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O jornalismo

como sistema
perito

Luis Felipe Miguel

Síntese comentada por Marcia


Benetti – UFRGS
Material de uso exclusivo na disciplina
O autor

• Luis Felipe Miguel é cientista político,


professor titular da UnB
• Líder do grupo de pesquisa
Democracia e desigualdades
• Autor de “O colapso da democracia no
Brasil”, “Desigualdades e democracia”
e “Consenso e conflito na democracia
contemporânea”, entre outros livros
• Com Flávia Biroli, publicou “Feminismo
e política” e “Notícias em disputa”,
entre outros
Estrutura do artigo

• Sistemas peritos
• O jornalismo como sistema perito
• O jornalismo como meta-sistema perito
• Imprensa e reflexividade
• Mídia e democracia

• Publicado em 1999 na revista Tempo Social (Sociologia da USP)


Sistemas peritos

• Miguel parte da contribuição do sociólogo inglês


Anthony Giddens, para quem uma das
características das sociedades contemporâneas é
vivermos num mundo marcado pelo “desencaixe”
das relações sociais.
• No lugar das antigas comunidades face a face,
nossas vidas hoje estão ligadas a grupos de
pessoas que nunca vimos e provavelmente nunca
veremos.
• Esse desencaixe não é exclusividade da
contemporaneidade, mas é um de seus traços
definidores pelo grau de generalização e
profundidade que alcançou.
• O mecanismo mais importante de “desencaixe” é a
influência do que Giddens chama de expert
systems (ou sistemas peritos): “sistemas de
excelência técnica ou competência profissional
que organizam grandes áreas dos ambientes
material e social em que vivemos hoje”.
• Esses sistemas possuem duas características
principais.
• A primeira é o elevado grau de autonomia em
relação àqueles que dependem dele: o cliente ou
consumidor do sistema perito possui uma
capacidade muito reduzida de influenciá-lo, porque
não tem a excelência técnica nem a competência
profissional específicas daquele sistema.
• A segunda é que os sistemas peritos implicam, da
parte dos clientes ou consumidores, uma crença
em sua competência especializada. Quando um
indivíduo vai ao médico, via de regra não tem
condições de avaliar se o tratamento
recomendado é correto ou incorreto. Apenas
confia no conhecimento especializado do médico.
• O mesmo vale para quem contrata um psicólogo,
um eletricista, um engenheiro etc. O passageiro
comum que embarca num avião acredita no
conhecimento especializado materializado
naquele aparelho, conhecimento cuja precisão é
incapaz de avaliar. O mesmo ocorre com quem
usa computadores, automóveis, viadutos,
medicamentos etc.
• Os especialistas possuem um conhecimento que
pode parecer misterioso para o paciente ou
consumidor, mas que é, em princípio, acessível a
todos que se disponham a aprendê-lo.
• Giddens valora de forma bastante positiva os
sistemas peritos, que considera promotores de
bem-estar e de racionalização. Ele diz que os
sistemas peritos são parte da “modernização
reflexiva” – um mundo de democracia e bem-estar
em que o progresso da autoconsciência permite a
ampliação da liberdade.
O jornalismo como sistema perito

• O jornalismo pode ser visto como um sistema perito que inclui uma
prática específica e um produto final. O leitor/ouvinte/telespectador
mantém com o jornalismo uma atitude de confiança, similar à de
outros sistemas peritos, que pode ser dividida em três momentos:
• 1) confiança quanto à veracidade das informações relatadas;
• 2) confiança quanto à justeza na seleção e hierarquização dos
elementos importantes para a notícia;
• 3) confiança quanto à justeza na seleção e hierarquização das
notícias diante do estoque de fatos disponíveis.
• A crença nos sistemas peritos não é gratuita. Ela é
sustentada pela experiência cotidiana, que nos diz quais
sistemas funcionam.
• A crença do passageiro comum no conhecimento
materializado no avião apoia-se no fato de que, via de
regra, os aviões chegam bem a seus destinos. A crença
no engenheiro se mantém quando se observa que seus
edifícios não desabam. Em geral, os sistemas peritos
devem passar por uma “prova de efetividade”.
• O jornalismo impõe sérias restrições a essa prova. O
primeiro momento da crença do leitor – a veracidade do
relato – permite a verificação apenas em certos casos,
muito próximos da área de conhecimento do leitor.
• A verificação do segundo momento da crença no jornalismo
– a correta seleção dos elementos que compõem a notícia –
é igualmente difícil. Como saber se o relato de uma reunião
política não deixou de fora aspectos relevantes?

