v e n ç ã o E u ro p éia sobre D ireitos
H um anos.
16. M uito in teressan te a este re sp eito é H anak, S te h r e S tein ert (1 9 8 9 ), p orque
tam bém perm ite fazer u m a co m p aração entre situ açô e s-p ro b lem a c rim in alizáv eis
e não-crim inalizáveis. F req ü en tem en te, pessoas en v o lv id a s em d eb ates sobre ju s tiç a
crim inal torn am -se tão “ p o ssu íd as” pelos m itos e im ag en s q u e ja z e m sob este d eb ate
que não são co n scien tes d o fato q u e a au sên cia d e u m a reação d a ju s tiç a crim inal
a um evento crim in alizáv el não sig n ifica de m an eira alg u m a que tal e v en to não
foi lidado (q u id non est in a cto non e st in m o n d o ). Se há um a p esso a d ire ta m e n te
envolvida p ara q uem um even to crim in alizáv el é p ro b le m á tic o , essa p essoa irá
sem pre lidar d e algum a form a com tal ev en to e p ode m o b ilizar p ro fissio n ais e
não-profissionais para auxiliá-la.
206 CONVERSAÇÕES ABOLICIONISTAS
P A R T E I I I — COMO ABOLIR?
Abolição acadêmica
Para avaliar a legitim idade da justiça crim inal e para dar uma
mão a profissionais tentando lidar com situações-problem a m en
cionadas em debates sobre a crim inalização, é necessário descrever
e analisar como situações-problem a crim inalizáveis são lidadas fora
da justiça crim inal (na cifra negra). Para fazê-lo, tem os que ser
capazes de rastreá-las, “enquanto tais” , m esm o quando elas assu
mem uma forma diferente e um a dinâmica diferente da que teriam
assumido se fossem crim inalizadas. Há alguns conceitos que podem
nos auxiliar a fazer isto.
Quando olhamos à nossa volta e para dentro de nós mesmos,
vemos que as pessoas têm pontos de partida m uito diferentes quando
iniciam sua construção de eventos, que parecem , na superfície
indiferenciada do com eço, m uito sem elhantes.
Em primeiro lugar, é im pressionante que coisas que parecem
perigosas e más para alguns, não provocam tais sentim entos e
pensamentos em outros. No relatório de descrim inalização do
Conselho da Europa (1980) nós chamamos isto de diferenças no
meio-ambiente sim bólico de um evento. O grau de tolerância para
com diferenças no estilo de vida também tem peso neste aspecto.
É claro que tais diferenças têm um impacto im portante na “leitura”
de um evento.
Algumas pessoas constróem eventos problem áticos que acon
tecem a elas com o “atos de Deus” , eventualm ente com o uma
punição merecida a elas. Q ualquer um que viaje pelo mundo
muçulmano irá descobrir quanto esta forma de reconstrução de
eventos ainda é forte: “Ins A llah” . Ela também perm anece viva em
comunidades que aparentem ente não pertencem a um a religião
explícita.
Uma terceira m aneira de construir um evento problem ático é
construí-lo como um acidente. Ele não é atribuído a ninguém ou
a algum a coisa e visto som ente como um fato da vida, sob uma
perspectiva de reordenação no presente e prevenção de riscos no
futuro. Esta é um a m aneira de construir eventos que é muito
freqüentemente usada em tipos de casos nos quais o “racism o” ou
a “rivalidade religiosa” estão implicados. Com o uma resposta à
violência na qual sua casa é queim ada e seu filho é morto, você
se torna ainda mais ativo para criar uma sociedade sem apartheid.
210 CONVERSAÇÕES ABOLICIONISTAS
BIBLIOGRAFIA
COMENTÁRIOS
DE ROBERTO BAPTISTA DIAS DA SILVA
ABOLICIONISMO, CRIATIVIDADE E
SATISFAÇÃO
1. U M A S O C IE D A D E S E M S IS T E M A P E N A L J Á E X IS T E
2. “ U M A P E R S P E C T IV A A B O L IC IO N IS T A F A Z B E M À SAÚ
DE”
(1991: 682) diz, “tudo o que esses eventos têm em com um é que
o sistem a de justiça crim inal está autorizado a em preender um a ação
contra ele.”
