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Nelson Rodrigues

O GRANDE
HOMEM
Sou um obsessivo e volto a falar de
Guimarães Rosa. O que me feriu, na morte do
ficcionista, foi a aridez do seu velório. Sei,
evidente, que a visitação não parou. Como se saía
e como se entrava! E, coisa curiosa: não senti, nas
caras presentes, nenhum sentimento maior. Fora a
família, só vi duas pessoas marcadas pelo espanto
da morte: — Franklin de Oliveira e Gustavo Corção.
(Parece uma perversidade pôr, lado a lado, e
chorando o mesmo morto, duas figuras tão
dessemelhantes.) Passei na Academia uns dez,
quinze minutos; e saí de lá certo de que o grande
homem é o menos amado dos seres. O homem não
nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já
o desumaniza. Por exemplo: — um ministro. Não é
nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o
empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro,
e não entranhas vivas.
Vou concluir: — o velório de Guimarães Rosa
teria de ser fatalmente frio por se tratar de um
grande morto. Fosse ele um Lemos qualquer, e
teria, não uma apoteose crítica, mas lágrimas
inumeráveis. Sem querer, disse o nome certo: —
Lemos. Esse Lemos existiu e, se não me engano,

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trabalhava na Casa da Moeda (na Casa da Moeda
ou na Imprensa Nacional).
Vejamos o nome: — Lemos. Lemos, como
Oliveira, é nome de vizinho. Um sujeito que se
chama Lemos só pode ser vizinho; e o citado
morava na casa ao lado da minha. Era ainda em
Aldeia Campista. Um patusco e pior: — homem de
vir, para o meio-fio, de pijama, aparar os calos com
gilete. E fazia isso com um deleite, um requinte,
um lavor inexcedíveis. Outro dado biográfico: —
mal sabia assinar o nome.
Pois um dia o Lemos morreu. Teve, em pleno
expediente, isso que o repórter chama de “mal
súbito”. E morreu. Eu era garoto e essa morte foi
um dos espantos da minha infância. Aldeia
Campista parou por causa do Lemos. Nunca vi
ninguém tão chorado. Veio gente da Pavuna, de
Quintino, do Encantado. Favelados desceram.
Desde garotinho que eu sou um fascinado por
qualquer dor, inclusive as físicas. E posso dizer que
não houve, no velório do Lemos, ninguém omisso,
indiferente ou frívolo. As pessoas que lá entravam
começavam a estrebuchar, a bater com os pés,
como em transe mediúnico. Perdi a conta dos

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ataques. E, na hora de fechar o caixão, foi
espantoso.
Eis o fato: — com súbita e frenética agilidade,
a viúva deu um pulo inverossímil. Deu um pulo e
montou, solidamente, no caixão. Era uma senhora
gorda e fez isso. Teve que ser arrastada por uns
dez. Fecho os olhos e ouço os seus gritos: —
“Quero ser enterrada com o Lemos!”. E esganiçava
o apelo: — “Me leva contigo! Lemos, Lemos!”.
Também ela o chamava de Lemos.
Conto o fato para concluir: — por que todo
esse elenco de uivos?
Explico: porque morrera o antigênio, o
antigrande homem. É fácil amar e chorar o pobre-
diabo. Ainda por cima, aos dezessete anos, tivera
varíola. Era chamado de “Lemos Bexiga”. Ao passo
que somos ressentidos contra o sujeito que funda
uma língua, inventa um Brasil e tira um sertão
inédito da própria cabeça como de uma cartola.
Mas falei, falei, e não estou dizendo o
essencial. O que chamo essencial é a carta que
acabo de receber do Otto ou, por extenso, Otto
Lara Resende. Ora, uma carta do Otto é, para mim,
uma experiência desconhecida. Ele nunca me

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escreveu e vou mais longe: — nunca me telefonou.
E, súbito, recebo uma carta imensa. Quase não
acreditei e passei os olhos na assinatura. Mas o
nome lá estava, indubitável, limpidíssimo: — Otto.
Agora vem o já referido essencial: — o meu
longínquo amigo trata, como não podia deixar de o
fazer, do Guimarães Rosa. Eram amigos, foram
íntimos, uniram as suas gargalhadas em piadas
recíprocas e lapidares. Mas, antes de entrar no
assunto “Guimarães Rosa”, quero dizer duas
palavras sobre o “novo” Otto. Não exagero. O Otto
que daqui saiu não tem nada a ver com o Otto que
lá está.
Sim, o Otto de Lisboa é um, o de São João
Del-Rey, o da TV Globo, é outro. Já domingo, no
Jornal do Brasil, saiu um artigo do “novo” Otto. O
leitor lê, lê e não entende que o nome do mineiro lá
esteja. O Almeida Garrett assinaria tal página com
a maior desfaçatez. De mais a mais, eu e o Hélio
Pellegrino falamos com o Otto pelo telefone
internacional (custou-nos a ligação uns duzentos
mil cruzeiros). E nada descreve o nosso estupor. A
voz que ouvíamos não era a do Otto mas a do
Leopoldo Fróes. O Otto fala como Leopoldo Fróes. É

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o mesmo sotaque lisboeta, sem tirar nem pôr. (E,
por isso, digo eu que o brasileiro nunca pode viajar.
Foi para Lisboa um Otto Lara Resende e Portugal
vai-nos devolver um Leopoldo Fróes.) Mas o caro
amigo fala, em certo trecho da carta, em
Guimarães Rosa.
Confesso a maligna curiosidade com que li tal
passagem. Nós estávamos aqui, isto é, a dois
passos do acontecimento. Qualquer táxi nos levaria
ao velório. Ao passo que havia entre o Otto e o
Guimarães Rosa todo um oceano a separá-los. Que
influência teria a distância nas leis da emoção ou,
melhor dizendo, da dor? É o que eu ia ver.
Mas o comportamento humano não tem
nenhuma simplicidade. Quando surgiu, na carta, o
nome de Guimarães Rosa, fiz um suspense para
mim mesmo. Parei de ler e puxei um cigarro.
Comecei a imaginar o que dizia o Otto sobre o
ficcionista. Não me interessava sua admiração. O
admirador porta-se muito mal diante da morte.
Acendendo o cigarro, eu me lembrava da visita que
nos fez, há tempos, o Jean-Paul Sartre. Fui a uma
de suas conferências. Gente escorrendo do lustre,
subindo pelas paredes. E os presentes lambiam o

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Sartre com a vista. Olhei aquilo e concluí que há
admirações abjetas. Justamente, eu não queria que
o Otto fizesse do Guimarães Rosa um Sartre.
Li a primeira frase e parei. Eis o que me
perguntava: — Será que o Otto chorou pelo amor
do Grande sertão? Na véspera da partida para
Portugal, ele passara na casa do Hélio Pellegrino.
Os dois foram para a cozinha tomar leite gelado. E,
de repente, o Otto começou a chorar. No pânico e
vergonha das próprias lágrimas, correu para o
banheiro. E, lá, se trancou com o Hélio. O Otto
soluçava. Era uma dor sofrida, mugida. Por quem
chorava ele? Por nós, pelo Brasil ou pela própria e
inefável miserabilidade? Pois eu queria que, na
carta, ele chorasse também como se o Guimarães
Rosa fosse o próprio “Lemos Bexiga”. Mas comecei
a ler e, de repente, tive medo.

[O GLOBO, 09. 12. 1967]

APEDEUTEKA GUINEFORT 2014

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