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coleção TRANS

Ma urice de Gandillac

GÊNESES DA
MODERNIDADE

Tradução
Lúcia Cláudia Leão e Marilia Pessoa

editora.34

l INSTITUTO DE PSICOLOGIA - UFRGS


BIBLIOTECA
EDITORA 34 - ASSOCIADA À EDITORA NOVA FRONTEIRA G~NESES DA MODERNIDADE
Distribuição pela Editora Nova Fronteira S.A.
R. Bambina, 25 CEP 22215-050 Te!. (021) 286-7822 Rio de Janeiro - RJ
7
Prefácio à edição brasileira
Copyright © 34 Literatura S/C Ltda. (edição brasileira), 1995
Geneses de la modernité © Maurice de Gandillac, 1991
11
A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL, E CONFIGURA UMA I. CIDADE DOS HOMENS E CIDADE DE DEUS
APROPRIAÇAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.
23
11. O PAPEL E O SIGNIFICADO DA TÉCNICA NO MUNDO MEDIEVAL
Título original:
Geneses de la modernité 35
III. INTRODUÇÃO AO "RENASCIMENTO" DO SÉCULO XII
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:
Bracher & Malta Produção Gráfica 47
IV. A "QUESTÃO DISPUTADA" DA "FILOSOFIA CRISTÃ"
Revisão técnica:
Ernesto Guisti 67
Revisão: V. A NATUREZA EM ALAIN DE LILLE
Leny Cordeiro
81
Copy e tradução do prefácio, capítulo XI e post-scriptum:
VI. Os DOIS FUNDAMENTOS DA ORDEM ESCOTISTA
Marilia Pessoa Vl.a. Fé e Razão em Duns Escoto 81
Vl.b. Lei Natural e Contrato Social segundo Duns Escoto 91
I' Edição - 1995 135
34 Literatura S/C Ltda. VII. A "DIALÉTICA" DE MESTRE ECKHART
R. Jardim Botânico, 635 s. 603 CEP 22470-050
Rio de Janeiro - RJ Te!. (021) 239-5346 Fax (021) 294-7707
167
VIII. DUPLA FACE DA FILOSOFIA NO "CONVIVIO" DE DANTE

CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte


183
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
IX. PLATONISMO E ARISTOTELISMO EM NICOLAU DE CUSA

__ •• _: •• ..I.
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201
X. O "RENASCIMENTO" PLATÓNICO SEGUNDO MARSILIO FICINO
5472
209
.1.94 XI. VIAGENS ALEGÓRICAS E UTÓPICAS
G195G (DANTE, MORUS, RABELAIS, CAMPANELLA, BACON)
E _-i
219
PSICO Post-scriptum
1998/161280-4
1998/07/17
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Os textos aqui reunidos - prefácios, artigos de revista, comunica-


ções para congressos - abrangem um período de mil e duzentos anos,
do início do século V ao início do século XVII, quando progressivamen-
te se construiu uma civilização "moderna", nascida na Europa ocidental,
sobre uma base mediterrânea, mas cada vez mais atlântica e que atraves-
sa, enfim, o Oceano para se impor, não sem golpes ou violência, nas no-
vas terras.
A ausência de autores tão importantes quanto Tomás de Aquino,
Guilherme de Ockham ou Giordano Bruno, nessa coletânea, não signifi-
ca desconhecer o papel histórico desempenhado pelo compromisso es-
colástico entre aristotelismo e a fé cristã, a dupla crítica nominalista da
abstração e de um dogmatismo de lugares e qualidades, enfim, essa entu-
siástica descoberta do infinito, cujas premissas o Renascimento encontrou
em Nicolau de Cusa. Mas achamos útil destacar aqui figuras, a seu modo
tão essenciais, dos Platônicos de Chartres aos de Florença, sem esquecer o
escocês Duns Escoto e o turíngio Eckhart, abrindo espaço também para
os poetas visionários Alain de Lille e Dante Alighieri.
Esses ensaios, escritos ao longo de várias décadas e cuidadosamen-
te relidos, tratam da filosofia entendida em um sentido bem amplo para
chegar até a teologia, que durante muito tempo foi difícil separar da re-
flexão sobre o homem e sobre o mundo e que, para dar lugar às sub-
estruturas econômicas e políticas, foi freqüentemente negligenciadas pe-
los historiadores das "idéias". A primeira referência ao De civitate Dei,
escrito pelo orador africano feito bispo quando os bárbaros ocupam e
pilham Roma, longe de subestimar a contribuição de Agostinho para a
análise do tempo e o primado da interioridade, pretende ligar a uma fi-
losofia da consciência o esboço de uma filosofia da história. Se na outra
extremidade colocamos simbolicamente a Nova Atlântida, apólogo ina-
cabado escrito exatamente mil e duzentos anos mais tarde, por um chan-
celer britânico, caído em desgraça, esse privilégio concedido à utopia que
veio de Platão através de Morus e de Munzer, fonte de uma linhagem de-
liberadamente revolucionária que se pretende científica, não exclui uma
referência indireta ao Novum organum, texto incontestavelmente anun-
ciador da modernidade científica.
Ao oferecer aos leitores brasileiros essa coletânea, para a qual meu
amigo Eric Alliez selecionou os textos que lhe pareceram mais oportunos,

Gêneses da Modernidade 7
o que muito lhe agradeço, confesso que, nascido antes da Primeira Guer-
ra Mundial, testemunha de tantos progressos técnicos e de tantas abomi-
nações, eu resisto a me deixar embalar pelo canto da sereia (ainda mais
em uma economia de mercado regulada pela lei do lucro, onde as cotovias
farão seus ninhos?). Como última palavra fica, contudo, a esperança ra-
zoável de uma cooperação ativa, sem ilusão, acima das diferenças e das
controvérsias, entre os homens de boa-vontade.

GÊNESES DA
MODERNIDADE

8 Maurice de Gandillac
I. CIDADE DOS HOMENS E CIDADE DE DEUS"

A cidade de Deus nesta terra, velho sonho que se transformou, às ve-


zes, em carnaval (como em Münster, na Westfália, na época de]oão de Leida)
e que terminou em banho de sangue. Não faz muito tempo - após o episó-
dio de um suposto "terceiro império de mil anos", mais exigente do que qual-
quer Baal em massacres de inocentes, e, após uma segunda guerra mundial,
seguido por uma falsa paz baseada no equilíbrio de terrores - tomamos co-
nhecimento, especialmente em Kampuchéa, dessa busca de um paraíso ter-
restre utilizando-se de métodos expeditivos em nome de uma dialética que
anunciava a reconciliação do homem consigo mesmo e com a natureza.
Imaginário que remonta a alguma idade de ouro, descrição (onírica ou
pedagógica) de ilhas distantes onde tomaram forma as utopias da Repúbli-
ca platônica, exigência de compensação ou proposta de pura fraternidade
- nenhum desses componentes diversamente dosados, históricos ou fictí-
cios, que servem de base aos milenarismos, parece estar presente em Agos-
tinho, quando ele começa a escrever, em 412, uma Cidade de Deus que abran-
gerá vinte e dois Livros e que seria mais apropriadamente intitulada, como
o tratado de Oto de Freising setecentos anos mais tarde, Sobre os dois Reinos.
Nesse começo do século V, a "nova Roma", ligada por Constantino
ao ponto de junção dos dois continentes, não parecia ameaçada; ela conservará
ainda por um milênio, contra ventos e marés, uma tradição de "cesaropa-
pismo" retomada em seguida pela Moscóvia dos czares. Em contrapartida,
já se encontra quase agonizante a Roma de Augusto e de Tibério, aquela à
qual Agostinho, que só lê o grego traduzido, deve toda a sua cultura de afri-
cano latinizado. Em Ravena, sob a precária proteção de uma região alagadiça,
ela sobreviverá apenas algumas décadas e, em breve, nas dioceses do impé-
rio, os encargos administrativos serão assumidos pelos bispos cristãos.
Muito mais tarde, uma vez restaurados pelos francos da segunda ge-
ração tanto o título de imperator quanto a missão de proteger a Sé roma-
na, após a desagregação do domínio carolíngio, os césares germânicos con-
tinuarão sem autoridade para além do Mosa e do Reno, diante de reis que
se pretendem "imperadores em seu reino" e, pela unção de uma ampola
sagrada, capazes de curar as escrófulas. Mal aceitos nessa Itália onde foi
preciso "descer" para se fazerem coroar, limitados em seus avanços meri-

.. Versão resumida e ligeiramente modificada de um prefácio à edição de Cidade


de Deus pelo "Clube do Livro", 1976.

Gêneses da Modernidade 11
dionais por essa Bizâncio que, lentamente, irá erodir a maré islâmica e onde quer "Santa" e que, comparada à Jerusalém celeste, é mais do que uma
reina como senhora uma "ortodoxia" detalhista (para muitos cruzados bem "figura" ou uma "sombra" ""'"'- termos que devem ser compreendidos se-
menos suspeita do que a "infidelidade" dos judeus ou a dos muçulmanos) gundo sua significação "tipológica", aquela que não remete da imagem
- enquanto, na direção do leste, para além das terras não totalmente la- ao modelo mas que vê, por exemplo, na Eva pecadora, o anúncio da im-
tinizadas em que se confrontam eslavos, bálticos e germânicos, tártaros agora pecável Maria.
expulsos ou assimilados, cresce um jovem e vigoroso ramo do helenismo Se é verdade que, para Agostinho, só a graça sobrenatural permite
cristão -, ser-lhes-á necessário defender seu poder temporal contra os papas ao príncipe fundar na justiça uma autêntica paz, isso não significa que a
romanos que, orgulhosos de sua tiara imperial e apegados a seu título arcaico instituição eclesiástica - com aquilo que o Maritain de O Camponês do
de sumos pontífices, pretendiam ser, pela graça de uma doação duvidosa, Garona chamará, não sem insolência, seu por demais humano "pessoal"
aO mesmo tempo sucessores de Pedro e herdeiros legítimos de Constantino. _ possa, ela mesma, santificar o poder temporal, quer o papa se arrogue
Mas não antecipemos, pois o que freqüentemente é denominado "agos- os "dois gládios", quer pretenda controlar o exercício da autoridade civil
tinismo político", ideologia medieval e, por vezes, moderna, está muito longe a ponto de não lhe deixar outro domínio próprio que não seja o da prote-
das verdadeiras posições do De civitate Dei. No princípio do século V, o ção dos bens da Igreja (e, se possível, seu aumento), o da defesa da pura
acontecimento que abala todos os espíritos é, sem dúvida, a tomada e o saque ortodoxia, assim como o das baixas tarefas atribuídas ao "braço secular".
de Roma, em 410, pelo visigodo Alarico. Alguns pagãos já censuram os Na verdade, o bispo de Hipona - muito censurado e por vezes tra-
imperadores batizados por terem afastado da Urbs a proteção de seus an- tado como o primeiro inquisidor - , inquieto diante do sucesso de deter-
tigos deuses, ao passo que outros - precursores de Maquiavel e de Nietzsche minadas heresias, recorreu, para combatê-las, a poderes temporais, sem
- acusam o Evangelho de enfraquecer as forças vivas da pátria, ao pregar imaginar que esse apoio limitado e, ao que parece, provisório, pudesse
o amor ao próximo e o perdão das ofensas (que, aliás, os sucessores de instituir neste mundo alguma prefiguração do reino de Deus. Para ele, com
Constantino não praticam). efeito, ao longo de sua "peregrinação" neste mundo, a "família dos re-
Sem ignorar essas polêmicas, Agostinho se situa em outro campo. Cer- dimidos" permanece indiscernivelmente misturada aos batizados que se-
tamente, ele chega a apontar para a Igreja a vantagem de serem varridos de rão finalmente excluídos da beatitude, enquanto que, inversamente, den-
Roma, por um príncipe cristão, "templos e estátuas de demônios" (V, 2), tre os inimigos declarados da fé cristã, dissimulam-se predestinados que
mas já a partir do capítulo seguinte especifica - após ter prestado home- encontrarão, um dia, seu caminho de Damasco (I, 35).
nagem ao devoto Teodósio - que os ambiciosos que vêem na fidelidade Será somente quando os corpos ressuscitarem - tema extensamen-
ao Cristo vencedor uma garantia de longo reinado, às vezes, se decepcio- te abordado no Livro XXII - que cada um saberá se pertence à Cidade
nam, pois o fielJoviano manteve seu trono por menos tempo do que o "após- de Deus, mas não se deve por isso supor que, até então, nossas cidades
tata" Juliano. Agostinho o escrevera desde o início: apenas no além serão humanas sejam totalmente entregues ao "Príncipe deste mundo". Ao as-
recompensados, segundo seu mérito, os bons e os maus; a felicidade e a in- sumir as funções de doutor e de bispo, o antigo mestre de retórica situa-
felicidade continuarão, neste mundo, como que "comuns" a todos, e essa va-se, de fato, em um campo prático onde nossos atos seriam irrisórios se,
é a condição necessária para evitar que os eleitos invejem esses bens mate- não obstante os impenetráveis mistérios da Predestinação, tudo estivesse
riais, por vezes usufruídos pelos condenados, e que temam, como opróbio, antecipadamente determinado. Como nenhum mortal tem, neste mundo,
os males que se abatem sobre o inocente (I, 8). acesso aos desígnios de Deus, cada um deve, a seu modo, trabalhar como
Além do mais, o teólogo - a quem, certamente, inspiram entusias- pode para o triunfo do bem. Em geral, considera-se Agostinho como um
mados elogios os produtos, úteis ou agradáveis, da engenhosidade huma- dos pais da "filosofia da História"; certamente, seria melhor vê-la como
na, e que, entretanto, os vê apenas como "consolos" concedidos às cria- uma "teologia do tempo", pois a seqüência dos acontecimentos, tal como
turas para as quais, na maioria das vezes, é reservada uma eternidade de ele a encara, diz respeito menos ao desenvolvimento das sociedades enquan-
martírios (XXII, 24) - insiste com excessiva complacência nas conse- to tais que à sua posição (aliás pouco discernível) no interior de um pro-
qüências da mácula original, por estar tentado a conceber, neste mundo cesso, ao mesmo tempo, cósmico e escatológico.
corrompido (o homem, freqüentemente, faz de sua arte apenas usos per- Interpretada, alegórica e anagogicamente, mais do que em seu senti-
versos, preparando venenos mais do que remédios e produzindo com mais
facilidade gládios do que relhas de arado), uma cidade terrestre que se l do literal, a Bíblia fornece um quadro geral a essa reflexão sobre o devir.
A divisão da família original em duas cidades adversas tem início, de fato,

12 Ma urice de Gandillac l Gêneses da Modernidade 13


com o episódio de Abel e Caim, o primeiro significando o pertencimento Em tradução latina, Agostinho conheceu vários textos importantes
à pátria celeste e, o outro, a instalação futura nas cidades terrestres (XV, de Plotino, especialmente os das Enéadas m, 7, onde o próprio tempo des-
2). E é igualmente com referência a esse primeiro fratricídio que se pode creve a fraqueza de uma Alma - terceira hipóstase - que deixa de con-
considerar o legendário assassinato de Remo por Rômu!o (XV, 5). Entre- templar o inteligível e, tomada de vertigem, dispersa-se em momentos su-
tanto esses dois mundos permanecem tão entrelaçados, que Sara (a que sim- cessivos, através de uma multiplicidade de produções nas quais o filósofo
boliza a promessa feita a Abraão), figurando a cidade de baixo, represen- discerne, inseparavelmente, a imanência do Belo-e-Bom (em um cosmos
ta a de cima, enquanto Agar (numa metáfora de segundo grau) é, na qua- que não pode vir de um demiurgo mau como pensam os gnósticos e ma-
lidade de mulher "carnal", a imagem de uma imagem (digna, no entanto, niqueus, dos quais, durante um período, Agostinho foi adepto) e a presença
de ser abençoada, na medida em que dela sairá um grande povo). inevitável de um "mal", nascido da divisão e da dispersão. Para escapar a
O melhor "tipo" de uma cidade humana considerada como "pere- essa "queda", as almas individuais - que só vivem, elas mesmas, em sua
grinação" é, sem dúvida, a arca de Noé. Não só porque seu material e suas singularidade, na medida em que a Alma do mundo está "inclinada para
dimensões significam simbolicamente a Cruz e o Crucificado, mas sobre- baixo" - não dispõem de outro recurso a não ser o da purificação e ilu-
tudo porque, aqui embaixo, todos os membros da cidade celeste devem minação platônicas, e chegam, no melhor dos casos, em breves êxtases, ao
"viajar neste mundo ruim como em um Dilúvio" (XV, 26). Reinos e im- contato indizível com o Um (Enéadas m, 8; VI, 7 etc).
périos pagãos são "Babilônias" face a "Jerusalém", na qual se conservam Do plotinismo, que o marcou permanentemente, Agostinho irá entre-
- com dificuldade - a língua do Paraíso e a fé monoteísta, enquanto Jacó, tanto recusar as teses incompatíveis com sua fé: em primeiro lugar, a me-
após sua noite de luta contra o Anjo de Deus, continua a mancar daquela tensomatose e a suposta elaboração, pelas próprias almas, em vidas suces-
Coxa da qual sairão os infiéis (XVI, 39). Moisés transmite a Lei ao povo sivas, de corpos que correspondam a seu próprio nível espiritual (Enéadas
eleito, mas, como diz Paulo, com esta aflui, igualmente, o pecado; assim o IH, 2). Agostinho recusou igualmente a ilusão de que, para que elas mes-
demonstram as crueldades dos reis Davi e Salomão, freqüentemente pró- mas se atribuíssem esse "demônio" que, às vezes, falava a Sócrates e que se
ximas àquelas das nações idólatras, sobre as quais Agostinho prazero- confunde com a mais alta potência do intelecto humano, bastaria que es-
samente se estende (especialmente no Livro XVIII). sas almas o desejassem intensamente (En. IV, 4). Recusou também a espe-
Até a Encarnação, a divisão da história em períodos possuía um sen- rança de que seu "pai Zeus", apiedando-se de sua "lassitude", as libertasse
tido específico; o Dilúvio, a Promessa, a Lei e os Profetas aparecem como de seus corpos, permitindo-lhes, assim, ascender simplesmente, segundo a
etapas da marcha rumo à salvação. Parece que após a Paixão, a Ressur- exigência inata de uma natureza que não teria cometido nenhum pecado
reição, a Ascensão e o Pentecostes, o tempo não dá mais lugar a semelhantes hereditário, até a "região intelectual" onde reside, pelo menos no que diz
cortes. Agostinho certamente não pertence a esses primeiros fiéis que aguar- respeito à sua parte superior, incessantemente contemplativa, essa "Alma
davam o fim do mundo; tampouco pertence à categoria de hermeneutas do mundo" que um Abelardo, em seu enfoque harmônico, tentará, vez por
que calculam a data da chegada do Anticristo, pois ele leu (Atos dos Após- outra, identificar ao Espírito Santo. Agostinho recusou, enfim, a tese aná-
tolos I, 6) que "não nos cabe saber o tempo que o Pai possui em seu po- loga de uma "simpatia" universal, proveniente do Pórtico, da qual partici-
der". Para interpretar acontecimentos como aqueles que manifestam a pariam todas as almas, tanto em suas descidas como em suas ascensões, em
decadência e anunciam a ruína de Roma, seria necessário dispor de uma seus conflitos e em suas concordâncias, segundo as vicissitudes que depen-
chave análoga à "tipologia" que ilumina as promessas do Antigo Testa- dem do ritmo dos astros e de um modo que parece implicar uma espécie de
mento pelos feitos do Novo. Através de experiências fragmentárias, um eterno retorno (Enéadas IV, 3).
observador descobre fenômenos de sentidos opostos: extensão da fé, mas Já em 389, em seu tratado "Da verdadeira religião", Agostinho, ao
persistência de perseguições e surgimento de heresias. Assim, parece inex- confrontar suas próprias experiências vividas, referentes à consciência e
tricável, até o fim, o imbróglio das duas cidades que, "de modo igual", ao tempo, com os esquemas platônicos, descrevia a criatura humana como
partilham fortuna e infortúnio (XVIII, 54). No momento em que muitos submersa naquilo que ele denomina a "penosa riqueza" do sensível (XXI,
de seus contemporâneos adotam posições contrárias, uns se agarrando ao 42), reduzida a forjar ídolos para si, testemunhos de sua busca do intem-
mito da romanidade, outros depositando suas esperanças na conversão dos poral no interior de um universo que é feito apenas de sombras (XXV, 84).
"bárbaros" capazes de injetar sangue novo na cristandade, Agostinho evita Nessa época, em seu primeiro comentário do Gênesis, ele compreendia os
esse tipo de previsão e de engajamento. três primeiros dias do mundo (antes da criação do Sol) como significando

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Ma urice de Gandillac Gêneses da Modernidade 15
a lenta germinação do celeste e do terrestre. Pouco tempo depois, em seu É igualmente o uso próprio do tempo vivido que constitui a prin-
"Livro inacabado sobre o Gênesis entendido no sentido literal" (esboço cipal diferença entre as duas cidades: todas as duas avançam, mas uma
de uma imensa obra que só será terminada em 415), ele renunciará a essa sucumbe à dispersão, enquanto a outra se unifica no recolhimento. Ao
interpretação para admitir, apoiando-se no Eclesiastes (XVIII, 1), que tudo término da viagem, ambas irão perceber a sucessão dos acontecimentos,
foi criado "simultaneamente", sendo o temporal, desde a origem, signo e como Agostinho remotamente sugere, ao mostrar como um canto pode
figura do eterno. Mas é sobretudo nas Confissões, face à sua própria his- se oferecer inteiro ao primeiro olhar de um músico (XI, 41). Todavia,
tória - a de um combate entre o desejo libidinoso e o arrependimento - entre o tempo e a eternidade, o autor das Confissões localiza um tipo
, que o filho de Mônica pensa descobrir, perscrutando sua alma imortal, de intermediário, que parece corresponder ao "céu" e à "terra" dos pri-
imagem de Déus, a verdadeira significação do tempo. meiros dias do Gênesis, criaturas anteriores à seqüência regular dos mo-
As aporias clássicas de uma dimensão vivida, cujo conteúdo não é senão vimentos astronômicos; por um lado o mundo angelical nascido da pró-
passagem do não-ser-mais ao ainda-não-ser, adquirem aqui uma ressonância pria Luz e, por outro, a confusão, o quase-nada da matéria pura (XII,
singular, porque o autor institui como interlocutor de seu eu a "eterna Razão 15-20). O comentário, denominado "literal" (mas que não o é), do pri-
na qual nada começa ou termina", o Verbo co-eterno ao Pai que diz tudo meiro Livro da Bíblia, sugere, para essas criaturas, um estatuto análo-
simultaneamente e deixa, entretanto, que se sucedam as criaturas nascidas go ao da beatitude e da perdição que devem se "seguir" ao "fim do
desse dizer (XI, 7-8). Se é sem dúvida leviano (mas sempre inquietante) inter- mundo", nO tempo "escatológico" que simboliza o "repouso do sétimo
rogar-se acerca de um "antes" da Criação - pois o "eterno" só precede o dia" (De Genesi ad litteram IV, 31).
tempo por sua transcendência (XI, 12-16) - , isso não resolve o problema Mais significativa para o nosso propósito é a atribuição, nesse mes-
de uma medida da duração, cujas porções julgamos serem algumas maio- mo texto, de uma verdadeira "subsistência" das realidades que surgem para
res, outras menores, ainda que, na verdade - já que "do futuro o presente o ser por ordem de um fiat divino, apesar da alternância do "diurno" e
imediatamente voa ao passado" - , tudo nela se reduza a fugidios instantes. do "noturno", correspondendo ao duplo aspecto do devir: estabilidade das
Eis então que intervém, com toda sua polissemia, a misteriosa facul- formas ou idéias (que Agostinho nomeia species) , fluxo das coisas sensí-
dade que Agostinho denomina "memória". A rigor, a palavra deveria de- veis. Se tudo foi efetivamente criado de uma só vez, esse ato divino, entre-
signar apenas a rememoração de um passado que desapareceu; de fato, tanto, sem o qual tudo retornaria ao nada, nunca cessa. Ainda que "novo",
intimamente ligada a essa mens que Agostinho define como "o que é ex- cada dia é, de algum modo, "repetição" do primeiro, pois tudo está pre-
celente na alma" (De trinitate, IV, 11), a memoria refere-se, para ele, a toda sente desde a origem nas "razões seminais" que contêm "causalmente" e
forma superior de presença a si (Confissões XIV, 10-14). Reservatório do "racionalmente" todas as coisas futuras e pelas quais Deus, presente no
instantâneo e do efêmero, se a memória é também a "imensa capacidade" coração de sua obra, faz nascer e crescer, deixa que definhem e morram
de qualquer experiência e de qualquer saber, é porque o próprio Deus fez essas criaturas que ele pensa, desde sempre, "como nas raízes do tempo"
dela sua morada e porque, através desta, o Eterno de algum modo confe- (De Genesi, V, 11).
re ao temporal, para além da dispersão e da impotência, um valor positi- A história propriamente dita só começa, como vimos, no sétimo dia.
vO de reunião e de energia. O homem desempenha aí um papel central devido à sua potência laborio-
Desse modo, portanto, a autêntica duração não se reduziria à medi- sa, colaboração da natureza e da razão, mas as indicações" humanistas"
da dos movimentos celestes; mais do que "número" , ela é essa maneira de do De Genesi (VIII, 15-17) serão pelo menos infletidas em um sentido
"distensão" que o exemplo do poema ou da melodia bem demonstra e no pessimista pelo De civitate Dei que, até o fim (Cf. XXII, 24), enfatiza o
qual, mediante uma "atenção" global ao presente, reúnem-se o passado e infortúnio da condição humana. Contrariamente aos maniqueus, Agosti-
o futuro (11, 34-37). Semelhante temporalidade, porém, pode ser vivida de nho sustenta, entretanto, que o pecado original não apagou deste mundo
duas maneiras, sob o modo do puro escoamento ou sob o do recolhimen- todas as marcas da sabedoria criadora, aquela que, após ter inspirado Jó,
tO interior, quando o sujeito, esquecendo-se do passado enquanto tal e não o Idumeu, fez falar a Sibila de Cumas. Aos donatistas africanos, tão dese-
aspirando a nenhum futuro definido, tende para o eterno. Para o Agosti- josos de pureza, a ponto de só considerarem válidos os sacramentos con-
nho convertido, isso não ocorre sem lágrimas ou lamentações, mas é exa- feridos pelos ministros de uma impecável moralidade, ele responde que a
tamente essa prova que, graças ao "fogo" do "amor", permite que o "pe- coexistência de carnais e espirituais não impede uma lenta ascensão do
regrino" terrestre se "firme" na "Verdade" (XI, 40). corpo social em direção a um estado menos estranho ao ideal evangélico.

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Até mesmo a Roma pagã oferece belos modelos de virtude cívica; para didos como designando, simplesmente, a "plenitude" dessa nossa duração,
conferir-lhes pleno valor, basta sublimar o gosto pela glória terrestre as- que começou com a Redenção e cuja verdadeira extensão, como vimos,
pirando à eterna beatitude (V, 11-9). ignoramos. Desde o momento presente, com efeito, as almas predestina-
São inúmeros os paralelos e as analogias entre a história santa do povo das, pelo batismo e pela fé, "renascem" propriamente, e essa regeneração
hebreu e a história profana dos gentios. Sem reconhecer expressamente o justifica, no texto da Escritura, a descrição poética de uma vitória do Cor-
valor próprio da antiga civilização egípcia, Agostinho menciona o papel deiro sobre a Besta (19, 12-21), mas semelhante certeza não garante ab-
desempenhado pelo império faraônico - de José a Moisés - na tomada solutamente a fundação, neste mundo, de uma autêntica cidade de Deus.
de consciência, pelos filhos de Abraão, de sua excepcional vocação; mas, °
Não há dúvida de que Maligno, devidamente "atado", está, daí em
sobretudo - tema discretamente insinuado na Cidade de Deus e destina- diante, "no Abismo" (20,2-3), mas isso significa apenas que tem por úni-
do a uma grande difusão - , não será preciso atribuir uma significação ca companhia os condenados que, em meio aos eleitos, formam uma "inu-
providencial ao fato de o reino pacificador de Augusto ter precedido por merável multidão" comparável, de fato, aos "precipícios profundos". Não
tão pouco o nascimento do Salvador em uma terra controlada por um creiamos, contudo, que os "santos" possam jamais desfrutar, neste mun-
procurador romano (XVIII, 3, 7, 9 e 46)? do, uma espécie de "repouso sabático". Pois quando João escreve que o
Isso não quer dizer que durante o tempo de graça (e de espera) em Anjo marcou Satã com um "selo", o faz para mostrar que permanece para
que vivem os homens, desde o Pentecostes, o reino de Deus possa algum nós "secreta" a identidade daqueles que já, invisivelmente, pertencem ao
dia encarnar em uma sociedade na qual reina a tranqüilidade na ordem, Inferno, e cuja massa envolve o pequeno núcleo dos eleitos. E se o Apo-
ideal que certamente se esforçam por impor, cada um em seu domínio, tanto calipse anuncia que o Diabo será, por um tempo, novamente "desatado",
o honesto governante quanto o bom pai de família, mas ao qual consti- essa breve retomada não terá outro fim senão o de melhor destacar, com
tuem obstáculo a inevitável diversidade das línguas, dos costumes e das o triunfo final da nova Jerusalém, a potência efetiva, por ora um tanto
opiniões, as desilusões da amizade e as armadilhas do amor (XIX, 1-16). oculta, de seu terrível Adversário (XX, 6-8).
Retomando a definição ciceroniana da respublica como um agrupa- Assim, pois, até a conflagração final - não, como para os estóicos,
mento de seres humanos baseado no jus e na utilitas, Agostinho mostra que começo inevitável de um novo ciclo temporal, mas transmutação de pere-
um Estado pagão, subjugado aos ídolos, preocupado como era com a uti- cíveis corpos de carne em verdadeiros corpos de glória (XX, 16) - , elei-
lidade comum, não podia conhecer uma justiça autêntica (XIX, 20). Mas tos e condenados viverão juntos, sem nenhum sinal visível que os distin-
será que se deveria, por isso, qualificar de "justas" as cidades que se dizem ga, nas cidades terrestres ora prósperas e pacíficas, ora afligidas por guer-
cristãs? Seria necessário que todos os seus membros se encontrassem reple- ras e sedições, às vezes submetidas a seus pastores, quase sempre indóceis.
tos desse "amor de Deus que chega ao desprezo de si", ao qual o autor do Porém, por mais improvável que seja um substancial progresso dos costu-
De civitate Dei opõe o "amor de si que chega ao desprezo de Deus" (XIV, mes e das instituições, pode-se esperar que, pelo menos, o "envelhecimen-
28). Ora, na realidade, não só esses dois extremos são raros, como também to" do mundo será compensado, de algum modo, pelo crescimento, por
a vida política é feita de compromissos que tornam sempre problemática a sobre as terras, de comunidades eficientemente apostólicas.
"concórdia" entre "seres racionais que partilham, juntos, os bens que amam" Por mais intrinsecamente corrompida que seja a raça humana, Agos-
(XIX, 25). A única "paz" verdadeira dos eleitos encontra-se "com Deus" tinho aponta tanto a sua eminente vocação quanto a sua inata unidade.
(na terra, pela fé; no céu, com a glória) e a única justiça verdadeira é essa Se é verdade, como o atesta a Escritura, que Cam foi amaldiçoado, e que,
"justificação" sobrenatural que não procede senão da graça (XIX, 27). aos filhos de Sem, Deus prometeu uma melhor herança temporal do que a
Encontramos aqui um aspecto do agostinismo que Lutero levará aos dos filhos de Jafé, em todos os ramos dispersos da antiga herança de Noé,
mais extremos limites, conforme as terríveis descrições do Livro XXII, no mesmo depois da confusão das línguas, eleitos e condenados coexistem
qual Agostinho, fazendo um levantamento das opressões do pecado, in- segundo dosagens análogas, não importando sua cor ou estatura, incluin-
siste no valor pedagógico do castigo, na utilidade do sofrimento, no re- do-se aí - e admitindo·se que realmente existam - os monstros descri-
curso necessário aos métodos repressivos (XXII, 22-24). Criticando as tos pelos naturalistas como Plínio: ciclopes, pigmeus, hermafroditas, ciá-
exegeses por demais literais do Apocalipse, ele recusa a imagem de um podos (com pés tão grandes que lhes podem servir de guarda-chuva), até
millenarium porvir, concebido como um retorno à felicidade edênica. Para mesmo esses hipotéticos antipodianos que, para alcançar o outro extre-
ele, os mil anos da "primeira ressurreição" (Ap. 20,5-6) devem ser enten- mo da Terra, têm de atravessar o terrível Oceano (XVI, 8-9).

18 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 19


Criados para viverem na paz e para gozarem de felicidade, ei-Ios ago- É efetivamente uma brusca mutação a que anuncia, um pouco mais
ra, pelo erro de Adão, sujeitos a uma eterna punição, à qual só escapa, tarde, o eremita calabrês Joaquim de Flora, ao profetizar que, em breve,
por pura misericórdia, uma pequena minoria. Recusando-se a concordar, aos reinos ainda demasiadamente carnais do Pai e do Filho irá suceder o
com Platão, em dar aos castigos necessários um valor mais purgativo do tertium regnum do Espírito Santo, mito transmitido aos mais radicais dos
que punitivo, Agostinho rejeita categoricamente a idéia de que certos franciscanos e que estará por trás ainda, no início do século XVI, da re-
pecadores de menor envergadura, ao final de um determinado tempo de volta de um Müntzer. Mas estamos longe, então, das perspectivas de Abe-
provação, pudessem ter atenuada, ou mesmo suspensa, a pena que me- lardo, que insiste, em seu Dialogus (verso 1140), no avanço geral dos co-
recem; semelhante concessão abriria O caminho à "louca" imaginação de nhecimentos profanos, desejando um progresso conexo da teologia, en-
um Orígenes, admitindo, com os pagãos, o retorno final de todas as coi- quanto os mestres de São Vitor, abadia e escola parisiense, mostravam o
sas à unidade original e, indireta e conseqüentemente, salvação de Satã papel reservado aos povos outrora "bárbaros", aqueles que irão suceder
(XXI, 11-17). a Jerusalém, Atenas e Roma. Para o escocês Ricardo, cujo Liber exceptio-
Repitamo-lo: se esse rigorismo inumano esvazia a ilusão de um rei- nem (versos 1150 ou 1160) é largamente inspirado em obras de seu mes-
no terrestre que pudesse sacralizar sua inata subordinação ao Reino ce- tre e predecessor, o saxão Hugo, a partir do momento em que o papa trans-
leste, isso não implica nenhum catastrofismo. Nada, com efeito, no De mite a dignidade imperial aos carolíngios e a seus sucessores, o basileus
civitate Dei, parece justificar atitudes como as do prior bávaro Gerhoch bizantino não tem mais nenhum direito de se dizer o rei desses romanos
de Reichersberg que anuncia, no século XII, depois da humilhação do dos quais agora os francos - também eles supostos descendentes dos troia-
imperador germânico em Canossa, a "quarta vigília da noite" (aquela após nos - são os valorosos herdeiros. Mas essa enciclopédia, cujo ponto de
a qual apenas um pequeno número de "testemunhas" conservaria intac- partida histórico remonta ao primeiro dia da Criação, quer-se igualmente
to, na impiedade universal, o depósito da fé); nem tampouco as "visões" atenta à atualidade e menciona em seu último capítulo, ao lado das pias
de uma Hildegarde de Bingen, que, mais ou menos na meSma época, uti- fundações capetíngias, a expansão dos normandos na Sicília 2 •
lizando-se de símbolos nos quais se mesclam à imagética apocalíptica al- Ainda mais significativa é a maneira pela qual nossos vitorinos -
guns restos de mitologia nórdica, descreve a triste sucessão de cinco ida- analistas tão cuidadosos, por outro lado, quanto à ascensão das almas rumo
des caracterizadas. pela brutalidade do cão fulvo, o agressivo humor do leão à pura contemplação - assinalam, nessa pequena ponta da Europa atlân-
amarelo, a frivolidade do cavalo rosilho, as vilezas do porco negro, e a final tica, agora engajada na via das conquistas3, o valor positivo dos saberes e
abominação de um lobo negro comparado ao Anticristo. das artes nos quais Agostinho via simples (e por demais irrisórios) "con-
Menos sombrias parecem as perspectivas de seu compatriota e con- solos" para futuros danados - e, em particular, sua definição da navigatio
temporâneo, o bispo ato de Freising em seu De duabus civitatibus men- como meio precioso para "descobrir nOvas margens" e, através da troca
cionado no início desse texto; ao descrever um combate impiedoso, até o de mercadorias e de idéias, "tornar comum o que era privado"4.
fim dos tempos, entre forças adversas do bem e do mal, o autor vê na re- Estudando, pois, as Métamorphoses de la Cité de Dieu s , Etienne
forma cisterciense um avanço decisivo para toda a ordem moral e social. Gilson tomava acertadamente, como ponto de partida de seu afresco his-
Já seu predecessor, Bernardo de Clara vai, hostil à civilização urbana e tórico, o próprio período em que se afirma, no Ocidente, a vontade que
desconfiado de qualquer outra escola que não o claustro, não tinha medo Descartes representará ao desejar se fazer, pela ciência, "mestre e senhor
de deixar freqüentemente sua cela para trabalhar na instauração de uma da natureza". À galeria de quadros apresentados por Gilson - desde a
cristandade tal como a desejava. Quanto a Oto, este pode efetivamente "república cristã" de Rogério Bacon (esse franciscano inglês que pensou
denunciar a senilidade do mundo, crê suficientemente na missão providen- colocar a serviço da fé máquinas de guerra imaginadas em um estranho
cial do império romano de nação germânica (destinado, segundo ele, a durar fervor místico-teológico), até o culto positivista da "Humanidade (roman-
até a Ressurreição) para saudar a ascensão ao poder de seu sobrinho Fre- tizado pelo encontro entre o politécnico Augusto Comte e a "tísica" Clo-
derico; aquele que será apelidado de Barba-Roxa. Depois dele o premon- tilde), passando pela monarquia universal (com a qual Dante sonhava no
tratense Anselmo, bispo de Havelberg na Prússia (posteriormente de Ra- momento em que ocorriam as maiores desordens em sua pátria), pela "paz
venal, conseqüentemente em contato com os eslavos e os gregos, irá des- da fé" desejada (mais do que esperada) em um diálogo que Nicolau de Cusa
crever, em uma série de Conversações, a lenta pedagogia do Espírito San- escrevia no mesmo ano da tomada de Constantinopla pelos turcos, sem
to operando ao longo de toda a História humana 1. esquecer a ilha de Utopia e a Cidade do Sol, seguidas pela Nova Atlântida

20 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 21


- dever-se-ia acrescentar, dentre tantas outras quimeras, a arte combina- 11. O PAPEL E O SIGNIFICADO DA
tória de Raimundo Lúllio, intrépido pacificador que contava aproximar TÉCNICA NO MUNDO MEDIEVAL"
do cristianismo muçulmanos e tártaros pelas vias conjugadas do amor e
da razão, mas que termina impiedosamente apedrejado em Túnis - e, mais
tarde, os imensos esforços de Guillaume PosteI - arabista e hebraísta -
, que, impressionado pelas visões de uma virgem veneziana, procurará, de
diversas maneiras, nos caminhos do mundo, os meios para fundar uma No capítulo 79 de sua Doetrina pueril, Raimundo Lúllio - pedagogo
verdadeira concordia orbis terrarum. de vocação e encarregado, por Jaime o Conquistador, de educar o futuro
Esse resumidíssimo catálogo das tentativas de transposição terrestre rei de Maiorca - descreve, por volta da metade do século XIII, as "artes
de um tipo de civitas Dei ficaria ainda mais incompleto se não lembrássemos mecânicas" como sendo as "ciências" próprias aos homens que "traba-
sucintamente, para terminar com uma nota mais atual, por um lado, os mitos lham com seus corpos". Aqui o treballan do texto catalão perdeu, eviden-
do liberalismo e da livre empresa, o paraíso das "harmonias econômicas" temente, qualquer referência ao tripalium, instrumento de tortura reser-
nascidas de supostas regulações pela falência e pela miséria e, por outro, as vado aos escravos, e a palavra não é mais pejorativa do que o laborant
encantações mágicas ou as pretensões científicas de um socialismo pleno de latino. Para Lúllio, essas artes mecânicas não estão exclusivamente reser-
sedução mas que, aparentemente, não instalou, até agora, em nenhuma de vadas a uma classe inferior da sociedade (aquela que Platão situava, por
suas formas concretas e de modo duradouro, modelos convincentes. assim dizer, à margem de sua República). Burgueses, cavaleiros, príncipes
Apesar de tantas evidentes diferenças de conjuntura e de ideologia, essas e prelados não apenas devem lembrar que sem os ferreiros, os marcenei-
experiências (e muitas outras) intentadas pelos humanos, seja in mente, seja ros e os lavradores eles morreriam de fome e de frio, mas também que têm
in vivo, apresentam, em variados graus, a característica comum de ilumi- interesse, como os mais ricos sarracenos, em praticar, desde a infância, uma
narem cruelmente, mais ou menos cedo, o que Platão descrevia como "causa dessas artes; se o acaso, um dia, os desfavorecer, poderão assim ganhar
errante", e que Agostinho associa ao pecado original: a resistência obstinada seu pão cotidiano. Logo, é por razões tanto pedagógicas quanto econô-
- senão mesmo diabólica - que o real impõe aos esforços de nosso livre micas que Lúllio reabilita o trabalho sem se referir a uma teologia (quase
querer organizador. Não se pode sem dúvida esquecer que essa "negativi- desconhecida na Idade Média) que invocava o exemplo de Jesus carpin-
dade" (que não é apenas, nem mesmo intrinsecamente, a da "matéria" como teiro, de Paulo fabricante de redes, para enaltecer essa Formierung, atra-
tal) desempenha um papel, essencial, de motor no devir histórico; nesse caso, vés da qual a matéria bruta encontra-se tecnicamente "elaborada", trans-
não seria absurdo atribuir-lhe uma significação análoga - mutatis mutandis formada em obra propriamente humana.
- àquela que usualmente os teólogos atribuem à queda de Lúcifer e à de- Meio século depois, essa reabilitação assumirá, nos místicos renanos,
sobediência de Adão e até à traição de Judas. Não parece, entretanto, que uma nova forma, igualmente incompleta. Em um curioso sermão, Eckhart
consigam com isso jamais eliminar - ou, pelo menos, tornar de algum modo irá opor à contemplação ainda "sensível" de Maria, sua irmã mais nova,
transparente à razão, senão mesmo à fé - nem o incerto trabalho da "dis- a perfeição da mais velha. Dentro do mesmo espírito, Tauler acusará seus
tensão" diacrônica, nem tampouco, por elas mesmas, nossas "extensões" irmãos de permanecerem freqüentemente aquém da espiritualidade al-
optativas rumo a uma forma qualquer de intemporalidade. cançada pelos artesãos ou pelos camponeses.
Eckhart e Tauler não chegam entretanto a exaltar, como tal, o fruto
material do trabalho. Parece-lhes, somente, que a condição normal do homo
viator implica um operari in mundo, e que os pretensos contemplativos
NOTAS que, neste mundo, querem se passar por anjos freqüentemente passam por
animais. Estamos ainda distantes das correntes que, um pouco mais tar-
1 Sobre esses temas, cf. Friedrich Heer, L 'Univers du Moyen Âge, trad. fr., Paris
de, chegarão à apologia do "engenheiro" (como em algumas páginas do
1970, p.289 sg ..
2 Ed. Châtillon, Paris 1958, p.209-212. idiota cus ano que o século XVI irá transformar em mechanicus, para ver
3 Cf. Piem: Chaunu, L 'Expansion européenne du XIlleme siúle, Paris, 1969.
4 p.l10, cf. Hugo de São Vítor, Didascalicon, ed. Buttiner, Washington 1939, p.4I. .. Comunicação apresentada no Colóquio organizado em Roma pelo Instituto di
5 Paris-Louvain, 1952. Studi Filosofici em janeiro de 1964 (Diogime, Paris, julho-setembro 1964).

