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A CARIDADE COMO VIRTUDE PRIMORDIAL NO EXERCÍCIO DA

ESPIRITUALIDADE CRISTÃ.

Victor de Carvalho Matos1

RESUMO:

A caridade é a virtude que ocupa a primazia, na prática de uma espiritualidade com


fundamentos cristãos, e tem como razão de existência o ato de doar-se em completa
gratuidade. Sua manifestação ocorre basicamente de duas formas: O amor a Deus e ao
próximo. Seguindo esse raciocínio, vê-se que a espiritualidade cristã é alicerçada na
vivência de tal virtude que é a matéria prima dos principais mandamentos deixados por
Cristo: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de
todo o teu pensamento e amarás teu próximo como a ti mesmo” (Cf. Mt 22, 37.39).
Assim sendo, o exercício da caridade pode ser visto como meio de uma humanização
plena, que se dá pelo amor a Deus, princípio gerador da caridade ao semelhante.

PALAVRAS-CHAVE: Caridade, Espiritualidade Cristã, Amor.

ABSTRACT:

Charity is the virtue that occupies the primacy, in the practice of a spirituality with
Christian foundations, and has as a reason for existence the act of giving oneself in
complete gratuity. Its manifestation occurs basically in two ways: Love of God and
neighbor. Following this reasoning, it is seen that Christian spirituality is based on the
experience of such virtue that is the raw material of the main commandments left by
Christ: "Thou shalt love the Lord thy God with all thy heart, and with all thy soul, and
of all thy thought, and thou shalt love thy neighbor as thyself "(Mt 22: 37-39). Thus, the
exercise of charity can be seen as a means of a full humanization, which is given by
love of God, the generative principle of charity to the similar.

KEYWORDS: Charity, Christian Spirituality, Love.

1
Graduando do terceiro período do curso de bacharelado em Teologia. Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. E-mail: victormatosab@hotmail.com
1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo examinar de forma detalhada o conceito de


caridade como virtude primordial no exercício da Espiritualidade Cristã. Para tal, o
conceito de caridade necessita ser compreendido em sua dupla natureza: A Caridade
como sinônimo de Deus, e como fruto da relação com o divino. Desse modo, elucidados
tais conceitos, a caridade é então apresentada como estrutura de coesão entre os seres
humanos que esboçam para o mundo a face do Reino de Deus.

Uma vez construída tal compreensão, viabiliza-se os questionamentos: como a


caridade de fato, agirá na vida humana, aprofundando-a em uma espiritualidade que
possibilite o mistério de conhecer e estar com Deus? E uma vez que isso aconteça,
mediante a esta espiritualidade, como se dá verdadeiramente o amor que o homem deve
ter em relação a Deus e a seu próximo? Todos estes fatores devem ser elucidados para
que uma espiritualidade madura possa ser construída e norteie, de forma segura, o
homem em sua busca pelo Absoluto.

2. A CARIDADE: DEFINIÇÃO E NATUREZA

“Agora, portanto, permanece fé, esperança, caridade, essas três coisas. A maior
delas, porém, é a caridade. A caridade jamais passará” (1Cor 13, 13. 8a). Segundo a
descrição paulina sobre as virtudes teologais, a caridade ocupa a primazia em
importância no exercício da Espiritualidade Cristã. Trata-se de um amor que se dá sem
reservas, sem qualquer tipo de entrave, sendo totalmente gratuito. Uma espiritualidade
fundamentada na fé apostólica, está intimamente ligada a uma atitude amorosa que seja
completamente desprovida de qualquer tipo de interesse.

Uma vez atingindo tal gratuidade, o ser humano é capaz de se aproximar de


Deus que, em sua transcendência absoluta, permite que ele O encontre. Desse modo,
pode-se afirmar que: “a caridade consiste principalmente num peso interior que atrai a
alma a Deus” (BOEHNER & GILSON, 2009; p.189). Esta força de atração, que não é
somente uma característica do coração do homem aberto a graça de Deus, mas sim um
existencial humano que o realiza, advém, sobretudo, do próprio Deus que se revela ao
pecador, numa atitude misericordiosa de Pai.

