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Nelson Rodrigues

A fotografia
do ódio
É uma fotografia de Manchete, e com a agra-
vante: — colorida. Lá está o sangue coagulado. O
olho enorme, que ninguém fechou; e os intestinos
escorrendo, no seu puro escarlate; e as mãos en-
trevadas pela morte. Morreu, não há dúvida, mor-
reu. E odeia. Morreu com esgar de ódio, com a
boca aberta em grito. Nem sei se é de um lado ou
de outro; se é guerrilheiro ou não. Morreu, mas o
ódio sobrevive. É um cadáver e continua odiando.
Olho a fotografia e vejo tudo. Não é americano,
não pode ser americano. Tem de ser do outro
lado, e explico.
O mistério de Manchete está na impressão,
em cores. Seus anúncios são graficamente exem-
plares. Lembro-me de uma salada de página inteira.
A alface, as fatias de tomate, os frios, a maionese,
tudo, tudo é perfeito, irretocável. Manchete impri-
miu o cadáver vietnamita com o mesmo virtuo-
sismo da salada.
Mas eu digo que devia ser guerrilheiro pela

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miséria dentária. Eram cacos, não dentes. Dirá al-
guém que de um lado e do outro há maus dentes.
Seja como for, instala-se em mim a certeza, talvez
pueril, mas obsessiva: — são dentes de terrorista.
Mas não falemos mais na meia dúzia de cacos
pendurados nas feias gengivas. O que realmente
apavora é o ódio. Imaginem vocês que acabo de
receber a carta de uma leitora. É uma brasileira
que me escreve e não assina. A meu ver, não há
carta anônima intranscendente. Se não tem assina-
tura, passa a valer como um documento trágico.
Desde os velhos folhetins, a carta anônima é de
uma veracidade apavorante.
A leitora fala da moça chamada Gisela, que
morreu de gangrena. E morreu porque saiu, de
hospital em hospital, e não encontrou um médico,
uma enfermeira, um estudante, um porteiro. Teria
sido salva, sem maiores problemas, se alguém a
atendesse em tempo. Mas vinha um médico, olhava
o braço partido e dizia: — “Não é urgente”. E a

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mandava embora.
Qualquer barbeiro diria: — “É de urgência,
sim”. Mas não houve, repito, um médico que re-
conhecesse o óbvio. Não houve uma enfermeira,
nem um funcionário. Há uma escola que se chama,
pomposamente, Ana Nery. Pois as enfermeiras,
práticas ou formadas, as serventes, ninguém teve
pena, simplesmente pena. Temos pena de uma ca-
chorra manca. E ninguém teve pena da gangrena
em flor.
No fim, não havia a menor dúvida. Caso tão
nítido, tão límpido, tão inequívoco. Qualquer um,
a olho nu, veria a cor da gangrena e da orquídea.
Mas os médicos, de vários hospitais, de todos os
hospitais, continuavam a negar, de pés juntos, a
gravidade e a urgência. Até que a menina morreu,
apenas morreu, e nada mais.
E, então, a leitora me escreve. O que me im-
pressionou na carta foi o ódio. Um ódio só com-
parável ao do cadáver que continuava odiando.

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Sempre digo que o verdadeiro amor continua para
além da vida e para além da morte. Mas vejo o ca-
dáver da guerra. E sinto que também o verdadeiro
ódio dura mais que a vida e dura mais que a morte.
Minha leitora viu a notícia no jornal. E conheceu,
não a irritação efêmera, não a raiva que passa, não
o protesto que se esquece. Não, não. Ela toma
uma posição radical. É uma paixão que não conhe-
cia. E, no seu ódio, pergunta se ninguém vai fazer
nada. Nada, nada?
Sim, ninguém fará nada, nada. Exatamente
nada. Mas a leitora tem um tesouro de ódio, ín-
timo tesouro, que não sabe como aplicar ou con-
tra quem aplicar. Odeia, mas a quem? E o pior é
que morreu uma só e repito: — uma só Gisela. Se
fossem duzentas, trezentas Giselas, talvez tivésse-
mos, por aí, um surto de piedade convencional e
enfática. Mas uma só gangrena é de tal insignifica-
ção numérica que comove de uma maneira muito
epidérmica e ineficaz.

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E me espanta o nosso vão esforço. Pagamos
toda uma imensa organização, toda uma estrutura
gigantesca. E sabem para quê? Para que um médico
olhe uma gangrena inequívoca, óbvia, evidentís-
sima, e diga: — “Não é de urgência”. Ora, eu sou
um obsessivo. E uma das minhas ideias fixas é, jus-
tamente, a seguinte: — o médico ou é um santo
ou um gângster. Meu Deus, não vejam nas minhas
palavras nem exagero, nem caricatura.
Um médico tem responsabilidades que nin-
guém tem. Estou dizendo o óbvio, mas paciência.
O médico só devia ser médico depois de sofrer
uma série de provas, de testes vitais crucialíssimos.
O sujeito teria de passar três anos nos cafundós
da África, tratando de negros leprosos. Como é
que se pode passar um atestado de óbito sem tre-
mer? Diz um amigo meu que o sujeito que assina
um atestado de óbito substituiu Deus e O ante-
cipa.

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Mas não se aflijam. Os médicos que não iden-
tificaram a gangrena, que não enxergaram o óbvio
e despacharam alegremente a moça continuarão a
fazer a barba, a escovar os dentes, a namorar, a
assobiar etc. etc. Mas volto ao cadáver que mere-
ceu de Manchete uma impressão de salada. Eu falei
de dois ódios e passo a um terceiro. Desta vez é
um chofer de praça.
Imaginem um chefe de família, de origem ita-
liana. Mas a origem pouco importa. Era uma cria-
tura doce, cálida, generosa. Um dia foi preso por-
que não tinha, na hora, a sua identidade. Sua mu-
lher, seus oito filhos, estão em casa, esperando
para o jantar. Mas ele não vem porque foi atirado
no fundo de um xadrez. Passou lá, entre marginais,
24 horas, e gritando. Digo eu que o verdadeiro
grito parece falso. E o motorista gritava como se
estivesse imitando, apenas imitando a dor da carne
ferida.
Eis o que aconteceu: — fora estuprado por

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seis ou sete marginais. Saiu do xadrez, foi para
casa. Empurrou a mulher, entrou no quarto e tran-
cou-se. Lá, meteu uma bala na cabeça. Morreu de
ódio, morreu odiando, como a fotografia de Man-
chete. E, como a leitora, não sabia a quem odiar.
Os marginais eram, decerto, os menos culpados.
Episódios assim são uma rotina que jamais variou.
Isso pode acontecer com o filho, o pai, o irmão de
qualquer um; pode acontecer com qualquer um. A
vítima pode uivar três dias e três noites. Ninguém
se mexe na delegacia.
A nova peça de Plínio Marcos, Barrela, que o
Teatro Jovem ia levar, se passa num xadrez. Seis
ou sete marginais estão em cena. E, de repente,
entra mais um preso, um adolescente, preso por-
que brigara num bar do Leblon. Os outros o agar-
ram, e qualquer um pode imaginar o resto. Per-
gunto: — que faremos nós? Desta vez, foi tomada
a providência justa: — interditou-se a peça. Obs-

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cena é a denúncia e não a monstruosidade. A mo-
ral está salva, porque se emudeceu uma peça. E o
ser humano continuará sendo violentado em cada
xadrez, eternamente. Porque o nosso sentimento
é impotente, como o ódio do chofer.

[O GLOBO, 20/3/1968]

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