22 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 23


no interlocutor de De staticis experimentis um precursor de Leonardo da passando pelo médio-estoicismo e pela patrística, a tradição filosófico-teo-
Vinci ou de Cardano), e igualmente muito distantes da ética calvinista (ou lógica capaz de fornecer suas cartas de nobreza ao homo faber segue, na
pseudocalvinista), que fará do êxito econômico (e, conseqüentemente, da verdade, uma linha contínua, apesar das resistências que surgem às vezes,
produtividade técnica) um signo sensível da eleição. em Platão, por exemplo, quando ele nega que o verdadeiro músico use cordas
O fato é que não há propriamente, seja para Lúllio ou para os pre- e cavilhas (Rep. VIl, 531 a) ou, mais explicitamente, em Sêneca (Ep. 80),
gadores dominicanos que acabamos de citar, nenhuma "profissão tola". quando este censura Posidônio pela apologia dos inventores que descobri-
O trabalho manual não pertence para eles, de forma essencial, a uma raça ram a arte de fundir os metais e de forjá-los para as necessidades do homem.
inferior que só possuiria plena dignidade humana no plano espiritual e não Para ele, os únicos "sábios" são os que lêem no cosmos a harmonia da ra-
na ordem de uma hierarquia social, da qual a angeologia tomista poderia zão universal e que zelam, através de uma educação moral, para tornar o
nos fornecer uma analogia típica (os Anjos e os Arcanjos condenados às homem mais digno da centelha divina que traz em si.
"operações" propriamente ditas, milagres e missões junto aos homens, ao Em seu tratado sobre a Criação do homem, Gregório de Nissa evo-
passo que os Serafins e os Querubins continuam simplesmente contempla- ca a grande novidade que a obra do sexto dia traz ao universo criado. Tendo
tivos, e as ordens intermediárias dedicam-se a funções de comando que feito surgir do nada o céu e a terra, os astros, as plantas e os animais, eis
concernem mais à prudência do que à técnica). Mais "aristocratas" em geral enfim que Deus instala, nesse magnífico "palácio", o ser que formara à
do que o fidalgo maiorquino - que se tornou eremita e missionário, po- sua imagem e semelhança e que deve se tornar simultaneamente o "con-
liglota e lógico para assegurar a paz do mundo na unidade da doutrina- templador" e o "senhor" de tudo aquilo que assim foi "preparado" para
ou do que o nobre turíngio - doutor pela Sorbonne e mestre de despren- ele. Aqui a exegese bíblica retoma, por uma outra via, o tema biológico
dimento espiritual-, a maioria dos escolásticos de seu tempo permanece de Aristóteles, fazendo do homem o mais perfeito dos seres vivos, e atri-
fiel à classificação dos modos de vida definidos por Aristóteles e situa bem bui, de saída, um valor providencial às insuficiências originárias destaca-
abaixo do lazer contemplativo, mas igualmente da vida política e militar, das pelo mito protagórico. Lembramos, com efeito, que quando Epimeteu
essa árdua busca do progresso material e do lucro que, desde essa época, faz sair O anthropos da terra e do fogo (como o Criador do Gênesis "jeo-
tornam possíveis, mais do que a crematística grega, as técnicas do grande vista", 11, modela o humus terrestre, insuflando nele sua própria vida para
comércio e do banco, os primórdios da indústria e a introdução, na terras transformá-lo em homo), essa gata-borralheira da criação, longe de ser,
das abadias e em certos domínios senhoriais, de novos métodos agrícolas. logo de início, o "rei" do universo, continua sendo um pobre animal to-
Se Santo Tomás se adapta às .realidades de seu tempo (por exemplo, ao talmente nu, sem nenhuma arma natural, que só sobreviverá porque Pro-
comentar o livro V da Ética, negligencia as formas arcaicas da justiça distri- meteu irá roubar para ele o dom do fogo, segredo de toda técnica. Protá-
butiva, como divisão de honras e de subsídios, para definir o justo salário goras, sem dúvida, não iria mais longe do que isso. Platão acrescenta que,
segundo a proporção exata do tempo de trabalho), é interessante notar que, domesticador dos animais e senhor dos minerais, o homem continua in-
ao retomar as teses de Aristóteles acerca do "regime misto", exclui, de saída, capaz de viver em paz em uma república bem ordenada; falta-lhe, pois, o
a "oligarquia" (isto é, o regime que está em vias de se instalar nas novas dom divino de novas technai, transcendentes a todas as outras e de ordem
comunas burguesas) como o governo dos "ricos", em suma, cada vez mais, universal: as "virtudes" do pudor e da justiça (Prot., 322 cid). Na Bíblia,
é o governo da classe ascendente que extrai seus recursos de um trabalha- ao contrário, é desde o começo, e não por acaso, que o homem - física e
dor tecnicizado. E se esse desprezo pelos ricos pode parecer evangélico, é corporalmente - foi criado como o rei de todas as coisas. Em contrapar-
em um tom bastante desagradável que o santo doutor, a propósito dos tida, a desobediência voluntária introduz a desordem em todos os níveis e
perigos da "democracia" em estado puro, descreve os plebeus, "pobres, dá o sentido de castigo a um "trabalho" que, sem aquela desobediência,
ignorantes, que exercem profissões miseráveis" (In Pol., VII, 10). Dentro teria sido apenas a harmoniosa valorização do reino terrestre. Apesar de
dessa visão social, na qual enfatiza-se a "virtude" e, subsidiariamente, a todas essas diferenças, Gregório de Nissá não hesita em integrar à pers-
"honra", quase não parece sobrar lugar para qualquer forma de "engenho- pectiva bíblica - com tudo o que esta implica de desconfiança, em um povo
sidade" técnica. pastoril, quanto à raça dos ferreiros, descendentes de Caim (Gênesis, IV,
E, entretanto, o século XIII ocidental não carecia, fosse no plano teó- 22) - os lugares-comuns que encontra em Cícero sobre a inferioridade
rico ou na ordem prática, de nenhum dos elementos doutrinais que teriam física do homem, e que compensam suas aptidões técnicas, elas próprias
podido torná-lo mais sensível a esse tipo de valor. Dos sofistas aos vitorinos, favorecidas tanto pelo privilégio da posição ereta quanto pela posse das

24 Mauricc de Gandillac Gêneses da Modernidade 25


mãos. Sabe-se que é sobre esse último ponto que Aristóteles, em uma pers- peito. Corriam lendas sobre "mestre Alberto" afirmando que este, assim
pectiva mais estática, sem se referir nem à imprudência de Epimeteu nem como mais tarde Fausto, e talvez Descartes, teria construído um autôma-
tampouco a uma queda original qualquer, insistiu, nesses mesmos textos to, quem sabe até um homuncu/us, e que, em pleno inverno, teria feito
biológicos nos quais sugere (sem recorrer a nenhuma forma de evolucio- florescer em Colônia árvores frutíferas 3 . Ainda que a ars magna de Lúllio
nismo, e até rejeitando expressamente o "pré-Iamarckismo" de Anaxágoras fosse se tornar, aos olhos da posteridade, o modelo mesmo de um sistema
assim como o "pré-darwinismo" de Demócrito) uma continuidade estru- lógico totalmente formalizado, a própria vontade de utilizá-la para fins
tural e hierárquica entre a planta, cuja cabeça se encontra, por assim di- práticos a desvalorizaria aoS olhos dos clérigos, e em pouco tempo o maior-
zer, fixada no solo, e o homem que, ereto sobre seus pés, olha para o céu quino também seria considerado uma espécie de mago. Desconfiava-se dos
(reproduzindo em sua própria atitude a ordem "natural" do alto e do comerciantes, não apenas porque seus lucros dificilmente teriam lugar,
baixo), dotado pela própria natureza (para servir à sua inteligência) de duas apesar de todas as casuísticas, no quadro rígido da economia aristotélica,
mãos com dedos oponíveis, sendo, cada uma, uma "ferramenta que se mas também porque os primeiros grandes negociantes foram, na Europa,
utiliza de ferramentas" (De partibus animalium, IV, 10, 687a). É então os sírios de tez mais ou menos morena, os vikings, três quartos piratas, os
apenas aparentemente que o homem nasce desarmado e desvalido. Para aventureiros, cujos estabelecimentos eram antes depósitos de receptação
Aristóteles, ele prevalece, desde sempre, sobre todos os seres vivos devido do que lojas de atacadistas.
à sua habilidade manual e ao poder de sua razão. O homo sapiens é, des- E se se respeitavam mais os grandes construtores, conservando em
de o início e para todo o sempre, um homo artifex, e a inteligência, que pergaminhos fechados os segredos de construção (que talvez não fossem
assegura sua soberania, é inseparável de sua engenhos idade técnica. Nas nada além de fórmulas matemáticas, provavelmente de geometria projetiva,
dimensões históricas que a tradição judaico-cristã superpôs a essa visão, que não encontrados em Boécio ou mesmo em Vitrúvio), basta ler o Liber
parece que não havia nenhum obstáculo para que a síntese do Capadócio de consecratione ecclesiae, de Suger, para imaginar tudo o que a edificação
encontrasse eco e servisse de base a todo um desenvolvimento teológico. de uma abadia ou de uma catedral encobria. E ainda, no caso de Saint-
A Idade Média teria podido meditar muito mais sobre todas essas Denis, trata-Se de um empreendimento parcialmente político, essencialmen-
fórmulas se, com a palavra ars, tivesse herdado um termo com múltiplas te capetíngio. O próprio abade beneditino escolheu, nas florestas dominiais
significações que, como seu homólogo alemão, se aplica a quase todas as e nas pedreiras da Ile-de-France, os materiais da primeira igreja "gótica",
capacidades humanas 1. Sabe-se o que representa a própria idéia da "grande e foi com o apoio dos principais bispos do "domínio" que recolheu os
arte", aquela do iniciado que se esforça ao mesmo tempo para transmutar fundos necessários à obra. Porém, se fala de sua obra como um técnico
artesanalmente os metais e, na verdade, em um nível superior de herme- frio, pode-se perceber, entretanto, que, para ele, o essencial dessa arte é a
nêutica, tenta, por sua "operação", descobrir o verdadeiro sentido da na- maneira pela qual finalmente "a luz misteriosa e uniforme penetra" em
tureza 2 . Todo um setor medieval conheceu essas artes secretas que exigem Saint-Denis "pelas altas e santas janelas". Luz e matemática, tudo isso é
uma "técnica" minuciosa, no sentido mais moderno do termo, mas que bastante presente, não apenas em Chartres no século XII, mas em seguida
utilizam-se simultaneamente da magia simpática para agir à distância. Judeu em Oxford com Grosseteste, e até na Silésia com Witelo. Mas a Universi-
ou batizado, o médico continua sempre sendo suspeito de feitiçaria. Na dade de Paris, em sua grande época, pouco se interessa por esse enobre-
própria caçada a cavalo, ars nobilis, entre todos, sabe-se que desde a épo- cimento místico da técnica arquitetura!.
ca pré-histórica o encantamento jamais foi totalmente separado da habi- As únicas "artes dignas de verdadeira estima são efetivamente as artes
>l-

lidade para a caça. A arquitetura, rica em fórmulas esotéricas; a escultu- liberales, que a Idade Média herdou da antiga paideia helênica e helenística
ra, que mescla a uma efervescência alegórica a representação minuciosa (quadrivium platônico, mas sobretudo trivium de dominante lógico-grama·
dos gestos artesanais; a própria política, que coroa de poderes mágicos o tical). "Técnicas", seguramente, mas que não visam senão a finalidades
cavaleiro ou o rei, todas estão longe de ser inteiramente racionalizadas (a desinteressadas, que, de algum modo, agem diretamente na matéria e que
despeito do que se poderia imaginar lendo os comentários de Aristóteles). não exigem nenhum aprendizado manual; técnicas sobretudo - e eis sua
Dessas técnicas quase misteriosas, parece que a Idade Média dos "intelec- única justificação contra as suspeitas da "anti dialética " - que permane-
tuais", aquela da universidade e dos clérigos, nunca deixou de desconfiar, cem subordinadas à teologia. Seguramente, cada vez mais, ao lado dos mes-
assim como de tudo aquilo que, nas profissões propriamente ditas, nas tres da sacra pagina e da doctrina sacra, a universidade formaria canonistas,
"máquinas", nos segredos de fabricação, evocava esse segundo plano sus- legistas, os grandes "escriturários" que farão da Igreja e do Estado "má-

26 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 27


quinas" jurídicas e burocráticas, mas justamente em um nível que o "me- contêm os rios em diques para proteger das águas seu vergel angevino, gran-
cânico" não se revela imediatamente como tal, porque não se utiliza do des senhores que, vítimas de seu gosto pelo luxo e freqüentemente endi-
trabalho dos dedos a não ser por intermédio dos "escribas". Por sua vez, vidados, precisavam então que suas terras "frutificassem", aceitam até
os lógicos se tornarão "técnicos" tão hábeis que, ainda aqui, o sutil "meca- renunciar parcialmente às alegrias da caça e, para encher seus celeiros de
nismo" da disputatio dissimulará, por um bom tempo, seu possível veneno belos grãos selecionados, encorajam as iniciativas técnicas de seus minis-
e de modo que, se Pedro de Ailly denuncia publicamente o perigo do ju- teriais. Não é apenas em Corbie ou em Saint-Germain-des-Prês que se
ridismo, ainda revela muito pouco ao fim do século XIV (menos que seu pratica a agricultura de modo cada vez mais racional, como uma "arte
amigo Gerson) do frio demonismo dos "formalizantes". Cada vez mais mecânica" digna da mais alta estimé. Afolhamento trienal, esterroamento
separada do real, a dialética, pelo menos, não parece correr o risco de erigir regular, multiplicação das fundições (atestada pelos inventários, mas tam-
o homem como novo Prometeu, de arrancá-lo da contemplação para sub- bém pela banalização dos Lefévre, dos Smith, dos Schmidt), arados de ferro
metê-lo ao trabalho da criação. E se os religiosos percebem aqui o perigo com rodas e cuiveca (desconhecidas pela Antigüidade e que quase não
de uma alienação mais secreta, seu contemptus mundi também se compraz, sofrerão alterações na forma até a "brabante" do século XIX), invenção
com bastante freqüência, com técnicas mecanicizadas, ricas em gradus e em da ferradura, da braçadeira de atrelagem, do jugo frontal, substituição dos
scalae. É sonhando com esse tipo de "tecnicização" que os eckhartianos pavimentos romanos rígidos por um sistema elástico de calçamento das
reabilitam eventualmente, e como que por acaso, o mais humilde trabalho estradas, implantação de moinhos de vento e de moinhos d'água (que, de
do artifex, mas despojando-o de tudo aquilo que faria dele o inquietante um único regato da região de Ruão passarão, em dois séculos, de 10 a 17)
intermediário de um verdadeiro "confisco" sobre a natureza. todos esses, testemunhos evidentes de uma verdadeira revolução técnica.
E entretanto, se os filósofos e os teólogos quase não se abrem para Mas uma revolução que está longe de se restringir apenas ao domínio
um mundo novo (sobre o qual os manuais de confessores são, ao contrá- da agricultura. Ao mesmo tempo em que os viajantes trazem do Oriente,
rio, o testemunho), na "prática" mesma da vida, a Idade Média assiste ao diretamente ou pelo Islã, procedimentos tão preciosos quanto o algarismo
desenvolvimento de todas as espécies de técnicas" de conquista" , porém dito arábico (na verdade indiano), o astrolábio e a pólvora, vêem-se desen-
freqüentemente sem falar delas, sem se vangloriar por possuí-las, sem as- volver a arte e o uso do vidro, a fabricação de lentes e de lunetas, a constru-
similar seu caráter revolucionário. Dessa floração, por longo tempo des- ção de relógios, a indústria do papel, e logo depois o leme de grandes pro-
conhecida, tomamos lentamente consciência através dos inventários das fundidades que possibilitará viagens marítimas mais longas. Longe de des-
abadias, das miniaturas de manuscritos, dos capitéis e pórticos das igre- prezar as artes mechanicae, o homem medieval já tomou destemidamente
jas, através da própria análise dos monumentos. Friedrich Heer observa o caminho que fará de seus netos os senhores e donos da natureza.
que durante muitos séculos a ética do "trabalho" e da "conquista" per- Ora, é de se notar que, na própria alvorada dessa revolução, os mon-
maneceu, em grande parte, um fato "rural". E é certo que ao longo da Idade ges de São Vitor apenas o registram, sem pudor ou surpresa, de forma mais
Média, quase sem o conhecimento dos estudantes parisienses que comen- precisa e mais significativa do que o farão, mais tarde, casos isolados como
tavam a Bíblia e Aristóteles, o homem desbravou florestas, drenou pânta- Lúllio, Eckhart e Tauler. O Didascalon de Hugo e em seguida o Liber
nos 4 , não apenas colonizou, no norte e no leste da Europa, imensas regiões Exceptionum de Ricardo são, a esse respeito, testemunhos significativos.
quase desertas, mas mesmo, no interior de antigas regiões romanizadas, Retomando a divisão aristotélica das ciências em "teóricas", "práti-
entre Carlos Magno e São Luís, duplicou, às vezes triplicou, em média, o cas" e "poéticas", ao lado da teologia e da matemática (que formam a theo-
rendimento das terras, alcançando um nível de "produtividade" que qua- retica), da ética, da economia e da política (que constituem a practica), antes
se não será alterado posteriormente, antes do salto técnico dos últimos cento da lógica (gramática, dialética, retórica), à qual, aliás, ele consagra apenas
e cinqüenta anos. Nesse trabalho, algumas grandes abadias desempenha- algumas linhas, Ricardo apresenta em duas páginas concisas a importante
ram um papel decisivo; são elas que nos fornecem os documentos mais re- seção da "mecânica" ,que contém, segundo ele, universa quae humanis neces-
veladores. Seus intendentes lêem e adaptam antigos tratados de agricultu-. sitatibus inveniuntur grata, commoda, necessaria. Mesclando os testemu-
ra, aprimoram os apetrechos, introduzem métodos novos de afolhamento. nhos livrescos da Antigüidade às próprias realidades de seu tempo, ele di-
Mas, como mostrou G. Duby, em um livro tão rico em investigações quanto vide (por razões talvez simbólicas) essa mechanica em sete artes que - en-
prudente em suas sínteses5 , não foram só os monges que trabalharam nessa globando a caça, em todas as suas formas, a medicina (incluindo a cirur-
evolução; soberanos que, como Henrique Plantageneta no vale do Loire, gia), a teátrica, ou conjunto dos jogos que inclui os dos gladiadores e o

28 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 29


trabalho das tocadoras de flauta nos banquetes - dão lugar, de modo mais estruturas econômico-tecnológicas da nova sociedade prometêica. Entre
interessante, a toda uma série de profissões, cuidadosamente descritas com o século XII e o XV encontrar-se-ão, sem dúvida, algumas apologias da
grande riqueza de termos técnicos, por vezes difíceis de interpretar. O pri- arte mecânica; ainda que cada um dos temas que contenha sejam, eles mes-
meiro grupo é o /anificium (que concerne, em todos os seus níveis, à prepa- mos, tradicionais, acreditamos detectar entretanto uma ênfase nova no
ração do linho, da lã e de Outras fibras têxteis, animais ou vegetais). O se- sermão pronunciado para a festa da Epifania, em janeiro de 1456, pelo
gundo, a armatura (que compreende a arquitetura e a metalurgia, a arte de Cardeal de Cus a, bispo de Brixen. Neste, o predicante evoca ao mesmo
talhar as pedras, de fabricar tijolos e telhas, com a lista de todos os instru- tempo o mito de Protágoras e a idéia de um progresso no tempo para o
mentos ad hoc). Seguem-se a navigatio, que inclui o comércio em todas as qual colaboram - por referência explícita à Encarnação - o trabalho
suas modalidades (industria vendendi et emendi). A agricultura (que pre- "natural" do homem e as graças "sobrenaturais" que àquele se acrescen-
cede, de fato, na ordem da exposição"a venatio, a medicina e a theatrica), tam para lhe atribuírem seu pleno valor:
enfim, é brevemente descrita em seus quatro aspectos: cultura dos cereais e
dos legumes, arboricultura e viticultura, atividade pastoral, arte dos jardins. Todos os homens nascem nus, como os animais. Mas a arte
Porém o mais importante é a afirmação vitorina segundo a qual essa arte, da tecelagem os vestiu, permitindo que vivam melhor do que
como todas as outras, deriva simultaneamente da filosofia e da pura tec- aqueles. Do mesmo modo, eles usam alimentos cozidos, moram
nicidade: ratio agriculturae pertinet ad philosophum, administratio ad rus- em casas, domesticam os cavalos, praticam todas as espécies de
ticum. Assim, o artesão encontra seu lugar em um sistema universal que arte que os permitam viver melhor, e são muito gratos àqueles
valoriza a técnica pura, recusando-se a separá-la do saber teórico e da fina- que as inventaram. Acrescentemos que muitos vivem na triste-
lidade moral. Reconciliando, por assim dizer, Sêneca e Posidônio, Ricardo za e na penúria, enquanto outros são ricos e levam uma vida
cita ao acaso, entre os inventores artium, os iniciadores da teologia e os da feliz. É portanto natural que, por alguma graça ou por alguma
física, os descobridores da arte têxtil e os da aritmética, os primeiros músi- arte, o homem se esforce para alcançar o máximo de paz e o
cos e os primeiros navegantes. Nessa estranha lista, Abraão e Moisés apa- máximo de felicidade 9
recem ao lado de Ésis e de Ceres; Orfeu, Varrão, Escoto Erígena juntam-se
à industriosa Minerva; e pármênides situa-se ao lado de "Jubal filho de Caim" Ainda que o homem obtenha êxito parcial com essa "diversidade de
(cuja linhagem, conseqüentemente, não é de modo algum amaldiçoada). artes e dos produtos da arte", sobre a qual o Compendium de 1463 dirá
Todas essas descobertas se situam na perspectiva, simultaneamente histó- que "manifesta, de forma evidente e diversa, o intelecto uno e indivisível
rica e comunitária, de uma luta ativa de toda a humanidade contra as con- do homem"lO, e que requer, antes de tudo, o estudo teórico da ética, da
seqüências do pecado. Privado, com efeito, dos três bens conferidos a Adão política e da economia, nada disso é totalmente suficiente, pois apenas a
(conhecimento, virtude e imortalidade corporal), o homem dispõe de três religio O conduzirá finalmente à "vida eterna". Mas, de todas as doutri-
"remédios"?: a sabedoria (theorica), a virtude (practica) e - no mesmo nas da salvação, a mais completa é a do Cristo, que convida todos os ho-
nível- a técnica (mechanica). Nessa perspectiva, a dura lei do trabalho não mens a partilharem sua divina "filiação", visto que é "ao mesmo tempo a
é simplesmente a punição da falta original; torna-se um meio positivo de via da graça e da natureza" 11 .
redenção s. E as artes mecânicas parecem mesmo prevalecer, de um certo Em um estilo mais elaborado, não se encontra aí o humanismo inte-
modo, sobre o trivium; o fato é que a gramática, a retórica, ou mesmo a gral que já sugeriam os vitorinos? Entre os dons de Zeus e os de Prometeu,
dialética (cujo suposto inventor, Parmênides, figura entretanto na lista de o Cusano destaca a continuidade. Ao se desprezar as artes do fogo pelas quais
seus grandes benfeitores) não são expressamente citadas como "remédios" o homem prepara progressivamente seu próprio reino, não se está corren-
para as conseqüências do pecado. do o risco de mutilar a vocação trabalhadora do homo viator? Em um ar-
Jean Châtillon, o probo editor do Liber Exceptionum, observa que tigo de dezembro de 1963 (Forum-France), o ex-ministro André Philip es-
essa "visão bem compreensiva da humanidade terrestre" (ligada, nos vito- crevia: "Se se deseja democratizar os tecnocratas, é preciso, ao mesmo tempo,
rinos, ao esboço ingênuo de uma grande história, das origens à conq uista tecnicizar os democratas." Por democracia, o autor dessa fórmula enten-
da Inglaterra) irá "logo desaparecer do horizonte escolástico". Desapare- de, na verdade, toda uma concepção "espiritual" do homem. A reconcilia-
cimento (ou pelo menos eclipse parcial) ainda mais paradoxal, como dis- ção necessária da "sabedoria" e da "técnica" exige, diz ele, que se apren-
semos, por coincidir com os séculos nos quais se preparam ativamente as da, antes de tudo "a levantar os problemas concretos do mundo", de modo

30 Mauricc de Gandillac Gêneses da Modernidade 31


que cada pessoa possa livremente "assumir suas responsabilidades". Será buí-Ios sistematicamente, toma cuidado em insistir na "ambivalência" dessas artes. partim
que o erro dos escolásticos, do qual tantO se ocupam os puros "intelectuais", necessariae, partim voluptuariae. Ele cita, no mesmo plano, ao lado da medicina, a arte
em todas as épocas e em todos os estilos (como o da retórica existencialista), dos venenos e, em uma linha bastante platônica, a técnica do cozinheiro que prepara os
não é justamente o desconhecimento, quem sabe até o menosprezo, tanto condimenta et gulae irritamenta. Da eloqüência e da dialética, afirma apenas que serviram
aos mais ilustres filósofos para "espalhar os erros e suas falsidades". Falando da mara-
desses "problemas" quanto dessas "responsabilidades"? Se o homem es-
vilhosa complexidade do corpo humano, enfatiza que, para conhecê-la, o homem deve
quece sua vocação de homo faber, ele corre o sério risco de ser sempre apenas recorrer à crudelis diligentia daqueles que chamamos anatomici. Se é verdade que Deus,
aparentemente homo sapiens, luxo inútil, puro epifenômeno, em uma so- ao criar o mundo, preparou para o homem um quadro maravilhoso, e que, dotando-o
ciedade na qual o instrumento técnico - por não ter seu próprio valor re- da estatura ereta e da mão, colocou à sua disposição úteis instrumentos técnicos, no
conhecido e, assim, não estar situado em seu verdadeiro lugar - escapa ao mundo do pecado, não se pode esperar dessas virtualidades a não ser um mau uso. Se
controle da racionalidade e perde sua significação autêntica. os vitorinos se inspiraram nesse texto, fica claro que lhe atribuíram um outro sentido.
S No sermão) citado mais acima) ,\ÇtTCa de Marta e Maria, Eckhart observará que)
desde a recepção do Espírito, os Apóstolos nào pararam de "trabalhar" na promoção do
reino de Deus, como Jesus havia "operado" na terra para a salvação dos homens. Ele verá,
aí, a justificação do "trabalho" de Marta a serviço do Cristo e de seus discípulos, mas
não chegará, entretanto, a glorificar, em si mesmo, o trabalho que transforma a matéria.
NOTAS 9 Cusanus-Texte, I: Predigten, 1/5, Vier Predigten im Geiste Eckharts, ed. Koch,

Heidelberg, 1937, p.94 sq.


[ Para toda uma tradição germânica, a gottliche Kunst designará, por muito tempo, 10 O quarto livro do Idiota (Dialogus de staticis experimentis, 1450) já marcava
a mais alta sabedoria da criatura que se assemelha a seu Criador. de forma precisa o interesse do cardeal pelo desenvolvimento de uma ciência fundada
2 Esses dois níveis estão bastante ligados em uma frase que Friedrich Heer, sem nas matemáticas e orientada para a invençào de ferramentas práticas da observação e
citar a fonte, atribui ao monge franciscano do século XIV João de Rupescissa (Mittelalter, do progresso material.
Zurique, 1961, p.479), que passou uma parte de sua vida na prisão: "De nada adianta 11 O sonho do Cusano é a uniftcação moral e religiosa da humanidade graças à
visar ou alcançar o auge dessa arte se não se purificam seus sentidos através de uma vida doutrina do Cristo como homo maximus. A Encarnação, cuja exigência crê reconhecer
santa e de uma profunda contemplação, não somente para conhecer o interiot da natu- em todos os filósofos, fornece, para ele, seu pleno sentido ao esforço coletivo da huma-
reza, mas também para saber modificar a natureza modificável, segredo que pertence nidade rumo ao progresso do saber científico, da técnica da conquista, da concordia
apenas a pouquíssimos homens." Uma tal declaração poderia ser encontrada em um outro catho/ica e da pax (idei. Karl Jaspers destaca o "fracasso" daquilo que nós mesmos de-
monge como Rogério Bacon, que via uma "graça de Deus" na invenção de um espelho nominamos, em outro texto, as "semi-utopias", mas vê nesse próprio fracasso a "mar-
ardente pelo qual, renovando a experiência de Arquimedes, os cristãos triunfariam so- ca" de um êxito, o signo metafísico de um lúcido apelo à liberdade humana (Nikolaus
bre os infiéis por meio de máquinas baseadas em um saber capaz - uma vez perscruta- Cusanus, Munique, 1964).
dos os mirabilia naturae - de transformá-los em técnicos conquistadores.
3 Essas lendas continuam a circular nos círculos esotéricos contemporâneos, que
as propagam a portas fechadas.
4 Em uma exortação improvisada, em Royaumont, Louis Armand observava o
papel da abadia no desenvolvimento das culturas "hortícolas", nascidas justamente desse
trabalho de "drenagem". Ele via, aí, a prova de um sentido "técnico" e de um gosto
pelo" prospectivo" . Mas se os cistercienses, amigos do rei Luís IX, contribuíram assim
para mudar o aspecto dos arredores parisienses, não parece que esse trabalho tenha dei-
xado muitas marcas em sua mística teórica.
S G. Duby, L 'économie rurale et la vie des campagnes dans l'Occident médiéval,
2 vaI., Paris, 1962.
6 Ch. Südhof, "Die Stellung der Landwirtschaft im System der mittelalterlichen
Künste", Zeitschri(t (ür Agrargeschichte und Agrarsoziologie, 1956.
7 Agostinho examina, no último livro de Civitas Dei (XXII, 24), as damnatorum
solatia que Deus confere aos "homens de carne". Sua enumeração retórica serve sobre-
tudo para valorizar, através de um raciocínio a (ortiori, as recompensas reservadas aos
"bem-aventurados" após a ressurreição dos corpos (quae igitur illa sunt, si tot ac talia
ac tanta sunt ista?). Não se trata absolutamente, então, de "remédios" providenciais,
comparáveis àqueles da sabedoria e da virtude. Santo Agostinho, que não tenta distri-

32 Maurice de Gandillac 33
Gêneses da Modernidade
UI. INTRODUÇÃO AO
"RENASCIMENTO" DO SÉCULO XW

Baseada em quadros tradicionais e prisioneira de classificações esco-


lares, a visão histórica comum reserva o termo "Renascimento" a mais ou
menos dois séculos (grosso modo os séculos XV e XVI), nos quais se ma-
nifestou, na Europa ocidental, uma "ruptura" mais ou menos decisiva com
as "trevas medievais". Ocorre, sem dúvida, que se remonte o início desse
período a uma época um pouco anterior, mas quando se anexa a esse pe-
ríodo, por exemplo, sobretudo na Itália, uma boa parte do Trecento, enalte-
cendo-se especialmente Petrarca e Bocaccio por terem ilustrado (após Dante,
mas com um espírito novo) o volgare da T oscana, é em geral para que se
atribuam então a esses "precursores" (e, em pintura, remontamos natu-
ralmente a Giotto) traços que, conscientemente ou não, "anunciariam" uma
nova era mais seguramente do que a via moderna dos últimos escolásticos,
ainda entravados, pensa-se, em um formalismo lógico exagerado e em uma
excessiva veneração à autoridade do "Mestre daqueles que sabem" (mas
o que dizer então do aristotelismo dos averroístas de Pádua?). Naquele tipo
de anexação deixa-se às vezes de fazer jus aos alemães como Eckhart e
Tauler e ao francês Oresme pois, também eles, desde o século XIV, utili-
zaram arrojadamente seu idioma materno para traduzir noções abstratas
reservadas até então à língua culta, não sem voltar, pelo menos no que
concerne ao chanceler de Carlos V, um olhar bastante audacioso às mate-
máticas e a uma cosmologia por vários motivos "modernas".
Alguns, para quem Rinascimento significa antes de tudo Umanesimo
(termos que os historiadores ultramontanos tendem entretanto a dissociar),
recuam ainda mais na localização dos primórdios do "humanismo" (ter-
mo deveras equívoco, visto que designa simultaneamente um determina-
do lugar atribuído ao homem no mundo e um certo tipo de cultura clássi-
ca). Constatando o gosto de tais autores do século XII por um latim mais
ciceroniano e sua freqüente referência a modelos antigos (à sua Heloísa,
obrigada a se tornar freira após a mutilação de seu amante, Abelardo-
todavia mais preocupado com uma sólida dialética do que com elegância
lingüística - atribui, não sem verossimilhança, a recitação, em plena igreja,

.. Redação sensivelmente modificada de uma Introdução apresentada no Centre


Culturel International de Cerisy, na abertura de um Colóquio ocorrido em 1965 (texto
posteriormente publicado em Entretiens sur la "Renaissance" du XII siecle, Éditions
Mouton, La Haye-Paris, 1968).