Este mistério inefável do amor de Deus, que em sua grandeza se debruça ao


encontro da humanidade ferida pelo pecado, é a fonte de onde brota toda a
Espiritualidade Cristã. Mergulhado nesta certeza, o homem pode, por graça de Deus,
escolher participar desta realidade maravilhosa que se manifesta, sobretudo, no pleno
ato de amar e ser amado por Deus. Bento XVI, em sua encíclica Deus Caritas Est,
confirma este pensamento ao afirmar:

“Nós Cremos no amor de Deus – Desse modo, pode o cristão exprimir


a opção fundamental da sua vida. Ao início do ser cristão, não há uma
decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um
acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e,
dessa forma, o rumo decisivo” (2011, p. 03).

A opção fundamental de vida que surge deste encontro entre Deus e homem,
gera comunhão. A caridade que atraiu o homem a Deus, e pela qual Deus se revelou ao
homem, constitui-se na matéria prima de uma existência marcada pela entrega mútua. O
Criador se deixa conhecer, apresentando-se a sua criatura e permitindo-se com ela viver,
fazendo dela sua morada. Ao passo que a criatura responde a este ato de amor com
confiança e humildade. Deus habita no templo de sua vida; ela, por sua vez, possui a
Deus, amando-o e entregando-se a Ele. Tal pensamento está em plena consonância com
o que diz Etiénne Gilson ao afirmar:

“Para vivermos da caridade, é necessário que, ao mesmo tempo em


que tendemos para Deus, isto é, em sua direção, já possuamos uma
garantia da beatitude futura, ou seja, possuamos Deus. Com efeito, a
caridade não é somente isso pelo que obteremos Deus, é Deus já
possuído, obtido e, por assim dizer, circulando em nós pelo dom de si
mesmo que ele nos concedeu. Logo, a caridade é como o penhor da
posse divina e mais do que um penhor, pois um penhor pode ser
tomado de volta, ao contrário, a caridade de Deus é dada de uma vez
por todas e não mais se retoma. Não se diz, então que dela temos o
penhor, mas sim um pagamento da beatitude futura; quer dizer um
presente que não será tomado de volta, como um pagamento que será
completado e perfeito: nós temos a caridade; mais tarde teremos a
Caridade” (2010; p. 270).

Na perspectiva do fragmento acima citado, pode-se observar, em sua conclusão,


uma ideia sempre presente nos estudos acerca das virtudes cristãs, que desembocam em
uma opção de vida ascética, e, por conseguinte, em um aprofundamento de uma
espiritualidade voltada a Cristo: A dupla natureza da caridade. Observa-se nas últimas
duas frases deste pensamento a utilização do termo caridade com dois significados: A
Caridade como substância e a caridade subsistente.

3. DEUS É AMOR: A NATUREZA SUBSTANCIAL DA CARIDADE


Na obra A Trindade, Santo Agostinho aponta uma explicação para confirmar a
natureza da Caridade como substância. Ela é apresentada como sendo a essência mais
profunda do amor que não conhece qualquer tipo de limite. Sua existência é imutável; é
eterna. Isto é comprovado na seguinte afirmação em relação à Trindade:

“Eles não são mais que três: um amando o que dele procede; outro
amando aquele do qual procede; e por fim aquele que é a própria
Caridade. Se o amor nada fosse, como se diz que Deus é amor? E se
não é uma substância, como se diz Deus ser uma substância”
(AGOSTINHO, 2008; p. 224).

Com este raciocínio, o bispo de Hipona, afirma a Caridade substancial como


sendo o próprio Deus, que ao amar tão profundamente, se confunde com o próprio
amor. E isso é referendado com a frase joanina que diz: “Deus é Amor” (1Jo 4,8). O
amor, que é o próprio Deus, dá acesso ao homem para que, uma vez que ele o procure,
sua interação com a divindade seja completa, e nesta completude receba a vida eterna.
Este amor norteia a vida do homem, e uma vez que ele o encontre, já não pode mais
viver sem que também ame a seu Criador. Ele é alicerce da vida espiritual humana, é a
segunda natureza da caridade: A caridade subsistente, ou seja, a virtude de amar, de
forma existencial, o Outro Absoluto, isto é, Deus.

4. O AMOR A DEUS: A CARIDADE SUBSISTENTE DIRECIONADA A


CARIDADE SUBSTANCIAL

Agostinho assinalou que a caridade, como amor a Deus, é fruto da busca do


homem pelo próprio Bem, que em sua perspectiva, é o próprio Deus. Tal pensamento é
referendado no seguinte fragmento:

“Portanto, a Deus há de se amar, não como se ama este ou aquele


bem, mas como se ama o próprio Bem. É esse o bem da alma que há
de procurar. Não aquele que sobrevoa na mente, mas ao que se adere
pelo o amor. Ora, qual será esse bem, senão Deus? ” (AGOSTINHO,
2008; p. 264).

