Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
SEMINARIO LATINOAMERICANO
Resumo
O trabalho apresenta um breve estudo sobre a produção do espaço nas metrópoles
brasileiras com um olhar mais apurado para a cidade de Fortaleza, no estado brasileiro do Ceará.
Esta análise pretende enfocar aspectos socioambientais, na medida em que apresenta a conexão
estrutural entre o processo de produção do espaço urbano e a formação dos assentamentos
populares em áreas ambientalmente frágeis. Tomamos como estudo de caso a comunidade do
Lagamar, que é um exemplo concreto de espaço socioambientalmente vulnerável. A
comunidade será apresentada como paradigma desse processo de crescimento urbano, no qual
a questão ambiental se vincula diretamente à situação de risco da população residente. Além do
diagnóstico e caracterização das problemáticas locais, as tentativas de compatibilizar essa
complexa relação socioambiental serão apresentadas a partir das ações e encaminhamentos
realizados pelos moradores e órgãos públicos. Finalizando essa análise global da relação entre
a interferência humana no espaço natural para a produção do espaço urbano e a exemplificação
com uma comunidade experiente, o trabalho se dá por concluído com uma reflexão crítica
acerca do processo de planejamento das cidades brasileiras e vislumbra ações possíveis para
minimizar a vulnerabilidade socioambiental no espaço urbano.
Abstract
The paper presents a brief study about the production of space in Brazilian cities, with
a closer look at the city of Fortaleza, Ceará. Our analysis focus on the socio-environmental
relationship implied in the interweaving between production of the urban space process and
formation of popular settlements in environmentally fragile areas. As a case study, we take
Lagamar community as a concrete example of an environmentally vulnerable space. We will
present the community as a paradigm of a kind of urban growth, in which the environmental
issue permeates the risk situation of the population resident in the place. In addition to the
characterization and diagnosis of local problems, we will present attempts to reconcile this
complex socio-environmental relationship, based on deliberations and actions of residents and
public agencies. Finalizing this global analysis of the relationship between human interference
in the natural space for the production of the urban space and the exemplification with an
experienced community, the work concludes with a critical reflection on the city planning
process and possible actions to avoid and soften social and environmental vulnerability in urban
space.
Introdução
O crescimento das grandes metrópoles brasileiras apresenta como característica
importante a dimensão ambiental nos problemas urbanos, em especial aqueles ligados
diretamente ao parcelamento, ao uso e a ocupação do solo no qual os assentamentos populares
desempenham um papel significativo.
O padrão de urbanização das metrópoles brasileiras e, em especial, na cidade de
Fortaleza, levou a duas características particulares associadas à forma predominante de pensar
e construir a cidade: a primeira é a insustentabilidade dos processos de expansão da área urbana
e de transformações do espaço intra-urbano; e a segunda é a baixa qualidade de vida urbana
imprimida a parcela significativa da população.
O crescimento metropolitano da cidade de Fortaleza foi marcado pela ineficiência do
planejamento urbano e ausência de projetos articulados, aliado a uma forma de produção do
espaço segregacionista e excludente. Além disso, é perceptível a desarticulação da política
urbana e da política habitacional que, de modo geral, não prioriza um desenvolvimento justo e
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano
uma transformação nas relações de trabalho e na organização social, apesar de, a rigor, a base
política continuar composta pela elite agrária. Maricato (1997, p. 26) afirma que “foi, portanto,
sob o domínio absoluto do café que o crescimento urbano/industrial se inicia, gerando uma
sociedade mais diversificada, com o aparecimento da classe média formada por profissionais
liberais, jornalistas, militares. ”
Para que se tivesse as possibilidades e condições de realização material do capital e
reprodução da força de trabalho era necessário uma infraestrutura urbana industrial bem como
a adequação das condições sociais a nova realidade. O investimento em infraestrutura e as ações
“modernizadoras1” na estrutura urbana se concentraram nas cidades do sudeste do Brasil, como
São Paulo e Rio de Janeiro. As cidades do nordeste brasileiro, como Fortaleza, não se
beneficiaram de forma mais direta dessa infraestrutura proporcionada pela produção cafeeira, e
os processos de industrialização ocorreram mais tardiamente. A maior concentração da
população no Nordeste se encontra nas cidades litorâneas, de modo que os investimentos fruto
da pecuária extensiva, bem como da produção de algodão, se concentrava no litoral e não no
sertão.