Gêneses da Modernidade 35
de dois versos tomados da Farsália). Outros vêem naturalmente em um João Destinando suas maiores condenações à "noite" medieval e ao "psita-
de Salisbury, senão o herdeiro do mundo greco-latino (como já foi dito de cismo" escolástico, a "modernidade" principiante rejeita, como perecida,
Dante, tipicamente medieval e "anunciador" às vezes de uma modernida- grande parte da herança antiga; do Discurso do método ao Discurso pre-
de), ao menos o ancestral, ainda tímido, de Erasmo e de Budé. liminar à Enciclopédia de Diderot e d' Alernbert, encontramos a mesma
Evidentemente, ninguém pensa em negar ou em subestimar as ca- subestimação das origens, a mesma confiança no presente grávida de um
racterísticas propriamente medievais do século XII, por vários motivos imenso futuro. Ao contrário, pelo menos se acreditarmos em um dos mes-
"auge" brilhante de um período que se tem muito freqüentemente a ten- tres da célebre escola chartriana, os homens mais lúcidos do século XII
dência a só fazer culminar na época da síntese tomista e das catedrais latino, ainda que - sobre os ombros dos Antigos, como os Evangelistas
góticas. É certo que os trovadores e os trave iras, os autores de roman- sobre os dos Apóstolos (segundo a imagem de um célebre vitral) - fos-
ces, os imitadores de Virgílio e de Ovídio (mas primeiro de Boécio) que sem persuadidos a enxergar mais longe do que seus predecessores, consi-
criaram ou renovaram gêneros e estilos literários, tampouco os arquite- deravam-se "anões" que assumiam, de forma modesta, a sucessão de au-
tos, os escultores, os pintores de afrescos que - em continuidade com a tênticos "gigantes". Na lista de "inventores" de artes liberais e "mecâni-
arte romano-bizantina - transformaram pouco a pouco uma herança ja- cas" (realizada por Isidoro de Sevilha), encontramos em todos os autores
mais renegada, ou mesmo os filósofos e teólogos que, com temperamen- medievais de enciclopédias, didascálias, livros de excertos, tesouros ou
tos diversos, repensaram o tesouro que haviam recebido da Antigüidade espelhos os mesmos personagens misteriosos que Marsilio Ficino evocará
latina, pagã ou patrística, foram por isso, com três séculos de antecedên- como "autoridades" maiores para sua própria Teologia: Moisés, Orfeu,
cia, os antecipa dores do período - de contornos tão indeterminados - Hermes, Pitágoras, Platão.
que devia suceder ao "crepúsculo" ou ao "outono" medieval, com seus Um outro traço aproxima esse "Renascimento" daqueles dos séculos
traços bastante característicos: entusiasmo com as grandes descobertas XV e XVI; trata-se, sem dúvida alguma, em ambos os casos, de "transi-
filológicas e cosmológicas, viagens ao redor do globo, desenvolvimento ções". Todos os períodos, em graus diversos, é verdade, merecem ser as-
da imprensa, fragmentação da cristandade ocidental, tentações panpsí- sim definidos, e, particularmente, essa media tempestas que Andrea de Bussi
quicas e panteístas. evoca em 1469, em seu elogio fúnebre ao cardeal de Cusa, dizendo que
Com essa restrição fundamental, tornou-se banal atualmente usar a esse grande homem tinha lido, não apenas os livros dos Antigos e dos
palavra "renascimento" (com ou sem maiúscula) para designar primeira- Modernos, mas os de todo o período "intermediário". Media tempestas,
mente os tempos carolíngios, mas também, e mais ainda, os decênios par- media aetas, medium aevum; trata-se, efetivamente, de um tempo "media-
ticularmente fecundos que viram prosperar, de Anselmo de Aosta, de Bec dor", que não é mais a Antigüidade, e que prepara, a seu modo, os tem-
e de Cantuária, a Alain de Lille, de Monptpellier e de Paris, o mais ousa- pos "modernos". Nesse longo milênio - que vai de Platina e de Santo
do esforço de especulação acerca dos fundamentos da fé, e que correspon- Agostinho a Galileu, a Bacon e a Descartes - , as "transições" intermediá-
dem às mais belas realizações da arte romana. Já em 1927, Haskins dava rias formam, elas mesmas, uma cadeia contínua, mas seria injusto negli-
a uma grande obra de síntese o nome de The Renaissance af the Twelfth genciar seu aspecto singular, e às vezes original, para considerar apenas
Century, título retomado cinco anos mais tarde pelos quebequenses Paré, as fontes e a posteridade. É fácil observar que o século XII, particularmente,
Brunet e Tremblay para seu remanejamento de uma obra de Robert sobre tem suas raízes na patrística (ela mesma prolongada e renovada no tempo
as "escolas e o ensino da teologia no início do século XII", transformada, de Alcuíno e de João Escoto) e anuncia, simultaneamente, a escolástica.
em 1933, em O Renascimento do século XII. As Escolas e o Ensino. Ao Alguns frisam, naturalmente, os aspectos "arcaicos" da escola chartriana,
preferirem esse título, os autores pensavam seguramente em duas marcas da mística cisterciense ou vitorina; outrOS insistem mais naquilo que pre-
características de todo revival em qualquer época em que este se produza: para o século seguinte: traduções do árabe e do grego, reflexão teológica
progresso patente após um período de estagnação ou de decadência, mas de Abelardo e de seus discípulos, primeiras realizações da arte ogival. Sem
também retorno consciente e voluntário às fontes antecedentes de um sa- desconsiderar as sobrevivências e os pressentimentos, gostaria antes de
ber mais autêntico, traço essencial porque distingue nitidamente o Rinas- destacar a especificidade de um tempo que viu nascer ou morrer tantas
cimento ticiniano das certezas triunfantes da época cartesiana e do século verdadeiras novidades e que - em oposição aos "endurecimentos" pos-
das Luzes, que valorizavam as certezas do homem adulto mais do que os ' teriores, onde denuncia tantos "fechamentos" - Friedrich Heer, no pri-
balbucios da infância ou as quimeras da adolescência. meiro capítulo de seu Mittelalter (Zurique, 1961; brilhante e por vezes

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discutível síntese), apresenta como sendo aquele da "Europa aberta", cujas zes - Le Goff não se contenta em aplicar ao século XII o termo, agora
fronteiras permanecem obscurecidas e ainda permeáveis, no Leste e no Sul, clássico, de "renascimento". Ele sugere que se estenda, com esse termo,
e onde as regras demasiadamente rígidas não paralisam ainda o impulso eminentemente, o campo de aplicação a parte ante, e que se marque o iní-
místico, a reflexão teológica, ou mesmo a criação artística. Qualquer que cio da renovação um pouco depois do Ano Mil, isto é, na própria época
seja o respeito aí professado pela tradição, não se vê nela, entretanto, uma que nos fora há pouco descrita como tão sombria, tão cheia de terrores.
verdade pronta, e é isso o que distingue o século XII do século XV. Na Se assim o é, poder-se-ia dizer que - ele mesmo preparado, dentre tantos
base de supostos fundamentos astrológicos, Ficino e seus amigos conce- perigos e catástrofes, pelas breves florações de Ravena e de Sevilha, pelo
berão seu "renascimento" como uma autêntica palingenesia, como o des- paciente trabalho de alguns mosteiros e particularmente dos claustros ir-
pertar da Bela Adormecida. Evocarão a imagem da fênix que renasce de landeses, e sem deixar de lembrar a sobrevivência de certas tradições ro-
suas cinzas. E, se retornam a Plotino, é na medida em que este é platôni- manas nas províncias imperiais onde, os invasores nunca formaram mais
co. Ensinam uma "teologia platônica \ mas em uma perspectiva na qual do que uma camada bastante insignificante - a preciosa contribuição da
Platão é o sucessor de Zoroastro e do Trimegisto. Não se tem nada disso época carolíngia se prolongou quase sem descontinuidade até a época de
nos "príncipes encantados" dos quais iremos falar: estes possuíam apenas Santo Anselmo. Nesse sentido, é característico que os vikings, ainda que
uma vaga sensação de surgirem de uma noite profunda, portadores de uma tenham contribuído muito ativamente, como afirma Le Goff, para "clivar"
varinha mágica, para fazerem reviver arquétipos originais. Se veneravam o império de Carlos Magno, tenham sido, eles mesmos, tão rapidamente
os Antigos, queriam igualmente subir em seus ombros para ampliar sua assimilados. Às vésperas de nosso século XII, no momento em que atra-
visão. Mais preocupados com uma bela linguagem do que muitos de seus vessam o Canal da Mancha, os normandos de" Rolo já se tornaram porta-
sucessores, seguem regras tradicionais de grammatica, mas sem excesso de dores bem ativos de civilização; se instalaram, desde 1029, na Sicília, e,
purismo e, na maioria das vezes, sem ostentação de vã erudição. Quer se nessa antiga terra grega, posam de monarcas esclarecidos. Na outra ex-
trate de epopéia ou de poesia lírica, de narrativas romanescas ou de cons- tremidade do mundo ocidental, os magiares, que sucederam os hunos, já
truções arquitetônicas, os modelos antigos os estimulam sem limitar sua se encontram igualmente fixados e amansados. A partir do Ano Mil seu
potência inventiva. Nesse aspecto, aliás, assemelham-se aos gênios de to- rei Estevão, que havia direcionado seus súditos à obediência romana, re-
dos os tempos. Apesar das teorias ficinianas, os artistas florentinos não cebe do papa sua coroa e se faz reconhecer pelo imperador Oto 11.
serão, mais do que os arquitetos do vale do Loire, copistas servis; do ro- O século XII é, todavia, ainda apenas um prelúdio. Constata-se, aí,
mânico ao gótico, do flamboyant ao barroco, do jesuítico ao clássico, tem- um importante progresso do comércio - provavelmente associado ao
se uma permanente novidade, no próprio interior da imitação. E o que é desenvolvimento das cidades e das frotas muçulmanas - , preciosas me-
verdadeiro para a arte não o é menos para o pensamento. Mas os homens lhorias na técnica agrícola (na verdade a atrelagem mais racional dos ani-
do século XII escapam sem dúvida melhor do que seus sucessores à obses- mais de tiro e o arado com rodas remontam ao século IX) e um reforço
são de um tempo cíclico. Durante o frágil reinado do luxemburguês Hen- notável da ração alimentar, graças à introdução maciça dos legumes se-
rique VII, Alighieri sonhará em se tornar o Virgílio de uma nova era satur- cos (em Lynn White Jr., Medieval Technology and Social Change, Oxford-
nina. Outros desejarão ressuscitar Platão, Aristóteles, Epicuro, Marco Nova Iorque 1962). Mas no plano intelectual e artístico, ainda que se te-
Aurélio. Nem João de Salisbury nem Alain de Lille escreveram sua Quar- nha freqüentemente avaliado erroneamente a influência negativa - ou
ta Écloga; os comentaristas do Timeu não divinizaram o mestre da Aca- retardadora - de um Pedro Damião, eloqüente adversário de todo saber
demia. Permanece vivo, sem dúvida, ao longo de toda a Idade Média, o profano (a aritmética e a dialética lhe pareciam igualmente diabólicas), é
tema de uma progressiva decadência; lamenta-se que a Igreja seja menos apenas com o Proslogion de Anselmo, contemporâneo das primeiras gran-
pura do que antes e o Império menos sólido. É entretanto raro que, na época des abaciais romanas, que se afirma plenamente o "Renascimento".
em que se constroem as grandes catedrais, fique-se hipnotizado pela ima- Em seu prefácio ao livro de Paré-Brunet-Tremblay, o Padre Chenu
gem do passado; a maioria dos espíritos que contam trabalha audaciosa- define - com referência a um sonho que só faz consolidar a contribuição
mente para seu século, e o próprio São Bernardo, que só reforma para voltar das gerações precedentes e permitir toda sua expansão - um método de
às fontes, prega a Cruzada e prepara o futuro. abordagem cuja inspiração localiza em Focillon, tomando do grande his-
Do mesmo modo, em sua Civilização do Ocidente Medieval - ain- toriador da arte algumas fórmulas retiradas do tomo VIII da obra coleti-
da que ele enfatize, parece, mais naturalmente, as sombras do que as lu- va - um tanto ultrapassada atualmente - publicada em 1933 com o tÍ-

38 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 39


tulo de A civilização ocidental na Idade Média. Privilegiando, bem enten- do Prólogo do Sic et non (Moscou, 1959), buscava explicar todos os con-
dido, "as pedras das igrejas" (que ele conhecia melhor do que ninguém) flitos do século XII ocidental pelo antagonismo entre um conservantismo
como "meios de encontrar, ainda presente e de pé, entre nós", "o homem "feudal" (aqui simbolizado por São Bernardo) e o "progressismo" da nova
da Idade Média, definido por um sistema social e por uma atividade inte- burguesia urbana (cujo porta-voz seria Abelardo, proveniente, entretan-
lectual" (fórmula um pouco simplificadora, que gostaríamos de corrigir, to, de pequena nobreza provincial e que só foi verdadeiramente feliz na
pelo menos substituindo aqui os singulares pelos plurais), após ter lembrado sua região de Paracleto).
a íntima união, por um lado, entre "o arquiteto, o iluminador de estam- Os historiadores do século XIX deram provavelmente muita impor-
pas, e o pintor" e, por outro, "o filósofo e o poeta" (seria necessário acres- tância às cartas comunais, que foram, em muitos casos, os meios de limi-
centar "o teólogo e o místico", mas também "o homem de ação"), Focillon tar a liberdade das cidades; e não esqueçamos que muitas bastidas são
concluía evocando - eis, com efeito, o funclamental- "essa potência de criações autoritárias. Mais essenciais, provavelmente, são o desenvolvimen-
coesão entre as diversas ordens da investigação e da invenção" que é "a to do grande comércio e determinados progressos tecnológicos. Não se
marca das grandes épocas". deve, porém, exagerar sua influência imediata (ponto que será retomado
Mas o perigo é o de querer definir formas rígidas de unidade aí onde mais adiante). Mesmo se esses fatores efetivamente operaram, seriam ne-
a "coesão" permanece suficientemente maleável para dar lugar a um grande cessárias ainda muitas pesquisas para que permitissem esclarecer a ge-
número de diversidades. Falando do "corte vertical" que, segundo Robert, nialidade de um Gilberto Porretano, de um João de Salisbury, de um Chré-
Paré, Brunet e Tremblay, desejou-se efetuar nos primeiros anos do século tien de Troyes. É mais importante confrontar estudos precisos de textos e
XII, o padre Chenu define, com propriedade, que não se trata de "lance de documentos biográficos do que chegar a definições sintéticas. Será pouco
teatral" nem de "começo absoluto", mas, antes, de um "tipo de nó" em a pouco que se destacarão as visões de conjunto.
uma "imensa curva". Diríamos, entretanto, que essa curva é "a reconquista A visão de Paré, Brunet e Tremblay parece restringir a importância
do capital da civilização antiga"? Sem desconsiderar essa perspectiva, pa- dos cistercienses e dos canonicatos regulares de São Vítor. Seu enfoque
rece-nos que a contribuição de nosso "renascimento" é superior. Chenu permanece, por outro lado, singularmente galocêntrico. O renascimento
toma de L.]. Paetow, autor de um Cuide to the Study af Medieval History que valorizam situa-se, sobretudo, no quadrilátero Orléans-Melun-Laon-
(Nova Iorque, 1931), uma lista - incompleta, é verdade, mas já bastante Chartres, isto é, no domínio dos bispos capetíngios que ajudaram Suger a
significativa - de traços que anunciam o que o autor denomina enfatica- construir Saint-Denis. Qualquer que tenha sido a atração desse quadrilá-
mente "uma nova era": decadência da nobreza feudal e primeiro esboço tero para os bretões - como Abelardo e Roberto de Arbissel - , ingleses
de monarquias nacionais, reforma monástica, ressurgimento do dualismo _ como Adão Parvipontano e Ricardo de São Vítor - , italianos - como
maniqueu, movimento das cruzadas, depuração do latim, interesse pelo Pedro Lombardo - , saxões - como Hugo de São Vítor - , flamengos-
árabe e pelo grego, retorno ao direito romano, novo impulso da ciência como Alain de Lille - , parece no mínimo exagerado atribuir à Paris do
médica, "sistematização da filosofia e da teologia", desenvolvimento das século XII um papel comparável ao que desempenhará Florença no século
escolas, primeiro esboço daquilo que virão a ser as universidades, progresso XV. Será apenas mais tarde, com o desenvolvimento da monarquia cape-
das línguas e das literaturas "nacionais", expansão da arte romana e nas- tíngia e os privilégios concedidos à Universidade, que Paris será verdadei-
cimento da arquitetura ogiva!. Como se vê, dentre todos esses fenômenos ramente o centro da cristandade ocidental, mas em sentido inteiramente
históricos, apenas dois ou três resultam propriamente da "reconquista do diferente do da cidade dos Médicis. Não apenas os autores do Renasci-
capital". Renascimento significa, aqui, menos retorno às origens do que mento do século XII subestimam um pouco a influência das abadias anti-
revivescência de um poder de invenção e de adaptação. gas e de certas cortes principescas, comO seu propósito particular os in-
Em seu livro de 1933, Paré, Brunet e Tremblay esboçavam um uso duz a negligenciar a Aquitânia, e o Languedoc, a Itália, o Santo Império
bastante revolucionário das explicações de tipo econômico e sociológico. (e a Escandinávia, onde irá nascer a escola dos grammatici speculativi), mas
Insistiam especialmente na passagem das escolas monásticas às escolas ur- igualmente o domínio anglo-normando. Tantas lacunas que os Entretiens
banas. Seu esquema, naturalmente, é menos rígido do que o de Mme. Si- de Cerisy preencherão apenas parcialmente, por não tratarem, com toda
dorowa, soviética de uma ortodoxia impecável que, em seu Prefácio à tra- a seriedade que merecem, o movimento cátaro e o erotismo provençal, e
dução russa de História calamitatum mearum, de Abelardo, acompanha- por não cuidarem igualmente das Cruzadas e das relações do mundo cris-
da por algumas citações do Diálogo entre o filósofo, o judeu e o cristão, e tão com o judaísmo e com o Islã.

40 Maurice de Gandillac i Gêneses da Modernidade 41

1
Os autores do Renascimento do século XII insistem, como foi dito, na, a preocupação artística e a exposição das idéias filosóficas ou religio-
na emancipação das classes rurais; frisam de forma bastante romântica (e sas é menos marcante. Dom Leclerq considera o rígido cisterciense Bernardo
percebe-se a influência de Michelet) o papel "criador" do povo. Trabalhos de Claraval como testemunho do "renascimento das letras". Os poemas de
recentes, especialmente os de GimpeI, mostram que as catedrais não surgi- João de Salisbury e de Alain de Lille, os diálogos de Abelardo, certos ser-
ram de um entusiasmo religioso (e tampouco da transmissão de fórmulas mões dos vitorinos são verdadeiras obras de arte, e, ao mesmo tempo, ex-
esotéricas nas "celas" de iniciados). Sua edificação lembra muito a que temos posições teológicas. Não parece, entretanto, que esse período tenha conhe-
agora: levantamento de capitais, escolha de um mestre de obras, recruta- cido uma verdadeira unidade cultural; os romances e os poemas de amor
mento de operários qualificados (disputados de um país a Outro e freqüen- não se dirigem ao mesmo público que o Livro das Sentenças, e é provável
temente muito bem pagos), campanhas interrompidas pela falta de dinhei- que os canonistas e os médicos só se preocupem secundariamente com o belo
ro, pelo desaparecimento do príncipe ou do bispo que foi o instigador de estilo. É de se lamentar, contudo, que os autores do Renascimento do sé-
todo o empreendimento, por todos os tipos de catástrofes sociais ou natu- culo XII, após terem retomado o tema de uma espécie de "emergência", de
rais. Mas pouco importam esses detalhes; o essencial é corrigir um pouco movimento criador surgido das profundezas populares, tenham depois ne-
as páginas nas quais, sob a inspiração de Luchaire, os três dominicanos de gligenciado um pouco um traço muito mais evidente: a coesão relativa entre
Ottawa enfatizam o "apetite de cultura" desse "povo" cuja "emergência diversos tipos de expressão estética e de atividade cultural.
social" eles afirmam sem apresentar provas mais concretas (p.53). É essen- Durante uma conferência em nosso Centro de Pesquisas Compara-
cial também restringir a importância atribuída às corporações que são, de tivas acerca do Pensamento da Idade Média, Jacques Le Goff distinguia,
fato, em seu pleno desenvolvimento histórico, um fenômeno sensivelmente em face de um fenômeno de cultura, três atitudes possíveis: ou considerá-
mais tardio. Assim, estabelecidas essas premissas, quase já não se trata mais lo de fora, com um distanciamento total - o que é quase impraticável e
do povo, mas sim de escolas, de instrumentos de trabalho de uma classe completamente estéril-, ou situá-lo em seu ambiente histórico - o que,
bastante determinada - a dos clérigos, regulares, e, sobretudo, seculares. com certeza, é melhor, mas ainda demasiadamente exterior - , ou tentar,
O objeto do livro não era a poesia, o romance, a arquitetura ou a iluminura, enfim, explicá-lo como parte de um todo global. Tudo, se ouso dizer, deve
ou mesmo propriamente o conteúdo teológico das obras nascidas nas es- ser entendido a partir do que significa essa noção, cômoda mas um pouco
colas ou às margens destas. Com efeito, o que está por trás do pensamento arbitrária, de "todo". O próprio Le Goff, a esse respeito, é bastante pru-
de nossos três autores é a idéia de que todo o "renascimento" que descre- dente, e as opiniões que nos apresentou continuam, parece-nos, um tanto
vem já se orienta, há muito, para o auge que será, no século seguinte, a síntese negativas demais.
tomista. É nessa perspectiva, creio, que se deve entender o que eles dizem Ele deseja antes de tudo (e quem não o aprovaria?) que não se privi-
acerca do retorno aos Antigos (a mais fecunda redescoberta sendo, final- legie uma escola como a de Chartres porque esta teve, sem dúvida, alguns
mente, a de Aristóteles) e acerca da confiança conferida ao raciocínio dialético scholars mais brilhantes do que as outras. Mesmo no quadro capetíngio,
na elaboração do fundamento da fé. Reims ou Laon são também interessantes, pois espíritos mais medíocres
,,0,
Eles destacam, entretanto, um "equilíbrio intelectual" e uma "saúde podem ser representativos de um tempo, ao passo que os gênios o são menos
"
religiosa", ligadas a uma "alegre expansão de vida" (p.312) que são efeti- (e Chartres, em particular, é a cidadela de um platonismo ainda carolíngio).
vamente fenômenos próprios do século XII (posto que não se incorra no O segundo erro seria o de aumentar o papel das contribuições gregas e árabes,
erro de se ater a uma imagem demasiadamente elogiosa de um tempo que sem dúvida importantes, mas que só adquirem todo seu sentido pela pró-
também teve suas fraquezas). Os modos de expressão e o estilo da investi- pria necessidade à qual respondem, o empréstimo sendo menos essencial
gação são certamente mais "livres" e - como diz Heer - mais "abertos" do que o uso que dele se faz. O retorno às fontes é, por vezes, apenas uma
do que no século seguinte (mas a contrapartida é uma ausência evidente de máscara ou um álibi. A observação vale também, naturalmente, para o aristo-
rigor e a tendência, às vezes, ao ecletismo). Aí onde prevalece sem dúvida telismo averroísta dos séculos posteriores, para a conseqüente fama de Pla-
alguma o positivo, tem-se o domínio dessas "belas-letras", em breve con- tão, de Epicuro ou de Marco Aurélio, e para certos aspectos do classicismo.
denadas a um verdadeiro "exílio". Os doutores do século XIII, e sobretu- Terceiro erro, ou exagero, que já assinalamos, e que Le Goff denun-
do do XIV, escreverão uma língua técnica, cada vez mais bárbara. Mesmo cia muito apropriadamente: a ilusão de um marxismo simplificado que
o latim de Santo Tomás, tão sóbrio e tão preciso, já é bem menos literário desejaria encontrar, com a emancipação das comunas, o aparecimento de
do que o de São Bernardo. No século XII, o corte entre a literatura profa- uma verdadeira burguesia, já consciente de seu papel histórico de "classe

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em ascensão", decididamente "racionalista" e virtualmente "revolucioná- pende em construções de prestígio, em obras de arte, uma grande parte do
ria". Tolerável (a rigor) em tal escritor contemporâneo que imagina He- "tesouro dos pobres", e o resto é simplesmente -"distribuído" aos miserá-
loísa explicando sua alienação aos operários que constroem Notre-Dame, veis sem contrapartida produtiva. Como o resto do mundo - mas de modo
enquanto Abelardo conversa como "filósofo" esclarecido com o irmão do tanto mais grave porque precisamente o período em questão conheceu um
rei (grande senhor libertino), essa forma - mesmo atenuada - de ana- imenso crescimento demográfico - , todo o Ocidente latino, apesar das
cronismo antecipatório pouco esclarece os autênticos antagonismos sociais belas aparências, é subequipado, "subdesenvolvido", constantemente ame-
do século XII. Sem dúvida, para além da tripartição oratores-belllatores- açado pela fome, afligido pelo subemprego e pela subprodução. Mas é ainda
/aboratores (grosso modo: clérigos, cavaleiros, camponeses), velho esque- difícil, a partir de análises - cujo excelente resumo encontramoS no capí-
ma que, através da divisão platônica da alma, remonta talvez às estrutu- tulo VII de A civilização da Idade Média - tirar conclusões suficientemente
ras arcaicas da sociedade "indo-européia", mas que só se aplica muito esclarecedoras no que concerne tanto à estrutura quanto ao conteúdo das
aproximativamente à nossa Idade Média, é preciso considerar, como nos obras e das doutrinas.
convida nosso amigo Mollat (cujas preciosas pesquisas explicam as revol- Em contrapartida, e com todas as reservas quanto a um vocabulário
tas rurais, o movimento valdense e a aventura franciscana), a imensa massa um tanto anacrônico, pode-se desde já destacar alguns elementos signifi-
de miseráveis, marginais que vivem de esmolas e de roubos. É indiscutÍ- cativos do estudo de Le Goff sobre Os Intelectuais na Idade Média (Paris,
vel, contudo, que entre a aristocracia dos proprietários de bens de raiz e 1957). A nova c/asse social, que é aqui definida como um tipo de "intel-
os agricultores de condição ainda servil tenha se desenvolvido, além da ligentsia" medieval, busca, sem dúvida, seu lugar. Ela se coloca freqüen-
categoria não desprezível dos "trabalhadores" e de outros "rendeiros" li- temente a serviço dos "poderosos", únicos que podem alimentá-la; ao mes-
vres, uma nova camada social, em sua grande maioria urbana, mas apre- mo tempo que zomba naturalmente do povo, despreza os ""burgueses",
sentando uma homogeneidade bastante relativa: administradores de bens, acusados de avaritia. E se define, contudo, como Abelardo, pela necessi-
funcionários imperiais ou reais (que em pouco tempo formarão uma nova dade que se impõe a ela de "trabalhar" - não com suas mãos mas atra-
nobreza), chefes de pequenas empresas artesanais, grandes comerciantes, vés do espírito. Proveniente de diversos meios, essa nova classe social é
sobretudo especializados na importação de produtos de luxo, etc. Mas essa recrutada em parte nas massas, que ascendem, assim, pelo saber, a um ní-
classe em ascensão está ainda longe de ser "reconhecida" (no sentido hege- vel social superior. Parece, sobretudo (simplificando bastante as coisas),
liano do termo). O antigo desprezo da crematística continua sendo a ide- que ela desempenha um papel essencial na promoção desses valores de "sub-
ologia dominante. É verdade que, em seu Didascalicon, Hugo de São Vítor jetividade" (que Maritain, em Humanismo integral, definia um tanto apres-
fala das "artes mecânicas" como remédios providenciais à miséria huma- sadamente como estranhos à Idade Média). Le Goff sem dúvida não está
na e, ao tratar da navigatio, frisa o valor das trocas que tornam, diz ele, equivocado ao associar esse fenômeno (ainda que tenha fontes agostinianas
"comum" o que era "privado", mas é ainda mais sensível aos benefícios fundamentais) à própria evolução da estrutura social.
das viagens que tornam os homens familiares uns aos outros e favorecem A teoria abelardiana da intenção como fonte única do mérito ou da
a paz. Ele não faz alusão, bem entendido, ao enriquecimento do importa- culpabilidade, inquietante na medida em que parece inocentar os judeus
dor nem ao sistema bancário que irá se esboçar assim que se saia um pou- tão comumente acusados de "deicidas" e, mais geralmente, de carrascos
co mais do sistema fechado de uma economia de pura subsistência. Será do Cristo e dos mártires, terá lugar nos Manuais de confessores apenas
necessário ainda muito tempo para que se distinga a investida da usura, e tardia e dificultosa mente. Com certeza se relaciona com uma valorização
para que a sociedade por comandita, cujo papel prático desempenhado, nova do indivíduo, bastante sensível nas cartas de Heloísa, mas também
muito cedo, na colonização dos territórios do Leste, nos grandes arrotea- na vida de certas personalidades fortes, especialmente femininas, como
mentos e no nascimento de novas cidades, Duby tão bem demonstrou, Eleonora de Aquitânia. A teoria foi vinculada ao primeiro nominalismo,
encontre seu eco na moral teórica e se reflita nas obras culturais. à curiosidade pelo singular (que Crombie destaca em sua Histoire des
Assim, para falar a linguagem econômica, o "acúmulo" permanece sciences de saint Augustin à Galilée, Londres, 1952). É no século seguinte
bastante limitado ao século XII. Mesmo "livre", o agricultor é, na maio- que a "profissão" de docente começará a ser verdadeiramente reconheci-
ria das vezes, esmagado sob o peso dos foros (enorme renda de proprie- da como tal (parece que Abelardo, que vivia dos cursos que administrava,
dades do grande proprietário, leigo ou eclesiástico); o pequeno senhor se é ainda uma exceção), que o trabalho intelectual encontrará seu verdadei-
endivida imitando a vida suntuosa de seu suserano; a própria Igreja des- ro lugar em uma sociedade de "estados" e não mais de "ordens", que uma

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cadeira de professor em uma universidade de grande cidade não será mais IV. A "QUESTÃO DISPUTADA"
indigna de um monge e nem mesmo produzirá o mesmo efeito de escân- DA "FILOSOFIA CRISTÃ'''>
dalo aos olhos daqueles que, corno São Bernardo, não queriam conhecer
outra escola a não ser a scho/a caritatis do convento cisterciense, longe das
"Babilônias" urbanas. Mas o movimento se inicia no século XII e não
COncerne exclusivamente aos clérigos propriamente ditos. O antigo jogral
ambulante está em vias de se tornar um escritor por assim dizer "profissio- Etienne Gilson deixou-nos apenas alguns meses antes de que um pe-
nal", corno o construtor ou o decorador. O poeta da Corte está longe, queno grupo de especialistas - na maioria seus alunos e amigos - pu-
todavia, de conhecer uma verdadeira independência e, da "boêmia" dos desse celebrar o nono centenário de Abelardo. Nessas sessões de traba-
goliardos ao Sobrinho de Rameau, e ao fauno de Saint-Germain-des-Prés, lho e nessas festividades, esteve sempre presente a lembrança do mestre
a tradição de intelectuais famélicos, oscilando entre a servidão e o anar- que tão bem falou de Heloísa e de seu amigo Pedro - amante, esposo,
quismo, se manterá através dos séculos. guia espiritual-, que desejava que amássemos a Deus como ele próprio
o havia amado, pobre criatura, como o amou até o fim a sobrinha de
Fulbert, a mãe de Astralabe, a abadessa do Paracleto. Mas o signatário
dessas linhas tem ainda outras razões para associar Etienne Gilson ao
"peripatético do Pallet". Se devemos a ele, antes de tudo, o fato de nos
ter iniciado, desde 1925, em um domínio de pesquisas que parecia então,
rue d'Ulm e rue de la Sorbonne, um pouco marginal, senão completamente
insólito, e de nos ter em seguida indicado certas figuras e períodos de tran-
sição como campo de estudos particularmente férteis, não nos esqueça-
mos de que, quando Fernand Aubier desejou publicar textos escolhidos
de Abelardo, Gilson nos orientou em nossa seleção, frisando particular-
mente a importância do Dialogus inter Philosophum, fudaeum et Chris-
tianum, obra inacabada e entretanto significativa quanto ao problema tão
disputado da "filosofia cristã" porque nesta se vê, de algum modo, um
cristão incontestável dialogar consigo mesmo, consciente das fontes e raí-
zes hebraicas de sua fé e que ao mesmo tempo se quer, até o fim, verda-
deiro filósofo.
Assim, para Abelardo como para tantos outros (pelo menos desde
o tempo de São justino, tão freqüentemente evocado por Gilson) - mas
,~ I: ' talvez em um modo mais dramático para o autor do Diálogo (se imagi-
na-mos todos os tipos de suspeitas e censuras que essa espécie de dupla
obediência lhe valeu), a questão vitalmente levantada, bem diferente de
um simples debate acadêmico, estava bastante próxima, pelo menos à pri-
meira vista, daquela que, por meio século, iria ocupar por algumas tem-
poradas uma (pequena) parte do mundo dos professores, sem a caixa de
ressonância dos mass media que repercutem hoje em dia o "ruído" da
mais derrisória polêmica em "praças públicas" dificilmente comparáveis
àquelas nas quais, segundo a Escritura (Prov. I, 20) se erguia, na época
de Salomão, a voz da sabedoria.

* Originariamente publicado em Les Études philosophiques, 1980, n.1, p.1-2I.

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Sob a aparência de cortesia polida ou às vezes apaixonada, o debate as posições da Ética a Nicômaco IX, 7-8, 11 77 b 29-1178 a23) quanto ao
concernente à própria noção - e à realidade histórica - de uma autênti- caráter "mais do que humano" de uma virtude perfeita.
ca "filosofia cristã" foi muito mais animado do que se teria imaginado. Se o autor tivesse podido levar a termo essa última obra (talvez ima-
Competidor intrépido, Gilson possuía as armas ofensivas e defensivas em ginada antes da condenação de Sens, mas realizada, muito provavelmente,
várias frentes. Alguns adversários, eles mesmos por vezes divididos quan- em seu retiro de Cluny), teria sem dúvida advogado a lex naturalis, encon-
to aos limites do racionalismo (admitindo ou recusando, por exemplo, trando no cristianismo simultaneamente a realização das promessas do An-
Plotino ou Schelling como autênticos "filósofos"), defendiam a pureza de tigo Testamento (às quais ele mesmo se associa, lateralmente, através de seu
uma disciplina que, tanto em moral quanto em epistemologia, deveria ancestral Ismael) e o meio de atribuir pleno valor e eficácia às mais Íntimas
continuar isenta de qualquer contaminação religiosa. Outros, às vezes os exigências de sua razão natural.
mesmos, invocavam a história, recusando-se a descobrir nesta algo que se Sem que se possa afirmar que Abelardo tenha qualificado de "cristã"
parecesse com o círculo quadrado de uma verdadeira filosofia merecedo- uma "filosofia" assim firmada ou coroada por uma adesão à fé, a relação
ra do epíteto de "cristã"; sob esse rótulo falacioso, viam apenas, diziam, entre os dois domínios pareceria bastante clara se Pedro o Venerável, com-
fragmentos de platonismo, de aristotelismo, de estoicismo, mesclados e pondo, por ocasião da morte do amigo e protegido, o seu epitáfio, não usasse
costurados de forma artificial a mitos e a ritos que não decorriam, por sua fórmulas que não somente parecem sugerir um verdadeiro corte entre sabedo-
vez, de nenhum tratamento racional. ria profana e autêntica vida religiosa, como operam também um tipo de deri-
Vindos de um extremo bem diferente, os defensores da "neo-esco- vado semântico. Ele começa, com efeito, por celebrar a vis rationis do dia-
Iástica", certamente sem negar a harmonização final entre razão e fé, de- lético e sua ars loquendi, mas, após tê-la apresentado como uma reencarna-
fendiam a autonomia e o rigor próprio daquilo que consideravam uma ção conjunta de Sócrates, de Platão e de Aristóteles, reserva a palavra philo-
philosophia perennis, podendo servir, bem entendido, de auxiliar à apolo- sophia para designar exclusiyamente a última etapa de sua vida, sua profis-
gética e à teologia, mas possuindo em si mesma, de maneira universal, seu são e seus hábitos de monge beneditino na pax clunisiana, após uma "vitó-
pleno valor demonstrativo e uma espécie de suficiência. Entre os reticen- ria" sobre a sabedoria deste mundo e uma "passagem" a um estado superior.
tes é preciso também mencionar a coorte pouco homogênea dos defenso- Um uso semelhante do termo "filosofia" é bem antigo e o encontra-
res da pureza evangélica. Por desconfiarem de qualquer filosofia pagã, es- mos, no Dialogus, justaposto àquele que opõe aos fiéis das Leis reveladas
tes opunham, em termos às vezes simplistas, o "realismo cristão" ao "idea- o defensor da lex naturalis. Seria absurdo, portanto, atribuir ao Venerá-
lismo grego", censurando, não sem irritação (e de forma freqüentemente vel uma atitude como a de um São Pedro Damião, que rejeitava, toman-
injusta) os tomistas medievais e modernos por preferirem ao Deus-Pessoa, do-as por quase demoníacas, a lógica, a gramática e a aritmética. Nem para
que ama e salva suas criaturas, o Ato puro de Aristóteles, motor indife- o abade de Cluny nem, menos ainda, bem entendido, para Abelardo -
rente de ilusórias esferas cristalinas - ao passo que outros (que não in- mesmo tendo "passado" à Christi vera philosophia, isto é, vivendo segundo
tervieram no debate instituído em torno das teses gilsonianas, mas que a disciplina do claustro - se poderia tratar de renunciar ao exercício da
foram por vezes visados através de Karl Barth) opunham dramaticamente dialética, outrora justificada por Agostinho. Quando Abelardo, justamente
o salto existencial na fé às dialetizações hegelizantes. no período em que compõe seu diálogo, declara que recusa o título de
"filósofo", se for necessário sê-lo para usá-lo, em desacordo com São Paulo,
A dificuldade se deve, por um lado, à polissem ia da palavra "filoso- e quando se recusa a "ser Aristóteles" se o preço a pagar for o de "se se-
fia". Opondo-a à "filomitia" (simples etapa na via que leva a uma busca parar do Cristo" (Confessio fidei), é certo que desacordo e separação per-
°
racional da sabedoria), Aristóteles duvidava que alcançar que é "o me- manecem, nesse caso, puramente hipotéticos. Se ele marca aqui, talvez
lhor na natureza inteira" fosse tarefa propriamente "humana" (Metafísica melhor do que em outros textos, o primado de uma fé entendida no senti-
A2, 982 b 7-28). Ora, é a esse áriston que corresponde, no último texto de do paulíneo, está longe de reduzir a "verdadeira filosofia do Cristo" aos
Abelardo, o summum bonum (definido em termos ciceronianos) que o Phi- exercícios de devoção. Na verdade, uma vez que o crente ultrapassa a ati-
losophus coloca como objetivo último de sua investigação. Não é, portan- tude denunciada (desde o começo do Dialogus) pelo judeu - a adesão da
to, surpreendente que o defensor da Lex naturalis não se furte a completar criança a tudo o que lhe ensinam aqueles que a cercam e que ela ama, e,
suas certezas racionais aderindo a uma Lei revelada. Se o autor, de acordo no caso, como escolher legitimamente entre as diversas religiões dentre as
com sua intenção, enfatiza a moral mais do que a teoria, ele alcança, de fato, quais cada uma pretende ser a única verdadeira? - , só um esforço da ra-

