O historiador Ian Kershaw, ao analisar a extensão e o poder de Hitler, dispensa as duas
categorias principais de abordagem. A intencionalista, onde “presume-se o poder supremo de
Hitler como senhor do Terceiro Reich e a história do nazismo no poder é vista como a história da implementação programada e consecutiva das intenções ideológicas de Hitler… Nessa interpretação, Hitler é concebido como uma clássica personificação do poder num Estado totalitário”. A outra, a estruturalista, em contraste com a primeira, destacou o condicionamento das decisões políticas pelas pressões estruturais. “A ideologia foi vista menos como um “programa” coerentemente implementado do que como um suporte frouxo de uma ação que apenas gradualmente, aos tropeços, foi assumindo a forma de objetivos realizáveis”. Nessa interpretação a ação de Hitler foi questionada, sendo retratado como “pouco disposto a tomar decisões”. Kershaw propõe uma análise mais englobante, parte da “premissa de que o poder de Hitler foi efetivamente real, e não uma fantasia. Mas interpreta a extensão e a expressão desse poder em larga escala, como produto de uma colaboração e da tolerância, dos erros erros de avaliação e da fraqueza dos outros que detinham o poder e influência”. Nossa análise acerca da candidatura à presidência de Jair Bolsonaro segue na esteira do que propõe Kershaw. O que se pretende é uma comparação entre os dois casos a fim de dar luz a situação brasileira. Tendo o cuidado para não cometer gafes anacrônicas, o que se pretende são especulações comparativas partindo de uma percepção conceitual. Para tanto, nos atentaremos para a aplicação do conceito de dominação carismática de Webber, utilizado por Kershaw para analisar a figura de Hitler, e que permite uma aproximação dos caso alemão com o brasileiro. Portanto nos deteremos a seguinte hipótese: a eleição de Bolsonaro, à semelhança do caso hitleriano, só foi possível a partir apreensão, apreciação e consentimento dado pela população ao seu discurso - através de sua “autoridade carismática” nascida em meio à uma “crise” -, e o apoio financeiro e ideológico de setores conservadores. Dominação consentida A dominação carismática, em contraste com a dominação baseada na burocracia impessoal da “autoridade legal”, que caracteriza a maioria dos modernos sistemas políticos, se baseia nas percepções de heroísmo, grandiosidade e de uma “missão” num “líder” proclamado. Tende a emergir em situações de crise e está sujeita a ruir em virtude de duas razões principais: ou pela impossibilidade de atender às expectativas, ou por se rotinizar num sistema que só seja capaz de se reproduzir através da eliminação, subordinação ou subsunção da essência carismática No moderno sistema capitalista de Estado, o poder político geralmente repousa na ocupação de determinado cargo e na função desempenhada por esse cargo.Trata-se, basicamente, de um poder impessoal. Todavia, no contexto de uma crise sócio-econômica, essa crise pode evoluir rapidamente para uma crise do próprio Estado, e o exercício burocrático e impessoal do poder pode sofrer um ataque frontal e ser execrada. Com a destruição ou inversão dos princípios reguladores de qualquer estrutura racional de distribuição de poder - exemplo disso, de colocar em xeque os dispositivos distributivos de poder, é dar à representantes das forças armadas demasiada autoridade política; pois estes, sendo portadores exclusivos de armamento, podem aplicar, como já o fizeram, a sua vontade pela força. O questionamento que baliza o trabalho de Kershaw é o de entender o motivo de alemães comuns terem dado suporte a ideologia nazista. Para o autor, a força coercitiva que estava por trás de Hitler é inseparável do consenso que lhe fora assegurado em largas faixas da sociedade alemã. O consentimento da população é condição sine qua non para o ganho de poder simbólico e força coercitiva de Bolsonaro. As pessoas se espantam e dizem: “Como é curioso! Ora! É o nazismo, isso passa!”, e calam-se diante da barbárie suprema que é o nazismo, que apenas coroa e resume o quotidiano das barbáries praticadas há séculos pelos empreendimentos coloniais. Antes de serem as suas vítimas, foram cúmplices, pois toleraram, absolveram e legitimaram-na (Césaire, 1978, p.17). O que não perdoa a Hitler não é o crime em si, é o crime contra o homem branco, de ter aplicado à Europa processos colonialistas que até então só os árabes da Argélia , os coolies da Índia e os negros da