Entre as décadas de 1930 e 1950 a conjuntura urbana brasileira apresenta grandes
transformações impulsionadas pela industrialização e pelo processo intenso de migração da
população do campo para a cidade. A partir dos anos de 1950, a industrialização baseada numa
produção com forte influência fordista provocou uma grande migração da população de várias
regiões do país em busca de melhores oportunidades. O rápido crescimento populacional sem
um correspondente crescimento da infraestrutura urbana provocou o surgimento de diversas
problemáticas. Esse crescimento influenciou um padrão de urbanização com características
metropolitanas que trouxe duas consequências importantes na formação das cidades no Brasil:
a primeira, é a utilização indevida dos recursos naturais como áreas de proteção, áreas de
preservação e de interesse ambiental; e a segunda, é o surgimento de assentamentos precários,
principalmente em setores mais periféricos das cidades.
É esse padrão de urbanização que vai moldar uma parte das cidades brasileira, a partir
dos anos 50, criando enormes periferias sem condições adequadas de habitabilidade, onde se
concentrava o contingente populacional que não conseguia ter acesso a áreas mais centrais das
cidades. Esta forma de crescimento das cidades provoca, necessariamente, a utilização da
1
Muitas reformas urbanas que ocorreram no Brasil, utilizaram o argumento da modernização e do embelezamento
para as ações de remoção de populações de baixa renda. Com efeito, nessas reformas, promovia-se o novo que já
traz em si sua própria negação: a cidade era negada à população pobre, que era expulsa de suas casas, em nome da
modernização e do embelezamento, isto é, em nome do bem-estar comum.
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano
natureza como recurso, bem como o desenvolvimento industrial, de novas técnicas impõe
transformações ao meio ambiente.
Villaça (1986) afirma que a questão habitacional surge com o homem livre e a
consolidação de uma classe trabalhadora a partir dos anos 50. Ele explicita a situação
habitacional como uma das adversidades estruturadoras da problemática urbana, que tem
impacto no meio ambiente. A questão urbana que está posta através da habitação popular, nas
suas mais variadas formas, se expressa de maneira acentuada em uma segregação socioespacial
(KOWARICK, 1979) produzida por um processo de urbanização desigual. É nesse contexto
que se formam os setores mais periféricos nas cidades desprovidos de infraestrutura urbana ou
equipamentos e serviços público que ocupam locais que não interessa ao mercado imobiliário,
principalmente áreas limítrofes a recursos hídricos e vegetações naturais. Essa condição vai
marcar a maioria das cidades brasileiras, nas décadas seguintes, promovendo um enorme ônus
às populações ali residentes.
Nos anos de 1960 e 1970, há um investimento maciço em uma política de mobilidade
que valoriza o transporte automotivo como forma principal de locomoção de pessoas e
mercadorias. A rede de rodovias que deu suporte a esse sistema de transporte causou impactos
significativos nos recursos naturais, tanto do ponto de vista do impacto na paisagem, quando da
poluição sonora, visual e ambiental. A expansão e o crescimento urbano em áreas ambientais,
de proteção de mananciais e bacias hidrográficas expõe os conflitos e contradições presentes
nos processos de urbanização das cidades no Brasil.
Na década de 1990 é observado modificações no espaço urbano brasileiro,
particularmente associados ao crescimento de cidades médias e ao surgimento de novas Regiões
Metropolitanas. Os ambientes naturais passam a ter um significado e valor para o mercado, na
medida em que são adquiridos de forma privada, perdendo aos poucos seu status de bem
comum. Os recursos naturais adquirirem um fator de valorização quando estão próximos a
empreendimentos de alto padrão, bem como são desvalorizados quando estão próximo de
assentamentos precários. O discurso da problemática que envolve o meio ambiente passa a ser
direcionado para a culpabilização das populações de baixa renda que, por não ter opções
disponíveis na cidade, acabam por ocupar áreas ambientalmente frágeis.