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zão permite julgar sobre quais testemunhos se funda uma fé refletida, e, mesmo os conselhos evangélicos, fiel assim ao ensinamento do Cristo, que,
em seguida, ordená-la em sistema teológico. como Filho de Deus, é identificado à própria sabedoria. E Gilson enfatiza,
Sem que tivesse plena consciência disso, a idéia que Abelardo faz da sobretudo na Theologia christiana, uma dupla e concomitante extensão dos
"filosofia" baseada apenas na razão é profundamente marcada pela cer- dois termos, o substantivo "filosofia" e o adjetivo "cristã". Na verdade, uma
teza de uma harmonia virtual com a sua própria fé. E certamente partilha vez que tal "gentio" reconheça plenamente os requisitos da lei natural, Abe-
essa convicção com muitos outros cristãos. Gilson entretanto pensa que, lardo sugere que ele é pagão apenas "de nação", não "de fé". Por essa re-
nesse sentido, ele foi mais longe do que a maioria. O prefácio que lhe con- ferência a uma implícita (ides do não-crente virtuoso, ele parece admitir um
sagra em sua Philosophie au Moyen Age 1 insinua que, para o "peripatético deslizamento da natureza para a graça e - por intermédio da "filosofia",
do Pallet", a "razão dos filósofos" parecia "semelhante demais" à sua entendida, é verdade, mais como modo de vida do que como sistema de
crença de cristão, para que esta, por sua vez, não parecesse "semelhante ?ensamento - a possibilidade de uma salvação fora de qualquer quadro
demais à razão dos filósofos". Foi efetivamente o que pensaram São Ber- eclesiástico e de qualquer adesão consciente aos data (idei.
nardo e Guilherme de Saint-Thierry, inquietos ao ouvirem tais discípulos
do mestre pretenderem que após ter escutado suas lições nada restava de Considerando~se tais antecipações, até mesmo substituições, da filo-
obscuro quanto aos mistérios da fé. Mas isso significava equivocar-se acerca sofia, não se poderia dar mais um passo e defender que todo uso autênti-
do propósito confessado (e provavelmente sincero) de um teólogo que não co do pensamento reto - inseparável, bem entendido, de uma prática
confunde os planos e recusa-se somente a opô-los, convencido de que ra- correta - , mesmo sem referência a uma revelação particular (ou origina!),
zão e revelação provêm do mesmo Lagos. já contém, pelo menos virtualmente, o núcleo essencial da doutrina e da
Se determinadas fórmulas, nas sucessivas Teologias de Abelardo; moral cristãs? Outros além de Abelardo professaram-no quase abertamente,
puderam sugerir a intenção - explicitamente agostiniana - de encontrar provavelmente Raimundo Lúllio, talvez Rogério Bacon (que se refere a São
nos platônicos um pouco mais do que o pressentimento do dogma trinitário, Justino), certamente, mais tarde, Nicolau de Cusa. Este último, na linha
as claras precisões da Dialectica 2 indicam que ele compreendeu as dificul- de João Escoto e dos chartrianos, inspirando-se, inicialmente em Eckhart
dades de qualquer aproximação verdadeira entre a terceira hipóstase plo- e Tauler, depois em Proclo, constituirá todo um sistema metafísico-reli-
tiniana, voltada para o tempo e a produção do cosmos, e, por outro lado, gioso, não qualificado expressamente como "filosofia cristã" ainda que vise
o Espírito Santo, sem dúvida consolador dos homens (patrono, por esse a englobar os principais dogmas da Unitrindade (baseada, principalmen-
motivo, do Paracleto de Champanha), mas igual ao Pai e ao Filho e vín- te, no ternário unitas-aequalitas-nexus, colocado como fundamental tan-
culo de amor entre eles. A esse respeito, no Dialogus, é ainda mais signifi- to no ser quanto na inteligência) e da Encarnação (concebida como vín-
cativa a determinação dos princípios comuns aceitos pelos três interlo- culo necessário, pelo homo maximus, horizonte do tempo e da eternida-
cutores (incluindo-se aí o Judaeus que, indignado em passar por fideísta, de, como o infinitum absolutum do Deus indizível e o infinitum contractum
encontra na história antiga e recente de seu infeliz povo motivos para de- do cosmos, através do qual ele se manifesta segundo uma variedade ines-
i!,:
nunciar o fanatismo engendrado por toda crença que se afirma como ex- gotável de modos).
,,11 clusiva verdade sem sólidos fundamentos de credibilidade). Esses pres- Deve-se acrescentar que se o cardeal da Mosela pensa encontrar o
supostos não dão nenhum espaço à Trindade como tal, nem à Encarna- pressentimento ou a tradução parcial dessas verdades essenciais em todas
ção propriamente dita e ao sacrifício redentor da Cruz, isto é, ao que con- as doutrinas dos filósofos (sem excluir Epicuro, graças, é verdade, à falha
cerne especificamente à revelação. Parece então que estamos aqui bastan- de copista em um manuscrito de Diógenes Laércio), de forma que a seus olhos
te próximos das posições tomistas. toda filosofia é virtualmente cristã, a Cribratio Alchorani e sobretudo o De
Mas o Dialogus ficou inacabado; deve-se então ser prudente, e Gilson pace (idei de 1453 (o mesmo ano em que Constantinopla sucumbe) preten-
pode se apoiar em textos anteriores para esclarecer as diferenças que pode- derão revelar, no interior de todas as religiões (e não apenas daquelas que
riam constituir um pouco mais do que nuances, e que, de qualquer modo, inspirou, na descendência abraâmica, a tripla revelação de Moisés, de Cristo
não deixam de ter importância, para o problema da "filosofia cristã". A partir e de Maomé 3 ), uma referência central, freqüentemente obscurecida e defor-
de tais passagens das Teologias e das Cartas, ele lembra que Abelardo, jo- mada, aos dogmas da vera religio, única quanto à diferença (local e tempo-
gando um pouco com as palavras, designa às vezes como "filósofo" ("ami- ral) de ritos e a aparente divergência de fórmulas teóricas. Dessas posições,
go da sabedoria") alguém que (a não ser na prática) segue os preceitos, até e mais ainda das exegeses ulteriores do cristianismo em filósofos como Kant,

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50 Mau,içe de Gandillaç lI
Gêneses da Modernidade 51
Hegel ou Schelling, muito menos engajados na experiência vivida da espi- do Vaticano II (especialmente algumas discutíveis traduções na missa fran-
ritualidade e da disciplina cristã, as leituras são numerosas, desde o deísmo cesa). Aberto a todo tipo de diálogo, era às vezes reticente diante de formas
moralizante de um Semler traduzindo o De pace (idei no Século das Luzes de ecumenismo que favorecem o vago e o equívoco. Se o estudo dos esco-
até às abundantes construções de um romantismo com tendências teosóficas, lásticos latinos nele suscitava, necessariamente, uma crescente atenção aos
com bases em Para celso e em Boehme. judeus e aos árabes do mesmo período, se ele orientou cada vez mais alu-
Gilson certamente não ignorava os pensamentos do Renascimento nos e amigos para a islamologia, colaborando, ele mesmo, com orientalistas
(consagrou a Pomponazzi páginas precisas e abrangentes) nem os sistemas como Vajda e Pines; se nos últimos tempos falou freqüentemente de uma
mais recentes (um grande capítulo do L'Etre et l'Essence demonstra sua "filosofia do Antigo Testamento" (entendida de forma bastante ampla para
familiaridade com Hegel). Mas evidentemente a "filosofia cristã", para ele, incluir o Corão) quando em trabalhos anteriores evocava, a filosofia "cris-
significava algo bem diferente. Gilson se preocupava muito pouco em dis- til", ainda que se trate de temas comuns às religiões monoteístas, como a
cernir temas vindos da teologia cristã no interior de construções, a seu ver, criação, a contingência do mundo e o valor da pessoa, parece ter mantido,
incompatíveis com a religião na qual fora educado desde a infância, tal em relação às igrejas da Reforma, a despeito de grandes amizades pessoais,
como a vivia e a sentia em sua prática cotidiana. Se o naturalismo do sé- uma distância bastante crítica. Mostrou-se provavelmente menos interes-
culo XVI e o idealismo alemão permaneciam para ele como um mundo sado que Maritain nas contribuições das teologias bizantina e eslava, nos
estranho, não possuía nenhuma simpatia real por uma filosofia agostino- pensamentos de um mais longínquo Oriente. Esse incontestávellatino-cen-
cartesiana como a de Malebranche, que um Léon Brunschvicg interpreta- trismo (que não excluía uma vasta cultura e a prática de muitas línguas,
va, com tanta facilidade, no seu próprio sentido. Cada vez mais seu inte- inclusive a russa) permitiu, sem dúvida, que se concentrasse melhor nas
resse de historiador pelo tomismo se tornava plena adesão do coração e doutrinas com as quais tinha mais afinidade, e é nesse quadro, voluntaria-
do espírito. Sem ignorar a importância das reflexões patrísticas, o papel mente restrito, que conduziu sua investigação e defendeu suas teses, cada
de Santo Anselmo (com sua palavra de ordem de uma (ides quaerens intel- vez mais marcadas pelo primado da teologia.
lectum) e a participação das escolas franciscanas na elaboração da filoso- Na perspectiva que havia adotado, não poderia cogitar de se interro-
fia cristã, à medida que, a cada edição, o livro de Gilson sobre o pensa- gar acerca dos elementos babilônicos, egípcios, iranianos, que constituíram,
mento de Santo Tomás se avolumava, o autor se sentia cada vez mais pró- em parte, o pano de fundo sobre o qual se fixou, pouco a pouco, a revela-
ximo das principais posições do doutor angélico. ção paleotestamentar (e sobre a qual o texto bíblico, em suas camadas su-
Para expor suas teses, Gilson tinha decididamente adotado não a or- ' perpostas e justapostas, traz ainda mais de um vestígio, apesar da purifica-
dem artificial de uma neo-escolástica que se queria pura filosofia, mas a i ção "sacerdotal" das diversas tradições, na época do cativeiro babilônico).
da Suma teológica, convencido de que o Aquinate tinha expressado com: Se tivesse se detido nesses temas, talvez tivesse reconhecido a inextricável
exatidão seu pensamento de filósofo através da própria edificação daqui- ' confusão entre imagem e razão, entre o núcleo de uma mensagem propria-
lo que chamava doctrina sacra (melhor, em todo caso, do que nos comen- mente religiosa e todas as sedimentações culturais que moldam os modos de
tários de textos aristotélicos, nos quais ele traduz menos diretamente sua i expressão, que freqüentemente o falseiam ou o deformam. Ora, é todo esse
posição pessoal). Nessa filosofia, colocada a serviço de uma teologia, tra-!i complexo conjunto -ligado a outras contribuições posteriores e, simulta-
tava-se, para o historiador, de definir a impregnação e a modificação pe-: neamente, ou pouco após, às conquistas da razão helênica - que o cristia-
los data fidei de um conjunto de doutrinas aristotélicas, já infletidas (e i nismo devia herdar enquanto corpo de doutrina e realidade sociopolítica. Para
enriquecidas) pelos elementos neoplatônicos (provenientes, sobretudo, do: discernir esses diversos elementos e instituir um rigoroso confronto entre aquilo
Pseudo-Dionísio e de Santo Agostinho). que diz respeito à fé e aquilo que pertence, antes, à reflexão filosófica, seria
Gilson compreendia esses fundamentos da fé - e é um bom método necessário um trabalho muito minucioso, extenso e ardiloso, e que ousasse
I

-tal como Santo Tomás os havia compreendido, mas igualmente tal como abrir espaço a certas analogias estruturais (não por isso "redutoras") entre
ele mesmo os havia recebido no catecismo e no seminário. Ele se interessa! omistériocristãoeessesgrandesmitosdevastaextensão~concernentes à morte
muito pouco, parece, pelos trabalhos dos exegetas e pelos métodos moder- e à ressurreição de um jovem deus salvador, aos sacrifícios de inocentes, às
4
nos da hermenêutica (segundo ele, o único "modernismo" que tivera êxito purificações pelo fogo e pelo óleo, às comunhões omofágicas .
fora o de Santo Tomás). Católico fervoroso de estilo tradicional (não se diz Igualmente complexo é o pano de fundo religioso de toda filosofia.
"tradicionalista "), iria se inquietar, mais tarde, com as diversas subseqüências Gilson bem o sabia, e, por várias vezes, evoca os resíduos politeístas na me-

)< 52 Maurice de Gandillac l Gêneses da Modernidade 53


tafísica e na cosmologia de Aristóteles. Apesar de seu evidente esforço de sentadas em Aberdeen, e depois reunidas em dois volumes, com um vasto
desmitificação, o Estagirita permanece ligado a uma crença para ele ime· aparato de notas e uma preciosa bibliografia crítica (L 'Esprit de la philo-
marial (mantida através de todos os ciclos de regressão e de retorno à cul· sophie médiévale, Paris, 1932). Esses textos dão seguramente ao doutor
tura), que situa o divino em uma quintessência celeste, perfeitamente in- angélico um lugar central, mas sem negligenciar a contribuição agostiniana.
corruptível (da qual procedem também o calor animal e, em um nível supe· Falando em uma famosa universidade escocesa, o autor enaltece Duns
rior, o intelecto agente "vindo de fora", o nous thyrathen). Mais evidentes Escoto; frisa várias vezes as concordâncias de suas teses com as de Santo
ainda são os elementos órfico-pitagóricos do platonismo, a constituição de Tomás, chegando mesmo a sugerir uma espécie de equivalência (pelo menos
uma nova teologia neoplatônica contemporânea da cristã e coexistente, como de intenção) entre o actus essendi tomista e a univocitas escotista, na me-
ela (à custa de várias contaminações), com todo um conjunto de gnoses de dida em que, com efeito, ambos doutores visam ao próprio esse, conside-
dominantes dualistas. Aí também o esclarecimento seria um verdadeiro cado aqui como peça principal dentre as inovações decisivas introduzidas
suplício de Sísifo. Sem se prender à hipotética "pureza" de uma filosofia ex· na história do pensamento pela reflexão filosófica acerca do dogma da
clusivamente racional (ave rara, senão mesmo impossível de encontrar, dentre criação ex nihilo (11, p. 60).
os mais modernos positivismos), Gilson tomou muito simplesmente o pia- Gilson reconhece, desde o início, que, como tal, a "filosofia cristã"
tonismo, o estoicismo dos padres, o aristotelismo dos escolásticos (ele mesmo é "obscura e difícil de ser definida", não apenas porque mal se separa
freqüentemente platonizante) como fundamentado de fato, tal como os daquela dos judeus e dos muçulmanos, mas sobretudo em virtude da "di-
haviam recebido os teólogos cristãos. E se se interrogou demorada e pacien· ferença de essência" comumente admitida entre filosofia e religião. Con-
temente sobre a maneira pela qual esse instrumento conceitual (ele mesmo sidera, entretanto, que um problema como o da origem radical das coi-
não isento de mitologia) foi pouco a pouco, às vezes inconscientemente, sas, propriamente metafísico, só foi realmente levantado a partir da Bí-
infletido e retificado (alguns diriam pervertido), de tal modo que após aquilo blia. Invocando, a esse respeito, o testemunho de Leihniz no final de seu
que denominamos (desde o fim do século XV) a Idade Média - apesar de Discurso (onde se trata, sobretudo, da ordem providencial e da repúbli-
todos os "retornos" à Antigüidade e de todas as "conquistas" da moderni· ca dos espíritos) e sua referência às verdades que "Jesus Cristo expressou
dade (mas os próprios medievais, que se diziam todos moderni, de Alcuíno divinamente", mudando assim "inteiramente a face das coisas humanas",
a Ockham, não deixaram de viver sucessivos "renascimentos") - ninguém Gilson esclarece que essas mutações, implícitas no fundamento revelado,
mais sente nem filosofa sem estar, vo/ens nolens, profundamente marcado só foram progressivamente inseridas no domínio específico da filosofia
por esse longuíssimo episódio da história humana. universal (em todo caso européia ou "ocidental") por um trabalho da ra-
Para o jovem Gilson o problema se colocava ainda menos, visto que, zão, iniciado com São Justino e continuado, não sem conflitos, durante
a filosofia, vagamente espiritualista, que lhe haviam ensinado no Henri.; longos séculos. Foi essa tarefa que a posteriori, e graças a conceitos par- :1:1

IV (em nada diferente, pensa ele, daquela que teria aprendido se tivesse: cialmente estranhos aos próprios artesãos dessa obra, permitiu definir
permanecido, até o final, no seminário de Notre-Dame-des-Champs), quase: como "cristã" toda filosofia que, "ainda que distinguindo formalmente
não possuía vínculo aparente (nem simpatia nem hostilidade) com o con·' as duas ordens, considera a revelação cristã como um auxiliar indispen-
I
,,,I;: junto de crenças e de hábitos religiosos com os quais ele fora, desde a in· sável da razão" (I, p.39).
fância, solidamente impregnado. Paradoxalmente, foi na Sorbonne, a con· Em vez de "considera" poder-se-ia dizer "utiliza", o que permitiria
selho de Lévy-Bruhl (a quem sempre rendeu uma calorosa homenagem)" estender melhor a noção às filosofias posteriores, menos organicamen!e
que estudou as fontes medievais de Descartes, prolongando em seguida sua! ligadas ao cristianismo, por vezes hostis, e por meio das quais se manifes-
pesquisa em tese de doutorado. E apenas então - de maneira progressi·! ta, entretanto, (como Gilson bem demonstrou) a mudança operada em um
va, à medida que conhecia melhor o. tomismo e que, pa.ra situá-lo com ~aisi ce~t~ númer,o .de conceitos ao longo de sua ,associação med~eval c..?m re-
precisão, ele estudou Santo Agostmho e todo o con) unto das doutrmasl qUlSltoS teologlCos. Talvez fosse melhor tambem levar em conslderaçao que,
medievais - , se definiu, para ele, a "questão discutida" an sit et quae sitl na maioria dos escolásticos, o apelo à revelação como "auxiliar indispen-
philosophia christiana. ! sável da razão" permaneceu, no mínimo, inconsciente. Certamente, se ocor-

i reu que, dentre eles, alguns recitassem Platão ou Aristóteles acreditando


Nos anos 1931 e 1932, Gilson iria expor e defender sua concepçãol comentar o Evangelho, o contrário é verdadeiro na maioria dos casos, gra-
da "filosofia cristã" em uma série de conferências (Gifford Lectures) apre· ças a todo um sistema de "interpretações piedosas". Mas, por várias ra-

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i . . ll\JSTITUTO DE PSiCOlC'GiA - UFRGS
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Maurice de Gandillac Geneses da Modernidade B I B L I OT E C A 55
zões e primeiramente porque se queriam mais teólogos do que filósofos, que Agostinho (com sua concepção das razões seminais e sua teoria da ilu-
julgaram paradoxal, senão inconveniente, inverter a fórmula de uma phi- minação) os dois extremos da cadeia (nada de liberdade e predestinação, aqui,
losophia ancilla theologiae. O fato é que, se houve auxiliaridade e serviço mas dependência radical do finito e estatuto ontológico da criatura). A esse
(senão servidão, o que Dante rejeita vivamente, por respeito à donna gentile, respeito, o capítulo 7 do tomo 1 (sob o signo da gloria Dei) é bastante escla-
consoladora de Boécio e inspiradora do "mestre daqueles que sabem"), essa recedor, mas, por mais eloqüentes que sejam as fórmulas agostinianas acerca
ajuda foi recíproca, e a relação operou-se nos dois sentidos. das "magnificências do mundo" e acerca do homem - corpo e alma - , defi-
Dentre os temas escolhidos por Gilson para sua demonstração, o mais nido, com efeito, como opus magnum et admirabile, não se deve esquecer
caro é, seguramente, o ontológico. Evocando, não sem humor, Condorcet que o vibrante elogio das artes e das ciências concerne expressamente, na
e o culto revolucionário do Ser supremo, o conferencista de Aberdeen sus- Cidade de Deus (XII, 24), aos derrisórios "consolos" reservados, desde a que-
tenta que, mesmo reduzida à abstração deísta, essa noção seria impensável da, a essa humanidade na qual os raros eleitos mesclam-se à massa damna-
sem a reflexão patrística e medieval acerca da revelação a Moisés do nome ta; humanidade que faz, na maioria das vezes, o pior uso dos melhores dons5 .
divino tal como reportado no Êxodo. Ele não ignora que o "Eu sou quem Não há dúvida de que Gilson mostra, em seu capítulo sobre a "an-
sou" significa, antes de tudo, de forma negativa, o mistério do insondável, tropologia cristã" (I, p.173 sq.), que a "reabilitação" do corpo exigida pelo
e que sua interpretação ontológica só foi historicamente possível através do dogma da Ressurreição (mas não se trata, na boa doutrina, de um "corpo
on ne on do Estagirita (senão o pantelous de Platão, subordinado ao Bem glorioso" ao qual parece difícil atribuir funções propriamente biológicas?)
sobre-essencial). Ele pensa, entretanto, que essa osmose ressaltou uma noção fornecia argumentos em favor do hilemorfismo aristotélico. Essa posição
nova do Ser infinito como ato de existir e fonte de existência. Ao elaborá- tomista, com o papel atribuído à inteligência como forma única do animal
la, em diversos graus de precisão, os escolásticos discerniram, diz Gilson, I racional (e conferindo por ela mesma sua substancial idade ao composto
conseqüências que implicavam sem dúvida determinadas intuições platônicas humano), destaca, sem dúvida, a dignidade de uma criatura criada no últi-
e aristotélicas, mas das quais os Antigos não puderam ter plena consciência; mo dia como imagem de Deus e, por sua forma-intelecto, aproximando-se
de forma que a leitura medieval de suas obras teria acarretado, para a "meta- das inteligências puras. Mas não se deveria restringir excessivamente, na
física grega", "progressos decisivos" (mas sem ruptura radical, visto que esse busca dos elementos constitutivos do "humanismo", a participação dos
desenvolvimento iria no mesmo sentido do pensamento helênico; "arco mag- Antigos (o aspecto divino do nous aristotélico como da psiché platônica, o
nífico cujas pedras, todas, ascendem em direção a essa pedra angular", I, p.86).I! valor reconhecido por Epicteto à pessoa singular desempenhando seu pa-
Não se pode seguir o encaminhamento de Gilson em todas as suas I pel no teatro do mundo etc.). Gilson se conforma, de forma bem honesta,
etapas. Se concordamos com ele, quanto ao essencial, no que diz da ana- ao fim de seu livro (11, p.20S): para levar seu projeto a termo, seria neces-
logia, da causalidade e da finalidade, que possamos entretanto marcar ai-I, sário que ele apresentasse mais de uma vez "uma grave injustiça em rela-
guma reserva quanto ao capítulo dedicado ao "otimismo cristão" (I, p.llll ção ao pensamento grego".
sq.), o qual parece subestimar um pouco, no cerne de uma experiência vi-! Tratando, por exemplo, da teologia de Aristóteles, Gilson mantém, com
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vida e pensada durante longos séculos, a obsedante atualidade do demô- certa predileção, um politeísmo remanente (sem insistir, aliás, na angeologia
11,::': nio como "príncipe deste mundo", a corrupção da natureza pelo pecado cristã, nos espíritos motores dos astros e em um culto dos santos no qual,
original, o apelo ao contemptus saeculi, o horizonte de um inferno eter- sobretudo no caso de Maria, a dulia toca, às vezes, em uma quase-latria). Ele
no. Temas que tiveram seguramente fortes ressonâncias práticas e teóri- mantém, sobretudo, a imagem de um primeiro motor, primus inter pares (isto
cas no universo pós-medieval, e que, precisamente - abusando, às vezes, é, subordinado a muitos outros). E entende o Pensamento do pensamento
da fórmula - tem-se o costume de definir, em geral de um modo pejora- como excluidor de qualquer conhecimento do universo sublunar - o que
tivo, como herança "judaico-cristã". O que não é completamente sem sugerem seguramente vários textos, mas o que parecem invalidar passagens
pertinência, mesmo se for necessário revelar, em um certo desprezo do mun- como Met. LI0, na qual a imagem do general e do exército implica uma cons-
do sensível como na depreciação do corpo, mais de um componente pla- ciência desempenhando, na oikia cósmica, o papel de um chefe único (1075
tônico-gnóstico, mas infiltrado muito rapidamente no cristianismo e, por a 14.:.24). E, a propósito do personalismo, se é normal lembrar que, para o
um lado, já presente no judaísmo posterior. Estagirita, os indivíduos passam, enquanto apenas as espécies permanecem,
É bem verdade que Santo Tomás, afirmando a eficácia das causas se- é exagero observar aqui uma "irrealidade" (p.197) dessa substância primeira
gundas e atribuindo ao intelecto um trabalho positivo, mantém melhor do que, em sua singularidade, é justamente a única existente.

56 Maurice de Gandillacl Gêneses da Modernidade 57


II,
No que diz respeito ao Pórtico, pode-se considerar excessivo, na leitura nômicos para preparar, e mesmo empreender, a conquista do mundo7 . Ha-
do De finibus (I1I,6), o lugar reservado ao kathekan como simples função víamos notado que, desde o século precedente (sem influência direta do
social (Gilson, II, p.145), enquanto esses mesmos textos haviam conforta- Estagirita), essa é uma tendência sensível, por exemplo, nos textos em que
do Abelardo no privilégio dado, pela sua Ética, ao kathorthoma enquanto os vitorinos, evocando os "consolos" de que Agostinho falava, os inter-
consentimento interior à vontade diviné. E numa ordem próxima de idéias, pretam menos negativamente do que ele. O bispo de Hipona assistia, com
uma vez reconhecidos os serviços prestados por Aristóteles para a constitui· a tomada de Roma, à agonia de um mundo. Hugo e Ricardo parecem per-
ção de uma doutrina da liberdade (11, p. 100 sq.), frisar que, nele, nenhum ceber uma nova era quando enaltecem a "arte mecânica" da navigatio,
termo corresponde exatamente ao que depois se chamou de "livre-arbítrio" capaz de permitir descobrir "margens desconhecidas" e, pelas trocas de
talvez não seja o melhor argumento em favor da libertas christiana, se se bens complementares, tornar "comum" o que era "privado" (ver "O pa-
pensar em todos os limites que o pecado impôs ao efetivo exercício da von- pel e o significado da técnica no mundo medieval", incluído neste volu-
tade reta, verdadeira cruz para os filósofos cristãos que, sem sucumbirem à me). Um tema como esse do Cristo-Rei (paradoxalmente revalorizado no
tentação pelagiana, quiseram evitar o que será em Lutero o "arbítrio servil". mesmo momento em que as monarquias tradicionais perdiam muito de sua
Um dos capítulos mais convincentes - ainda que o tema não seja sacralidade) foi muito freqüentemente entendido (em uma linha constan-
novo - é aquele que o autor intitula "Conhecimento de si e socratismo tiniana) como justificação de várias derivas rumo a aplicações temporais
cristão". A referência ao mestre da ironia e da maiêutica determina bem no mínimo discutíveis. Mas, então, parece tratar menos de filosofia (polí-
que, ainda aí, trata-se menos de revolução do que de aprofundamento. tica) autenticamente "cristã" que de um efeito natural das condições só-
Gilson insiste na contribuição agostiniana que, em uma frase do De sym- cioeconômicas. Ainda mais porque o Gênesis bíblico, nas duas narrativas
bolo (1,2, citada em II, p.13), observa que a idéia de um Deus perfeito e da Criação, prescreve ao homem comandar os animais e cultivar a terra.
insondável (próximo, sem dúvida, de determinadas reflexões plotinianas Quer os lamentemos ou nos regozigemos com eles, esses apelos ao traba-
acerca da potência infinita do Uno, mas ligado aqui ao tema bíblico do lho neste mundo prevaleceram finalmente sobre o convite pitagórico e pla-
homem como imago et similitudo Dei) convida a reconhecer no coração tônico à fuga aos mundos por detrás das aparências.
humano insondáveis abismos, abrindo assim para a filosofia o universo Pouco contestável é o que Gilson escreve acerca da "influência do
do inconsciente. Ao que se acrescenta, em Descartes (mais preocupado com cristianismo sobre a concepção da história" (11, p.191) e igualmente so-
idéias claras), a noção de infinito como marca divina sobre a criatura. i bre a espera escatológica da paz e da concórdia (p.197). Mas não se pode
Gilson ressalta de modo também pertinente o significado histórico esquecer, em contrapartida, a idéia de que com a Redenção tudo está fei-
do "realismo" medieval, ligado - sobretudo em Santo Tomás - ao "dom" i to, sendo o tempo de graça (antes do retorno do Cristo em glória) apenas
do ser (verdadeira doação, não simples empréstimo) por um Deus criador: uma (sempre incerta) prorrogação concedida aos pecadores para permitir
que se nomeia Eu sou. Contrapartida freqüentemente ignorada de uma certa i que se arrependam. E, ao lado de temas parcialmente progressistas (mais
depreciação deste mundo, esse aspecto do cristianismo parece pouco con- do que um avanço, a transiatio studii mostra a permanência de uma aqui-
testável a quem, por exemplo, observa na Índia a diferença de comporta- sição cultural; a parábola dos anões nos ombros dos gigantes implica
mento entre populações mais marcadas por um certo "acosmismo" védico acúmulo de saber, mas também diminuição de tamanho), a Idade Média
e as que, tendo conhecido há muito tempo a influência de comunidades conheceu os grandes pavores, o sentimento de que o mundo envelhece e
cristãs (por exemplo em Kerala), confiando menos, parece, nos ciclos de se gasta, e como não temer a passagem anunciada do sinistro reino (mes-
reencarnações para justificar sua presente miséria, foram muito rapidamente mo provisório) do Anticristo? Admite-se, entretanto, que, evocando os céus
sensíveis à propaganda comunista, porque valorizavam mais a busca da novos e a nova terra que devem surgir no final da história, o cristianismo
justiça e da felicidade nessa terra. - sobretudo nesses setores mais ou menos "milenaristas" - forneceu o
No início de um livro muito denso, L 'Expansion européenne du XIIle modelo, sempre vivo, de uma compensação de catástrofes próximas pela
au XVe siecle (cal. "Clio", Paris, 1969), Pierre Chaunu afirmava que, a esperança de uma outra idade de ouro, ao menos como horizonte quase
partir de Alberto Magno e de Tomás de Aquino, o Ocidente latino, prefe- transcendente (a total desalienação, a perfeita transparência sonhada pelo
rindo Aristóteles a Platão, construiu para si - diferentemente da China e jovem Marx após a humilhação e a privação do proletariado, o wohin das
de uma parte do mundo islâmico que dispunha, então, de trunfos análo- utopias militantes caras a Ernst Bloch, ele mesmo influenciado pelos Pro-
gos - os meios ideológicos de utilizar seus recursos demográficos e eco- fetas e leitor do Sermão da montanha).

58 Maurice de Gandillac I Gêneses da Modernidade 59


Se o propósito de Gilson - como apresentado em sua última confe- eliminados, encontram-se agora integrados, como a existência dos mons-
rência -corre o risco de ser "taxado de apologético" (ao que ele respon- tros, na totalidade unitária do plano divino. Porém, para opor radicalmente
de que, em toda hipótese, uma demonstração é julgada quanto a seus ar- essa visão das coisas ao finalismo estóico, seria suficiente dizer (11, p.167)
gumentos e não quanto ao uso que dela se fará, 11, p.206), ele toma o cui- que o Pórtico elimina o acaso - enquanto a teologia cristã, reservando
dado, entretanto, de limitar ao terreno propriamente filosófico os efeitos um determinado lugar à contingência, tende a lhe atribuir um estatuto
doutrinais que atribui à ação de uma "fonte religiosa". Sua atitude é, no racionalizável e, como a própria liberdade, se esforça para inseri-lo (com
mínimo, reservada diante de pensadores imaginativos que acreditam dis. bastante engenhosidade dialética) nas coincidentiae oppositorum da Pres-
cernir em tais "estruturas ternárias" do criado os "vestígios" do Deus ciência e da Providência divinas?
trinitário. Gilson observa que Santo Tomás, ao assinalar semelhante "mar- Além disso, mesmo eliminando-se, como populares, todos os tipos
ca" na tríade da substância, da forma e da ordem (Sum. Theol., I, 47,7), de narrativas maravilhosas e de exempla edificantes, não é certo que a idéia
continua, nesse campo, de uma sobriedade exemplar. Preocupado, ao que medieval do milagre diferisse tanto daquela dos Antigos, para quem mira-
parece, e,m restringir a dimensão teológica das análises psicológicas de tipo bilia e portenta assumiam em geral (sobretudo, mas não exclusivamente,
agostiniano, Gilson - sem subestimar a característica quase sacramental na perspectiva estóica) um valor significativo em relação a alguma con-
que o cosmos adquire em muitas visões medievais (e que, com raras exce.: cepção global do mundo e do homem. Para os teólogos medievais, qual-
ções, se tornará estranha ao pensamento ulterior) - enfatiza mais os pri. quer violação da ordem natural (que supõe na natureza uma bastante mis-
)
mórdios - em um Grosseteste, um Rogério Bacon, até mesmo em Santo teriosa "potência obediencial") remete aos desígnios de um Deus de amor, !
Tomás - de uma concepção já "científica" da natureza, ligando-se aqui mas tão personalizado que, por assim dizer, dificilmente escapa aos peri-
a finalidade teocêntrica que dá sentido à totalidade (que se pense no pa. gos de antropomorfismo. E principalmente, o caráter - ao menos para
pel do monoteísmo na perspectiva de Comte) a uma reflexão, virtualmen- nós - insondável da vontade eterna (e todavia, em cada conjuntura, tem-
te fecunda, acerca da fórmula de Sabedoria XI, 21: omnia in mensura et poralizada) não torna finalmente a hermenêutica do miraculoso quase tão
numero et ponderes. ambígua quanto aquela dos antigos oráculos? Se o Destino antigo era fre-
De qualquer modo, a filosofia cristã, tal como a definiu Gilson, não' qüentemente concebido como Razão (transcendente ou imanente ao uni-
pretende incorporar vitalmente os mistérios, por eles mesmos irredutíveis,: verso), a Providência cristã passa, às vezes, por Fatum. De qualquer modo,
à obra própria de uma razão criada, mesmo angélica, a fortiori humana.; essa espécie de especulações (que só tinham pleno sentido para a fé vivida
Apoiando-se em um texto paulíneo, e de acordo com Gregório de Nissa,' ou para a experiência mística se justamente, nesses níveis, não se pareces-
o Pseudo-Dionísio, tão atento à dignidade dos espíritos celestes, julgaval' sem com os espirituais derrisoriamente abstratos) e não conseguiu nenhum
neles imprevisíveis, de uma certa maneira incompreensíveis, os "fatos" da i avanço notável rumo a epistemologias modernas, qualquer que seja o papel
Natividade, da Crucificação, da Ascensão (Hier.cel., VII, 3, 209 a-b; Ep., I que possam desempenhar em certas formas de indeterminação sem rela-
III, 1069 b). É com dificuldade que o Aquinate aprimora a tese, ao reco-' ção autêntica com o milagre nem com o livre-arbítrio.
.."" nhecer às inteligências separadas, "desde o princípio de sua beatificação",:
um "conhecimento geral" da Encarnação e não o saber de suas "condi-I No meSmo ano em que Gilson proferia, em Aberdeen, sua primeira
ções especiais" (Sum. theol. I, 17, 3-5). O paradoxo gilsoniano não seria série de palestras, Emile Bréhier publicava, em La Revue de métaphysique
sobretudo o de aplicar o epíteto "cristã" a uma filosofia fundada na ra- et de morale (abril-junho 1931, p.133-162), um artigo intitulado "Existe
zão e que, mesmo auxiliada pela fé, só pode considerar as crenças especí- uma filosofia cristã?", no qual inopinadamente contestava que o cristia-
ficas do cristianismo como dados exteriores a seu próprio domínio? nismo tivesse introduzido algo novo na filosofia como tal. Mesmo Santo
Evitando tocar diretamente no domínio do mistério, O historiador Agostinho, dizia, nada acrescenta a Plotino nesse domínio, senão precisa-
trata, entretanto, do "milagre", após ter lembrado que os escolásticos, para mente a menção de um Homem-Deus que ele confessa não descobrir nes-
quem o mundo é a obra de um Criador dotado de sábia razão, permane- se seus caros "platônicos" e que permanece não assimilável por qualquer
cem em geral (sem excluir os ockhamistas quando estes consideram a po- tratamento racional. Quanto ao tomismo, este seria, sob sua aparente trans-
tentia determinata, os "hábitos da natureza") presos ao que chamamos parência, feito de peças e de pedaços e, segundo sua própria confissão, con-
determinismo, mas que se mantém em parte astrológico por referência a siderando-se os limites e incertezas da razão quanto a pontos importantes
uma cosmologia obsoleta. A tyke e o automaton aristotélicos, sem que sejam como a novatio rerum ou a eternidade do mundo, incapaz de se constituir

60 Ma urice de Gandillac l Gêneses da Modernidade 61


em "filosofia sistemática e coerente" (p.1S0). Bréhier considera em segui-' Seria necessário seguir toda essa evolução, e já retivemos demais o
da o cartesianismo, o "tradicionalismo", o blondelismo e algumas outras leitor. Contentar-nos-emos com algumas observações. Mas convém, ini-
doutrinas para concluir que "não se pode falar de uma filosofia cristã mais cialmente, lembrar aquela sessão da Sociedade Francesa de Filosofia, em
do que de uma matemática ou de uma física cristã". 21 de março de 1931, na qual Léon Brunschvig, reconhecendo o que de-
Com o problema assim colocado, a discussão com Gilson corria o via a Malebranche (para ele sem dúvida o único verdadeiro filósofo cris-
sério risco de parecer um diálogo de surdos. Mas a leitura de Histoire de tão, fiel ao Evangelho porque substituía "à visão pagã dos intermediá-
la philosophie revela, em Bréhier, posições sensivelmente menos abruptas. rios uma ligação Íntima entre a criatura e o Criador pela mediação dire-
Tanto que ele reconhece a dificuldade de marcar o exato limite entre as ta de um Deus que se fez homem", vendo nas matemáticas um tipo de
gnoses, o cristianismo e o neoplatonismo; e, falando de uma "subordina- revelação do "Verbo, essência eterna") e, bem entendido, a Pascal ("fi-
ção do intelectual ao religioso" como de uma "mudança prodigiosa" que lósofo para além da filosofia"), após ter recusado qualquer aristotelismo
iria dominar uma dezena de séculos, recusa discernir, entre a Antigüidade, (antigo ou medieval) como substancialmente pueril, e entretanto qualifi-
e a Idade Média, uma "revolução violenta", reconhecendo, assim, ao menos: cando Gilson de "historiador probo e profundo", com ele concordava
implicitamente, a existência de uma especulação autônoma no interior da bastante ao declarar: "Eu não me reconheceria naquilo que penso e sin-
Igreja e a importância dos fatores religiosos nas filosofias "pagãs" da época: to se não tivesse existido todo o movimento do cristianismo" (p.73). E,
imperial. Em nenhum caso as próprias nuances - e as simultâneas oposi- ' por sua vez, se Maritain se recusava a admitir que o adjetivo "cristão"
ções a tantas convergências - deveriam justificar uma especificação dos pudesse concernir à essência (abstrata) da filosofia, reconhecia que o ho-
traços próprios a cada grupo, tanto no domínio da especulação racional mem concreto pode receber de sua fé, no exercício da especulação, como
quanto no da pura crença. E, ao enfatizar que o uso da filosofia conduzia que uma "graça de estado", luzes que a razão, entretanto, não podia igno-
quase sempre os cristãos a "heresias" (nestoriana, ariana, sabeliana etc.), rar totalmente.
se Bréhier subestima um exercício concomitante da razão nos doutores que Em 1936, em Christianisme et philosophie, para ilustrar seu propó-
combatiam a heresia, ao menos admite uma osmose entre os dois domínios, sito, no dossiê de Aberdeen, Gilson acrescenta algumas peças, especialmente
de forma que não fica claro como semelhante contato não teria modifica- acerca da querela Erasmo-Lutero e da posição de Calvino. Definindo a
do pouco a pouco, mais ou menos profundamente, o sentido e a dimen- filosofia cristã como um equilíbrio (a seus olhos tipicamente "católico")
são de determinadas noções. I entre pelagianismo e calvinismo, ele vê aí a obra de uma razão obscureci-
Gilson, contudo, certamente concordaria que não teria havido surgi- da pelo estado de pecado, certamente não totalmente "cega" a respeito de
mento ou invenção de idéias absolutamente novas (ele fala mais freqüente- Deus e de uma vida futura, mas que tem necessidade da fé para ser "puri-
mente de transformação); mas finalmente o conflito - que se acreditaria ficada" e "retificada" (p.37 sq.). Mais nitidamente ainda do que na 50'
situado no nível da história - deve-se mais a opções prévias quanto_ao va- ciedade Francesa de Filosofia, ele recusa - suspeitando-a próxima do
lor respectivo do pensamento racional e das crenças religiosas. E a esse res- "averroísmo" - uma "teologia natural" que nada devia à revelação; pos-
peito a posição de Gilson não mudou quanto ao fundamental. Parece ape- sível para Platão, Aristóteles e Proclo, ela não o é mais, diz Gilson, para
",I,
I:,'
nas que, sem renunciar a afirmar a estrita especificidade do filosófico - o aqueles que sabem agora o quanto uma natureza "decaída" necessita de
que exclui toda uma série de doutrinas onde o próprio dogma se encontra ajuda (p.96 sq.l. E por fim ele conta como acaba de encontrar a expres-
racionalizado, ou intelectualizado, até mesmo supra-intelectualizado, como são contestada sob a própria pena de Leão XIII, no título, e não no texto,
é talvez a tentação de certas dialetizações neoplatonizantes - , ele mesmo da Encíclica Aeterni Patris, recomendando, em 1879, o tomismo como fi-
tenha se sentido mais teólogo. Essa tendência pode ser notada através de losofia a ser ensinada nas escolas cristãs.
alguns leves sinais como, por exemplo, a nota 14 do capítulo 9 na segunda Seria interessante também considerar o conteúdo da obra inglesa
parte do L'Esprit de la philosophie médiéval (p.274), na qual ele não fala publicada em Nova Iorque em 1937, The Unity of Philosophical Expe-
mais de um simples reconhecimento da revelação como "auxiliar indispen- rience, e sobretudo L'ftre et l'essence (Paris, 1948,2. ed. revista e am-
sável da razão", mas sim de uma "obra própria dos teólogos cristãos tra- pliada, 1962). Nela, Gilson está certamente mais eqüitativo do que Aber-
balhando em nome do cristianismo e para ele". Trata-se certamente, aí, de deen para os platônicos; irá dar mais lugar à oposição entre Averróis e
distingui-los dos doutores judeus e árabes, mas a ênfase é antes colocada Avicena (o qual freqüentemente, como Duns Escoto notara, teologizava
na finalidade teológica do empreendimento. acreditando filosofar). Ele mesmo, um pouco paradoxalmente, à medida