Em segundo lugar, a organização cultural do sistem a de justiça
crim inal é individualizante. Ela isola pessoas para atribuir-lhes
responsabilidades pessoais, enquanto que um sistem a mais adequado
focaria a situação em vez do "crim inoso.” (Idem, 1996: 15).' Junto
com a extrem a divisão de trabalho característica de sistemas
burocráticos, o efeito com binado da organização social e cultural
do sistema de justiça crim inal é muito paradoxal: “um a das
principais características da justiça crim inal é que ela prega em seu
discurso ‘a responsabilidade pessoal’ para os transgressores e
suprime a ‘responsabilidade pessoal’ para as pessoas que trabalham
sob seu referencial” (Idem , 1991: 6 8 6 ).
Em terceiro lugar, a organização social do sistem a da justiça
crim inal faz dela um sistem a sem clientes. A queles diretamente
envolvidos nos atos norm alm ente nem mesmo desejam que estes
sejam tratados nos term os culturais e da organização social da
justiça criminal. Isto não surpreende, pois o sistem a de justiça
crim inal não expressa preocupação com três valores altam ente
estimados em nossa sociedade:
“a) o respeito à diversidade e a produção de um a solidariedade
ativa, em um sentido ecológico mais amplo;
b) o respeito aos interesses concretos das pessoas; para serem
legitimados, profissionais e autoridades têm que sefvir a interesses
2. O DESAFIO DE REEMTSMA
2.1. D issuasão
9. Alessandro B a ra tía.
234 CONVERSAÇÕES ABOLICIONISTAS
BIBLIOGRAFIA
COMENTÁRIOS
DE SALETE MAGDA DE OLIVEIRA
CIVILIDADE E ESTAD O *
2. O C R E S C I M E N T O DE M O I S É S
3. M AIS T A R E F A S P A R A O EST A D O
4. N EN H U M L IM IT E N A T U R A L
7. O C R IM E NÃO E X IS T E
indesejável cham ado crim e. Vamos ser com pletam ente claros: eu
não estou dizendo que atos hediondos não existam . Eu não nego
que algumas pessoas recebam balas em seus corpos devido a armas
de outras pessoas, que algumas sejam m ortas por carros de outras
pessoas, que o dinheiro seja levado de suas gavetas ou contas
bancárias sem o seu consentim ento, e que a ocorrência de tudo isso
varie conform e a época e os países. A questão aqui é apenas que
o significado dos atos vistos com o deploráveis está sob constante
pressão e m udança. O crim e é apenas urna entre as inumeráveis
maneiras de se classificar atos deploráveis.
Deixe-m e dar mais um exem plo em um a história que poderemos
chamar:
8. O HOMEM NO PARQUE
9. L E I P E N A L IR R E S T R IT A
10. U M A A L T E R N A T I V A F U N C I O N A L À F O N T E D ’ÁGUA
B IB L IO G R A F IA
COMENTÁRIOS
DE PEDRO ARMANDO EGYDIO DE CARVALHO
SOCIEDADE E ESTADO:
A RECUSA DA TRANSCENDÊNCIA
Judiciosam ente, Juan Félix M arteau argum enta que, desm ancha
do o pensar clássico no tocante à ousada pretensão de “esboçar,
para todos, valores definitivos”, surge o problem a de estabelecer
“quais elem entos utilizar na reinvenção dessa nova forma de pensar
as práticas jurídicas sem a necessidade de aceitar um fundam ento
transcendente” (M arteau, 1997: 160, grifos meus).
Nils Christie, em sua percuciente análise das relações mantidas
entre “justiça piram idal” e “ justiça igualitária” , a prim eira repre
sentada hoje pelo Estado, e a segunda, pela sociedade civil, tece
considerações oportunas sobre m ecanism os que dispensariam , na
esfera penal, a excessiva presença das normcts previam ente dadas
para solucionar certa classe de conflitos sociais. Estas normas, gerais
e transcendentes aos atos e situações concretas, ao subsum i-los em
sua abrangência, perderiam justam ente as particularidades que os
definem e perm item uma avaliação correta de sua significação no
convívio social.