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano
Rodrigues (2014) afirma que a suposta crise ambiental, tema de pesquisa de intelectuais
e objeto de debate de conferências2, comissões3 e relatórios, não é de fato uma crise ambiental,
trata-se de uma crise decorrente do modo de produção capitalista que, para continuar seu êxito,
precisa manter suas condições de reprodução do capital. Rodrigues (2014, p. 211) discorre ainda
que:
... as novas matrizes discursivas, ao mesmo tempo em que ocultam os verdadeiros
responsáveis pelos problemas - aqueles que se apropriam e são proprietários dos meios
de produção, da terra, das riquezas - e atribuem a responsabilidade aos “consumidores” e
aos pobres que ocupam as piores áreas, que não interessam ao setor imobiliário,
obscurecendo a essência da desigualdade e da segregação socioespacial, ocultando a
importância do território, do espaço e da sociedade.
Nesse contexto, é importante destacar que os agentes produtores do espaço urbano que
possuem maior poder aquisitivo se localizam melhor na estrutura das cidades em relação a
emprego, à oferta de serviços urbanos, ao comércio e a infraestrutura do que aqueles agentes
que compõem os grupos sociais excluídos. Nas últimas duas décadas, a globalização pressupõe
a expansão de um modelo de produção e de reprodução do capitalismo de modo financeirizado
que parece reforçar essa discrepância nas formas de ocupar o território da cidade. No Brasil, a
financeirização da terra, da habitação e do meio ambiente tem ocorrido de forma acentuada,
muitas vezes através de instrumentos urbanísticos pensados pelas próprias gestões públicas
como forma de democratizar o acesso à cidade, como é o caso das Operações Urbanas
Consorciadas (OUC)4.
2
Conferência da ONU sobre Meio Ambiente ocorrida em 1972 na cidade de Estocolmo.
3
A ONU criou, em 1983, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD) com a
finalidade de realizar um diagnóstico sobre o tema do meio ambiente.
4
A Operação Urbana Consorciada é um instrumento urbanístico presente no Estatuto da Cidade que é utilizado
para requalificar uma área da cidade ou para ampliar ou instalar infraestrutura e equipamentos urbanos. Deve
ocorrer de forma participativa com o acompanhamento de diversos agentes que produzem o espaço urbano.
5
Dados disponíveis em: <http://www.ibge.gov.br/home/>. Acesso em: 24 mar. 2018.
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano
seguida pelas cidades de São Paulo (73,98 hab/ha), Belo Horizonte (71,61 hab/ha) e Recife
(70,39 hab/ha).
Maior cidade do estado do Ceará, Fortaleza é o quinto maior município do Brasil em
população, sendo dividido, para efeitos administrativos, em 119 bairros organizados em 7
secretarias executivas regionais (SERs)6. A Região Metropolitana de Fortaleza (RMF)7 é a
oitava maior do país, com uma população de 3.818.380 habitantes (estimativa IBGE 2017).
Fortaleza corresponde ao município sede da região metropolitana onde estão localizadas grande
parte dos serviços e dos estabelecimentos comerciais (PEQUENO, 2015a). Pequeno (2015a)
afirma que a RMF possui um aglomerado urbano com mais de 96% de taxa de urbanização,
apesar de várias áreas serem consideradas rurais.
6
Secretaria executiva regional é uma divisão política administrativa utilizada pela prefeitura de Fortaleza com o
intuito de facilitar a administração bem como a distribuição de recursos públicos para cada setor da cidade.
7
Estabelecida pela Lei Complementar n ̊ 14 de 8 de junho de 1973, que também estabelece regiões metropolitanas
de outras cidades do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp14.htm> Acesso
em: 22 mar. 2018. Atualmente os municípios que compõem a RM de Fortaleza são: Aquiraz, Cascavel, Caucaia,
Chorozinho, Eusébio, Fortaleza (sede), Guaiuba, Horizonte, Itaitinga, Maracanaú, Maranguape, Pacajus, Pacatuba,
Pindoretama, São Gonçalo do Amarante, São Luís de Curu, Paraipaba e Trairi.
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano
A cidade possui um complexo hídrico formado por três bacias hidrográficas, a saber: a
bacia do Rio Cocó, a bacia do Rio Maranguapinho e a Vertente Marítima. Possui ainda outros
recursos hídricos, compostos por rios, riachos e lagoas. Esses elementos são importantes, mas
não são valorizados como elemento estruturante da organização espacial e do planejamento
urbano da cidade. Isso acarreta diversos problemas até hoje, tendo em vista que as margens de
vários desses recursos hídricos foram apropriadas, de um lado, pela população de baixa renda,
com ocupações de alta densidade e deficiência de infraestrutura (Mapa 02: Assentamentos
precários e recursos hídricos) e, de outro, pelos especuladores imobiliários de forma indevida,
sem atender às exigências mínimas das faixas de proteção, preservação e de domínio público,
destruindo a mata ciliar, essencial à proteção contra assoreamentos.