• Também a verificação do terceiro momento – a crença na


correta seleção das notícias, diante do conjunto de fatos
disponíveis – é geralmente inacessível para o leitor. Às vezes
uma vivência pontual pode levar ao questionamento dos
critérios de seleção da imprensa. É o que ocorre quando se
participa de um acontecimento de envergadura (passeata,
greve etc.) e se percebe que ele foi ignorado pelos
telejornais. Ainda assim, esse leitor não consegue
questionar a seleção de forma global.
• A rigor, na maioria das vezes não se trata de
correção ou incorreção na escolha das notícias,
mas da imposição de um conjunto de critérios.
Frutos de constrangimentos organizacionais,
esses critérios passam a ser considerados
“naturais” e indiscutíveis.
• Assim, o jornalismo exerce uma violência
simbólica originária, que é exatamente o
estabelecimento daquilo que há de “importante”
no mundo. Os veículos ajudam a estabelecer os
valores que presidirão a apreciação dessa
realidade construída.
• (Capa da Veja 1988; editorial da Folha 2020)
• O jornalismo desempenha um papel nada negligenciável na produção de
capital simbólico, do crédito social que permite a certos indivíduos ocuparem
posições de autoridade em determinados campos (Pierre Bourdieu).
O jornalismo como meta-sistema perito

• Giddens diz que a fé no sistema perito não é baseada apenas na


experiência prática de seu funcionamento. Sustenta-se também nos
“organismos que licenciam máquinas, mantêm vigilância sobre os padrões
dos fabricantes de aeronaves e assim por diante”.

• No Brasil, temos inúmeras instituições reguladoras: Inmetro (Instituto Nacional


de Metrologia, Qualidade e Tecnologia), Anvisa (Agência Nacional de Vigilância
Sanitária), CFM (Conselho Federal de Medicina) etc.
• Essas forças reguladoras funcionam como
meta-sistemas peritos (conceito do Luis Felipe
Miguel), que fiscalizam os sistemas peritos.

• Um tipo de meta-sistema perito é o jornalismo.


O contato cotidiano com as notícias ajuda a
confirmar ou desmentir as crenças
estabelecidas na fiabilidade dos diversos
sistemas peritos. O jornalismo é um foro
informal e cotidiano de legitimação ou
deslegitimação dos diversos sistemas peritos.
• Cabe perguntar quem cumpre o papel de meta-sistema
perito em relação ao próprio jornalismo: quem controla o
jornalismo?
• A responsabilidade é colocada nas mãos da concorrência,
do livre mercado (do direito do leitor de assinar ou não um
jornal, de assistir ou deixar de assistir a um telejornal etc.).