62 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 63


que sua própria filosofia se torna mais religiosa, concorda mais com as NOTAS
intuições de Aristóteles, vendo nelas os elementos de uma espécie de prae-
paratia evangelica (segundo o Contra Gent. lU, 25, remetendo a Et. Nic. 1 Referimo-nos à terceira edição, Paris, 1947, p.289 sq. O título francês do livro
X, 7, 1177 a 12-18). Gilson acha,entretanto, que para Santo Tomás, es- sugere a existência da "filosofia" como uma disciplina autônoma que o historiador
clarecido por sua fé, o Estagirita continue, a respeito de Deus, como uma considera em um período determinado, aqui "das origens patrísticas ao fim do século
XIV". O título inglês da obra homóloga (não idêntica), publicada em Nova Iorque em
coruja cega pelo Sol (cf. Met. L, I 993 b 9-10). A ligação de Gilson com
1955, especificará expressamente o pensamento medieval (apesar de dois capítulos acerca
a teoria tomista do ser (tal como ele a ensinou após ter passado dez anos da filosofia árabe e da filosofia judaica) como christian philosophy.
a desembaraçá-Ia das falsas interpretações) é no momento tão exclusiva, 2 Ver a esse respeito, no Abélard de Jolivet, coleção "Seghers", Paris, 1970, os textos
que podemos nos perguntar, lendo certas discussões, por exemplo, com citados, p.157-163, com o título de: "Deux opinions successives sur l'Ame du monde".
o jesuíta Descoqs (p.114, sq.), se não se encontrariam doravante excluí- 3 :t. verdade que o Corão não é, para o Cus ano, senão uma revelação parcial,
d~stinada aos pastores do deserto da Arábia, que não acrescenta nada à Bíblia, mas a
dos da verdadeira filosofia cristã (ou pelo menos situados em um nível
limita provisoriamente para torná-Ia acessível. Através de fórmulas antitrinitárias e apesar
inferior) todos os "essencialistas", incluindo-se aí talvez os escotistas e
da negação da divindade do Cristo assim como de sua verdadeira crucificação, os mu-
uma boa parte daqueles que recorrem ao testemunho de Santo Tomás.j çulmanos mais sábios deviam ler em filigranas, no texto corânico, os dogmas funda-
Exegese evidentemente excessiva, pois Gilson jamais imitou a intolerân-' mentais do cristianismo. Não falta engenhosidade ao Cardeal- em seu grande projeto
cia de um Laberthonniere ao excluir do cristianismo mesmo um verda-: irênico - para extrair de toda tradição um elemento consonante à sua fé, pois está
d~iro discípulo do Aquinate.
Em 1960, em La philosophie et la théologie, ao mesmo tempo tes-
convencido de que uma luz única brilha por toda parte através da infinita diversidade
dos sinais teofânicos.
:
4 Em uma síntese brilhante, de um contestável rigor, utilizando os trabalhos de
tamento e memórias, Etienne Gilson presta a homenagem mais calorosa comparatistas e de mitógrafos de desigual valor, Alain Daniélou - propagandista de
à Sorbonne de sua juventude, bem longe da imagem que dela deixou uma restauração do dioniso-shivaÍsmo como remédio para os males de nossa Idade de
Péguy. Em contrapartida, é severo para com a má escolástica que engen- Ferro, neopoliteísmo orgíaco que dá lugar a teses bem próximas das mais suspeitas afir-
drou o modernismo; declara-se contra (e com que verveJ) a "filosofia du- mações, não-igualitárias e quase racistas, da "nova direita" -lembra, de forma às ve-
vidosa" que, nos novos catecismos, tende a tomar o lugar dos simples data zes significativa, um conjunto de comparações difíceis de ignorar e que impedem que se
reduza nosso problema à simples relação entre duas entidades elementares, filosofia grega
fideP. Paradoxalmente, ainda que o Angélico tenha sido também vítima
e teologia cristã (Shiva et Dyonisos, Paris, 1979, em particular, p.284 sq.)
de seu tempo, evoca as advertências dos papas do século XIII contra o 5 Não existe otimismo, "cristão" ou "filosófico", concernente ou não a uma queda
abuso da filosofia; e ele mesmo se associa cada vez mais a uma teologia original, que não esbarre no irracionalismo inato do mal, físico ou moral. Essa consi-
que desejava bastante "transcendente" para "assumir os elementos do deração distanciava cada vez mais Gabriel Marcel, em seus últimos anos, de uma ade-
saber natural e utilizá-los sem se deixar contaminar" (p.11 O). Responden- são incondicional a pseudoconciliações teológicas (ou metafísicas) que justificariam os
do a uma objeção que seríamos tentados a lhe fazer quanto à universali- genocídios, os Gulags, ou mesmo simplesmente o sofrimento das crianças inocentes e
até dos animais. Nietzsche não é o único a se indignar com O fato de que, para Santo
dade do tomismo, lembra que os teólogos condenaram Bergson em nome
Tomás, a visão dos suplícios infernais possa contribuir para a beatitude dos eleitos. Quase
de Caetano e de Suarez, e lamenta expressamente que não tenham bus- no final do Dialogus, o Cristão e o Filósofo tocam nessa aporia, mas sem que Abelardo
cado nos aspectos liberadores de sua filosofia (mais próxima do cristia- ouse extrair daí todas as suas conseqüências (cf. as páginas 161 e 162 da edição crítica
nismo do que a de Aristóteles) um meio de desenvolver a metafísica do organizada por R. Thomas, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1970).
actus essendi 10 , a fim de que esta estivesse em conformidade (em suas 6 Seríamos mal vistos por questionar Gilson pelo fato de ele entender (I, p.156)
- conforme uma imensa tradição latina - a eudoxia de Lucas 11, 14, como significan-
aplicações epistemológicas e cosmológicas) com a ciência moderna. As-
do "de boa vontade" e não, segundo a tradução atual, mais conforme ao original, "que
sim a "filosofia cristã" teria podido florescer novamente sob formas di- Deus ama" - o que remete ao tema da predestinação, e absolutamente não à interiori-
versas; mas seria ainda necessário que novos Aristóteles fizessem-se re- dade do querer.
pensar (até mesmo deformar) por novos santos Tomás! 7 Um texto característico, a esse respeito, é o apelo de Ulisses (segundo Dante,
Inferno, XXVI, 91 sq.) a seus antigos companheiros para partirem em conquista do Ocea-
no: "Não queiram recUSar a experiência/Reto em direção ao Sol, de um mundo sem po-
vos". Essa viagem pela Terra havia sido prevista pOr Aristóteles de forma expressa (De ~
caela, lI, 14,298 a 7 sq., e Meteoro!., 11, 5, 362 b sq.)
8 Gilson não desconhece absolutamente o obstáculo principal que constituía, a
esse respeito, a física aristotélica. Uma vez destruídos (a princípio, sob os golpes ockha-

64 Maurice de Gandillacl Gêneses da Modernidade 65


mistas) alguns dos pilares do vetusto edifício, serão necessários três bons séculos para
que o recurso à medida, ao número e ao peso (ainda teórico e optativo em Nicolau de V. A NATUREZA EM ALAIN DE LlLLE
Cusa) adquiram valor científico.
9Lá onde tal cat.ecismo de 1889 dizia: "Creio em Deus porque ele se me revelou"
(acrescentando, em seguida, apenas: "Mas a razão diz também que existe um Deus"), a
edição de 1923, que começa pelos preâmbulos filosóficos, declara toscamente que se
deve acreditar em Deus "porque nada se faz sozinho", o que é confundir credere e scire
e usar, de resto, um argumento tirado de Lucrécio (ex nihilo nihil).
10 Essa metafísica que ele mesmo por tanto tempo desconheceu (p.203) e que só Remontando por diversas vias históricas, especialmente através de
se pode compreender (pensa ele, em 1960) com a condição de "se instalar desde o iní- Boécio, o texto da Metafísica (D 4, 1014 b ss.) - no qual Aristóteles, após
cio na fé". É improvável que Santo Tomás tenha assim falado, pois a fórmula é mais ter partido do sentido originário de physis, ligado ao verbo "nascer", pa-
anselmiana. rece privilegiar, como aliás o resto de sua obra nos convida a pensar, o sen-
tido de forma substancial unido a uma matéria e princípio interno de mo-
vimento -, as Distinções, de Alain de Lille (citadas por G. Raynaud de
Lage 1 ), assinalam onze significados para natura, englobando quase o tudo
do real- e do possível- desde Deus como Causa eficiente do mundo até
a matéria primeira, tal como a define mais precisamente o sermão "De
sphoera intelligibili" (publicado por Marie-Thérése d'Alverny em seus
Textes choisis, p.300 sq.). Este a situa em um nível intermediário - o das
formas que "flutuam", por assim dizer, entre o estado de separação, no
qual permanecem naquilo que o autor chama, audaciosamente, de a "alma
do mundo" , e, por outro lado, esse plano inferior do sensível, no qual es-
tão como que imersas nas matérias determinadas. E, aqui, o que o Estagirita
chama "substâncias primeiras" são - segundo uma perspectiva plato-
nizante - apenas "ícones" dos verdadeiros "modelos" contidos, em toda
pureza, na mens divina. Entre esses dois extremos, a palavra "natureza"
pode se aplicar também, por extensão, ao hábito, que toma às vezes seu
lugar, até mesmo à morte, na medida em que esta é a condição exigida para
que se sucedam os seres perecíveis, conservando a especificidade de sua
forma através das gerações. Das onze acepções notadas por Alain, Raynaud
de Lage privilegia as duas últimas: a que corresponde à razão natural e a
que prescreve ao semelhante engendrar o semelhante. De fato todas têm
sua importância e, de diversas maneiras, teriam seu lugar em uma exposi-
ção completa do problema. Reaparecerão, de passagem, com a exposição,
aqui, de alguns aspectos significativos de uma teoria bastante complexa e
à qual por vezes falta coerência.
Na suma dita Quoniam homines, ao distinguir três potências cogni-
tivas - sentido, intelecto e inteligência (esta última denominada intellec-
tualitas no "De sphoera", cuja divisão das faculdades é quadripartida, com
inserção da imaginatio) -, Alain revela pouca indulgência pela naturalis
philosophia, consagrada ao terrestre e dependente do sensível, ao passo
que, para ele, as duas "teologias" - a "subceleste" e a "supraceleste" -,
resultantes das duas potências superiores, concernem, respectivamente,
primeiro aos Anjos e às almas e, em seguida, aos mistérios divinos, Trin-

66 Maurice de Gandillac
Gêneses da Modernidade 67
dade e Encarnação. Ao evocar Sócrates, Hermes e a Sibila, Alain denun- tros nomes e com uma indispensável fecundidade, uma das obsessões de
cia as tolices de Epicuro e as argúcias de Aristóteles; se é sobretudo severo Alain; esta parece excluir, se não as anomalias morais denunciadas no De
quanto à loucura maniqueísta (de fato, a dos cátaros que, segundo ele, planctu, especialmente o homossexualismo que aos "martelos de Vênus"
deviam seu nome ao fato de se relacionarem com gatos, mas cujo crime substitui as "bigornas" [P.L coI. 450 b], pelo menos a existência real de
era sobretudo o de pretenderem se libertar do "mau" princípio - o da monstros e de híbridos) - mas antes de tudo, e mais fundamentalmente,
geração - através de um luxurioso desperdício de seu líquido seminal, ed. operação específica da Natura procreatrix, esse personagem alegórico que
Glorieux, p.130), parece julgar "insano" esse mesmo Platão que, em um aparece, com diferenças sensíveis de posição e de função, nas duas gran-
texto de estilo completamente diferente (Anticlaudianus I, 132-134), ele des obras "literárias" de nosso autor.
louva por ter sabido, "mais divinamente" do que outros, "sonhar, com um Antes de chegarmos a esses escritos singulares, lembremos - para II
espírito profundo, os arcanos das coisas". Segundo a Suma Quonian ho- melhor percebermos determinados contrastes - o tom desdenhoso (em um
mines (p.125), seu mais grave erro seria o de ter explicado a eternidade, texto posterior que poderia ser um arrependimento, senão uma retratação)
sem dúvida não a do mundo (Alain não ignora o Timeu) mas a das Idéias com o qual o autor do sermão "De clericis ad theologiam non accedentibus"
e da matéria (condenação que precisa e limita o que sugere o "De Sphoera" (Textes inédits, p.274 sq.) considera tudo o que para ele pode ter relação
quanto à materia prima). Nessa mesma perspectiva, o teólogo lembra a com uma vana philosophia. Certamente não desconhece a prescrição fei-
rejeição, pela Igreja, das teses como as de Orígenes sobre a preexistência ta aos hebreus de carregar em seu êxodo os "despojos" dos egípcios (lem-
das almas (p.289). brada, aliás, desde o início de Quoniam homines, p.120); mas o sermão
A polissemia do termo natura (de forma alguma próprio a Alain) se "De clericis" frisa sobretudo a obrigação, para a ratio naturalis, de se
manifesta com total evidência quando lemos, por exemplo (p.139), que "a manter em seu nível de "servente". Alain escreve aqui ancilla coelestis
natureza do próprio Deus" não poderia ser "plenamente" compreendida philosophiae, tomando "filosofia", no sentido antigo, como significando
nec in via nec in patria, em nenhum de seus quatro aspectos: essentia, subsis- modo de vida mais do que disciplina científica. O trabalho da razão não é
tentia, substantia e persona. Mas não resta dúvida de que aqui o teólogo senão um tipo de "estribo" em direção a essa intelligentia (ou intellec-
- diferentemente de João Escoto descrevendo a divisio naturae, e certa- tualitas) que mal se distingue daquilo que certos textos (mesmo o De planctu
mente de Honório de Autun em sua Clavis physicae - evita englobar, sob e o Anticlaudianus) designam como (ides (às vezes ela mesma personifica-
a denominação de "natureza", o conjunto do incriado e do criado. Insis- da como o são ratio e natura). Mas é preciso sobretudo destacar o quanto
tindo no caráter "gratuito" da justificação e da exprobração (Deus "co- ° Egito é aqui desvalorizado, com suas triplas "trevas" - palpáveis, inte-
~ :: roa" apenas seus próprios "dons", não os "méritos" humanos, e sua gra- riores e exteriores - , que simbolizam o próprio "mundo" (objeto de um
ça procede apenas de "sua vontade", segundo um justum judicium que necessário desprezo, assim como todos os seus carnales scientiae quae sunt
),,'"
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exclui sem dúvida tudo o que é arbitrário, mas que permanece pela razão vasa (ictilia, p.277). Em uma tal perspectiva, a philosophia terrestris não
o.' natural perfeitamente occultum), Alain enfatiza que, per se, o homem é um é senão uma árvore inútil, sine (oliis e sine (ructu.
f';' spiritus vadens ad peccatum e non rediens ad bonun (p.243-245). E nota Menos radical, a posição indicada por Quoniam homines corresponde
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várias vezes o caráter de algum modo "milagroso" da criação propriamente melhor, sem dúvida, ao que foi o pensamento de Alain na maior parte de
dita, a que se realiza ex nihilo e sine ministerio inferioris causae ("Expositio sua carreira. Primeiramente porque ela dá lugar a certas continuidades e
prosae de Angelis", Textes inédits, p.199). Quoniam homines precisa que transições entre natureza e graça, notando, por exemplo, a inserção, na
o homem não foi absolutamente feito opere naturae, sed sola Dei auctoritate própria "natureza" de Adão, de uma "possibilidade" de não morrer. A
(veremos entretanto que, no De planctu, quando se trata de produzir um natureza, com efeito, tende ela mesma à vida, não à morte; graças à "ár-
novo Adão, uma espécie de homo perfectus feito para um mundo que vore da vida" plantada no paraíso terrestre, o homem inocente podia sub-
chegou à perfeita harmonia, Deus cria apenas o spiritus, deixando à Natura sistir colhendo e consumindo frutos "naturalmente" destinados à sua sub-
o resto da obra). sistência; assim, ele teria podido escapar (sem milagre) à doença e ao en-
Essa (actio divina, prolongada por uma necessária conservatio (sem velhecimento. Como se vê, as fronteiras entre o antes e o depois da queda
a qual a "natureza" do homem, como a do Anjo, não poderia subsistir), são permeáveis (Alain pensa, bem entendido, que Adão, caso não tivesse
se distingue da simples procreatio, operação reprodutora dos seres mor- pecado, teria se dedicado a um "comércio carnal", meio normal de "cres-
tais engendrando-se segundo a mais rigorosa taxinomia (eis aí, com ou- cer e multiplicar"; ele não acrescenta, como fará Tomás, que, senhor de

68 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 69


seus movimentos carnais, Adão tivesse experimentado mais prazer do que tual- a presença do mal continua obsedante, no Anticlaudianus, onde
o pecador nesses folguedos, mas observa que tudo foi efetuado sem libidinis se trata de lutar contra ele fazendo nascer um homem perfeito, núcleo de
fervor nem pruritus, frutos da falta original, p.293-295). um mundo regenerado, mas mais ainda no De planctu naturae, que che-
Posição ainda mais matizada porque, ao subordinar as seminales ratio- ga à solene excomunhão dos pecadores. Mesmo se se abstrai o pecado
nes (que asseguram o bom funcionamento do cursus naturae) às aeternae propriamente dito, que diz respeito ao homem (Alain fala pouco da que-
rationes resultantes da voluntas divina, o autor destaca que essa vontade, sem da de Lúcifer), o cosmos, por mais harmonioso que seja, visto que os
nada de arbitrário, se identifica à ratio e à sapientia divinas. Mas igualmen- extremos se compensam, está longe de aparecer como um hortus deli-
te que, quando o Criador - tendo se reservado um domínio próprio no qual ciarum; o tigre é feroz, o camelo desgracioso, o elefante grotesco; aos
opera ad nutum suum, por exemplo para tirar Eva da costela de Adão (não ouvidos do purista o zurro do asno é como um barbarismo, e a cabra,
de um germe específico) - age acima da natureza, respeita contudo suas leis, "vestida de lã sofística", incomoda as narinas por seu odor nauseabun-
pois havia tomado cuidado para que a costela do primeiro homem contivesse do (De planetu, r.L. 438 a-b).
os elementos "naturais" necessários para se constituir e subsistir como um Sigamos adiante: Alain discerne no mundo, assim como no próprio
corpo de mulher. Certamente, as "razões eternas" estão somente in Deo, mas homem, uma luta permanente entre duas forças adversas: de um lado a
tudo o que depende do "curso natural" (mesmo na operação divina ad ex- rationalitas e, do outro, essa sensualitas que talvez se seja tentado - reu-
tra) se situa simultaneamente in Deo et in natura (p.296). nindo, em um registro dessa vez mais platônico do que bíblico, as severida-
Mas é sobretudo nas duas grandes obras alegóricas de Alain - uma des do "De clericis" - a comparar à "causa errante" do Timeu, visto que
que mistura prosa e verso no modelo da Consolatio; a outra, em nove can- o autor a assimila à errância sem lei das estrelas cadentes. É o universo inteiro,
tos, feita inteiramente de hexâmetros regulares (que, por lapso ou por não apenas o homem que, assim, tem de ficar entre dois chamados, um que
brincadeira, Gilson denomina "alexandrinos", qualificando-os, com al- o arrasta a debacchari cum brutis, o outro que o exorta a disputare cum
guma severidade, de "laboriosos", La Philosophie au Moyen-Age, 2. ed., angelis (443 c). Mas, para compreender a significação desse "duelo", deve-
p.315) - que essa colaboração entre Deus e Natura adquire aspectos sin- se ver que, aos olhos de Alain, a Dama Natureza mantém, em tudo isso, uma
gulares e que um texto poético, rico em reminiscências pagãs e símbolos inocência plena - e eis sem dúvida aí uma das dificuldades de sua doutri-
mitológicos, corre o risco de sugerir interpretações arriscadas (como a na, visto que ela exclui, aliás, tudo o que pode sugerir a presença, em qual-
idéia, muitas vezes retomada por Raynaud de Lage, especialmente na p.70 quer nível, de um tipo de Antiphysis mais ou menos substancializada.
de sua tese, de que o tempo e a historicidade seriam aqui reduzidos a um Alain de Lille, com efeito, tem como indubitável que Natura, reali-
papel menor). zando a serviço de Deus sua obra procriadora, tenha tudo ordenado para
Herdeiro e elo de uma corrente vinda da mais alta Antigüidade cris- que - nesse conflito entre razão e sentido - os argumentos daquela fos-
tã, poderosa no século XII, em seguida um pouco recalcada e disciplinada sem os mais fortes. E quando esse entretanto prevalece para "exilar" o ho-
(ou adquirindo, em João de Meung, aspecto escandaloso pelo resvalar do mem de sua "pátria" (dir-se-ia uma espécie de queda natural, mais do que
tema da fecundidade em direção ao hedonismo), mas que reaparecerá, com uma punição infligida do alto), é essa mesma Ratio que leva o homem
outros componentes, mais tarde, em Nicolau de Cusa, em Marsilio Ficino decaído a subir em direção a seu lugar natural, não ainda o céu, mas uma
e em todo um vasto setor daquilo que se denomina "Renascimento", Alain espécie de "subúrbio" do universo, no limite inferior da "república" regi-
descreve um universo fortemente hierarquizado, rico entretanto em tran- da pelos Anjos, aí onde, ao "obedecer", ele pode se "recriar", se "restau-
sições e em correspondências bastante complexas. Entre o cume e a base, rar" (444 b). Certamente, se considerarmos as coisas estritamente, é o
Natura desempenha um papel central. O autor não duvida de que essa no- próprio Deus, não a Natureza, que propriamente "recria a vida" (446a),
bre operária, a serviço bem ativo do Criador, e às vezes tratada até mes- mas o autor quase não enfatiza a perda das asas como conseqüência da
mo como "rainha" (como a donna gentile de Dante), participe plena e desarmonia interna; se fala de uma terra que se tornou "prostíbulo", o
inequivocamente, sem concessão dualista, qa bondade de Deus, pois foi atolar no lamaçal não é para ele um verdadeiro cativeiro, com correntes
efetivamente por seu intermédio que se fizeram todas as coisas que a Es- que um libertador deveria vir quebrar. Apesar de algumas fórmulas epi-
critura declara valde bona. sódicas, raramente se trata de um sacrifício redentor resgatando graciosa-
E no entanto, nesse universo alaniano - mais ainda, parece, que em mente os pecados de uma raça entregue, desde sua primeira falha, ao im-
muitos de seus predecessores e de seus sucessores de mesma família intelec- pério do demônio. O leitor que se ativesse às obras literárias de Alain se-

70 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 71


ria tentado a ver uma versão humanista do drama cristão, até mesmo uma meneu _, para presidir aqui a fecundas uniões; mas é então que as coisas
apresentação do platonismo que atenuaria sensivelmente seus aspectos mais lCão se corromper.
dualistas. Apesar da alusão feita às tentações do cosmos (mais ou menos Os platônicos distinguiam duas figuras de Afrodite, a uraniana e a
impostas pela concordância postulada entre macrocosmo e microcosmo), trivial, preocupando-se pouco, por sua vez, em atribuir àquela do alto um
quase não se encontra aqui o equivalente da aventura descrita por Plotino, tipo de fecundidade animal que a teria antes desonrado. Aqui, ao contrá-
quando este mostra a terceira hipóstase, por mais divina que seja, aban- rio, O tema da fecundidade desempenha um papel principal. Seria necessá-
donando-se aos prestígios da multiplicidade e do tempo. rio ver nele o eco desse desenvolvimento demográfico assinalado pelos his-
Assim, os efeitos do "duelo" universal, que se poderia acreditar os toriadores no século XII e que, apesar das epidemias mortíferas do século
mais graves, se reduzem, no nível cósmico, a simples dissonâncias, final- XIV, devia preparar de longe -ligada, segundo Chaunu, ao "racionalis-
mente integráveis na harmonia de uma justa medida. Mesmo os terríveis mo" escolástico - a grande "expansão" européia dos séculos XV e XVI?
pecados humanos descritos, não sem alguma complacência, no De planctu Não nos demoremos em uma questão lançada en passant, e retenhamos antes
- brutalidade, infanticídio, narcisismo, sodomia - , se apresentam me- o que mais importa aqui: a transferência de toda culpabilidade para a pró-
nos (segundo a definição de Abelardo) como "desprezo de Deus" e revol- pria Vênus, que se tornou infiel a seu esposo. Estabelecendo, com efeito,
ta contra ele, do que como um desconhecimento culposo das leis da natu- vínculos culposos com um certo Antigamus (alegoria de todas as faltas contra
reza; e essas violações parecem inicialmente erros lógicos e gramaticais; o casamento e, mais geralmente, contra a ordem natural), a mãe de Cupido
aqui, como no caso do asno e da cabra, Alain fala naturalmente de sofis- lhe dá um meio-irmão adúltero, perversor e subversivo, denominado Jocus.
ma e de paralogismo, de solecismo ou de barbarismo (450 a-b). É pelo erro Ainda que "gracejo" não seja "alegria", poder-se-ia se perguntar
desses falsos passos lingüísticos que a própria beleza, graça natural e de si (dessa vez ainda um pouco por brincadeira) se a joy dos poetas corteses
inocente, pode por vezes se tornar uma armadilha do demônio. Faz-se não estaria aqui sendo visada. De qualquer modo, ainda que ele evoque
necessária aí, entretanto, uma outra intervenção (mais incerta) do que a virtudes cavalheirescas, como Generosidade e Lealdade (outro sentido, ago-
da Natura. E é bem característico que a responsabilidade das fraquezas ra profano, de Fides), Alain não pode alimentar nenhuma complacência
essenciais seja imputada a uma deusa pagã, cuja ambivalência a tradição pelos amores estéreis e ligações o mais das vezes adúlteras. Seja como for,
platônica fortemente enfatizava. é efetivamente pelo erro de Jocus que aO liberale opus do amor autêntico
Com efeito, o "elegante Arquiteto" divino, para fazer passar à realis se substitui muito freqüentemente um mechanicum opus, à obra segundo
existencia as Idéias que ele concebera, conservando entre as espécies a unia as regras uma produção desordenada, a um trabalho civilizado um "rús-
pacifica que Alain compara tão freqüentemente a um casamento legítimo, tico" trabalho (o uso pejorativo desse epíteto não basta para nos conven-
delega à Natura a tradução "finita" do "infinito", a imitação temporal do cer de que Alain, de Lille, e em seguida de Paris e Montpellier, representa-
eterno. Operação que não comporta nenhuma falha, nem mesmo o efeito va, como se disse de Abelardo, a nova civilização urbana).
dessas telas que o Areopagita mostrava operando para enfraquecer a di- Os prejuízos são tão sérios que Natura, emocionada por ver sua obra
fusão da luz e do calor. É sob o controle contínuo de Deus que, no éter desfigurada, especialmente pelos crimes de clérigos do mais alto nível -
onde ela reside (pelo menos para o De planctu) essa "auxiliar no mundo sodomia certamente, objeto próprio de sua" queixa", mas igualmente em-
procriadora pela graça de Deus, princípio originário de todas as coisas". briaguez, gula, avidez, arrogância, ódio, adulação - chama em seu socor-
(Dei gratia mundana civitatis vicaria procretrix - nativarum omnium ro um velho com aspecto juvenil, Gênio, aqui porta-voz da superessentialis
originale principium), não simples serva (ancilla), como o exige o teólogo Usia (481 c). Com ele alcançamos um dos procedimentos favoritos de Alain,
de Quaniam homines, mas sim, como já dissemos, rainha do mundo (mun- o das "duplicações". O sentido desses deslizamentos, substituições e dele-
dane regionis regina) (479 a) - procede a seu trabalho, com a mão que o gações permanece, por mais de uma vez, obscuro. E é essa uma das razões
próprio Criador se digna a guiar. Nesse nível, não se poderia esperar ne- que torna incerta a definição mesma de Natura, que não ocupa exatamen-
nhum verdadeiro erro. Mas justamente Natureza é dama demais para descer te o mesmo lugar nas duas grandes alegorias de Alain. No De planctu, essa
ela mesma até os subúrbios terrestres onde moram os mortais. Do mesmo bela mulier -logo reconhecida como virgo e como mater - é descrita em
modo que o Demiurgo do Timeu - a quem ela deve vários traços - de- termos de um erotismo deveras insistente. Entretanto, ela habita o céu e é
lega uma parte de seus poderes a acólitos, a Dei vicaria envia Vênus para daí que desce para deplorar os crimes cometidos contra suas leis. E é igual-
esse mundo, com seu filho Cupido, nascido de seu esposo legítimo - Hi- mente do céu que ela faz vir, no final, esse Genius que o autor designa alhures

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72 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade
se fez receber, como em um leito nupcial, pelo seio de uma virgem, "con-
como Natura vel Deus naturae ("Hierarchia Alani", Textes inédits, p.228).
juntamente filha do Pai e mãe do filho", V, 480-485).
Com exceção do sexo (e talvez da idade) ele praticamente não se distingue
Não se trata igualmente do Adão Kadmon das tradições cabalistas, ainda
de nosso Dei vicaria com o qual parece muito intimamente associado, tan-
mal elaboradas na época em ambiente judaico e pouco conhecidas pela cris-
to no "sacerdócio" quanto na obra de procriação. É ao contrário como uma
tandade; tampouco do Adão de antes da queda do Gênesis, já que precisa-
habitante do mundo sublunar que o Anticlaudianus apresenta Natura. Parece
mente o homo perfectus não é um retorno ao passado, mas o anúncio de
que esta não deve absolutamente abandonar ela mesma sua morada terres-
tempos novos. Em alguns traços ele prefigura o homo maximus de Nicolau
tre, pois para trazer ao Céu a súplica deliberada com as Virtudes é forçada
de Cusa, tal como aparecerá no terceiro livro da Douta ignorância, verda-
a recorrer à mediação de uma outra ela-mesma, Prudência ou Fronésis (ob-
deiro nexus entre o infinito divino e o indefinido cósmico. As diferenças são
servemos que, se tomarmos essa palavra grega em seu sentido platônico mais
evidentes, pois a entidade postulada como exigência dialética, culminação
do que aristotélico, ela evoca a Sabedoria em pessoa).
de todas as potências naturais chegando à ultrapassagem de si, se identifica
Mas isso não é tudo. Essa mensageira - qualificada, assim como
no Cusano ao Deus-Homem da fé cristã (ainda que a Natividade, como em
Natureza, de virgo parens rerum - não percorre senão uma parte da es-
Eckhart, se despoje nele, bem mais do que em Alain, de qualquer determi-
trada em sua primeira carruagem. Em Dante, após ter substituído Virgílio
nação temporal). Pode ser que Nicolau tenha, diretamente ou não, se inspi-
(e Estácio), Beatriz cederá o lugar a São Bernardo. Aqui ela vai até o fi-
rado em Alain. Quando escreve suas Con;ecturas, ele lamenta não ter mar-
nal, mas conhece até na última etapa, diante do céu empíreo, uma dessas I
cado suficientemente, em sua obra precedente, a transcendência de Deus. A I'
fraquezas que marcam, para Alain, a presença de um tipo de ruptura, de
esse propósito, retoma um dos vocábulos do sermão alaniano "De sphoera"
passagem a um nível superior, sem que nenhuma dessas aberturas seja in-
(a intellectualitas superposta à intelligentia) e, ao aplicá-lo não apenas a Deus
transponível. Abandonando o carro preparado pela Ratio, Fronésis recebe
mas também - em uma outra perspectiva - ao próprio cosmos (que per-
o reconforto de uma outra dama, chamada muito enigmaticamente Re-
de então sua aparência medieval), encontra igualmente a famosa imagem da
gina poli; ela é geralmente identificada à teologia, mas apresenta traços
esfera infinita (outra versão: inteligível) cujo centro está por toda parte e a
que a aparentam, senão à Sofia gnóstica, pelo menos à Sabedoria bíbli-
circunferência em lugar nenhum (poder-se-ia lê-la nas Regulae, no Livro dos
ca, aquela que estava presente em Deus desde a criação do mundo, sím-
XXIV sábios, em São Boaventura, e ainda em vários outros lugares).
bolo superior da virtude da sabedoria e da natureza procriadora, ligada,
Três séculos após o autor do Anticlaudianus, em uma conjuntura com-
ela mesma a esse Noys~' que se é tentado a comparar ao Verbo, de for-
pletamente diferente, o Cusano explicitará (em ligação com seu tema do homo
ma que a continuidade se afirme desde a matéria até mesmo ao mistério
maximus) os elementos de algum modo "progressistas" da civilização hu-
da Trindade.
mana, imaginando um trabalho coletivo e convergente, um avanço, ao mesmo
Mas o que mais cria problema no Anticlaudianus é o projeto de Na-
tempo científico e religioso, rumo à "concordância católica" e rumo à "paz
tura e de seus companheiros terrestres; pois não se trata mais apenas de "ex-
da fé". Alain imagina antes uma Natureza que recebe do alto, por puro dom
comungar" os vícios contra a natureza para encontrar uma harmonia an-
divino, a alma do homem perfeito, e fabrica em seguida, como tudo o que
terior. O trabalho conjunto pelo qual o supremo Artesão e sua colabora-
a humanidade até então produziu de melhor, tanto antes como após a Re-
dora (terrestre sem dúvida, mas igualmente cósmica, em virtude da ligação,
denção, um corpo adaptado a essa alma, em vistas de um tipo de idade de
sempre reafirmada, entre o microcosmo e o macrocosmo) irão constituir
ouro, muito inspirada nos Antigos, e que seria talvez o fim da história, vi-
um "homem perfeito", dotado de uma "alma pura", quase não pode se iden-
são atenuada de uma escatologia simplificada e desdramatizada. Apesar do
tificar à missão do Verbo encarnado, inicialmente porque a relação entre
uso da palavra spiritus para designar a alma do novo homem, não parece que
pessoa divina e pessoa humana de Jesus corresponde muito pouco à rela-
haja nada em Alain que anuncie verdadeiramente o Terceiro Reino de Joa-
ção que indica o poema entre a alma celeste descida aqui por intermédio de
quim de Flore, e, se a excomunhão do De planctu, proferida contra os vio-
Fronésis, e corpo material que forja para ela Natura, mas mais simplesmente
ladores da lei natural, é como que o substituto de um Juízo Final, o ordo novus
ainda porque a viagem simbólica aqui narrada ocorre expressamente após
do Anticlaudianus descreve sobretudo um universo sem doenças, sem enfer-
a Encarnação (guiada pela Regina poli, Fronésis aprende lá em cima de que
midades e sem ódio, não verdadeiramente uma Jerusalém celeste.
maneira maravilhosa, "em vista de nossa salvação", o Filius artificis summi
Conforme já observamos, encontramos, através de toda a obra lite-
rária de Alain, o grande tema central da ascensão progressiva, mas tam-
); Transcrição latina do naus grego. (N. da T.)