314 assentamentos precários que possuem mais de 108 mil domicílios (PEQUENO, 2015a).
Mais recentemente, o Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS), realizado em 2012
para a cidade de Fortaleza, indica que existem 619 favelas e um total de 843 assentamentos
precários entre os quais estão incluídos favelas, loteamento irregular e conjunto habitacional
precário. Do total de assentamentos precários 230 estão localizados totalmente ou parcialmente
em áreas de risco, predominando as ocupações nos leitos dos rios e canais (Mapa 03:
Assentamentos precários em áreas de risco).
Existe de fato uma concentração maior desses assentamentos subnormais na capital
cearense, todavia o processo de formação de assentamentos precários na RMF já vinha
ocorrendo desde 1990. Segundo Pequeno (2015a), o censo do IBGE de 2010 identifica
assentamentos subnormais em 8 dos 15 municípios que compunham a RMF na época.
8
Antigo riacho Tauape que atualmente é canalizado e conhecido pelos moradores de Fortaleza como Canal do
Lagamar.
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano
A ocupação das primeiras famílias às margens do antigo riacho data do período entre
1930 e 1950, sendo a maioria delas vindas de diversas cidades do interior do Estado do Ceará,
em virtude da seca9. Elas se fixaram no local, de forma desordenada, sem qualquer assistência
pública ou diretriz legal de ocupação.
Segundo Freitas (2014), o aumento do número de famílias na comunidade ocorreu na
década de 1980, em um período de recessão econômica e falta de alternativas de habitação de
interesse social. As ocupações no local continuaram ocorrendo nos anos seguintes, contudo, os
terrenos livres estavam cada vez mais escassos. Em 2012, ocorreu uma das últimas grandes
ocupações registradas na comunidade, com a ocupação de uma escola e um centro comunitário
para fins de moradia.
Segundo os dados do Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS) de
Fortaleza foram contabilizados 10.148 habitantes residentes na comunidade em uma área total
de 33,751 ha, tendo assim uma densidade demográfica de 300,67 hab/ ha. Se comparado com
a cidade de Fortaleza, que possui a densidade demográfica de 82,86 hab/ha, o Lagamar tem a
densidade quase quatro vezes maior quantidade de habitantes em seu território.
Além da vulnerabilidade ambiental, a comunidade é caracterizada por sua grande
vulnerabilidade social. Essa característica é evidenciada pelos dados relativos à densidade, a
renda familiar, o acesso a infraestrutura básica, a qualidade habitacional, entre outros
indicativos.
9
Devido, em parte, as condições climáticas no nordeste brasileiro é comum a seca ou estiagem, ou seja, longos
períodos com escassez de chuvas que provoca miséria e fome.
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano
Imagem 02: Início da ocupação da comunidade I década de 1950 (Fonte: Jornal O Povo)
10
O Censo Lagamar 2005 foi uma pesquisa realizada em 2005, através do projeto de Plano de Desenvolvimento
em Rede, pela Fundação Marcos de Bruin em parceria com o Banco do Nordeste. O Censo coletou dados
socioeconômicos e espaciais da comunidade do Lagamar para servir como diagnóstico base para formulação de
políticas que contemplem as demandas comunitárias.
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano
drenagem no Lagamar é superficial, captando a água resultante das chuvas. Essa rede está
presente apenas em vias de maior porte, enquanto a maior parte da comunidade que é composta
por travessas e ruas estreitas não têm esses sistemas de drenagem. Com isso, nessas vias, a água
que não evapora ou se infiltra no solo, é acumulada ou escoada muito lentamente.
Além da ausência de um sistema de drenagem eficiente, outro grande problema é o lixo
acumulado nos bueiros e bocas de lobo. Segundo o Censo Lagamar 2005, quase 50% das
famílias residentes na comunidade sofrem com alagamentos de suas residências durante os
períodos chuvosos. Nessas ocasiões, muitas famílias perdem seus pertences.