• Porém, a maior parte dos conteúdos de veículos diferentes


são similares, uniformizados.
• Além disso, os grandes veículos compartilham uma mesma
visão de mundo, são grandes empresas capitalistas que
dependem de outras grandes empresas capitalistas, que são
os anunciantes. Há um interesse de classe compartilhado
pelos controladores dos grandes meios.
• A bravata de que a imprensa recebe um
“mandato do leitor” deve ser rechaçada. O
público possui uma importância secundária, na
medida em que é a existência desse público
que torna o veículo atraente para a
propaganda comercial. Regis Debray tem razão
ao dizer que o que a TV faz é “vender um
público a publicitários”.
• [O público é uma “cartela de consumidores” que
o jornal oferece aos anunciantes para ter valor.
Atualmente ocorre o mesmo com as redes
sociais, os youtubers etc.]
• A concorrência funciona de maneira muito
imperfeita como meta-sistema perito para o
jornalismo. Ela o faz em alguma medida, como
mostram a busca pelo furo de reportagem, a
denúncia das “barrigas” alheias ou a intenção
de oferecer uma cobertura mais completa.
Mas, se no varejo a concorrência pode
promover pequenas diferenciações, no
atacado permanece a pressão uniformizante
da maneira de ver o mundo compartilhada
pelos jornalistas, pelo interesse de classe dos
proprietários e pela influência dos anunciantes.
Imprensa e reflexividade

• Outro conceito fundamental de Giddens é o de


reflexividade: “a produção de conhecimento sistemático
sobre a vida social torna-se integrante da reprodução do
sistema”. O indivíduo se apropria desses saberes e modifica
sua forma de agir, se apropria do conhecimento para sua
vida prática.
• Um maior conhecimento sobre a vida social se reflete nas
práticas vividas, e isso ocorre porque os agentes sociais
estão aptos a refletir sobre esse conhecimento.
• Reflexividade significa maior autoconsciência, o que Giddens
associa a maior liberdade.
Uma vez que o conhecimento
sobre a vida social deve ser
disseminado para que tenha
efeito, o jornalismo se torna o
principal operador de
reflexividade das sociedades
contemporâneas.
[Hoje competindo com as redes
sociais.]
• Tudo isso demonstra a centralidade da mídia nas sociedades contemporâneas.
• O jornalismo forma um importante sistema perito, que consegue escapar, em
grande parte, dos mecanismos de aferição aos quais submete os demais
sistemas. É, ele próprio, o mais importante meta-sistema perito que garante a
validação (ou não) da crença na eficácia dos outros sistemas. Também é o
principal operador de reflexividade e concede capital simbólico a pessoas e
instituições.
Mídia e democracia

• [Lembremos que este texto é de 1999, antes das redes sociais


e das plataformas, que permitem tanta desinformação.]
• Como compatibilizar mídia e democracia quando existe
concentração da informação? Miguel diz que é preciso acabar
com o monopólio da informação e construir um cenário de
pluralidade de fontes.
• Alguns argumentam que o mercado competitivo garantiria a
pluralidade – o que é uma falácia. “Ninguém de boa fé e em sã
consciência acreditaria que os Marinho, os Frias e os
Abravanel representam a pluralidade da sociedade brasileira.”
• O mercado nunca é tão competitivo: ele tende à concentração. No ramo
da comunicação, o mercado homogeneíza os conteúdos, os
enquadramentos, os valores. E o mercado exclui todos os que não têm
condições de ingressar ou permanecer nele.

• Seria necessária uma decisão política, que considerasse o monopólio da


informação incompatível com a democracia e determinasse medidas de
desconcentração.
• Também seria importante reduzir a distância entre produtores e
consumidores da informação, como ocorre em certas experiências de
rádios e TVs comunitárias. A internet permite sonhar com essa
democratização, mas a tecnologia pode ser apropriada de muitas formas
(para servir a muitos interesses).
• Não existem soluções fáceis na tarefa de criar uma
imprensa mais própria a um ambiente democrático.
• Por um lado, seria necessário inverter a tendência à
concentração da mídia, pulverizando-a em unidades
menores, mais próximas dos consumidores e que os
envolvessem.
• Por outro lado, talvez seja preciso romper com um
dogma liberal básico – que reconhece apenas
indivíduos na sociedade – e redistribuir os meios de
comunicação entre diferentes grupos
representativos.
• Seja como for, a questão do controle da informação
não pode mais permanecer fora da pauta de quem
luta por sociedades mais democráticas e igualitárias.

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