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Quasímodo somos nós

Hoje é um dia de luto. Em 15 de abril de 1980, há 39 anos, morria a “consciência odiada do seu século”,
Jean Paul Sartre. Hoje, 15 de abril de 2019 queima Notre-Dame. É um luto múltiplo, em 1831 outro francês
publica um libelo da literatura universal “Notre-Dame de Paris” (mais conhecido por “O corcunda de Notre-
Dame”) em defesa da catedral. Engana-se quem pensa que o livro de Victor Hugo é sobre Quasímodo e
Esmeralda, o amor do disforme pela cigana é apenas uma desculpa para tema principal do livro que é a própria
catedral de Notre-Dame. É irônico que há quase duzentos anos Victor Hugo tenha escrito um clássico da
literatura para ressaltar a importância de preservar a catedral que hoje arde em chamas. É impossível descrever
a perda causada por esse incêndio. As próximas gerações estão impossibilitadas de conhecer a maravilha que
foi aquela construção de mais de seiscentos anos. Em 1482, que é quando se passa a história de Victor Hugo,
havia dois marcos principais na frança, O Palácio da Justiça que representava o governo e Notre-Dame que
representava a religião. O governo e a religião franceses cederam ao fogo, o palácio em 1618, a catedral em
2019. Victor Hugo cita Teófilo ao imaginar os motivos que levaram ao incêndio

Certes, ce fut un triste jeu


Quand à Paris dame Justice,
Pour avoir mangé trop d’épice,
Se mit tout le palais en feu.

É a desculpa da poesia. Ele continua, ressaltando que não tem importância se há uma tríplice explicação
para o fato, seja ela política, física ou poética pois, diz ele, “infelizmente certo, é o incêndio”. A explicação não
importa ante o fato irremediável e tristemente ele faz as perguntas mais dolorosas ante uma tragédia

Hoje em dia resta muito pouco do antigo edifício, devido a essa catástrofe e,
ainda mais, às diversas e sucessivas restaurações que terminaram com o que
o incêndio havia poupado. Resta muito pouco daquela primeira moradia dos
reis da França, daquele palácio anterior ao Louvre, já tão velho no tempo de
Filipe o Belo que nele se procuravam traços dos magníficos edifícios
levantados pelo rei Roberto e descritos por Helgaldus. Quase tudo
desapareceu. O que houve com o quarto da chancelaria, onde são Luís
consumou seu matrimônio? E com o jardim em que ele dispensava justiça,
“vestindo uma cota de camelot, um tabardo de tiritana sem mangas e um
manto de cendal escuro, estendido em tapetes, na companhia de Joinville”?
Onde está o quarto do imperador Sigismundo? O de Carlos IV? O de João
sem Terra? Onde está a escadaria em que Carlos VI promulgou seu édito de
clemência? E a laje em que Marcel degolou, na presença do delfim, Robert de
Clermont e o marechal de Champagne? O postigo através do qual foram
rasgadas as bulas do antipapa Bento e de onde voltaram os que as haviam
trazido, com capa e mitra de zombaria, obrigados a assim desfilar por toda
Paris? E o grande salão com sua douradura, seu azul, suas ogivas, suas
estátuas, colunas e imensa abóbada inteiramente esculpida? E o quarto
dourado? E o leão de pedra que vigiava à porta, agachado, de cabeça baixa e
o rabo entre as pernas, como os leões do trono de Salomão, em atitude de
humildade, como deve a força se colocar diante da justiça? E as belas portas?
Os belos vitrais? As fechaduras cinzeladas que tanto custaram a Biscornette?
E a delicada marcenaria de Du Hancy ?... O que fez o tempo, o que fizeram
os homens de todas essas maravilhas? O que nos deram no lugar de tudo isso,
de toda essa história gaulesa, de toda essa arte gótica?

Que perguntaremos nós, observadores desse horror? Que haverá dos vitrais sempre em flor? Que será das
folhas pétreas que verdejavam nos tufos cheios de passarinhos dos capitéis saxões? Que restará das torres
colossais da igreja a observar o oceano murmurejante de paris? E as janelas de onde se viu queimarem Jacques
de Molais e outros templários acusados de heresia por Clemente V? E o Salão onde foi coroado Henrique V
durante a Guerra dos Cem Anos? E o altar onde foi coroado Napoleão Bonaparte com a benção de Pio VII? E o
lugar onde foi beatificada Joana d’Arc em 1909? Que restará do trabalho de Eugene Viollet-le-Duc?
Sartre morreu há 39 anos, queima hoje Notre-Dame e as trevas que não existiram na Idade
Média descem pesadamente sobre o nosso século XXI. No enterro de Sartre (onde mais de 50 mil
pessoas estavam no cortejo, coisa só antes vista no enterro de Victor Hugo) alguém deu o
depoimento dizendo “Uma vez que Sartre morreu, a estupidez terá o campo livre” , foi profético.
Vivemos tempos sombrios, hoje ainda mais escuros pela fumaça de Notre-Dame. Pêsames a todos
nós.

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