África estavam subordinados. As guerras e os regimes fascista do séc. XX são “terríveis ricochetes” da colonização, que tratou de degradar e despertar os instintos ocultos para a cobiça, violência, ódio racial e relativismo moral. Para Kershaw, a coerção e o consentimento são dois lados da mesma moeda. Nota-se, o “sucesso” político do candidato eleito nunca foi por suas realizações, mas pelo seu discurso tempestuoso, de percepção excludente, discriminatória e radical. Ou seja, as pessoas ouviram as barbaridades de Bolsonaro, muitos concordam com suas propostas, outros nem tanto, mas ainda assim o escolheram. Nos dois casos, direta ou indiretamente, dão-lhe consentimento para coagir. De toda forma terão de tolerar as mazelas consequentes de uma liderança autoritária e antidemocrática. Semelhante ao caso alemão, o presidente eleito, durante seus mais de 25 anos de carreira política, se elegeu pelo seu discurso pedante cristão, a favor de um formato dito “tradicional”, que pretende uma composição social homogênea, portanto, identificando nas minorias - e nas suas lutas, componentes de desestabilização da ordem, e, portanto, forças de subversão -, e no governo correspondente a ascensão de suas pautas - sobretudo o PT -, os inimigos da ordem e do progresso. O apoio determinante Sem o patrocínio, a proteção e o apoio da burguesia e das autoridades políticas e militares, a passagem de Hitler para uma posição de destaque na direita radical bávara dificilmente teria sido realizada. Para Kershaw, “na guindagem de Hitler ao poder, os acontecimento fortuitos e os erros de avaliação dos conservadores desempenharam um papel maior do que qualquer ato do líder nazista em si”(44). De forma semelhante aconteceu com a candidatura de Bolsonaro. Este, já era deputado, tinha sim seus “adeptos”, mas passo decisivo para a popularização da sua candidatura foi o apoio da direita, da bancada BBB (boi, bala e Bíblia) - apelido dado às Frentes Parlamentares da Agropecuária, Segurança Pública e Evangélica . Os representados da bancada ruralista, sedentos por um governo pouco inclinado às necessidades de reforma fundiária, agrária e demarcação de terras indígenas, declararam abertamente apoio ao candidato da chapa vencedora. O líder da União Democrática Ruralista (UDR), Nabhan Garcia, em campanha para Jair Bolsonaro, foi a público declarar apoio, alegando serem eles “a âncora do país”, afirmou: “ temos a convicção de que somente ele pode mudar esse cenário de perseguição que nós, produtores rurais, sofremos”. O presidente da Aprosoja (Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso), Antonio Galvan, semelhantemente ao líder da UDR, fez declaração demonstrando um sentimento comum à classe: “A questão ambiental virou ideologia interna, que tenta atrapalhar nosso trabalho. É preciso retirar a ideologia dessas discussões”. Em notícia mais recente, 21 de novembro de 2018, temos findado o acordo: “O pecuarista e presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Antônio Nabhan Garcia, vai comandar a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do governo do presidente eleito, Jair Bolsonaro”. De cara, o futuro secretário afirmou: “não terá diálogo com invasores de terra”. Tememos pelo que pode ser considerado “invasor”. Os candidatos da “bala”, representam um grupo de investidores capitalista sedentos por um novo mercado. Mesmo antes dos resultados finais das eleições, quando as pesquisas indicavam preferência das intenções de voto para Bolsonaro, a fabricante de armas Forjas Tauros se beneficiou do cenário eleitoral porque uma das bandeiras do candidato do PSL é o fim do estatuto do desarmamento. No ano, as ações preferenciais da empresa acumulam uma alta de 160,4%. Já a bancada evangélica, marcham sob um lema nada novo, da “família tradicional brasileira”. Quaisquer avanços sociais que possam parecer um “constrangimento” ao modelo burguês de família, como o protagonismo da mulher - portanto a ênfase no direito a liberdade do seu corpo; o que inclui liberdade para abortar - e o avanço do movimento LGBT - que inclui pautas consideradas “malignas”, como a ideologia de gênero - são vistos como perigosos a moralidade e os bons costumes. Contraditoriamente, como é de praxe do discurso cristão, o candidato por eles apoiado, e que defende a tal família e casamento tradicional - que devem ser regidos pelos ditames evangélicos de que a união entre um casal tem que ser eterna -, está no seu terceiro casamento.