Os “com itês de m ediação” (konflikt-râd), ancorados nas
municipalidades da Noruega, são conselhos para soluções alternativas
diante de conflitos que normalmente seriam conhecidos e apreciados
pela justiça criminal comum. Por sua estrutura e funcionamento,
inibiriam os inconvenientes advindos da aplicação irrestrita das
normas penais, cuja natureza, na disciplina dos casos que lhes são
propostos, considera irrelevantes circunstâncias básicas, aptas a
conferir à espécie julgada uma direção totalmente original, mais
próxima à verdade e à justiça. Entre nós, brasileiros, a medida mais
aparentada a esses comitês noruegueses enraíza-se no conteúdo da
Lei n.° 9.099/95, a propósito dos Juizados Especiais Criminais,
limitados, contudo, ao campo dos ilícitos de menor potencial ofensivo.
INSTAURAÇÕES 259
BIBLIOGRAFIA
A C A M IN H O DO SÉCULO XXI -
ABOLIÇÃO, UM SO N H O IMPOSSÍVEL? *
1. SONHO IMPOSSÍVEL?
Tudo isso está muito bom, vocês diriam , mas trata-se da queda
de impérios inteiros como o Romano e o Soviético ou de imensas
instituições econôm icas como a escravidão. As experiências de tais
contextos se aplicam aos sistemas penais específicos, com seus bem
pagos legisladores, juizes e inúmeros adm inistradores dedicados?
Vou contar-lhes uma história, um pouco longa, mas eu espero
que vocês sejam pacientes comigo. Eu não a inventei, ela é verídica.
E a história de com o todo um sistem a penal, aparentem ente sólido
266 CONVERSAÇÕES ABOLICIONISTAS
3. A IRRACIONALIDADE DA PRISÃO „
mas que não incidia sobre a “perform ance” de crim es sérios, nem
mesmo sobre a de todos os tipos de crim es, mas somente em alguns
tipos insignificantes, como roubo de lojas, assaltos físicos triviais,
uso de metrô sem pagar e sem elhantes. E mesm o aqui, o efeito
medido em análise multivariada, para a A lem anha, foi caracterizado
como “rechts bescheiden” , bem modesto. A crescentarei a isso que
os jovens a serem detidos raramente com etem estes tipos de crimes.
Eles tendem a praticar os que não apresentaram efeito preventivo
(Schumann et. al., 1987).
Vocês podem perguntar: por que esses resultados? Deixe-me
lembrar, resum idam ente, que a ineficiência preventiva da prisão se
constitui em um problem a de com unicação. Nesse contexto, a
punição é um modo pelo qual o Estado tenta com unicar uma
mensagem, especialm ente a grupos particularm ente vulneráveis na
sociedade. Como um método de com unicação, é extrem am ente rude.
A própria m ensagem é difícil de ser transm itida, devido à
incom ensurabilidade da ação e da reação, A m ensagem é filtrada
e deturpada durante o processo e é confrontada com urna resposta
cultural nos grupos que a desconsidera, acabando por neutralizá-
la. A crescentem a isso o profundo problem a moral enraizado na
punição de algumas pessoas com o objetivo de prevenir outros de
agir de forma sem elhante — um problem a moral que não é perdido
nos grupos alvo importantes — e vocês terão o quadro geral. O
que é surpreendente não é o efeito mínimo, mas a persistente crença
política em tal método de com unicação prim ário.
Q uarto, há o argumento da interdição dos transgressores.
Tradicionalm ente, o argumento tem adquirido duas formas: a da
interdição seletiva e a da interdição coletiva.
A interdição coletiva implica o uso da prisão contra categorias
inteiras de prováveis reincidentes. Você simplesmente os liquida
trancafiando-os e jogando fora a chave. Em grande parte, esta é a
política presente nos Estados Unidos. A questão não é reabilitar os
transgressores e nem prevenir outros de cometerem atos similares,
mas simplesmente tirar os transgressores do circuito social. A
interdição coletiva tem sido intensam ente estudada tanto na
Escandinávia quanto nos Estados Unidos. M esmo se aceitássemos a
sua moralidade, os resultados seriam, usando palavras amenas, muito
274 CONVERSAÇÕES ABOLICIONISTAS
um a vez que a solução altam ente repressiva falhou com pletam ente.
Os políticos que criaram , m antiveram e, de fato, expandiram o
sistem a atual, teriam de adaptar-se, rapidamente, a fim de não perder
os eleitores, sua principal preocupação.