Gêneses da Modernidade 75
74 Maurice de Gandillac
I
"i

bém uma sumária dialética dos opostos de tipo platônica (um e múltiplo, hiato da síncope) perscrutar os mistérios da ordéhl divina (VI, 73-155). Cer-
mesmo e outro, finito e infinito), com uma multiplicação freqüentemente tamente, nesse nível, reina a sola voluntas e, sob o "ditame do mestre", "a
fatigante de oxímoros (eis alguns exemplos, dentre tantos outros: inaequalis regra se cala"; o que se busca, para além de qualquer ratio, é, sem dúvida
aequalitas, de(ormis con(ormitas, divisa identitas, odor sapidus insipidusque alguma, a sola (ides (VI, 180): a coisa, no entanto, não é tão simples, pois
sapor, mors vivens, moriens vita, in De planctu naturae, 443 c, 445 etc.). longe de eliminar a razão, a fé aqui tende a satisfazer seus verdadeiros de-
Mais do que uma coincidência de opostos, Alain acentua paradoxos que sejos e, antes de tudo, a sistere seus somnia (VI, 80). O que no momento
provocam, em seus personagens, síncopes fisiológicas e "êxtases". No De Fronésis discerne lá no alto, incluindo-se os mistérios da predestinação e o
planctu, é o desfalecimento do próprio poeta quando lhe surge em sonhos motivo original de todas as vocações, é muito menos um conjunto de de-
a dama Natureza e quando ele se encontra "sepultado na alienação do cretos do que todo um jogo complexo de celestes ideae e de ingenitae speeies
êxtase, nem morto, nem vivo" (in extasis alienatione sepu/tus, nec vivus (VI, 214 sq.), realidades, pois, em nada heterogêneas aos modelos ofereci-
nec mortuus) (442 b) - estado que não corresponde a nenhuma das duas dos à Natura para conduzir sua obra demiúrgica.
espécies de "saídas de si" apresentadas no Prólogo da suma Quoniam No outro extremo da escala, as continuidades são igualmente mani-
homines: nem o arroubo místico diante do indizível mistério divino nem, festas. O projeto renovador de Natura é deliberado em concílio e é um desejo
ainda menos, esse mergulho degradante nas paixões que faz do homem, comum do universo criado que Fronésis irá apresentar a Deus. Pilhas dessa
metaforicamente, um lobo ou um porco. O êxtase é aqui o assombro de mensageira, nas quais ela mesma infundiu "todos os dons de Sophia" (Il,
ver surgir essa Dei auctoris vicaria que, no momento desejado, extraiu, diz 331), as sete artes liberais que constituem as partes do carro ascensional pouco
ela expressamente, da matéria informe, o rosto humano do poeta, organi- lembram os sombrios despojos egípcios. Aqui a velha mitologia funde-se
zando um corpo digno de receber como consorte o espírito que lhe con- sem falha aparente com a analogia cristã. Minerva, com efeito, vendo as
vém (spiritus é aqui tomado por anima, devido à metáfora nupcial) e con- artes resplandecerem com um tal brilho, ordena ela mesma ao maravilho-
ferindo-lhe a harmonia sem a qual ele teria repugnância pelo sponsus di- so veículo que tome a rota do Céu para aí perscrutar "os segredos de Noys".
retamente saído das mãos divinas (442 c). Ao longo da subida, é com o mesmo olhar que Fronésis parece perscrutar,
Esse discurso de Natura nos lembra que a vicaria é responsável ape- à sua passagem, as hierarquias celestes (e diabólicas), os fenômenos me-
nas por um receptáculo, mas comparado à esposa do Cântico, e que deve teorológicos, e o movimento dos planetas com seu duplo aspecto físico e
ser compreendido no sentido mais amplo, visto que comporta explicitamente, astrológico. Certamente, para além das constelações, os arcana Dei a as-
além do sentido, a memória e o raciocínio (o que veio do céu sendo apenas, sombram e fazem-na balbuciar (V, 126-127), mas logo o auxílio de uma
em suma, a ponta superior da alma intelectiva, esse nous que também Aris- espécie de irmã mais velha a conduz para além de si mesma, na ascensão
tóteles dizia vir "de fora"). O todo fabricado "à semelhança" do "grande daquilo que Alain não hesita em denominar um "Olimpo" (V, 258 sq.). Ora,
mundo" do qual nosso corpo é de certa forma o "espelho" (443 b). Sem é curioso que, mesmo nesse nível, que diríamos puramente teológico, ao lado
dúvida permanece a oposição entre a operação divina e a de sua auxiliar, dos Serafins, dos Querubins e dos Tronos, em companhia agora dos bem-
reduzida a forjar seres caducos (de uma certa maneira potentia impotens, aventurados que, sem renegar a carne, forçaram-na a servir ao espírito (V,
ela forja "para a morte", ela que tanto ama a vida). Se é verdade, entretan- 457), a viajante contemple ainda realidades paradoxais, mas de ordem fí-
to, que ignora os mistérios da Natividade no que estes possuem de inson- sica, não apenas as águas celestes presas ao cristalino, cujo gelo nenhum fogo
dável, ela é incessantemente conduzida até à fé. Ainda que o domínio pro- derrete - fenômenos que excedem as leis da Natureza mãe (excedunt matris
priamente celeste não seja seu "ofício", ao Credo ut intelligam de Anselmo naturae jura) (V, 368) e diante dos quais a filosofia fracassa, pois eles cor-
ela opõe literalmente um Seio ut credam (446 b). Assim, como o compara- respondem a "formas novas" e a "novas leis" (V, 425) - , mas, ainda uma
tivo entre o positivo e o superlativo (Ala in adora as metáforas gramaticais), vez, realidades de ordem simplesmente meteorológicas, responsáveis pelas
ela é efetivamente o meio entre o humano e o divino. precipitações de granizo e pelos temporais (V, 325).
No Anticlaudianus, quando Fronésis, diante do Céu empíreo, perde Seria cansativo acompanhar todos esses episódios que se sucedem e
a consciência e recebe da Regina poli (chamada matrona (ides) um maravi- se repetem. Face a tantos mistérios, Fronésis passa mal mais uma vez. In- ~
lhoso espelho que, assim como as etapas intermediárias oferecidas na Re- tervém agora Pides, caridosa matrona diante da qual vemos Ratio se in-
pública de Platão aos prisioneiros libertados, deve proteger seus olhos do clinar (Ratio que, como Abraão, obedece às ordens primeiramente enten-
excesso de luz, de forma que ela possa progressivamente (apesar do falso didas como contrárias à moral natural e reconhecidas em seguida como

76 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 77


resultantes de uma harmonia superior). E quando Deus, enfim, no final um novO Céu. Simplesmente a antiga Terra recobrou sua plenitude ante-
da ascensão, aceita formar o spiritus que virá animar o corpo do homo rior e nada aparentemente a separa, daí em diante, do reino da Graça. A
perfectus (verdadeiro peregrinus in orbe terreno), é bastante significativo rigor, seria possível questionar se o mistério não seria aqui uma forma
que também ele, assim como Natura na outra extremidade, delibere e superior de inteligibilidade. É verdade que as obras mais tecnicamente te-
consulte. Alain mostra que recorreu a Noys para que esse auxiliar divino ológicas de Alain, assim como seus sermões, sugerem outras linhas de re-
lhe prepare como queira um modelo ideal do Antropos, e o mostra in flexão, mas a leitura do De planctu naturae e do Anticlaudianus anuncia,
speculo (o espelho tem, aqui, muitos usos) como a reunião de tudo o que a despeito da evidente diferença estilística, a teoria malebranchiana do
pôde ser realizado de melhor na ordem espiritual (a força de Jó, a fé de milagre, e até mesmo as grandes construções unificadoras de Leibniz.
Abraão, a simplicidade de Tobias, etc, VI, 436 sq.). O homem novo, as-
sim, não será senão a perfeição suprema mas elaborada por todos os pro-
fetas e todos os santos.
Munida de um ungüento (que os críticos comparam, geralmente, ao
batismo, sem que o texto imponha essa exegese), Fronésis agora volta à
Terra, sem sofrer o frio saturnal nem os ardores de Marte; tendo reencon-
trado o carro de Razão, ela oferece o dom celeste à Dei vicaria, que se põe
a trabalhar, unindo bastante bem os elementos para que o fogo, longe de
incomodá-los, ao contrário, apazigue os humores. O resultado é "um novo
Narciso", um "novo Adônis", tão belo, que uma "nova Vênus" (aqui pura
metáfora, a deusa pagã não desempenha o papel ambíguo de acólita meio
infiel que o De planctu lhe atribuía), ao vê-lo, só poderia sucumbir a seu
"habitual furor" (VII, 41-43). Obra tão bem-sucedida que a própria Natura
se espanta com ela. Conseqüentemente, resta apenas eliminar o acaso ou,
antes, sob o controle de Razão, neutralizar Fortuna, que, também ela,
desejava participar (outra continuidade) na obra comum, e finalmente aceita
parar com suas mentiras para se colocar a serviço de uma Nobilitas que
parece aqui remeter à Proeza dos cavaleiros.
Sem dúvida o último canto do Anticlaudianus mostra a revolta de
um Inferno que até então não havia adquirido um aspecto dramático. Não
é de surpreender que a instável Fortuna seja tentada a ceder aos assaltos
diabólicos, mas Natura não se deixa absolutamente seduzir. A fria e con-
;ii '
, vencional série de duelos singulares entre Vícios e Virtudes termina, bem
entendido, com a vitória da Dei vicaria, que parece ao mesmo tempo a
exclusão dos deuses antigos, incluindo-se esse Excessus que, de uma ma-
neira na verdade bem próxima dos filósofos gregos e latinos, o autor opõe
à necessária Moderatio. Como se vê, essa espécie de apocalipse permane-
ce bastante razoável. Na nova idade de ouro - prefigurada de várias ma-
neiras pela primeira descrição de Natura, com seus pés que representam
as ervas do solo, suas roupas de baixo e sua túnica simbolizando plantas
e animais, seu diadema correspondendo aos astros e às constelações - os
opostos agora se juntam. A terra toca o céu e brilha tanto quanto o éter, o
ferro não fere mais o solo que tira de si mesmo suas colheitas, as rosas não
têm mais espinhos, mas não parece se tratar de uma Terra nova nem de

78 Maurice de GandiUac 79
Gêneses da Modernidade
VI. OS DOIS FUNDAMENTOS DA ORDEM ESCOTISTA
/1

Vl.a. FÉ E RAZÃO EM DUNS ESCOTO"·

Contra a persistente lenda que imputa a Eseoto um "voluntarismo"


inimigo da inteligência e um "fideísmo" que desprezaria a razão (essa ra-
zão que, por outro lado, acusam-no às vezes de levar a um excessivo refi-
namento), os próprios textos, quando lidos sem preconceito, trazem ge-
ralmente a mais clara resposta. Foi assim especialmente que Fernand Gui-
mer - por ocasião do Congresso Escotista de 1966, ao reler a distinção
27 do Livro IH da Ordinatio - mostrou, em Escoro, o papel da recta fatio
(noção tipicamente anselmiana), no exercício da mais nobre virtude teo-
logal 1 • Conformitas é a expressão mesma da Ordinatio; nas passagens cor-
respondentes da Reportatia lê-se consonantia. Os termos são significati-
vos; remetem, ambos, a essa "sinergia" cara ao doutor franciscano que,
sem ignorar o escalonamento hierárquico das potências cooperantes, re-
cusa-se a reduzir as causas subordinadas a simples causas instrumentais,
e menos ainda a causas ocasionais (tal como foram mais de uma vez com-
preendidas pelos ockhamistas, e não apenas na perspectiva de uma dialé-
tica na qual a animosidade do contestador - o protervus - visa à estrita
delimitação do necessário e do provável).
No mesmo congresso do sétimo centenário, tentamos mostrar2 que
a sociedade, definida em termos agostinianos como" disposição congruen-
te de pessoas iguais e desiguais", no estatuto do após a queda, que ex-
clui a harmonia espontânea e a comunidade das posses e dos poderes,
funda-se em acordos livres estabelecidos pelos homens à luz de sua recta
ratio 3 , em conformidade com um "direito natural" que, certamente, não
rege de maneira absoluta os preceitos da "segunda Tábua", afetados por
uma certa contingência e suscetíveis, por isso, a "dispensas" divinas e a
modificações segundo as conjunturas, mas cujos conteúdos permanecem,
em todos os casos, "consoantes aos princípios da lei e da natureza, ain-
da que dela não se deduzam de maneira necessária"4. Esse encontro en-
tre os preceitos divinos (que, adaptando-se a diferentes estatutos, pode-
rão ainda variar no futuro) e a instituição humana de pactos de associa-
:;J

". Comunicação apresentada no Congresso Escotista de Pádua (setembro 1976;


posteriormente publicada em Regnum hominis et Regnum Dei, Roma 1978, p.125-132).

Gêneses da Modernidade 81
ção e de submissão permite estabelecer, segundo os tempos e os locais, a o papel de causa subordinada em companhia da imaginação, mas em um nível
melhor (ou a menos ruim) divisão de bens e de autoridades, o limite ra- superior - encontramos, de maneira sem dúvida mais complexa, o mesmo
zoável dos ganhos e dos benefícios. tipo de cooperação. Certamente a vontade é "potência principal", pois a
Esse jogo de dois termos encontra-se igualmente operante, pro statu isto beatitude, fim último visado pelos atos humanos, diz respeito à posse e à
- aí onde se impõe de fato o recurso ao sensÍvel- na negocia tia por meio fruição mais do que ao puro saber, Mas se é verdade que Duns Escoto opõe
da qual o intelecto agente se apóia no fundamentum in re, tal como lhe é mais nitidamente do que os outros a livre escolha da vontade a essa espécie
oferecido pela experiência imediata, para encontrar as articulações do ser de necessidade que força o espírito a não mais abandonar o bem reconheci-
indeterminado, formas genéricas ou específicas, e mesmo essas diferenças do como tal, o Doutor sutil afirma a função "ostensiva" dessa própria ade-
singulares que, em nossa condição de viatares, não assimilamos senão em são 10 , a propósito da "sindérese"). E essa causalidade, subalterna mas efe-
nível da espécie, por não podermos alcançar a "razão própria" do indivíduoS. tiva, da razão se aplica mesmo com tanta insistência ao caso limite do actus
Se a recepção da imagem não é algo anterior à formação no intelecto humano fidei, a ponto de um tomista como Caetano ter podido se perguntar se Escoto
de um canceptus realis, no status iste (o qual poderia efetivamente estar li- aqui não atribuía um peso exagerado ao intelecto 11,
gado às conseqüências do pecado), deve-se frisar que a cooperação entre causas Que não se desconsidere, assim, no que concerne às relações da fé e
hierarquizadas pertence, como tal, à própria natureza do criado, da razão (e especialmente a delimitação das credibilia e scibilia), a dife-
Do mesmo modo, à questão de saber se o intelecto é "a causa total rença de perspectiva entre Escoto e Tomás. E também não se deve con-
que engendra um conhecimento atual, ou a razão desse engendramento" fundir com a verdadeira doutrina do doutor angélico interpretações como
(o que não constitui uma alternativa, mas os dois aspectos de uma mesma as que Dante tende a tecer, quando parece atribuir ao "filósofo" e ao im-
hipótese), Duns Escoto responde que um intelecto dotado de um tal poder perador, ao lado do domínio reservado ao papa (a beatitude no além), uma
não deixaria de conferir a si próprio presentemente um saber sem imperfeição, vasta esfera, teórica e prática, correspondente à felicidade que se pode al-
o que não é, evidentemente, o caso. É preciso, portanto, admitir um "con- cançar neste mundo graças às lições do maestro di calor chi sanno 12 • En-
curso" entre a "alma" e o "objeto presente,,6, mas sem entender com isso tre esses setores, o equilíbrio deve ser assegurado por meio da referência
que a causa ativa colocada como superior já contivesse em si, em um modo comum a um Deus único, porém muito paradoxalmente o poeta que pin-
"eminente", a virtude causal da causa ativa subordinada, contentando-se, ta com tal refinamento os sofrimentos infernais parece esquecer as conse-
por assim dizer, em delegar-lhe uma parte de seus próprios poderes, ou mesmo qüências do pecado (e mesmo os limites que sua finitude impõe a todas as
em usá-los como uma ferramenta, Quando se trata, como aqui, da coope- criaturas) quando descreve como possível um império terrestre que una
ração entre o espírito e a coisa, ou, em um plano completamente diferente, todos os homens sob a sábia direção de um chefe, atento às lições de Aris-
das respectivas participações do macho e da fêmea na obra procriadora, cada tóteles, acrescentando que, visto que "Deus e a natureza não fazem nada
virtus desempenha seu papel particular, de forma que o resultado que pro- em vão" 13, nessa comunidade ideal se atualizará plenamente, em todas as
duzem "a mais perfeita e a menos perfeita" pode ser "mais perfeito" do que épocas e locais, o que encerra "em potência" a "virtude intelectiva" da
seria, sozinha, a ação da "mais perfeita"?, Também o calor solar, ainda que humanidade 14 , Fórmulas que fazem pensar que a humanidade assim uni-
seja "menos nobre" que o do animal, pode cooperar com este para engen- ficada poderia alcançar esse "último fim" que lhe conferia o "quase divi-
drar um ser vivos, e vemos aqui como esse procedimento permite conciliar no" Aristóteles, "digno de fé e de obediência"lS,
com a cosmologia judaico-cristã (que atribui mais dignidade às criaturas Certamente a posição de Santo Tomás é inteiramente diferente, O
vivas do que aos corpos celestes inanimados) um princípio da biologia aris- autor do Convivia parece acusá-lo exatamente por ter feito da filosofia uma
totélica no qual se discernem traços de teologia astral. "serva" da teologia, ao passo que, para ele, esta merece, como qualquer
Mecanismos análogos permitem que o intelecto, único capaz de con- autêntico saber (aqui a donna gentile, consoladora de Boécio, encontra-se
ceber o princípio da indução, se apóie na própria experiência para ultrapassar com essa teologia que é raciocínio sobre a fé mais do que verdadeira "ciência
a simples expectativa daquilo que Ockham denominará os hábitos da natureza divina"), a posição de "rainha" em uma espécie de harém que comporta
e, assim, constituir um saber autêntico acerca das causalidades naturais (por
mais contingentes que sejam em relação à liberdade primeira da onipotên-
várias delas (como as concubinas e as criadas), todas subordinadas à "pom-
ba sem mácula" da pura contemplação 16 . Confirmada pela própria estru-
.•
cia criadora 9 , Em um campo totalmente diferente - no qual a posição es- tura do Paraíso descrita por Dante, seus céus superpostos e por fim esses
cotista é freqüentemente distorcida, desempenhando a inteligência, dessa vez, degraus escalonados a tal ponto que mesmo Beatriz deve ceder o lugar ao

82 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 83


místico Bernardo 17, essa perspectiva se concilia mal com o culto de Aris- por mais estimável que seja, e bastante útil para ordenar as verdades da fé,
tóteles; em contrapartida, se afina bastante bem - com a única exceção para extrair delas todas as conseqüências, continua insuficiente em muitos
da fórmula "ancilar" aplicada à filosofia, mas que não tem nada de des- casos, por exemplo quando se trata de responder filosoficamente à difícil
denhoso já que a Virgem é dita serva de Deus e que o papa se quer servi- questão da eternidade do mundo oposta à novitas rerum 23 , mais geralmen-
dor de seus filhos - com a definição tomista da doctrina sacra como ciência te ainda quando se trata de ultrapassar o fato de que Deus seja para apreen-
teórica que extrai seus princípios da visão beatífica assim como a perspectiva der algo do que ele é. Assim, a referência de Santo Tomás24 às duas demons-
é subalterna à geometria e a música à aritmética 18. trações possíveis da redondeza terrestre - que Duns Escoto25 contestará em
Eis aí justamente um dos pontos em que Duns Escoto - que visa nome do princípio de economia - tem justamente por propósito eliminar
freqüentemente a outros doutores - critica explicitamente o Angélico 19 • a objeção segundo a qual a teologia natural, no sentido aristotélico, forne-
É claro que não para denegrir, como se poderia pensar, o que ele chama ceria de Deus um conhecimento suficiente. Se respondemos que o mesmo
"nossa teologia" (que certamente não é a de Deus e nem mesmo compa- objeto pode ser apreendido segundo dois modos, isso não quer dizer que sejam
rável à dos anjos e dos bem-aventurados), mas porque, com todos os seus de mesmo valor e, no caso considerado, parece que a demonstração do as-
limites, e com o que faz dela essencialmente uma scientia practica, ela re- trologus, que abstrai a matéria, prevalece sobre a do physicus.
pousa nesses princípios próprios, sem que lhe seja necessário se submeter Em várias circunstâncias, especialmente a propósito da prima via
a uma visão normalmente inacessível in via. E apesar das inegáveis dife- tomista, Escoto se deleitou em mostrar a insuficiência da demonstração
renças de ponto de vista e de sensibilidade (mas também de terminologia), "física" porque esta parte das criaturas (contingentes), não das próprias
constatam-se entretanto certos paralelismos e várias convergências entre estruturas da "criabilidade"26. De modo que a sua crítica surpreenderia
Escoto e Tomás, e isso pode ser confirmado, parece-nos, por um breve se justamente a prova astronômica - que repousa na experiência do eclipse
cotejo da controversia inter philosophos et theologos (no prólogo da Or- tal como evocada por Aristóteles nas Anal. posto lI, 2, 90a - não se refe-
dinatio) com o começo das duas Sumas. risse, também ela, às "criaturas", remetendo a um estado de fato cósmico
É verdade que, para o Aquinate - em um universo livremente cria- que, senão para o próprio Aristóteles, ao menos para todo cristão, pode-
do, mas segundo uma lex aeterna que, através de sua "irradiação", se ma- ria ter sido de outra natureza. Mas isso não é tudo: a principal justificati-
nifesta mais ou menos claramente a toda criatura racional 2o , universo tão va da proposta escotista parece ser a de que, com efeito, para o homem
bem ordenado que nenhum valor poderia ser aí modificado sem abalar a persuadido pelas provas físicas da redondeza terrestre, o saber suplemen-
harmonia do todo, pois para fazer um mundo melhor do que o nosso seria tar recebido do astrônomo não seria de forma alguma um conhecimento
necessário transformá-lo inteiramente, como se substitui um instrumento absolutamente necessário (cognitio simpliciter necessaria). Ora, sabemos
musical por um outr0 21 _ , a razão é capaz, por seus próprios meios, de que o mesmo não ocorre quando se trata dessa theologia que é apenas, se-
demonstrar a existência e a unicidade de Deus, até mesmo sua potência gundo o Aquinate, uma parte da filosofia (pars philosophiae) e que por
criadora. Mas Santo Tomás logo especifica que o homem, visto que seu fim isso, tanto para ele quanto para Escoto - é indispensável completar com
último escapa a qualquer apreensão natural, não pode viver sem a revela- uma doctrina sacra que repouse nos fundamentos da fé. O conflito apa-
ção. Não apenas porque os mistérios da Trindade e da Encarnação confun- rente resulta aqui, parece, de fórmulas colhidas, remetendo a uma analo-
dem a razão, mas igualmente porque, mesmo aí onde vias demonstrativas gia mais sedutora do que convincente entre um saber exigido para a sal-
prevêem a existência necessária de uma excellentissima substantia que "trans- vação e, por outro lado, um conhecimento profano concernente à forma
cende todos os inteligíveis"22, nós, que somos, segundo o próprio Aristóte- física deste nosso mundo, conhecimento há muito adquirido e, sem dúvi-
les, como que morcegos cegos diante das realidades mais próximas, alcan- da, mais difundido do que imaginamos entre os homens da Idade Média,
çaríamos, apenas com nossas forças, o que nem mesmo os anjos podem saber, mas que tinha pouca importância para sua vida cotidiana e menos ainda
eles cuja ciência está ultrapassada pela divina mais ainda do que a nossa pela para seus fins sobrenaturais.
angélica, e que a do ignorante pela do sábio? Não há dúvida de que Duns Escoto enfatiza a liberdade criadora de
Mesmo no nível da teologia natural, acessível aos gentios, as verdades Deus, mas a diferença que ele aponta (de modo menos sistemático e me- ~
nos paradoxal do que Ockham) entre potentia absoluta e potentia ordinata ~
só são alcançadas por uma minoria, após um imenso trabalho, à custa de uma
massa de erros que são como o joio no meio do bom grão. Muitos aliás são não era absolutamente estranha ao Aquinate, que a usa bastante sutilmente
impedidos e outros se cansam. Mas sobretudo o saber obtido desse modo, para escapar às armadilhas de uma aporia que já havia colocado Abelardo

84 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 8.1


em perigo: se Deus sabe de antemão e preordena o que irá fazer, seria de Agostinho. Seu erro é o de pretender apreender pelas vias exclusivamente
possível dizer que ele poderia fazer algo diferente do que efetivamente fez? racionais todos os desígnios de um Deus do qual, em seu entender, todas as
Ao que o Angélico responde que, não sendo a vontade de Deus determi- coisas procederiam de modo necessári0 30 , e o de imaginar assim alcançar
nada por isso ou aquilo de forma necessária, - senão talvez ex suppositione a beatitude apenas a partir das exigências e das vias da natureza, despre-
(isto é, em virtude de uma coerência lógica com o resto de suas decisões) zando ou ignorando o mistério da criação e a gratuidade da salvação.
_, "nem sua sabedoria nem sua justiça são determinadas por tal ordem" Todos esses "filósofos", sem distinção, consideram supostamente a
e tem-se o direito de dizer que, segundo sua "potência absoluta", ele pode "natureza" como "perfeita". O que significa que, para eles, a qualquer po-
impor um outro estado de coisas, mas denomina-se "potência ordenada" tência passiva natural deva corresponder algum activum naturale, sem o qual
o que decretou segundo sua "justa vontade"27. seria necessário dizer que a natureza trabalhou em vão. Assim, o homem é
E, por sua vez, se o Sutil recusa colocar em Deus, anteriormente à criação, feito para compreender tudo O que pode ser compreendido, pois as três ciências
um mundo platônico de "Idéias" entendidas como" relações eternas" e "reais" especulativas definidas por Aristóteles cobrem o domínio inteiro do ser. Além
que limitariam de algum modo sua potência absoluta, se - utilizando uma do mais, é apenas do conhecimehto dos princípios que se podem inferir todas
linguagem que erroneamente interpretaríamos em um sentido temporal, pois as conclusões suscetíveis de serem conhecidas (omnes conclusiones scibiles)
trata-se, antes, de níveis por assim dizer estruturais - ele admite comO prová- (n. 7-10). Não se está longe dos argumentos de Dante e, para além do que se
vel que a criatura só seja "comparada" a um "inteligível" (isto é, introduzida costuma chamar "averroísmo" (ou "aristotelismo heterodoxo"), reconhe-
em um sistema de relações que podem servir como regras ao intelecto hu- ce-se todo o movimento de "laicização" que as condenações de Tempier ali-
mano) em um "instante" posterior ao da criação, entendido como aquele em avam deploravelmente a certas teses tomistas. É igualmente tentador, em um
que "Deus produz a pedra e seu ser inteligível" (Deus producit lapidem in campo vizinho, evocar o Roman de la Rose e a posição naturalista de João
esse intelligibile) (a relação, nesse nível, existindo apenas na pedra assim "inte- de Meun que, da simples presença dos órgãos genitais, extrai não o apelo in-
ligida" à intelecção divina, não em sentido inverso), deve-se destacar que o condicionado ao prazer, mas a certeza, no entanto, de que um uso máximo
que ele considera como primum instans, "anterior" (não cronológica mas da sexualidade, alcançando maior fecundidade, realiza os desejos divinos.
logicamente) a qualquer produção de coisa e de idéia é muito explicitamente Face a essas pretensões, sem negar a consistência e o valor próprio do natu-
28
aquele no qual Deus intelligit essentiam suam sub ratione mere absoluta • ral, o papel dos "teólogos" é o de denunciar os defeetus, logo a necessidade
Só com essa fórmula já se poderia eliminar, de uma vez por todas (mas da graça e o apelo de uma perfeição sobrenatural (n.S). Mas para isso eles
não se ousa esperá-lo), todas as exposições caricaturais que, mesmo em não poderiam argumentar através de puras razões naturais, e suas persua-
autores mais sérios como Landry, pretendem reduzir o Deus escotista a um siones comportam necessariamente premissas de fé, pois pro statu isto nada
tirano arbitrário e fazer de sua obra um simples "mosaico" de essências mais lógico, na verdade, do que a posição dos "filósofos".
justapostas. A esse respeito, dentre tantas outras referências, lembremos Contra eles, o vigor da argumentação escotista provém dessa própria
o significativo texto no qual- com o único senão de que as verdades di- noção de status viae. Aqui neste mundo o homem não pode conhecer "dis-
tas eternas só o poderiam ser secundum quid em virtude da contingência tintamente", mas somente pressentir, que o seu verdadeiro fim é uma con-
que afeta todo o criado e porque elas são somente os objecta secundaria templação que ultrapassa o sensível e deve durar eternamente. Esse fim
desse intelecto divino que é o único a merecer ser chamado de uma "luz corresponde entretanto à sua verdadeira natureza, e não comporta, con-
eterna" - Duns Escoto não teme afirmar, com Santo Agostinho, que ve- seqüentemente, nenhum "salto" de tipo kierkegaardiano, assim como a con-
mos "verdades infalíveis" em "regras eternas,,29. dição pecadora não provoca uma total degradação da natureza. Desse
Na "controvérsia entre filósofos e teólogos", Escoto não coloca em modo, o viator, apesar da referência dos "filósofos" à mens agostiniana,
cena, bem entendido, epicuristas, céticos ou mesmo, a não ser com raras não pode conhecer, sob sua "razão própria e especial", a disposição que
exceções, discute diretamente com Platão ou Aristóteles. Seus supostos inter- o ordena à beatitude sobrenatural (n.38). Tem-se aqui o que distingue essa
locutores são, antes, como os do Contra Gentes, muçulmanos, judeus ou posição - em que o sobrenatural é de algum modo natural, apenas ocul-
cristãos influenciados pela filosofia árabe (como já no século XII o "filóso- tado pelo estatuto de viajante - de uma outra que admite dois níveis
fo" do Diálogo de Abelardo, mas aqui a vontade polêmica prevalece sobre superpostos de eudemonia e de verdadeira contemplação. Acrescentemos

o irenismo). Não se trata de ateus nem de idólatras; esses adversários fa- que, na hipótese de o homem, por si mesmo, conhecer esse fim superior,
lam de "natureza criada" e invocam mesmo, eventualmente, certos temas ele não poderia alcançá-lo por suas próprias forças.

Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 87


86
Essa ignorância do estatuto próprio à natura fapsa tem também por gumento dialético que retomará exaustivamente o protervus das discussões
efeito impedir que os humanos que se apegam apenas à natureza conhe- ockhamistas), Duns Escoto responde, muito significativamente, que con-
çam, a priori ou a posteriori, a verdadeira estrutura dos anjos; não se ima- vém mais à perfeição divina comunicar à sua criatura uma atividade pró-
ginam "absurdamente" outras naturezas separadas a não ser os regentes pria, a cognitio imperfecta que representa a fé, precedendo assim e prepa-
dos astros, que são tidos como espontaneamente bem-aventurados e im- rando a cognitio perfecta ad quam fina/iter ordinatum (n.50), o que se apro-
pecáveis. Pensa-se igualmente que eles agem de modo necessário e que seus xima bastante da fides quaerens intellectum e confirma as aproximações já
movimentos determinam nossos destinos. O mesmo erro faz com que seja observadas com os temas anselmianos. Assim se justifica igualmente o papel
difícil admitir como possível que a essência divina se comunique a três dos predicantes e ilustradores da fé, substitutos necessários do objeto sobre-
pessoas, pois neste mundo o ser infinito só pode ser alcançado através de natural, encarregados de transmitir o conhecimento imperfeito "virtualmente
conceitos imperfeitos, comuns ao Criador e à criatura (n.49). contido no conhecimento perfeito cuja causa seria o objeto conhecido em
Nada disso está em contradição radical com as posições tomistas (a si mesmo" (n.63). E no agente imperfeito já se manifesta uma "potência
não ser sem dúvida a idéia de que o recurso necessário ao sentido só é obediencial" que inclina o intelecto para a verdade que o ultrapassa (n.92).
imposto ao nosso intelecto pro stato isto, mas esse problema técnico toca Do mesmo modo - e é nessa ambigüidade um tanto surpreendente
apenas indiretamente no problema das relações entre a fé e a razão). Para que é necessário fechar, senão concluir, essas modestas reflexões - , a pró-
melhor mostrar que as diferenças entre os dois métodos de pensamento pria noção de status iste, especialmente como detalhada na Ordinatio 3 3,
só se referem afinal a pontos secundários (pelo menos na nossa presente longe de ser somente uma conseqüência enfraquecedora e humilhante da
perspectiva), seria necessário ter a oportunidade de enfrentar algumas das primeira falta, remete explicitamente a uma "ordem" desejada por Deus,
difíceis questões que, apesar de tantos excelentes estudos, continua a sus- uma stabilis permanentia firmata fegibus sapientiae. Conseqüentemente,
citar o uso escotista de "nossa metafísica", a serviço de demonstrações pro- algo inteiramente diverso da sombra inconsistente que o Eclesiastes des-
priamente "naturais": definição da analogia e da univocidade, da distin- crevia. Escoto parece hesitar quanto às razões desse "estatuto". Duas hi-
ção formal e dos pares de transcendentais, demonstração de Deus pela póteses podem ser invocadas: uma, que é freqüentemente referida e que é
passagem da possibilidade à existência atual, reformulação original da a punição do pecado original; a outra, bastante negligenciada, pela qual
argumentação anselmiana, mas, sobretudo, a maneira pela qual Escoto re- reencontramos o tema da sinergia entre causas subordinadas: o valor de
considera, tanto no De primo principio 3l quanto na Ordinatio 32 , a noção uma concordância efetiva entre as operações das diversas potências do
de ordem e a rejeição de tudo o que, "vão", não seria "nem fim nem su- homem. O que sugere igualmente que de um mal possa sair um bem, mas
bordinado a um fim". igualmente que os sentidos não estão excluídos de uma cooperação na qual
Gostaríamos sobretudo de reter o que, na pars prima do Prologus. a razão e a fé desempenham, cada uma, seu papel positivo.
afirma vigorosamente os direitos positivos da natureza e da razão. É as-
sim que o próprio dom da graça só pode ser conferido a uma natureza
capaz de recebê-lo, em virtude de uma ratio specialis que possui, com efei-
NOTAS
to, a criatura humana em relação ao sobrenatural, e que somente nossa
condição nos impede de aprender como ral (n.32). Melhor dizendo: para
1 F. Guimet, "Conformité à la droite raison et possibilité surnaturelle de la charité",
Escoto, a excelência mesma da natureza humana requer seu direcionamen- in De doctrina Ioannis Duns Scoti, III p. S39-597, Roma, 1968.
to a uma perfeição superior que, longe de aviltá-la, corresponde justamen- 2 Cf. "Lei natural e contrato social segundo Duns Escoto", incluído neste volu-
te à sua verdadeira dignidade (n.74). No plano da criação se impõe, as- me. No mesmo sentido, mas sobretudo comparativamente a Santo Tomás, Angelo Mar-
sim, a necessidade de um "agente dispositivo" capaz de conduzir o ho- chesi, "L'Aurorita politica c la legge naturale nel pcnsiero di Giovanni Duns Scato et di
mem a seu destino final e, conseqüentemente, a necessidade de uma cogni- s. Thomaso d 'Aquino", loc. cito II p. 671-682.
3 Duns Escoto, Ordinatiu, III d.1 q. n.17; Vives XIV 45a.
tio surnaturalis que, mesmo sem o acidente do pecado, não seria menos
4 Ordinatio, IV d. 26 q. uno n.7; Vives XIV 139b.
requerida do que a ostentação terrestre de Deus na Encarnação do Ver- 5 Ordinatio 11 d. 3 p. 1 q. 5-6 n.192. ~
bo e na missão do Espírito (n.49). 6 Ordinatio I d. 3 p. 4 q. 2 n. 487. •
E, se se objeta que Deus, o "agente perfeito", poderia imediata e di- 7 Ihid. n. 487. Cf." De primo principio III c.2, 40-41.
retamente reparar a criatura de suas imperfeições e de sua degradação (ar- 8 Ibid. n. 507. p..lOO.

88 Ma urice de Gandillac Gêneses da Modernidade 89


, Cf. In Met., I, 4, 5 sq. VI.b. LEI NATURAL E CONTRATO
10 Ordinatio, 11, d.39, q. 2.
SOCIAL SEGUNDO DUNS ESCOTO"
11 Cf. E. Longpré, La philosophie du Bienheureux Duns Seot, Paris 1924, p. 209.
12 Dante, La Divina Commedia, lnf. IV 131. Cf. Etienne Gilson, Dante et la phi-
losophie, Paris 1939. E igualmente "Dupla face da Filosofia no Convivio de Dante",
incluído neste volume. Felizmente já se foi o tempo em que, a partir de alguns textos isola-
13 De coe/o, I, 4, 27a. dos e mal compreendidos, críticos impertinentes afirmavam ver no esco-
14 De monarchia, I, 3 _ texto bastante enigmático devido à sua referência final tismo os germes de uma perigosa anarquia social e a justificativa para o
à doutrina averroísta, entretanto condenada explicitamente em Purgo XXV 63-66.
despotismo político. Como observa um historiador (que entretanto não tem
15 Conv. IV, 6.
16 Conv., 11,14.
nenhuma simpatia pelo Doutor sutil) 1,a exigência ontológica do "calen-
17 Par., XXXI, 94 sq:
dário eclesiástico" e a definição da natura como entitas absoluta ultra partes
18 Sumo Theol. Ia q. 1 a. 2 resp. excluem, de saída, qualquer visão "atomista" da comunidade humana 2 •
19 Reportatia, prol. 113; Lectura, prol. p.3, g.l, 0.119-121. Duns Escoto certamente não imagina que a convergência dos instintos
20 Sumo Theol. Ia I1ae q.93 a.2 resp naturais seja suficiente para instituir uma sociedade harmoniosa, mas não
21 Ibid. Ia q.2S a.6 ad 3 um
conhecemos nenhum filósofo sério que tenha jamais sustentado algo des-
22 Contra Gentes la, 3.
se tipo. Platão enfatiza, tanto quanto Aristóteles, o processo de decompo-
23 Sumo Theol., Ia, q. 46 a. 2
24 Ibid. Ia, q. 1 a. 1 ad 2 um. sição que ameaça qualquer politeia; para ele, a cidade humana precisa de
25 Ord. prol. p.l q. uno 0.79. uma proteção constante dos deuses ou da utópica intervenção de sábios
26 Ord. Ia, d. 2 q. 1-2, n.41. que desçam mais uma vez à caverna após um estágio prolongado em um
27 Sumo Theol., Ia, q. 25. 5 ad 1 um. mundo por detrás 3 . Aristóteles enfatiza os riscos próprios a todos os regi-
28 Ordinatio, I d. 35 q. uno n. 32.
mes políticos, e mesmo que lhe parece o menos ruim não é senão um pre-
29 Ordinatio I d. 3 p. 1 q. 4 n. 261-262.
30 Ordinatio prol. p. 1 q. uno o. 18.
cário compromisso4 .
31 Especialmen~e 111, concl. 19.
Conseqüentemente, não basta absolutamente definir o homem (an-
32 Por exemplo, prol. p.l q. 1 n. 75. thropos) como animal político (gnou politikon) para solucionar os pro-
33 Ordinatio I d. 3 p. 1 q. 3 n. 187. blemas práticos que coloca, dia após dia, a adaptação desse animal social
às exigências objetivas do bem comum. É verdade que Duns Escoto fala
às vezes uma linguagem menos aristotélica do que Santo Tomás 5 ; contu-
do, os dois autores concordam, com algumas variações, ao reconhecerem
a importância de determinadas decisões livres, de ordem prudencial, de ne-
nhum modo arbitrárias em seu princípio ou em seu fim, já que visam à ma-
nutenção de uma ordem sempre ameaçada, e obedecem, dentro do possí-
vel, ao ditame da reta razão. O papel que o mestre franciscano atribui à
idéia de contrato livremente aceito não implica de forma alguma - como
tentaremos mostrar - que a sociedade humana se reduza a uma simples
reunião de indivíduos, fundada nas eventualidades da força ou em um frio
cálculo de interesses esgoístas. Se o pacto vem substituir uma harmonia
original- que era concebível apenas in statu innocentia, e cuja estrutura
familiar não podia manter os traços subsistentes em escala suficiente para
o desenvolvimento da humanidade - é justamente para que, a despeito


.. Comunicação apresentada no Congresso Escotista Internacional, em Oxford e
em Edimburgo em setembro de 1966 (posteriormente publicada em Studia schoLastico-
scotistica, Roma 1968).