É importante ressaltar que apesar de alguns dados apresentados serem do ano de 2005,
os problemas apresentados ainda se mostram atuais e pertinentes em potencialidade parecida.
É comum ver lixo nos espaços públicos, nas ruas e próximo ao canal. Os containers, geralmente,
não comportam a demanda que existe, de modo que o lixo fica acumulado ao redor. Uma parte
desses resíduos ainda é jogado no canal provocando o acúmulo nas ruas e casas quando o canal
transborda.
11
As Zonas Especiais de Interesse Social são áreas territoriais demarcadas objetivando prioridade de urbanização,
quando já ocupadas por assentamentos precários, ou construção de habitação de interesse social, quando áreas
vazias, tendo que ser indicadas no Plano Diretor da cidade, sendo um importante instrumento urbanístico na luta
pelo direito à moradia digna.
12
Código Florestal
13
A Defesa Civil é responsável por mapear espaços considerados de risco para ocupação devido a desastres
ambientais, tendo também ações posteriores em caso de ocorrência dos desastres. Ela monitora as áreas
demarcadas avaliando a evolução dos riscos nos territórios.
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano
14
Nome fictício dado a antiga moradora da comunidade do Lagamar para não revelar sua identidade.
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano
reuniram para começar a construção da rede de esgotamento. Em relato oral, dona Maria traz
alguns aspectos desse processo de urbanização que começou com os moradores.
“Moro aqui há mais de 40 anos, quase 48. Antigamente era só mato. No lado dos trilhos
funcionavam barraquinhas, nos dois lados, onde vendiam peixe e outras coisas, vendia de tudo.
Aqui era tudo dentro do mato, quando a gente caminhava vivia atolando na lama, a canela
entrava até a metade, tinha que fazer esforço pra sair. Agora é uma benção, tudo limpinho pra
andar. Nos anos 90 o (ex-governador) Tasso ficou com vergonha ao ver a comunidade pobre
mas com grande força de vontade se organizando para comprar materiais e canos pra poder
resolver o problema da lama e se comprometeu a ajudar.
Nós mesmos instalamos, já que não dava pra pagar outra pessoa pra fazer. Ele mandou fazer
banheiros de cimento quando viu que as ruas viviam sujas de esgoto que não tinham pra onde
correr. Depois, com muita luta conseguimos comprar privadas de verdade. ”
Dois últimos grandes projetos que incidiram e ainda repercutem na comunidade são a
construção de um viaduto e de uma rotatória em uma avenida limítrofe a comunidade; e a
construção do ramal do VLT Parangaba-Mucuripe15 que corta a região norte do Lagamar.
O projeto da construção da rotatória e do viaduto procurava sanar o problema do trânsito
na ligação leste-oeste da cidade. Para isso, necessitou de remoções na área próxima e, quando
concluído, aumentou o fluxo de veículos em ruas e avenidas que passavam na comunidade.
O VLT Parangaba-Mucuripe, ainda em obra, além de cortar parte da comunidade,
possui uma estação na área de ZEIS. Para a ampliação da via férrea existente, que atualmente
passa um trem de carga, para incluir essa nova linha, foram necessárias cerca de 200 remoções,
além de deixar parte da comunidade isolada entre o canal e a via férrea.
15
O Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) é um projeto que data ainda de 2009, pensado para a Copa do Mundo no
Brasil, em 2014, que ainda não foi concluído (2018). Seu processo de construção exigiu remoções de cerca de
2.500 famílias estando ainda muitos casos em processo.
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano
Nesse contexto, com a comunidade mais articulada, muitos dos grandes projetos
pensados pelos órgãos públicos enfrentaram forte resistência popular, tendo sido modificados
em sua maioria, principalmente em relação a quantidade de remoções.
Apesar das muitas agressões que a comunidade enfrenta, um dos maiores ganhos, ainda
que incompleto, foi a sua demarcação como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), em 2010.
Segundo o Plano Diretor Participativo do Município de Fortaleza de 2009, artigo 123:
As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) são porções do território, de propriedade
pública ou privada, destinadas prioritariamente à promoção da regularização urbanística
e fundiária dos assentamentos habitacionais de baixa renda existentes e consolidados e ao
desenvolvimento de programas habitacionais de interesse social e de mercado popular
nas áreas não edificadas, não utilizadas ou subutilizadas, estando sujeitas a critérios
especiais de edificação, parcelamento, uso e ocupação do solo.