A busca do Sumo Bem é a meta de toda vida espiritual. Nele, o homem depara-
se com a profundidade de seu próprio ser, em um processo de autoconhecimento que
gera autonomia. E só na autonomia é que o homem pode amar a Deus, de forma
verdadeira e madura. No entanto, é necessário que, antes de tudo, nele se acredite de
forma correta, pois, só assim, o amor terá alicerce no real e não no imaginário.
“Entretanto, deve se cuidar de que a alma ao crer no que não vê, não
imagine coisas irreais, e dê um falso objetivo a sua esperança e a seu
amor. Nesse caso, a caridade não procederia de coração puro, de
consciência reta e de fé sem hipocrisia” (AGOSTINHO, 2008; p.
267).

Para que isso aconteça é necessária uma fé que introduza o cristão no cerne do
verdadeiro conhecimento e faça com que, ele conhecendo a Deus, pela fé, o ame
verdadeiramente. Mas o que significa amar a Deus verdadeiramente? O pensamento a
seguir, responde a esse questionamento quando afirma:

“Para amar a Deus convenientemente, devemos amá-lo de modo


absoluto, isto é, não com igualdade, mas com desigualdade. O que
significa, em primeiro lugar, que importa amá-lo mais que a nós
mesmos. E ainda: de modo absoluto, sem esperança de retribuição e
sem comparação. No amor inter-humano, a justiça exige igualdade. A
mesma justiça exige que Deus seja objeto absoluto do nosso amor.
Não há comparação possível entre o amor a Deus e o amor a nós
mesmos. Pelo que devemos amar a Deus de um modo absoluto e
infinito. A medida do amor a Deus é amá-lo sem medida”
(BOEHNER & GILSON, 2009, p. 190).

Uma vez amando a Deus, desprovido de qualquer fronteira de limite, o ser


humano passa a se amar verdadeiramente, pois, é no amor ao Criador, que a criatura se
encontra como ser. Esse encontro consigo mesmo, conduz o homem a olhar também,
com mais intensidade, para aqueles que, como ele, possuem a humanidade, isto é, leva-o
a voltar-se para seu próximo e, por conseguinte, incita-o a amá-lo.

5. O AMOR AO PRÓXIMO: A CARIDADE VOLTADA À HUMANIDADE

“O amor ao próximo brota da caridade divina difundida em nossos corações


pelo Espírito Santo e encontra seu modelo em Cristo, cujo o Coração é todo amor”
(BERNARD, 2005; p.131). Cristo, Filho de Deus, é o paradigma e a fonte deste amor
despretensioso e agradável ao Pai. Ele concede o Espírito Santo para que os homens
vivam em comunhão, e centrados nele, formem o Reino de Deus. No entanto, este
projeto de amor se encontra seriamente em risco quando o homem perde a capacidade
de amar seu semelhante. Tal pensamento é referendado pelo bispo de Hipona ao
afirmar:

“Mas se amasse aquele ao qual vê com olhos humanos, com um amor


espiritual, veria a Deus que é o próprio Amor, o qual não pode ser
visto com o olhar interior. Portanto, quem não ama o irmão que vê
como poderá amar a Deus que não vê, pois Deus é amor. Dele carece
quem não ama o irmão” (AGOSTINHO, 2008; p.282).

O perdão as ofensas é fruto de uma caridade verdadeira, que existindo no


coração humano, dispersa o orgulho, libertando-o para uma vida de comunhão no
cotidiano. Dessa forma: “O amor cristão se concretiza em termos reais e concretos,
relacionando-se diretamente com a pessoa concreta que aparece no caminho da nossa
vida e que tem o direito a esperar a misericórdia de nossa parte” (GALILEA, 1983; p.
197).

Por conseguinte, todo este processo é movido pela caridade que, uma vez
presente, direciona o ser que a possui a unir-se de tal forma com outro, que gere uma
unidade solidificada no entender-se mútuo. Por isso: “Amar o outro como a si mesmo
não poderia implicar nenhuma contradição, pois o amor tende à unidade e nenhuma
oposição é possível no interior do que é um” (GILSON, 2010; p. 265).