90 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 91


de sua degradação, as pessoas livres que se constituem em corpo político Santo Tomás aceita perfeitamente a distinção tradicional entre as duas
possam viver em condições menos ruins, considerando-se as "circunstân- "Tábuas da Lei". A primeira Tábua, que concerne aos deveres em relação
cias", em uma comunidade humana, ela mesma definida da forma mais a Deus, visa "ao bem comum e final de todas as coisas", ao passo que a
clássica, como "disposição conveniente de pessoas iguais e desiguais" (per- segunda congrega os preceitos exigidos pela "ordem da justiça, tal como
sonarum parium et imparium congrua dispositio)6. deve ser observada entre os homens". Mas nos dois casos o Aquinate reco-
O pecado de Adão não é, todavia, o único motivo que impede Duns nhece uma mesma intentio legislatoris; as duas Tábuas relacionam-se pois,
Escoto de considerar sem restrições essa" disposição conveniente" como para ele, ao mesmo direito natural e, apesar de certas aparências 11 , não con-
uma realidade própria e simplesmente "natural". Às conseqüências espe- têm senão obrigações "indispensáveis". Duns Escoto, ao contrário, recusa
cíficas da primeira desobediência somam-se, com efeito, o caráter finito e situar no quadro de uma única e mesma lex as decisões divinas que, depen-
contingente da criatura como tal, a união, aqui neste mundo sempre pre- dendo diretamente da natureza de um Ser primeiro e infinito, foram impostas
cária, entre a alma e o corpo; enfim - e sobretudo - a irredutível auto- ao Criador em qualquer hipótese e, por outro lado, aquelas que se referem
nomia da pessoa, essa ultima so/itudo da liberdade, capaz de aderir ou de ao contingente e permanecem por isso suscetíveis a certas violações 12 . O fato
se recusar ao que lhe dita a reta razã0 7 . Os dois primeiros motivos são de que, nesse sentido, os preceitos da segunda Tábua não sejam propria-
essencialmente extraídos da Escritura, ainda que os platônicos já os tives- mente de lege naturae não significa que resultem de uma vontade arbitrá-
sem mais ou menos pressentido; o terceiro tinha alcançado, neles, tanta ria. Mesmo em Ockham - que, atribuindo uma verdadeira natureza ape-
importância que corria o risco de desembocar em um dualismo que des- nas à res individua, levará mais longe a tese voluntarista - não é certo que
mente, para Duns Escoto, o fato central da Encarnação, com seu valor esse modo de raciocínio chegue à negação de qualquer hierarquia objetiva
próprio, independente de iure da Redenção como tal 8 ; o quarto não era de valores. Para Duns Escoto, de qualquer modo - e o Venerabilis Inceptor
certamente ignorado por autores antigos que haviam definido a lex na- não deixará justamente de criticar algumas de suas fórmulas porque pen-
turalis, mas a dupla reflexão dos moralistas e teólogos devia lhe assegurar sará (erroneamente) que implicariam uma limitação da potentia absoluta
um valor novo (ainda que desconhecido por vezes pelos doutores que des- -, a lei divina jamais comanda algum ato que não seja "bom" por si mes-
tacam insistentemente o primado da inteligência). mo, senão de forma incondicional, ao menos nas circunstâncias ou segun-
Duns Escoto jamais comentou de forma sistemática os textos polí- do o estatuto no qual ela o prescreve à liberdade humana13.
ticos e econômicos de Aristóteles; é de modo incidental que ele retoma, Se o Doutor sutil se recusa, entretanto, a considerar como pertencente
quanto às questões concernentes aos sacramentos, no livro IV das Sen- ao ius naturale na sua mais estrita acepção os preceitos da segunda Tá-
tenças, vários problemas referentes ao direito natural e à lei positiva, às bua, é sem dúvida porque estes concernem às relações entre dois seres cria-
modalidades do casamento e da servidão, às origens da autoridade pa- dos, que não apenas teriam podido ser (por livre decisão divina) diferen-
terna e legisladora, às normas da apropriação e da troca. Por mais alusi- tes do que foram, mas que se encontram de fato seriamente alterados no
vas que sejam, essas observações - que se apóiam em uma cultura jurí- desdobramento de sua desobediência. A recusa talvez se deva também a
dica bastante importante - fornecem os elementos de uma doutrina de- uma razão ainda mais fundamental, visto que se prende à essência mesma
veras coerente. Deve-se ainda lembrar, para que se tenha uma interpre- desse querer divino, que Duns Escoto define como uma "vida", de modo
tação correta, que ius naturae não é, em sua obra, diferenciado de ius que em nenhum caso e de maneira alguma poderia estar submetida a ne-
gentium, e que o emprego desse termo se situa em uma perspectiva teo- nhuma "necessidade" limitadora de sua liberdade 14 . Seguramente Deus
lógica (e metafísica) na qual a "natureza" não pode ter exatamente o estaria se contradizendo se quisesse algo diferente do que o implicado por
mesmo sentido nem desempenhar completamente o mesmo papel que em sua própria bonitas; seria extremamente inconveniente sustentar, por exem-
Santo Tomás. A diferença aparece mais nitidamente a propósito especial- plo, como fará Ockham (em um modo dialético), que Deus "podia" pres-
mente da questão clássica Ultrum omnia praecepta decalogi sint de lege crever ao homem a adoração de um asno. No nível da primeira Tábua,
naturae: a resposta negativa do doutor franciscan0 9 se opõe, indubitavel- isto é, em relação à "Natureza incriada", nenhuma violação é racional-
mente, à tese tomista 10. Qualquer esforço de concordismo desfiguraria o mente concebível. E, entretanto, mesmo aí, é livremente que Deus decide 15 , .;
pensamento dos dois mestres; é preciso perceber, entretanto, em que ní- e a mais perfeita ratio é sempre, em relação à voluntas, apenas uma po- •
vel está situada smi' divergência e qual é o verdadeiro alcance das conclu- tência "ostensiva"16. O que interessa, pois, é que mesmo quando ordena
sões práticas que ela acarreta. atos que teriam sido bons em qualquer hipótese, ex solo obiecto 17, a deci-

Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 93


92
são divina é comunicada na forma de preceitos; a fortiori, quando se apli- ao papel positivo das livres decisões contratuais), Duns Escoto se recusa a
ca às relações inter-humanas e prescreve apenas atos de uma certa manei- fazer depender de simples exigências do ius naturale (entendido em sua mais
ra "indiferentes", isto é, suscetíveis de serem "bons ou maus segundo as estrita acepção) normas familiares, econômicas e cívicas que poderiam ter
circunstâncias"18. Ao destacar o caráter voluntário dos decretos "indis- assumidQ historicamente diversas formas e que não poderiam, por conseguin-
pensáveis" - e mesmo quando admite que, sem os ter colocado, Deus se te, ser de'duzidas de um princípio "absolutamente necessário em virtude de
contradisse - , Duns Escoto indica que os preceitos que se aplicam ao con- uma razão natural e de maneira evidente" (simpliciter necessarium ex ratione
tingente não são por isso simples caprichos que escapariam a qualquer jus- naturali evidenter)2o. E, entretanto, ele estende a noção de direito natural
tificativa racional, ligada a uma análise da "natureza" como tal. àquilo que, em circunstâncias determinadas e sem ser incondicionalmente
No início de sua argumentação contra a tese tomista acerca das dis- necessário, se manifesta como "mais conforme à lei da natureza,,21.
pensationes, Duns Escoro define como sendo de direito natural, no senti-
do mais rigoroso do termo, qualquer princípio necessário notum ex terminis Os elementos de teoria política que podem ser extraídos de alguns textos
e qualquer conclusão imposta necessariamente por tal princípio. Tomada escotistas, simultaneamente curtos e densos, concernentes à origem da auc-
literalmente, essa fórmula reduz consideravelmente o domínio da lex na- toritas legislatoris 22 só assumem seu pleno sentido através de um confron-
turae, visto que só infringem formalmente o princípio de não-contradição to prévio de duas instituições sociais essenciais - família e cidade _ com
os atos livres que seriam incompatíveis com a própria essência do Ser pri- esses diversos aspectos, tão matizados, da lex naturae. O paradoxo é aqui
meiro e infinito. De fato, o doutor franciscano estende, por diversas ve- o fato de o pacto social, descrito como tardio e livremente aceito pelos pró-
zes, o campo de aplicação da "lei natural". Vários textos sugerem parti- prios homens, se acrescentar, sem negá-la, a uma "autoridade paterna" que
cularmente que a natureza "criada" - por exemplo, a de Adão antes da parece ser imposta desde a origem e de maneira incondicional. Todavia, o
queda - pode servir de base a uma inferência legítima quanto a determi- estatuto dos dominia distintos, que leva progressivamente os homens a se
nadas obrigações concretas de caráter social, com a condição, bem enten- agregarem em comunidades cívicas (e não mais apenas familiares), aparece,
dido, de que se determine sempre, por um lado, que essa natureza teria ele mesmo, como o substituto de um estatuto primitivo de posse indistinta
podido ser diferente por ordem da vontade divina e, por outro, que as regras cujo caráter plenamente "natural" o Doutor sutil destaca. De modo que se
assim inferidas (sejam ou não explicitamente comunicadas sob forma de veria facilmente em toda essa evolução (condicionada pelas conseqüências
preceitos, enquanto leges divinae) só valem incondicionalmente em circuns- do pecado) uma passagem (em parte voluntária, em parte imposta) da lei
tâncias determinadas. Tendo essas circunstâncias se modificado após o de natureza à lei positiva, da espontaneidade inocente (ou da obediência
pecado e fora do Paraíso, a lei pôde ser (no caso do casamento) reiterada primitiva) à convenção arbitrária, se ao mesmo tempo Duns Escoto não
e confirmada, ou, ao contrário (no que concerne à "comunidade das pos- marcasse, com notável insistência, que, para ele, a instituição matrimonial,
ses"), revogada. fonte aparente de uma auctoritas paterna reconhecida como válida sobre
De qualquer modo, nos limites de sua validade, tal lei possui um con- todos os estatutos, pertencesse entretanto ela mesma ao ius naturale ape-
teúdo "natural", mais ou menos claramente demonstrável pela reta razão. nas em um sentido relativo e de forma derivada.
,":, E também, para um estatuto e um tempo definidos, ela não admite - re- Para Santo Tomás, que segue aqui bem de perto seu mestre Aristóte-
~,:'
gulariter, isto é, sem intervencão sobrenatural- nenhuma verdadeira dis- les, o caráter "natural" do casamento não é senão um caso privilegiado desse
pensatia. É preciso prestar atenção aos advérbios ou expressões adverbiais instinto que leva o homem a viver em sociedade; o fato de o "Filósofo" ter
(tais como propriissime e secundario, ou primo e secundo sensu) que espe- afirmado que somos animais políticos faz com que daí resulte a fortiori que
cificam aqui ou ali o uso (mais amplo ou mais restrito) da expressão lex na- sejamos animalia coniugalia. Os dois domínios estão tão ligados que o se-
turae. Ao distinguir o caso do fogo, que se eleva rumo ao céu pela necessi- gundo fim do casamento se define como uma "certa associação do homem
dade de sua essência, e o da criatura dotada de livre arbítrio, "inclinada" a e da mulher" em virtude da diferença de suas competências e de suas tare-
se reproduzir e a coabitar pacificamente com seus semelhantes, Santo To- fas naturais, e segundo um princípio de complementaridade que está na base
más qualificava sem restrições esses dois movimentos como "naturais" e não de qualquer coabitação 23 . O encaminhamento de Duns Escoto é bem dife-
hesitava em estender essa "naturalidade" às modalidades constitutivas do rente, visto que, para ele, a instituição da cidade propriamente dita é bem
casamento legítimo e da ordem política 19. Mais sensível aos aspectos con- mais tardia e contingente do que a da família, e é por isso que, para grande
tingentes do real criado (mas também, como veremos melhor mais adiante, indignação de certos comentadores, ele nunca se refere à famosa fórmula

94 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 95


de Aristóteles. Porém, ainda que reconheça o caráter natural, senão do pró- Orientado, assim, para objetivos que o bem comum requer, esse
prio ato carnal, pelo menos de uma vontade procriadora da qual esse ato é mandamento divino nada tem de arbitrário; dirige-se à reta razão do ho-
- de potentia ordinata - a condição necessária, considera sobretudo o mem e só faz guiar para um contrato eqüitativo a liberdade de duas von-
casamento na dupla perspectiva (cuja própria dualidade é paradoxal ape- tades. Pode-se duvidar que os contratantes estejam por si mesmos liga-
nas aparentemente) de uma lei divina positiva e de um livre contrato de troca dos por uma promessa irrevogável; na falta de uma "lei de natureza" ime-
(que, de certo modo, prefigura o pacto social). diatamente impositiva, a "lei positiva humana" permaneceria insuficien-
O Doutor sutil aceita a fórmula de Pedro Lombardo, que vê na ins- te (pois os príncipes pensam com mais freqüência no bem carnal da ci-
tituição matrimonial uma lei ad officium, promulgada desde a criação de dade do que no destino espiritual das pessoas); convém que uma "lei
Eva "a fim de que a natureza se multiplicasse". Mas ele logo determina positiva divina" forneça uma norma segura ao livre contractus (ou simul
que querer engendrar um semelhante é para o homem um actus rectus tractus duarum voluntatum)27 e o defina como perpetua adhaesio28 , Com
apenas circumstantionabilis. O que quer que tenham pensado certos he- o Evangelho, o pacto conjugal será elevado à categoria de sacramento,
reges - e o catarismo não era uma lembrança muito longínqua na época mas, ao mesmo tempo, o apelo a uma mais nobre perfeição - sem des-
em que contudo o hino de um João de Meung à fecundidade representava valorizar a figura carnal da união espiritual entre o Cristo e a Igreja 29 _
um perigo mais atual - , o ato procriador não é de se malus pois, ainda frisará o caráter "segundo" de um estado lícito (e santificado), no inte-
que não tivesse perdido sua imortalidade inicial, o homem devia "comu- rior de uma sociedade na qual os mais dignos são chamados à vocação
° °
nicar sua perfeição". Após pecado, porém, meio dessa comunicação do celibato voluntári0 30 .
se tornou suspeito e arriscado (no próprio momento em que, paradoxal- Instituídas antes de tudo para assegurar a sobrevivência do povo elei-
mente, se revela mais necessário). Se o preceito de crescer e de multiplicar to, as antigas leis do casamento apresentavam, assim, um caráter "relati-
era, no Paraíso, senão de direito natural propriissime (pois Deus teria po- vo", claramente confirmado por todas as "revogações" freqüentemente
dido, de potentia absoluta, assegurar por outras vias a extensão de uma assinaladas pelos Padres: incesto inevitável entre os filhos do primeiro casal
humanidade ainda inocente), pelo menos bem próximo de uma lei incon- (que parece ser evidente para o narrador inspirado e ao qual Duns Escoto
dicional, o mesmo não ocorre quanto às reiterações da mesma ordem após não dedica nenhum comentário); episódio escabroso das filhas de Lot em-
a queda. São Paulo insistirá no tema da "permissão" concedida em vistas briagando seu pai para se unirem a ele em seu sono e, sem torná-lo peca-
de um mal menor. Nos primeiros tempos da história, o objetivo essencial dor, assegurarem entretanto uma descendência ao único sobrevivente de
da instituição matrimonial era a fecundidade; mas aos seres pecadores, que Sodoma (o Doutor sutil tampouco se detém em um caso que não pode servir
perderam sua "perfeição" de criaturas ad imaginem et similitudinem, a de "precedente" e que textos posteriores da Escritura parecem implicita-
união carnal só é doravante prescrita em uma perspectiva na qual se asso- mente desaprovar 31 ); aparecimento da bigamia com Lamech (é verdade que
cia de fato à dura lei do trabalho e às dores do parto. em uma narrativa na qual o personagem surge como o descendente de Caim,
O casamento, sem dúvida um remédio à conscupiscência carnal, mas Gên. 4, 19, e não se identifica necessariamente ao pai de Noé); mas so-
antes de tudo (desde o exílio do Paraíso, e novamente após o dilúvio) ime- bretudo generalização do concubinato na época dos Patriarcas, e tolerân-
diata necessidade social, perdeu por isso mesmo uma parte de sua harmo- cia mosaica do repúdio para evitar o mal maior do uxoricídi0 32 . Todas
niosa finalidade original. Pertence ainda ao ius naturale (entendido em um essas "dispensas" permanecem "circunstanciais" e só se justificam porque
sentido amplo), mas na qualidade de "secundário", e sua principal justifi- a oportunidade de uma descendência numerosa varia de acordo com os
cativa é doravante o preceito divino. É por isso que Deus o reiterou após tempos e lugares 33 . Deve-se enfatizar que em nenhum caso o mestre fran-
o pecado, em duas ocasiões (Gén.3, 6; 91-7), não apenas porque toda lei, ciscano admite que a lei de justiça, imanente ao contrato conjugal, tenha
mesmo "consonante com a reta razão", é melhor imposta quando co- podido ser intrinsecamente violada, a despeito das revogações examina-
municada pela autoridade suprema2 4, mas sobretudo porque apenas a das pelo Lombardo, na distinção 33 do livro IV das Sentenças, A promes-
monogamia e a indissolubilidade tornam realmente moral aquilo que corre sa através da qual os esposos trocam mutuamente seus corpos requer, com
o risco, desde a queda, de se reduzir, de fato, senão em direito, ao encon-
tro de dois desejos25. Por não estar destinada a um fim mais nobre, a união
efeito, um mínimo de "igualdade", na qual Duns Escoto insiste com um
rigor bem jurídico. Ora, se a principal finalidade do casamento é a da pro-

dos sexos degenera facilmente em vaga coniunctio, e essa promiscuidade criação, pode-se admitir que nesse aspecto o corpo do marido vale mais
prejudica conjuntamente a criança, a família e a cidade 26 . que o da mulher, visto que ele pode tornar mães várias mulheres ao mes-

96 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 97


mo tempo; em "justiça estrita", a poligamia teria então sido "possível" no
Paraíso, isto é, lá onde a multiplicação de uma natureza ainda inocente seria
imaginar nenhuma circunstância na qual se imporia para bem comum uma°
pluralidade de maridos, o que não apenas seria totalmente inútil, mas que
a única razão natural do preceito divino. Hipótese fantástica, contudo, pois transgridiria duplamente a aequitas da commutatio, quer se trate da primeira
não se podia temer esterilidade, dilúvio, doença ou mesmo morte; nada ou da segunda finalidade do casamento36.
impunha, assim, uma troca (em si mesma eqüitativa) entre um corpus Ainda que seja, também ela, teoricamente concebível em relação à
maioris valoris e vários corpora minoris valoris. onipotência divina, a hipótese de um estatuto humano no qual as crian-
Após a queda, o problema é bem diferente. A segunda justificativa do ças seriam dispensadas de obedecer a seus pais parece igualmente fantás-
casamento (pro fornicatione vitanJa) exige, com efeito, a igualdade de "valor" tica. De fato, o poder paterno foi imposto desde a origem; a obediência
entre o corpo do homem e o da mulher e, do ponto de vista do debitum con- aos pais é um ato "justo segundo a lei da natureza". A Lei mosaica e a lei
iugale, não se pode duvidar que o harém lesa seriamente os direitos de cada do Cristo não fazem senão "confirmá-la "37. Duns Escoto ignora eviden-
uma das esposas. Mas essa verdade, bem clara na época em que nosso dou- temente a existência de sociedades matriarcais fortemente organizadas e,
tor escreve, o era certamente menos na perspectiva histórica do Antigo T es- ainda que evoque sem separá-las a autoridade do pai e a da mãe, é, bem
tamento. A salvaguarda imediata do povo privilegiado exigia que a procriação entendido, em uma perspectiva patriarcal que considera a auctoritas pa-
fosse inequivocamente a "finalidade principal" do casamento. É por isso que, terna. Qualquer que tenha sido o papel por ela desempenhado nos primeiros
ao instituir desde a origem a commutatio unius cum uno, somente confor- tempos da humanidade, não lhe parece suficiente para constituir, entre-
::1 me com a "justiça completa", Deus concede aos Patriarcas, ad maiorem mu/- tanto, uma autêntica respublica, e é então que ele enCOntra o problema do
tiplicationem cultorum Dei34 , determinadas dispensas úteis ao bem comum. consensus e da electio.
Agora, porém, que a verdadeira fé foi propagada (e o casamento re-
conhecido como sacramento), como tais revogações são ainda possíveis? No contexto em que se apresenta aqui - a propósito do dever de
Seriam então certamente necessárias justificativas referentes a uma con- restituição - , essa questão está ligada à dos dominia e à da passagem de
juntura excepcional mas, em direito natural, nada impede que uma socie- um estatuto paradisíaco, no qual tudo era comum de direito (com exce-
dade cristã se encontre coagida por alguma catástrofe a restabelecer pro- ção, é claro, das esposas, que são personae e não res), a um estatuto de
visoriamente antigas tolerâncias: "Se ocorresse que, como conseqüência pecado que implica a divisão das posses e dos poderes. Ainda que a auto-
de guerra, massacre ou epidemia, um grande número de homens tivesse ridade paterna se enCOntre confirmada após a falta e sobreviva (em virtu-
sucumbido ao passo que um número maior de mulheres tivesse sobrevivi- de de uma necessidade primordial) a todas as vicissitudes da sociedade
do, a bigamia poderia então ser lícita em estrita justiça comutativa, e as humana, a comunidade de terras e de rebanhos se torna, ao contrário,
mulheres, por sua vez, deveriam querer fazer a troca de seu corpo com os impraticável fora do Paraíso. Sem precisar aqui em que textos ele se apóia
homens plus pro minore quanto ao segundo fim, sendo a troca, todavia, (de acordo com outras alusões, porém, podemos pensar nas partilhas bí-
equivalente à primeira; e não haveria aí erro a não ser o desse complemento blicas, implícitas entre os filhos de Noé - Gên. 11, 32 - e explícitas en-
de justiça que vem da aprovação divina, a qual seria talvez concedida, e
,.'", tre Abraão e Lot ou entre Esaú e Jacó, que "tinham bens muito grandes
~:, especialmente revelada, à Igreja"35. para poderem habitar juntos" - Gên. 12, 6 e 36, 7), Duns Escoto admite
A hipótese é bastante improvável para que sejamos tentados a ver nesse que o direito igual dos homens a desfrutar em comum todos os recursos
raciocínio o exemplo de uma dessas situações-limite que servem, em Duns da terra foi "revogado" pelo próprio Deus, COmo incompatível com um
Escoto, à análise formal das estruturas e que permitem distinguir com par- estatuto no qual a indistinção acarretou mais injustiças do que a apropria-
ticular precisão a potentia ordinata da potentia absoluta. A última frase su- ção individual. Sem essa circunstância ele foi, entretanto, imposto como
gere, contudo, que não se trata de pura e simples dialética. O retorno à que de si mesmo e independentemente de qualquer prescrição positiva.
poligamia não seria, em todo caso, lícito, a não ser após notificação da
dispensa pela via hierárquica, e esta mesma suporia uma revelação parti-
Santo Agostinho via aí uma lex divina ao passo que alguns juristas apre- °
sentam COmo [ex naturae.
cular. Deve-se notar a insistência com a qual o mestre franciscano enfatiza Na Ordinatio, o mestre franciscano parece considerar as duas fór-
que a troca dos corpos permanece submetida ao máximo de igualdade possí- mulas como praticamente equivalentes 38, Sem que sejamos autorizados por
vel. É por isso que, se não é sem dúvida "impossível" em si (quer dizer, isso, e nós sabemos por que, a considerar essa quase-identificação no sen-
contraditório) que Deus nunca autorize a biviria, não se pode humanamente tido que lhe atribuem os tomistas. À primeira vista, o texto da Reportatia,
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um pouco mais extenso, sugeriria um primado da própria natureza sobre bem diferentes daquelas que conheceu o doutor franciscano - em méritos
o querer divino, mas a exegese é contradita por tudo o que ensina Duns efetivos da apropriação privada 41 , é claro pelo menos (e é o que nos inte-
Escoto em outras passagens. Se este efetivamente declarou em sua cátedra ressa aqui para compreender e julgar a doutrina escotista) que a "disposi-
que, justa segundo o direito divino, a indistinção originária dos dominia ção conveniente de pessoas iguais e desiguais" constitui efetivamente o ideal
o é "bem mais" segundo o direito natural 39 , pode-se compreender com esse rumo ao qual tende racionalmente toda comunidade humana, preocupada
multo magis que Deus aqui tomou sua decisão em virtude mesmo daquilo em não degenerar em pura horda.
que impunha à reta razão a natureza inocente dos seres que havia criado. Assim considerada, a partilha dos bens surge menos como uma con-
Trata-se daquilo que está mais próximo de um ius naturale no sentido óbvio seqüência espontânea do pecado do que como um esforço racional de or-
do termo (ainda que, propriissime, como vimos, só esteja estritamente ganização social, consecutivo à "revogação" de um direito que só valia in !
interditado pela natureza como aquilo que é contraditório à própria es- statu innocentiae. Para justificá-lo, Duns Escoro teria podido evocar alguns
sência divina). Antes da falta, o regime comunitário era sem dúvida algu- preceitos do decálogo, formulados em termos que parecem pressupor a exis-
ma o mais apto a manter a paz entre os homens, cada um recebendo o útil tência de posses distintas 42 , mas é claro que entre a expulsão do homem do
e o necessário, nem mais nem menos, na exata medida de suas necessidades. Paraíso e a promulgação explícita da Lei mosaica numerosas gerações se
Fórmula seguramente teórica, visto que o homem foi banido do Pa- sucederam na terra; seria preciso então que, antes mesmo que Deus promul-
raíso antes que o problema de qualquer partilha de bens fosse colocado. gasse os mandamentos quanto ao respeito do bem de outrem, a razão na-
Fórmula entretanto significativa, não porque justificasse para o doutor fran- tural já estivesse capacitada a regular a divisão dos dominia 43 . Sem dúvida
ciscano um eventual retorno ao regime primitivo (de qualquer modo, Duns - de potentia absoluta - o Criador teria podido impor qualquer modo de
Escoto não o imagina, mesmo como hipótese dialética, pois concorda in- posse; nem é mesmo proibido imaginar que ele tenha erigido um único indi-
teiramente com a crítica aristotélica da república platônica) e tampouco víduo como mestre e senhor absoluto de todos os bens terrestres, mas, no
porque legitimasse "naturalmente" o modo de vida dos religiosos (o qual contexto teológico no qual se apresenta, essa hipótese-limite visa apenas a
se baseia nos conselhos evangélicos e não tem nenhuma necessidade de con- mostrar, por analogia, que o pecador justificado, que deve tudo à graça, não
firmação no nível da lex naturae), mas simplesmente porque os motivos é mais devedor à justiça original. De fato, desde o início, a justa divisão dos
racionais que, após o pecado, conduzem à partilha dos bens (e indiretamente bens, segundo a regra imperativa do dar a cada um o que lhe pertence (red-
à constituição contratual da civitas) são exatamente da mesma ordem que dere unicuique quod suum est), é a condição normal de salvaçã044 . Isso sig-
aqueles que impunham, na origem, um regime comunitário. Trata-se, nos nifica dizer que o pecado não alterou a natureza criada a ponto de torná-
dois casos, de assegurar a paz entre os homens, e a melhor satisfação de suas la inapta a conceber uma ordem que - considerando-se um número variá-
necessidades 4o . Se o regime válido no Paraíso tivesse sido mantido quando vel de fracos e de maus - permite aos outros homens viverem virtuosamen-
o homem foi obrigado a trabalhar penosamente a terra da qual saíra (Gên. té s. É por isso que Duns Escoto - segundo uma tradição vinda de Platão
3,19.23), os maus rapidamente teriam açambarcarcado uma grande parte e de Aristóteles-enfatiza tanto quanto Santo Tomás a importância da lex
dos bens comuns; além disso, e por todas as espécies de razões psicológicas iusta e, após ter lembrado as virtudes do bom legislador, escreve essa frase
que parecem evidentes a nosso autor, esses próprios bens teriam sido mal- (à qual já nos referimos), que esclarece bastante a responsabilidade própria
geridos e fracamente defendidos. Duns Escoto fala aqui como analista da dos viatores na organização coletiva da cidade terrestre: "É certo que, mesmo
natureza corrompida, a única que Aristóteles conheceu, e é por isso que seus após o pecado, os homens puderam ter suficiente sabedoria e prudência para
argumentos, que se tornaram clássicos, são tirados da sabedoria grega mais instituir leis de forma sábia e prudente,,46.
do que da Escritura. O que era natural antes da queda cessou de sê-lo, e a A lei, entretanto, é uma "verdade prática promulgada por qualquer
comunidade dos dominia só é aplicável a pequenos grupos de homens liga- um que tenha autoridade" (veritas practica indicta ab aliquo habente auc-
dos por um voto de pobreza (mas submetidos ao mesmo tempo a um voto toritatem); de nada adianta, pois, que aquele que a coloca se refira ele mesmo
de obediência, que permite resolver da melhor maneira possível os inevitá-
veis conflitos). Para falar a linguagem dos sociólogos modernos, poder-se-
ao bem comum; é preciso ainda que tenha recebido para isso a "autorida-
de" exigida, e é aqui que alguns se surpreendem em ver o Doutor sutil re-
,
ia dizer que, na perspectiva em que Duns Escoto se situa aqui, é a "cultu- correr à noção de contrato. Constatando com inquietação que Duns Escoto
ra" que supre, de qualquer maneira, as deficiências de uma "natureza" de- nunca se refere à famosa frase de Aristóteles sobre o homem "animal polí-
caída. E, por mais que possamos pensar hoje em dia - em circunstâncias tico", M. de Lagarde critica a definição de uma autoridade que se exerce

100 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 101


sobre pessoas estranhas umas às outras e diversas, reunidas em qualquer Determinados textos da Escritura sugerem nitidamente que a iniciativa dos
comunidade (auctoritas extraneorum et diversorum congregatorum in aliqua homens - em um domínio no qual o Decálogo deixava, por seu silêncio,
communitate); esta reduziria, pensa ele, a communitas nascida do pacto social uma margem de liberdade - pôde desempenhar um papel constitutivo,
a uma simples reunião extrínseca de «indivíduos isolados e autônomos"47. senão desde o tempo dos ]uízes 49 , pelo menos quando os judeus, cada vez
Se o epíteto "autônomo" quer dizer capaz de decisões livres, concordamos mais ameaçados por poderosos vizinhos (que, nesse plano, os haviam há
naturalmente que os homens que entram em acordo - segundo certas con- muito precedido), desejaram se organizar em monarquia so .
dições determinadas - no reconhecimento da autoridade de um chefe elei- Seja como for, o pacto cuja gênese o Doutor sutil esboça (em linhas
to não são simples engrenagens inertes no interior de um conjunto funcio- muito gerais) não surgiu ex nihilo; ele reúne pessoas que já pertenciam a
nal; mas será que o seriam mais em uma perspectiva tomista? Nenhum aris- famílias e a autoridade que indica por meio da "eleição" não é heterogê-
totélico concebeu a sociedade como uma res - ou mesmo como uma persona nea à autorictas paterna; aplica somente a domínios novos, e em um qua-
- «coletiva"; por mais "natural" que seja uma associação baseada na ne- dro mais amplo, uma ordem que, desde a origem, não havia nunca deixa-
cessidade mútua, ela não se identifica entretanto à queda dos corpos gra- do de se exercer. Assim, a relação entre essas dúas "autoridades" - das
ves, e a physis dos seres racionais não é a dos elementos. Em política, sem quais uma só é "natural" no sentido em que não requer nenhuma conven-
dúvida, ainda que o consentimento de súditos desempenhe um papel posi- ção e não dá lugar a nenhuma revogação -lembra um pouco aquela que
tivo no regime misto que segundo seu mestre ele julga o melhor, Santo To- ligava a indistinção dos dominia no estatuto de inocência à ulterior dis-
más dá menos peso do que Duns Escoto ao caráter constitutivo da eleição, tinção que se estabelece (em vistas de um mal menor) no estatuto do pe-
mas os dois doutores concordam acerca da importância fundamental do bem cado. A diferença, portanto, é dupla. Por um lado, trata-se menos de subs-
comum; a originalidade do franciscano consiste no cuidado de definir juri- tituir daí em diante um regime novo por um regulamento "revogado" do
dicamente o vínculo contratual no qual se baseia primeiramente a auctoritas que de completar um tipo originário (e sempre válido) de vínculo social
do legislador. Os extranei entre os quais se atualiza um verdadeiro contra- por uma união mais vasta, livremente aceita em vistas de fins úteis e racio-
to social não são todavia considerados como seres originariamente separa- nais. Por outro lado, se Duns Escoto não pensa evidentemente em nenhu-
dos uns dos outros. Não parece que Duns Escoto tenha jamais considera- ma ordem política antes da queda s 1, frisa, ao contrário, como vimos, a
do um estado pré-contratual de pura discórdia. Ainda que suas fórmulas continuidade do fato familiar, de forma que nenhum pacto seja exigido
sejam pouco explícitas, poder-se-ia dizer que o estado virtual de sociabili- para que as crianças se submetam aos pais, segundo uma "lei justa, reta e
dade (de algum modo latente no grupo familiar, mas encoberto pela exis- natural" que foi imposta, de Adão a Moisés, a todos os que vivem "sob
tência efetiva de uma auctoritas paterna) se torna plenamente consciente um mesmo pai, não somente no corpo mas no espírito" (sub uno patre,
quando os homens, que pelo sangue permanecem "estranhos" uns aos outros, non tantum corpore, sed etiam mente), antes mesmo, pois, que o Decálogo
concordam juntos em contrair um pactum subiectionis. Esse pacto, aliás, fizesse disso um preceito explícito (situado no ponto de articulação entre
não é a aceitação de urna tirania e a respublica escotista lembra pouco O a primeira e a segunda Tábua).
Leviatã de Hobbes 48 , Essa lei, todavia, não concerne senão aos membros de uma mesma
É preciso insistir nesse ponto, já que muitos aí se equivocaram. Os família. Se ocorre que estranhos queiram Se agregar espontaneamente a tal
"estranhos" não são absolutamente indivíduos isolados e hostis; o adjeti- grupo natural, eles só o fazem de modo individual, por uma adoção que
vo significa apenas que os contratantes se situam, enquanto tais, fora da não cria nenhuma realidade coletiva de tipo novo. Ora, à medida que a
esfera reservada à autoridade paterna e que o vínculo novo que os une é, história avança e que a "malícia dos homens" acelera a degeneração da
por sua própria definição, exterior à família. Duns Escoto pensa talvez solidariedade familiar (alusão possível à anarquia descrita no Livro dos
nesses grupos étnicos provenientes, segundo a Escritura, dos filhos de Noé, Juízes), sente-se a necessidade de uma auctoritas politica. Sem pertencer
mas pouco a pouco separados pela história e pela geografia do pequeno ela mesma, stricto sensu, ao domínio da [ex naturae (visto que aparece
círculo privilegiado no interior do qual se haviam conservado - desde antes posteriormente e deixa um amplo campo às iniciativas dos constituintes),
da promessa da Aliança - as mais puras tradições religiosas e morais. Mas,
mesmo no que concerne à história interna do povo eleito, pode-se pensar
essa autoridade responde a necessidades "naturais" e - pelo menos do
modo como é descrito aqui - a livre escolha que a fundamenta é bem
••
que, no campo das instituições cívicas, o consenso popular precedeu por diferente da simples submissão de fato a um poder já estabelecido. O Doutor
diversas vezes a intervenção explícita de Deus ou de seus porta-vozes. sutil descreve expressamente wna vontade de associação entre gentes ex-

102 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 103


traneae et diversae, quarum nulla tenebatur alteri obedire. Teria ele pen- nos imaginemos próximos da Revolução Francesa e de sua famosa Decla-
sado no famoso pacto de aliança realizado em 1291 entre os três primei- ração dos Direitos 57 . Mas não se deve esquecer que a "lei da natureza"
ros cantões da Confederação Helvética? Nada o indica, mas também nada aqui evocada é a do Paraíso, não uma regra de direito imediatamente apli-
exclui essa possibilidade. De qualquer modo, a frase é duplamente inte- cável a sociedades pecadoras. Desde o início essa liberdade de princípio
ressante, pois mostra, por um lado, que nenhuma das partes constitutivas foi, aliás, limitada pela subiectio filialis (que é, também ela, no segundo
era obrigada antecipadamente "a obedecer à outra"; por outro lado, que sentido do termo, de lege naturae)58. Em seguida, são aí acrescentados, após
se trata aqui de grupos preexistentes, qualquer que seja a extensão que se a falta original, todos os tipos de "servidões" das quais voltaremos a falar
reconheça, aliás, à gens. O fato "social" é, portanto, anterior à sua deter- e das quais uma das menos "vis" é seguramente a submissão dos cidadãos
minação contratual, e pode-se perguntar se ele se não confunde, nesse ní- a uma legítima autoridade política.
vel, COm o próprio falO familiar. Duns Escoto resume muito sucintamente o processo através do qual
O texto no qual Duns Escoto trata do direito do primeiro ocupante os extranei entram em acordo para indicarem um "príncipe" ao qual obe-
esclarece um pouco o problema, sem resolvê-lo completamente. Tendo decerão "em tudo o que não é contrário à Lei divina", mas somente até
declarado ser bastante improvável que tal direito pertença ao domínio do sua morte, ou para aceitarem antecipadamente se submeter aos sucesso-
ius naturae52 , o mestre franciscano admite que possa ter sido instituído por res hereditários desse príncipe, segundo condições estabelecidas e que os
uma lei positiva, análoga à convenção concluída entre Abraão e Lot para contratantes determinam à sua vontade (secundum conditiones quales
dividir entre eles a planície do Jordã0 53 . Observa, a esse respeito, que o vellent. sic vel sic). Uma terceira hipótese se aplica a instituições republi-
cuidado de estabelecer essa lei pertence ao pai de família como tal, a um canas de tipo burguês ou aristocrático, pois pode acontecer que, sentindo
chefe eleito, ou a árbitros designados pela "própria comunidade"54. A a necessidade de uma autoridade, os homens tenham concordado em confiá-
comunidade no sentido próprio do termo, enquanto pode eleger ou indi- la "a um indivíduo ou a uma coletividade".
car um príncipe ou um juiz, se distingue assim do grupo familiar como Quando nosso doutor evoca o caso das "pessoas reunidas para edi-
realidade "natural" sobre a qual o pai exerce de íure divino e naturae uma ficar ou habitar uma cidade", pensamos imediatamente em uma outra
autoridade plena. Parece, com efeito, que, coextensiva a esse grupo, ela já forma conCreta de sinecismo, o contrato de edificação pelo qual os colo-
possuía virtualmente, enquanto realidade "política", um poder implícito nos são libertados e associados no quadro de uma nova cidade 59 , mas a
independente da auctoritas paterna. É esse poder que o consensus e a electío fórmula é mais vasta e remete, cremos, a toda civitas (ou respublica) ba-
atualizarão, delegando-o ao detentor da auctoritas política, tal como ela seada originalmente em um consentimento. De fato, todas as monarquias
resulta do pacto social. medievais recorriam mais ou menos a uma eleição e, mesmo onde a here-
De qualquer modo, o pacto não pode desempenhar seu poder cons- ditariedade adquiria um lugar preponderante (ou a designação do suces-
titutivo a não ser que expresse o "consentimento mútuo de todos". Duns sor pelo príncipe reinante), permaneciam freqüentemente alguns traços do
Escoto nada diz do direito que eventualmente possuiria a maioria, de pros- apelo ao "consenso", senão do próprio povo, pelo menos dos notáveis ou
seguir na oposição da minoria; tampouco evoca, como fará Rousseau, a dos barões. Mas o interesse do texto escotista - testemunho de uma evo-
encarnação possível da "vontade geral" em um grupo (às vezes minoritário) lução que se prepara no domínio do direito público - é o de remontar às
de cidadãos mais esclarecidos, ainda que a doutrina clássica dos egregii cives origens da primeira autorictas politica e de procurar o próprio fundamento
possa ter fornecido uma base a idéias desse gênero. Lembremos sobretu- da lei. Segundo uma tradição doutrinai bastante antiga - que reencon-
do que, se se apóia em um poder coletivo virtual, o contrato exige a con- traremos até em Montesquieu e em Rousseau - , ele insiste no papel "le-
vergência refletida de um conjunto de liberdades singulares. Retomando, gislador" do indivíduo ou do grupo de homens escolhidos pelo pOVO. Sin-
a propósito da discussão sobre a escravidão (que discutiremos mais adiante), gular ou coletivo, o nomoteta preenche uma função essencial. O bom chefe
o princípio de São Gregório Magno (freqüentemente invocado pelos esco- é, antes de tudo, aquele que redige boas leis. É preciso, pois, que, "quer
lásticos) segundo o qual "é contra a natureza que o homem domine o em si mesmo, quer em seus conselheiros", possua a "virtude de prudên-
homem", de modo que somos todos em direito aequales 55 , Duns Escoto cia", não apenas para aplicar em cada caso as regras tradicionais da co- ~
afirma que de lege naturae omnes nascuntur liberi 56 . Bastará que os juris- munidade, mas basicamente e sobretudo "para fundar leis justas em vis-
tas completem a fórmula e acrescentem, com Nicolau de Cus a no Concí- tas a conservar a paz". Sua única prudência não lhe confere, entretanto,
lio de Basiléia: et aeque potentes, para que, à primeira vista pelo menos, nenhuma verdadeira autoridade; ainda que seja concebida, a lei só tem vigor