Contudo, apesar de delimitada, a ZEIS Lagamar ainda luta para ser regulamentada e
poder ter seus direitos sociais, jurídicos e urbanísticos garantidos e executados. Atualmente, a
comunidade está mobilizada para que esse processo seja efetivado.
Imagem 06: Ponte nova e antiga de travessia do canal I maio/2017 (Fonte: Autoras)
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano
Considerações Finais
A breve análise da produção do espaço urbano na cidade de Fortaleza, forneceu
subsídios para um avanço na compreensão de como os agentes produtores do espaço se
apropriam do solo na capital cearense. Há em Fortaleza uma diversidade de ocupações, seja a
realizada pela população de baixa renda, seja a feita pelo mercado imobiliário formal, que estão
em desacordo com a legislação vigente, e são, por tanto, do ponto de vista legislativo
ilegais. Esse fato ocorre por diversos motivos, mas é possível citar a existência de um
descompasso entre as diversas políticas pensadas para a cidade que se expressa na forma de
ações e investimentos em áreas que de fato não são as que deveriam ser priorizadas na
distribuição dos recursos. Em muitos casos, os programas de regularização fundiária de
assentamento informais são realizados apenas como uma maneira de materializar o direito à
habitação sem, de fato, promover o direito à moradia digna materializado na urbanização do
território.
É imperativa a necessidade de um planejamento urbano integrado, que pense
conjuntamente as políticas urbanas, habitacional e ambiental, de modo que as ações e projetos
sejam melhores diferenciados. Como afirma Freitas (2014), o Estado deve ter efetivo controle
na forma de uso do solo, especialmente na contenção do processo de aumento especulativo do
preço dos terrenos e combate a retenção dos vazios urbanos. O planejamento da expansão
urbana deve levar em consideração as necessidades complementares da população, observando
a importância dos espaços naturais na cidade e o direito à moradia digna, no qual a habitação,
infraestrutura, serviços e transportes sejam acessíveis. Nesse sentido, o Estado deve se antecipar
nas propostas de um processo de crescimento sustentável urbano. Ele delimita e fiscaliza as
áreas para ocupação ao mesmo tempo que protege os espaços naturais, evitando o processo de
segregação sócio espacial e degradação do meio ambiente, com ocupações em áreas
ambientalmente frágeis, que pode levar a situações de vulnerabilidade socioambiental.
Quando não existe esse controle do Estado é frequente casos de ocupações em áreas
ambientalmente frágeis. A forma de intervenção posterior nos assentamentos subnormais que
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano
Bibliografia
Aguiar, M. L. da S. (2016). Comungar é torna-se um perigo: A política de cultura dos jovens
em busca de Deus (JBD) e o desenvolvimento da cidadania cultural no Lagamar. Dissertação
de mestrado, Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, Brasil.
Alves, H. P. da F. (jan/jun. 2016). Vulnerabilidade socioambiental na metrópole paulistana:
uma análise sociodemográfica das situações de sobreposição espacial de problemas e riscos
sociais e ambientais. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, vol. 23, n° 01, p. 43 – 59.
Bento, V. R. da S. (2011). Centro e Periferia de Fortaleza da Ótica das disciplinas na
Infraestrutura de Saneamento Básico. Mestrado Acadêmico em Geografia, Universidade
Estadual do Ceará, Centro de Ciências e Tecnologia. Fortaleza, Brasil.
Costa, M. L. P.; Rezende, E. N. (set/dez. 2014). A atuação da defensoria pública na
regularização fundiária urbana de interesse social em área de preservação permanente: o
paradoxo entre a preservação ambiental e a dignidade da pessoa humana. Revista do Direito
UNISC, Santa Cruz do Sul, n°44, p. 25 – 49.
Lei n° 12.651, Capítulo II - Seção I (Delimitação das áreas de preservação permanente), de 25
de maio de 2012. Acesso em: 20 de março de 2018.
Disponivel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm.
Fernandes, E. Instituto de registro imobiliário do Brasil. Preservação ambiental ou moradia?
Um falso conflito.
Em: http://www.irib.org.br/obras/preservacao-ambiental-ou-moradia-um-falso-conflito.
Acesso: 20 de março de 2018.
INFO-HABITAT
Instituto del Conurbano