A verdadeira caridade, presente no ato de amar o irmão, edifica a quem ama e ao


objeto de amor. Essa edificação leva, necessariamente, ao conhecimento das coisas
eternas. O amor que se dá completamente em si e no irmão gera um saber em quem o
possui e o recebe, pois:

“Que ninguém diga: não sei o que é amar. Que ele ame o seu irmão e
estará amando o próprio Amor. Pois assim conhecerá melhor o amor
com que ama do que o irmão a quem ama. Pode desse modo ter de
Deus um conhecimento maior que o do irmão. Sim, Deus tornar-se
mais conhecido por que lhe é mais íntimo. Mais conhecido por que é
mais seguro. Ao abraçar Deus que é Amor, abraças a Deus por amor”
(AGOSTINHO, 2008; p. 280).

Esta compreensão, alicerça a concepção de grandeza do amor ao próximo diante


de Deus, pois, ao amar seu semelhante, que é imagem do próprio Criador, o homem, em
sua liberdade, responde generosamente ao chamado de Deus que se dá através da
caridade. No amor ao próximo, se realiza plenamente a vontade de Deus: O Amor que
ama o homem e deseja ser amado por ele, só encontra repouso quando consumado
também entre os irmãos.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo visou apresentar a importância da caridade como prática preferencial
no exercício da Espiritualidade Cristã. Descrita minuciosamente, essa virtude pôde ser
compreendida como o livre ato de amar, concedido por Deus àqueles que o procuram.

Inicialmente, foi explanado sobre de que se tratava a virtude da caridade e qual a


sua constituição. Chegou-se então a concepção que a caridade possui duas naturezas
definidas: A natureza de substância que a configura como sinônimo de Deus, e a
natureza que subsiste nos seres, através do amor.

No segundo momento, a natureza substancial da Caridade foi apresentada como


sendo a manifestação do próprio Deus que, amando suas criaturas, a elas se revela.
Como consequência da Caridade substancial, a caridade subsistente foi trabalhada sobre
a perspectiva do amor a Deus. O ato de amar ao Divino constrói no homem a
possibilidade de atingir a plenitude de sua existência, onde a realização de si, no amor,
acarreta na vivência de uma espiritualidade feliz e profunda.

Por fim, o amor ao semelhante foi observado como fruto do amor a Deus. Para
amar verdadeiramente o próximo, o homem tem que enxergá-lo em sua dignidade
primordial de ser imagem e semelhança de Deus, a quem o amor deve ser sem limites.
Isso acarreta em saber perdoar e seguir em frente, não se deixando levar pela
mesquinhez do orgulho que obstruí todo avanço espiritual.

Portanto, conclui-se que o conceito de caridade, para o exercício da


Espiritualidade Cristã, está incrustrado na livre opção de abrir-se ao amor a Deus, e o
efetivá-lo em uma prática de vida, que consiste em importar-se sinceramente com o
outro e consigo mesmo. Somente dessa forma é possível viver a caridade de forma
integral, habilitando o homem a adentrar no mistério mais profundo que pode permear a
sua existência; um mistério que, embora não totalmente desvelado, encherá sua vida de
sentido, afastando-o do caos que é estar fechado em si mesmo. Este mistério, que exige
de sua memória, inteligência e vontade a total abertura a caridade é o mistério da
Santíssima Trindade que é sentido, causa e finalidade de toda a existência humana.
REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. A Trindade. Trad. Frei Agustinho Belmonte. 4 ed. São Paulo:
Paulus, 2008.

BENTO XVI. Deus Caritas Est. 11 ed. São Paulo: Paulinas, 2011.

BERNARD, Charles André. Introdução à Teologia Espiritual. Trad. Pier Luigi Cabra.
2 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. 7 ed. São Paulo: Paulus, 2011.

BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etiénne. História da Filosofia Cristã: Desde as


origens até Nicolau de Cusa. Trad. Raimundo Vier. 12 ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

GALILEA, Segundo. O Caminho da Espiritualidade: visão atual da renovação cristã.


Trad. Álvaro Cunha. 1 ed. São Paulo: Paulinas, 1983.

GILSON, Etiénne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Trad. Cristiane


Negreiros Abbud Ayoub. 2 ed. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2010.

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