Eu procuro — e isso é apenas um a lista resumida — o apoio
às vítimas de diversas formas: com pensação econôm ica (do Estado)
quando isso for pertinente, um sistem a de seguro sim plificado, apoio
sim bólico em situações de luto e pesar, abrigos para onde levar
as pessoas quando necessitarem de proteção, centros de apoio para
m ulheres espancadas, solução de conflitos quando isso for possível,
e assim por diante. As vítim as não recebem absolutam ente nada
do sistem a atual, nem da aceleração e am pliação do sistem a presente
no entanto poderiam receber m uito se. houvesse a m udança de
direção do sistem a na forma com o sugeri. Uma idéia e um princípio
fundam ental seria guinar o sistem a em 180 graus: ao invés de
aum entar a punição do transgressor de acordo com a gravidade da
transgressão, o que é básico no sistem a atual, eu proporia o aum ento
de apoio à vítima de acordo com a gravidade da transgressão. Em
outras palavras, não uma escala de punições para os transgressores,
mas um a escala de apoio às vítimas. Certam ente, esta seria um a
m udança radical, mas que seria racional do ponto de vista das
vítim as e, provavelm ente, tam bém , útil para superar a resistência
ao desm antelam ento do sistem a atual.
Eu procuro recursos para o transgressor na forma de um a série
de m edidas. Em termos gerais, a guerra contra o crim e deveria
tornar-se uma guerra contra a pobreza. Mais uma vez, eu aperrás
estou lhes dando uma pequena lista; muitos detalhes deveriam ser
definidos: m oradias decentes, program as de trabalho, de educação
e tratam ento mas não baseados na força e — mais im portante —
um a m udança em nossa política sobre drogas. Legalizando as drogas
e tornando-as, assim com o a m etadona, disponíveis sob condições
sanitárias e supervisionadas, neutralizaria o mercado ilegal e
reduziria drasticam ente a quantidade de crimes relacionados às
drogas. P or si mesm a, percorreria um longo caminho em direção
ao esvaziam ento de nossas prisões. U m a mudança em nossa política
sobre drogas tam bém atingiria o centro do crim e organizado da
droga, que é dependente das forças do mercado. Em outras palavras,
INSTAURAÇÕES 277
Isso nos leva para a terceira camada. Esta, pelas razões que
delinearei em um minuto, é a m ais importante. Existe ao longo da
extrem idade ou fronteira do sistem a carcerário: é fo rm a d a pelos
m eios de comunicação de m assa enquanto uma esfera ou espaço
p ú b lic o que consegue c o n te r tudo na so cied a d e m oderna
ocidentalizada.
5. E S F E R A P Ú B L IC A A L T E R N A T IV A
BIBLIOGRAFIA
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INSTAURAÇÕES 287
C O M E N T Á R IO S
DE EDSON PASSETTI
Tê-lo conosco foi o acerto esperado. V olte sem pre, pessoalm en
te, por artigos e livros, via jornal, revistas, e-m ail, fax ou TV a
cabo. O abolicionism o não é um saber acabado, senão seria outro
disfarce da prevenção geral com o a despenalização. Ele tem
fraquezas mas não deve se esconder na com petência livresca. Enfim,
com o destacava o sociólogo M ax W eber, com petente é quem e
capaz de desem penhar funções de m aneira im pessoal; e o risco ds
ficarm os nas mãos destas pessoas já o vivemos em diversos regimes
neste século. Não precisam os dos com petentes mas dos pensadores
de risco, questionando o pensam ento pelo próprio pensamento,
aprendendo e ensinando com os envolvidos nestes saberes sobre
a prisão, a autoridade e a liberdade.
Se fosse para alardear urna ética, entre a da responsabilidade
e a da convicção, mesm o sabendo que ambas não se excluem , creio
que penderíamos para a da convicção.
Espero, acom panhando sua pergunta, que a abolição não seja
sonho impossível, mas um acontecim ento possível. E que venha
rápido para os adolescentes brasileiros.
& '■
P ublicação do
INSTITUTO BRASILEIRO
DE CIÊNCIAS CRIMINAIS
PEPG CIÊMC1AS SOCIAIS PU C/SP
mm