104 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 105


!)

em virtude de uma situação de "presidência" concedida ao soberano e que Dito isso - que tende sobretudo a salvaguardar o pleno valor do
é, como sabemos, de origem eletivéo. Esse requisito teórico não acarreta estado religioso contra uma concepção (cada vez mais difundida em fins
certamente nenhuma conseqüência revolucionária, pois parece apenas con- do século XJII) segundo a qual o uso normal dos órgãos genitais, tal como
cernir à fonte constitutiva do poder político em geral. Mas, para Duns foram criados por Deus e confiados providencialmente à Dama Nature-
Escoto, o mais importante é ter definido em todo rigor as únicas bases le- za, corresponderia a uma espécie de obrigação universal 67 - o Doutor sutil
gítimas do principatus de tal maneira que, por outro lado, ele destaca mais julga muito severamente o senhor que se utiliza de seu direito e proíbe
os direitos do soberan0 61 , sem dúvida não por servilidade a respeito dos efetivamente que o servus se case. E ele afirma explicitamente que se o
poderosos, mas por reverência à regra de justiça. dominus, como assim o convida a Igreja em nome da caridade, renuncia
ao exercício dessa prerrogativa, encontra-se desde então obrigado (sob pena
Seria surpreendente, contudo, que, assim concebida, semelhante au- de pecado mortal) a autorizar o pleno exercício d~s debita que implica para
toridade pudesse realmente legitimar a servidão 62 . Eis aí um problema que os cônjuges de condição servil - entre eles e em relação a seus filhos -
merece atenção, pois, sem acusá-lo, como outros, de favorecer a escravatu- seu enlace matrimonial. Nesse ponto Duns Escoto não é menos exigente
ra 6 3, Lagarde julga Duns Escoto mais indulgente do que Santo Tomás em do que Santo Tomás, ainda que ambos indiquem efetivamente as dificul-
relação às formas arcaicas de dominação do homem pelo homem. A bem dades com as quais o servus depara para preencher sem falhas seus deve-
dizer, o único texto invocado concerne ao matrimonium servi, e é verdade res conjugais 68 . O Doutor sutil especifica que o senhor deve "abrandar"
que, por razões de princípio que são para ele de grande importância, o doutor as obrigações do escravo casado no que concerne a seu próprio serviço e
franciscano critica aqui a tese tomista, defendida por Ricardo de Middlerown, que ele pecaria ainda mais gravemente se separasse o casal cuja união
segundo a qual todo homem, em qualquer situação de dependência que se anteriormente autorizou. Não obstante, seu direito de veto não é, por si
encontre, pode exercer seu" direito natural" ao casament0 64 . A objeção de mesmo, de uma natureza tal que o servus seja obrigado a se submeter a
Duns Escoto deve-se à sua concepção do ius naturae, mas visa ao mesmo ele em qualquer circunstância; com efeito, se o escravo julga racionalmente
tempo a defender contra certos ataques os votos de religião. Se alguém, com que sua condição servil lhe permitirá conciliar tudo o que deve ao dominus
efeito, não pudesse alienar sua liberdade "natural" para se submeter a uma e tudo o que pode exigir dele seu uxor, não parece cometer nenhuma falta
superior, isso seria o fim do estado monástico, que se tornaria propriamente grave em transgredir um impedimento que só é ele mesmo justificado pelo
ilícito 6S . Ainda que o texto aqui não faça nenhuma menção explícita a isso, direito do senhor em se beneficiar plenamente de todos os serviços que lhe
são devidos 69 .
pode-se acrescentar, acreditam, que o respeito incondicional das liberda-
Essa casuística se esforça por conciliar, como vemos, bem ou mal,
r
des baseadas no ius naturae seria incompatível com o próprio pacto social,
o qual substitui (ou pelo menos superpõe) à autoridade natural do pai o poder as exigências espirituais de uma sociedade que se dizia cristã com estrutu- l:'
convencional de um soberano eleit0 66 . Mas a argumentação do Doutor sutil ras em grande parte herdadas do paganismo. Na verdade, não é certo que
remete sobretudo aos vota religionis. Se a liberdade individual fosse inalie- a condição trabalhadora, tal como a descobriram os primeiros "cristãos
nável, ninguém teria o direito de se vincular por votos perpétuos - e é isso, sociais" ou o estatuto colonial do trabalho forçado, tenha provocado fre-
com efeito, o que pretenderão os "filósofos" do século XVIII e os partidá- qüentemente crises de consciência igualmente tão inoportunas a homens
rios de um certo "laicismo". Raciocinando aqui a fortiori, Duns Escoto muito mais próximos de nós 70 . Mas, a não ser por alguns casos de confli-
pretende esclarecer algumas possíveis implicações de uma teoria que ab- to manifesto, os posicionamentos concretos aos quais chegaram pratica-
solutiza perigosamente a idéia de direito natural. Visto que se admite a le- mente os doutores de diversas escolas (e que com muita freqüência pouco
gitimidade do voto de obediência - o qual, entretanto, se opõe indubita- influíram na realidade dos costumes) diferem menos, em geral, do que seus
velmente a um ius naturae - como invocar esse mesmo ius para impedir pontos de partida teóricos. Ora, precisamente no que concerne à origem e
que o senhor faça valer suas prerrogativas, e isso em benefício, não de uma à legitimidade da escravatura, a posição de Duns Escoto parece menos li-
obrigação, mas de uma simples permissão concedida em vistas a um mal gada do que a de Santo Tomás aos princípios definidos na Política aris-
totélica. Pode-se mesmo pensar que, tomadas ao pé da letra, suas defini- ~
menor? O peso do argumento, como se vê, ultrapassa o caso particular do •
connubium servi, mas através de seu alvo essencial (que é o voto de religião), ções e suas distinções deveriam tornar bastante excepcionais os casos aos
ele pode justificar que, sem ofender os direitos da pessoa humana, certas quais se aplicaria com todo rigor uma legislação que parece menos severa
funções sociais acarretam a obrigação ou a necessidade do celibato. se examinado de perto o contexto no qual ela se apresenta.

106 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 107


'"
o que surpreende o·leitor moderno é uma certa indiferença dos esco- jeito ao estado de coisa inanimada e o priva de bens essenciais à sua dig-
lásticos a uma distinção, que hoje em dia nos é bastante familiar, entre o nidade de homem, de modo que se pode aplicar aqui as definições aris-
servus antigo e o "servo" medieval. Sabe-se que a condição propriamente totélicas do despotismo a qualquer dominação que visa menos à felicida-
servil se prolongou por muito tempo, mesmo nesse Ocidente cristão que de do inferior do que à sua infelicidade e seu sofrimento 74 •
não ignorava o comércio dos prisioneiros e no qual os termos franceses e A "servidão vil" - sem dúvida inevitável in statu peccati - só po-
italianos esclave e schiavo lembram os comboios vindos dos países eslavos deria, então, derivar de uma lex positiva, e o problema é o de saber se essa
e os pagãos do Leste vendidos nos cais de Veneza. Essa escravidão propria- lei pode ser "justa", isto é, instituída por um legislador prudente dotado
mente dita se confunde tão pouco com a situação jurídica (e real) dos "ser- de verdadeira autoridade. Assim como a apropriação individual das ter-
vos" de tipo feudal (presos ao território feudal e submetidos à capitação) ras (necessária de facto após a revogação do comunismo original) contra-
que os historiadores citam o caso de pagãos não"livres, mas enriquecidos, diz a disposição natural do homem que o levava a viver de uma forma
que possuíam, eles mesmos, a seu serviço, "escravos" no sentido mais ri- completamente diferente 75 , a escravidão é, em si, incompatível com o prin-
goroso do termo. 71. Às vezes, parece ser nesses últimos que pensam os cípio segundo o qual os homens "nascem todos naturalmente livres". Por
autores medievais quando comentam os textos do Estagirita ou quando mais diferentes que sejam em sua origem, a submissão filial e a sujeição
se referem ao famoso versículo de São Paulo (Epif. 6,5) prescrevendo aos cívica são os limites "secundariamente" naturais (e, por isso mesmo, jus-
douloi que obedeçam aos kurioi "com temor e tremor". Mas eles esten- tificáveis) de uma liberdade que, como sabemos, não é incondicional no
dem muito freqüentemente o alcance de fórmulas cujo exato contexto his- sentido em que a entenderão determinadas doutrinas modernas, visto que
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tórico desconhecem; sem explicitá-las tanto quanto desejado, levam em ela não poderia impedir o voto canônico de obediência. No que concerne
consideração, de fato, diversas formas de servidão, de modo que é preciso à escravidão propriamente dita, Duns Escoto examina primeiramente duas
sempre ter cuidado quanto às precisões anexas que determinam o uso do hipóteses (e nenhuma, notemos, o remete à função social do trabalhador
substantivo servitus ou do adjetivo servus. enquanto manipulador de instrumentos)76: a submissão voluntária e o
A esse respeito, o epíteto vilis, em Duns Escoto, é de grande impor- encarceramento penal.
tância. Para Santo Tomás, que segue aqui bem de perto os textos bastante A primeira resulta de uma decisão perfeitamente "tola"77, mas, se
conhecidos da Política, o fato de que tal indivíduo (que pode pertencer à esse ato livre, pelo qual o indivíduo aliena sua liberdade, não é jamais re-
nobreza cativa e possuir uma alma de senhor) se encontre contudo escra- comendável fora das condições regulares instituídas pela Igreja para os fiéis
vo é, sem dúvida, um acidente infeliz, e sem "razão natural"; a servidão, chamados a seguir os "conselhos" evangélicos, uma vez realizada fora de
todavia, não vai "contra a intenção da natureza,,72. Como a desigualda- qualquer coerção, a "justiça" impõe que se torne fonte de estrita obriga-
de dos bens, ela se justifica por uma certa "utilidade" social, segundo a ção moraF8. O segundo se justifica facilmente no caso do homem incura- ~~'
qual o "mais sábio" deve reger o "menos sábio" e utilizá-lo como seu ins- velmente "viciado"; para este a perda aflitiva de uma liberdade que usou
trumento, para sua dupla vantagem. Se esse princípio não pertence, entre- mal é, não apenas um sofrimento menos cruel do que a morte 79 , mas um
tanto, ao ius naturale - já que o estado paradisíaco não conheceu domi- meio preventivo de evitar a recaída no pecado; para a "república", ela
nium oposto a uma verdadeira servitus, mas apenas as autoridades pater- constitui a única garantia sólida contra novos crimes 80.
na e política - , a ele se relaciona por uma adinventio ulterior da ratio Deve-se admitir, entretanto, o direito de guerra como terceira fonte
naturae (pela mesma razão que a apropriação individual das riquezas, se- legítima de vilis servitus? Duns Escoto reencontra aqui um problema difí-
gundo a regra do primeiro ocupante) e constitui, assim, um aspecto uni- cil a respeito do qual Aristóteles esboçara apenas conclusões hesitantes 81
versal dessa lei humana que se denomina ius gentium 73 . Duns Escoto não e que, mais tarde, deveria inspirar a Hegel sua famosa dialética do senhor
nega absolutamente que a dominação daquele que potest mente providere e do escravo. Em caso de guerra "justa", o doutor franciscano, que se con-
seja natural e razoável. Esse princípio, contudo, justifica apenas as formas forma às idéias de seu tempo, não duvida que seja permitido matar seu
superiores de servitus, isto é, por um lado, o poder paterno (que pertence, inimigo, considerado como "rebelde perseverante". Mas ele logo acrescenta
sabemos, ao setor "amplo" do ius naturae) e, por outro, a autoridade do que, mesmo nesse caso-limite, a misericórida deveria substituir, para um <
legislador, livremente aceito pela via da electio. Em ambos os casos, com cristão, o rigor do ius positivum. De qualquer modo, é desumano infligir
efeito, o mais fraco se submete ao princeps bene regens que deve guiá-lo ao prisioneiro uma punição "contra a natureza" e deve-se sempre esperar
in bonum. O mesmo não ocorre quanto à servidão vil, a que reduz o su- que ele não abusará absolutamente da graça que pode lhe conceder o ven-

108 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 109


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cedor. Longe de imaginar um tipo de transação pela qual o vencido, em las concernentes à expropriação um lamentável desconhecimento da "ver-
troca da vida salva, renuncia a ser "reconhecido" como consciência e se dadeira autoridade social"91. Pode-se naturalmente preferir outras doutri-
S2
aliena inteiramente , Duns Escoto encara o problema sob um ângulo da nas a essa de Duns Escoto; mas deve-se ainda notar que ele nunca conside-
misericórdia e não faz mesmo nenhuma alusão explícita ao uso do "res- rou a transferência incondicional à autoridade pública de um direito indi-
gate". Se ocorre, entretanto, que o prisioneiro libertado se volte contra seu vidual de propriedade, que exatamente só pertence para ele ao "cidadão",
benfeitor, estamos novamente diante do caso do criminoso, e é então no e nos limites fixados por um legislador, cujo poder repousa antes de tudo
interesse comum, não pelo direito de posse, que o vencedor priva mais urna na eleição e no consentimento. Uma vez "revogada" a indistinção primiti-
vez o vencido de uma liberdade que usou mals3. va dos dominia (que era apenas de direito natural), qualquer apropriação
Em favor dos homens de boa-fé que, desde uma certa época, têm em (singular ou coletiva) resulta da prudência desse legislador. É normal, pois,
seu poder prisioneiros, adquiridos por herança ou por compra, invocar- que a degradação eventual de tal possuidor "negligente" seja proferida em
se-á um direito de prescrição, cuja validade Duns Escoto absolutamente nome da comunidade inteira e ela supõe, assim, de um certo modo, o con-
não reconhece? A resposta do doutor é prudente e constitui mais um ape- sensus prévio da própria vítima. Visto, com efeito, que não se trata mais de
lo à consciência generosa do que uma obrigação jurídica. Ela Se refere, urna simples partilha familiar, dependendo da autoridade natural do pater-
contudo, ao ius naturae para destacar a diferença essencial entre um pro- familias, a divisão toma sua legitimidade de um assentimento unânime de
prietário de ouro e um detentor de escravos 84 e para concluir que seria homens que instituíram a civitas; ora, a translatio dominii deriva da mes-
"difícil" justificar por essa via as seqüelas de um costume bárbaro, que ma fonte de autoridade que a divisio dominiorum 92 .
remonta sem dúvida a Ninrode (Gên. 10,8). É em todo caso uma "gran- Como todo ato humano in statu peccati, essa transferência pode dar
de crueldade" reduzir ao estado de "brutos"85 seres dotados de livre-ar- lugar a múltiplos abusos em sua aplicação concreta. Dizer que se efetua em
bítrio, e impedi-los de agir virtuosamentes6. favor de quilibet não implica, no pensamento de nosso autor, nenhuma jus-
Quanto ao versículo da Carta aos Efésios que prescreve ao escravo tificação do arbitrário, mas significa somente que cada membro da comu-
que se mostre obediente em relação a seu senhor, este cria menos proble- nidade está habilitado a se beneficiar dela, uma vez que a decisão do legis-
ma para Duns Escoto, visto que, para ele, é a própria "justiça"87 que im- lador assegure ao melhor a pacifica conversatio civium. O fato de a expro-
põe o respeito escrupuloso de qualquer obrigação, nascida de um contra- priação supor, da parte do possuidor negligente, uma renúncia implícita a
to livre ou imposta por uma autoridade legítima, qualquer restrição feita, seu direito de propriedade não implica absolutamente que esse direito fosse
por outro lado, quanto ao valor ético dos contrata'ntes ou do legislador88. incondicional. Trata-se, aliás, apenas de uma ficção jurídica e a lei o "pune" í.:,'
Efetivamente, na perspectiva pastoral em que São Paulo se situa, ele não antes de tudo por ter sido o mau "ministro" de seu bem, qualquer que te-
pretende aprovar ou criticar a instituição da escravatura; o texto da Es- nha sido, no plano da consciência, sua intenção "real,,93. Esses princípios, ~:'
critura significa que, não importa a situação na qual se esteja, deve-se res- como vemos, justificam transferências que vão muito além do uso feudal. No
peitar, através dos homens, o único Senhor autêntico, que "está nos Céus espírito de um verdadeiro "direito social", permitirão pronunciar a degra-
e não tem nenhuma preferência de pessoas" (Epif 6, 9). Os medievais, dação de proprietários que cultivam mal suas terras ou que açambarcam os
todavia, tinham uma forma diferente da nossa de ler a Escritura, e Duns produtos em detrimento dos trabalhadores; eles poderão mesmo, em um grau
Escoto pensa encontrar em outro lugar - na primeira Carta aos Coríntios ulterior de evolução econômica, autorizar a transformação em serviços pú-
- uma desaprovação formal da vilis servitus; parece-lhe, com efeito, que blicos de empresas privadas cujo monopólio seria contrário ao bem comum.
São Paulo convida o escravo a desejar, se é que é possível, sua ascensão Duns Escoto de fato mal podia prever os campos de aplicação considerados
ao estado mais louvável de homem Iivre89. em recentes encíclicas; ele limita seu exame às hipóteses clássicas concernentes
Esses breves desenvolvimentos não formam um sistema; indicam uma aos direitos de prescrição e de usucapião, mas, seguindo a esse respeito a
evidente desconfiança quanto aos princípios herdados do paganismo e a opinião comum dos juristas, observaremos que subordina inequivocamen-
preocupação moral neles existente corrige o rigor jurídico. É verdade que te o direito de propriedade à regra suprema da pax reipublicae 94 •
não há uma análise precisa das formas concretas da servidão e da nova Quaisquer que sejam os poderes reconhecidos aos detentores da au-
condição do assalariad0 9o . Outros textos, que iremos agora analisar rapi-

torictas politica no que COncerne à repartição e à transferência dos do-
damente, parecem dar atenção mais específica à evolução da sociedade me- mimá, o proprietário "imediato" desfruta certos direitos sobre eles. Pode
dieval. Lagarde pensa detectar aí uma "regressão" e denuncia nas fórmu- dá-los a outros, vendê-los ou alugá-los, mas com a condição de que te-

110
Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 111
nha uma autorização que pode ser, de acordo com o caso, do pai de fa- É possível que Santo Tomás permaneça, no campo econômico, mais
mília, do suserano ou (para os clérigos) do superior hierárquico. Em ne- ou menos tributário das idéias "arcaicas" da pequena nobreza proprietá-
nhum dos casos a doação feita a um religioso mendicante pode transgre- ria 103 . De qualquer modo, é certo que a esse respeito o Estagirita é para
dir seu voto de pobreza e fazer dele um dominus 9S • As transações onero- ele uma autoridade decisiva. E, entretanto, vê-ma-lo, como quase todos
sas só são legítimas com a condição de que se exclua toda forma de en- os seus contemporâneos, adaptando-se a estruturas novas. Não apenas ele
godo e de que se refira à regra tradicional da aequalitas valoris. As fór- se afasta do texto de Aristóteles quando concede o caráter "honroso" de
mulas de Duns Escoto nada têm de original, seja porque ele define o pa- um ofício que pode fornecer à comunidade bens necessários, como admi-
pel da moeda, seja porque enfatize a oposição entre o valor de uso (o único te que o vendedor assegure para si um ganho razoável uma vez que visa
que intervém aqui) e o valor "intrínseco" de uma coisa, isto é, seu lugar assim a satisfazer necessidades de sua família e até mesmo ter seu lugar na
na hierarquia dos seres 96 . O Doutor sutil se afasta, contudo, de certos sociedade, e que exerce a beneficência em favor dos pobres I 04 Fórmulas
mestreS seculares recentes quanto à fixação do preço justo, pois admite, bastante amplas para autorizarem efetivamente formas de comércio (que
entre duas avaliações extremas, uma muito forte, a outra muito fraca, uma não tinham, aliás, esperado o papel assinado em branco pelos moralistas
magna latitudo 97 cujos limites podem ser determinados pelo costume ou para que pudessem se instituir e se desenvolver).
pela lei. Porém, ao passo que à latitude fixada por um legislador mais Parece que Duns Escoto, meio século mais tarde, está sensivelmente
preocupado com a ordem pública do que com rigor moral (e que só decla- mais atento ao papel dos grandes comerciantes. Se é "útil ao Estado ter
ra inválida uma transação operada a um preço inferior a medietas iusti objetos dos conservadores para vender, que possam rapidamente encon-
pretii) Santo Tomás opunha uma exigência mais severa do foro íntimo e trar aqueles que deles necessitam" 105, é mais útil ainda possuir negocian-
tolerava apenas uma modica additio vel deminutio 98 , Duns Escoto con- tes que forneçam à pátria produtos raros e que transportem as mercado-
sidera como provavelmente lícitos desvios maiores, com a condição de que rias "das regiões nas quais elas abundam para aquelas que delas care- ,.
OI

seja com o acordo das partes e para tornar menos" duras" as cláusulas cem"106. Seguramente, elas são mais caras lá onde faltam, e os historia-
de um contrato que deve sempre permitir uma certa liberalidade. O pa- dores assinalam a vantagem que o comércio ocidental pôde tirar de uma
radoxo é aqui o de que a máxima "Não faze a outrem o que não deseja certa estabilidade dos preços orientais. O comerciante se beneficia de uma
que façam a ti" (Hoc facias alii quod tibi vis fieri)(Mat. 7, 12) é invocada diferença de valor que não corresponde, por sua vez, a nenhum trabalho,
pelo Aquinate com sua referência evangélica, mas para exigir uma estrita mas sua industria consiste justamente em descobrir conjuntamente as ne-
igualdade de prestações fornecidas pelas duas partes, ao passo que o dou- cessidades de um país e os recursos de um outro. Um legislador avisado f
tor franciscano, que a apresenta como um aspecto da lex naturae, a dire- pagaria muito caro os serviços do ministro capaz dessa análise sócio-eco-
j:
ciona mais à generosidade e à caridade do que a uma troca de serviços.99 nômica e cuja tarefa apropriada seria a prospecção dos mercados. Quan-
Essa consideração da indulgência mútua remete a um tipo de trocas do o importador assume por si mesmo essa tarefa tão útil e corre esponta-
que, segundo o Filósofo, se justificam pela satisfação de uma necessidade neamente os riscos que esta comporta, é normal que, ao invés de poder
imediata, em um quadro restrito, propter necessitatem vitae 100 . O caso do "alugá-los" ao príncipe, "venda" aos particulares uma habilidade e um
"negócio" propriamente dito é bem diferente, pois ele visa apenas ao "lu- talento muito caros, o que não o priva, aliás, em nada, de legítimas inde-
cro" e Aristóteles qualificava a crematística de "indecorosa". Tornou-se nizações que deve receber da república no caso em que, sem ter cometido
difícil defender essa posição extrema - sem casuísticas sutis - em uma nenhuma falta, tenha seus entrepostos queimados ou seus navios afunda-
Europa na qual, após uma regressão e uma estagnação que parcialmente dos. Em um texto freqüentemente alusivo e condensado, quase nos sur-
se devem, sem dúvida, à instalação do Islã em uma vasta porção dos lito- preende ver a insistência com a qual o mestre franciscano enfatiza o valor
rais mediterrâneos 101 , o grande comércio está em vias de readquirir uma de uma forma de atividade que, após a recessão econômica do século XIV,
importância análoga àquela que pôde ter na antiga Grécia (e que os filó- iria se tornar tão decisiva para a Europa ocidental, e propiciar tamanho
sofos contudo se recusaram a admitir, vítimas talvez de tradições indo- enriquecimento à Grã-Bretanha 107.
européias muito antigas)102 e é em uma escala bastante extensa, visto que Os únicos negotiatiores que Duns Escoto vilipendia sem reserva pa- •
os sucessores dos vikings, que possuem entrepostos em Novgorod e ligam recem se situar no nível do pequeno comércio, o que não implica certamente
agora a Escandinávia a Bizâncio, atravessam por outro lado o Mar do Norte que toda especulação em vasta escala seja para ele legítima, pois o benefí-
e mesmo o Atlântico até os confins das costas americanas. cio do grande mercador é medido, afinal, na escala do bem comum. Mas

112 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 113


seus inimigos jurados são antes de tudo aqueles que ele chama (introduzin- Já, entretanto, o caso das grandes empresas necessárias à comunida-
do uma palavra francesa no texto latino) de regrattiers 108 . No caso em que, de é totalmente diferente. O dinheiro, nestas, é, Com efeito, produtivo, na
com efeito, tendo-se dois particulares, um possui o que falta ao outro, se medida em que permite à industria frutificar eficazmente. Sem comanditas,
poderia querer uma troca direta ao preço justo, deve-se considerar como muitas cidades nOvas não poderiam ter sido fundadas e muitas terras te-
parasitas os homens que fazem mister de comprar do primeiro para reven- riam permanecido incultas. O comércio de importação exigia uma quota
der ao segundo; seu lucro diminui necessariamente a renumeração do ven- de capitais, que ninguém arriscava sem o atrativo de um certo ganho113.
dedor, ao mesmo tempo em que majora a soma a ser paga pelo compra- Para justificar esse ganho, foram necessárias alguma sutileza e numerOSas
dor 109 . É igualmente no campo desse comércio local (aí onde o intermediá- discussões que se prolongarão, pelo menos, até o século xvn 114. Duns
rio não tem o encargo de transportar as mercadorias nem o cuidado indus- Escoto quase não entra em detalhes quanto aos meios jurídicos, e o co-
trioso de ir muito longe em busca de objetos raros) que se aplica provavel- mentarista da edição Wadding (que preenche essa lacuna através de ex-
mente a condenação do comerciante que, beneficiando-se de uma carência, tensas notas) observa que o mestre não considerou expressamente o me-
assegura para si uma vantagem em detrimento dos mais desprovidos, sem canismo das cauções e das hipotecas nem as cláusulas do contrato de so-
poder ele mesmo invocar esse dano pessoal que, segundo a doutrina comum, ciedade. Encontramos, contudo, em sua obra, a afirmação de algumas
seria a única justificativa de um aumento de preçoll0, regras essenciais, das quais pelo menos uma - a do "risco compartilha-
No que concerne ao empréstimo a juros, apesar de certas divergên- do" - mantém-se hoje em dia atual, pois nossos sistemas de "seguros"
cias mínimas concernentes à transferência de dominium 111, Duns Escoto fazem-nos às vezes perder de vista as verdadeiras fontes do lucro e a ma-
não traz nenhuma atenuação de princípio às condenações que são formais neira pela qual se constitui efetivamente a riqueza.
nos textos da Escritura. A única justificativa do empréstimo é a de prestar A doutrina segundo a qual não se pode "vender o tempo" é tradicio-
serviço ao próximo de modo que não seja jamais lícito exigir do beneficiário nal, e alguns sociólogos vêem nela um desconhecimento das leis econômi-
um prêmio correspondente a seu próprio prejuízo. Responder-se-ia que se cas. Deve-se compreender, todavia, o que esta significa. Se entrego hoje uma
pode pelo menos extrair alguma vantagem de ganhos que o devedor pôde mercadoria que muito provavelmente será mais cara em alguns meses, te-
propiciar a si mesmo graças a esse empréstimo? Existe sem dúvida, como nho sem dúvida o direito de prever o futuro e de utilizar essa previsão em
veremos, com a condição de que se compreenda bem a natureza desses ga- meu benefício ou em benefício da comunidade, mas não de tirar, desde já,
nhos, meios de solucionar um problema difícil, considerando-se o desen- proveito daquilo que ainda não existe. A coisa é evidente se sou pago ime-
volvimento de novas instituições bancárias. Mantém-se ileso, entretanto, o diatamente; continua verdadeira no caso em que aceito um certo atraso para
princípio segundo o qual em nenhuma circunstância o dinheiro é por si que o comprador quite seu débito. Ninguém, com efeito, me forçou a ven-
mesmo fecundo. Quando se trata de um contrato de locação, pelo qual coloco der hoje, e o contrato não deve considerar senão o valor presente ou, a ri-
um lingote de metal precioso à disposição de um homem que não tem ne- gor, esse aumento sazonal razoavelmente previsível em uma determinada
nhum projeto senão o de desfrutá-lo e de ostentá-lo, é normal que exija desse data; mas não posso jogar antecipadamente, com toda segurança, com as
homem um certo aluguel de juro, mas emprestei um ornamento e não di- variações fortuitas de preço. Quaisquer que sejam as modalidades do con-
nheiro. A operação que as leis consideram contra a usura é o empréstimo trato - e certas tolerâncias que podemos admitir "em benefício da dúvi-
de consumo, de uma importância capital nas sociedades subdesenvolvidas, da" porque uma rígida exclusão do tempo seria por demais vantajosa para
em que o numerário é raro e nas quais a maioria dos homens vive nos limi- o comprador a prestações - , o fundamental é que nenhuma parte seja ja-
tes da miséria. O dinheiro aqui traz tanto menos frutos quanto serve para mais "assegurada" de um certo ganho, qualquer que seja ele, ao passo que
assegurar uma subsistência imediata. Ao impedi-lo de morrer de fome, exerço a outra apenas permaneceria exposta a um prejuízo provável ou certo115.
em relação a meu próximo um ato de humanidade; se sua situação melhorar, Essas regras só são indicadas por Duns Escoto a propósito da com-
ele me reembolsará, mas não tenho o direito de exigir dele um suposto "juro" mutatio oeconomica, isto é, de uma troca de bens de consumo que o com-
nem mesmo de exigir uma restituição com data fixa enquanto sua situação prador não tem intenção de revender ou de utilizar em vistas de um lucro
continuar mais miserável do que a minha. É justamente para evitar qual- qualquer. Parece que a aplicação disso pode ser estendida, especialmente
quer especulação acerca da incompressível necessidade dos pobres que se - como sugere Hiquaeus - , a esses contratos de sociedade pelos quais
criarão mais tarde essas casas de penhores que, antes de degenerar, se apre- vários homens se associam para fundar e explorar uma empresa de inte-
sentaram primeiramente como instituições de caridade l12 , resse geral. O pacto é, com efeito, legítimo, desde que as eventualidades e

114 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade


115
,~

os lucros sejam igualmente partilhados, sem nenhum privilégio de segu- Tudo o que Duns Escoto afirma acerca da lei natural e de seus limites,
rança para qualquer um dos participantes: aquele que traz os "capitais" do consentimento e da eleição, da propriedade e de sua transferência, da
(bens de equipamento ou meios financeiros para adquiri-los) e aquele que condição servil, do papel reservado às trocas comerciais, da necessidade da
coloca em jogo sua habilidade e sua audácia 116. É nesse sentido que al- industria e do risco compartilhado, esboça a imagem de uma antropologia
guns, mais tarde, quererão interessar os trabalhadores pelos lucros de uma que seria perigoso modernizar demais, e absurdo separar de suas fontes teo-
empresa à qual seria injusto pedir, ao contrário, que assegure sem risco e lógicas, mas que é parte integrante da mais autêntica herança franciscana.
sem trabalho uma renda aos financiadores. Essas antecipações e essas extra-
polações serão talvez desculpadas se se pensar que, desde a aurora dos
tempos industriais, os discípulos de Duns Escoto puderam encontrar, nas
notas sucintas de seu venerado doutor, alguns princípios reguladores ca- NOTAS
pazes de moralizar as instituições econômicas, nascidas no final da Idade
Média na Itália, nos Países Baixos, nas cidades da Liga Hanseática, e logo 1 G. de Lagarde, La Naissance de l'esprtt lai'que au déclin du Moyen Âge, 11: Secteur
difundidas por toda a Europa ocidental. social de la scolastique, Louvain-Paris, 1958, p. 214-261. Essa segunda edição traz
algumas correções a uma exposição anterior que havíamos levemente criticado em nOSsa
No quadro de que dispomos aqui - e que já abordamos amplamente contribuição à Histoire de l'Eglise de Fliche-Martin-Jarry, tomo 13, 2a ed. Paris, 1956,
- não se trataria de buscar as origens de cada doutrina escotista nem de 367-370. O autor sustenta, quanto ao essencial, suas posições; quando nos censura por
julgarmos "pagã" a idéia de que o homem seja um animal político (p.253, n.l13), te-
confrontá-las exatamente com as opiniões de outros doutores. Nosso pro-
mos a impressão de uma leitura um tanto rápida da frase na qual dizemos apenas que
jeto foi sobretudo o de mostrar que, ainda que a regra moral não seja quase Duns Escoto ultrapassa a fórmula por demais "naturalista" do "pagão" Aristóteles; a
nunca inferida diretamente da lex naturae entendida no sentido mais ri- mesma expressão pode assumir sem dúvida outros significados em Santo Tomás. Nos-
goroso, longe de reduzi-la a um conjunto de disposições arbitrárias im- sas divergências quanto a detalhes valorizam ainda mais o texto que citamos aqui, pois
postas de fora, Duns Escoto confia inteiramente na iniciativa e na enge- as preferências tomistas de M. de Lagarde não o impedem de defender às vezes Duns
nhosidade do homem. Foi o que nos pareceu, especialmente quando se Escoto contra a absurda diatribe sumária de Landry, tão justamente refutada em sua
época pelo P. Longpré.
tratava de fundar - sob o controle deveras flexível da recta ratio - uma 2 Ord. lI! d.22 q. uno n. 18 (ed Vivés XIV 772 bl.
verdadeira autorictas politica, e de determinar melhores maneiras de re- 3 Platão, Político (ed. Bekker, 269 b); República VI, 501 b.
partir e de trocar os dominia primitivamente indistintos. Por mais decisi- 4 Aristóteles, Politica VII (ed. Bekker, 1325 b sq.).
,~.
va que seja a autoridade da Escritura, e por mais respeitável a dos filóso- 5 Santo Tomás (S. teoi. I q. 96 a. 4) não hesita em invocar a autoridade do Estagirita

fos, o mestre franciscano, nos domínios que poderiam lhe parecer secun- para definir no estatuto de inocência necessidades de hierarquia e de desigualdade cujos t
dários, se adapta com muito cuidado à variedade concreta das conjuntu- traços quase não encontramos na Escritura. Duns Escoto é, nesse sentido, mais reser-
vado; é, entretanto, a essa mesma tradição que remete, ao menos em parte, sua conviccão
ras. Longe de abandonar às forças do mal esse status iste abalado pela falta
de uma superioridade natural do homem sobre a mulher (que certamente não impediu
de Adão, e de ver para a cidade terrestre apenas a pura submissão a uma Maria de receber um privilégio que nenhum outro homem conheceu, mas que explica
autoridade despótica, encarregada de fazer reinar um mínimo de discipli- todavia que a Imaculada não tenha recebido da Igreja nenhuma forma de ordem sacer-
na e de virtude 1l7 , foi possível constatar qual o lugar que ele atribui aos dotal; cf. Ord. IV d. 25 n. 4 [ed. Vives XIX 140 ab]: "Nec matrem suam posuit [Christus]
recursos engenhosos de uma natureza que continua capaz, em grande parte, in aliquo gradu Ordinis in Ecclesia, cui nulla alia potuit vel non poterit in sanctitate
aequiparari. Ratio autem naturalis huic dieto consOnat. O argumento extraído do pe-
de prudência e de retidão.
cado de Eva não vale evidentemente para Maria; trata-se, pois, de uma distinção de
Sem que seja necessário opor aqui as exigências incondicionais da natureza entre os sexos, que não vale no plano da graça nem no da glória, mas que
razão às certezas da fé, os "peregrinos" deste mundo têm vocação para permanece decisiva para a divisão das funções na Igreja militante).
reger sua contingente comunidade, por mais provisória que seja, segundo 6 Cf. Agostinho, De civitate Dei XIX c. 13 (PL 41, 640). Sobre a communitas
a ordem menos injusta e mais eficaz. No respeito às pessoas e segundo a aggregationis como definição da cidade (Ord. IV d. 46 q. 1 n. 11 [ed. Vives xx 427
regra da estrita eqüidade, os próprios homens devem se mostrar dignos das a]), deve-se observar que Duns Escoro só destaca seu caráter inferior em relação a uma
communitas eminentis continentiae, que é de ordem sobrenatural. O emprego do ter- •
responsabilidades que implica para eles uma voluntas concebida, como
mo communitas acrescenta um elemento essencial à definição da ordo aggregationis como
sabemos, como a "causa total" de qualquer volitio 118 • Esse "humanismo" unitas minima (Ord. I d. 2 n. 403 [lI 356]).
não é apenas "teológico"119. 7 Ord. lI! d. 1 q. 1 n. 17 (ed. Vivés XIV 45 ai.

116 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade


117
li Apesar de alguns vestígios da natureza original, Santo Agostinho (De Civitate à Mesland, ed. Adam-Tannery IV 118) se recusará a "falar de Deus como de um Júpiter
Dei, XIX c. 13 [PL 41,640-6411) era sobretudo sensível à desordem da cidade carnal. ou de um Saturno", isto é, de "sujeitá-lo ao Estige e aos Destinos" (A Mersenne, 1142).
Duns Escoto (Rep. IV d. 15 q. 4 n. 9-11 [ed. Vives XXIV 234b-235b]) confia mais no 16 Ord. pró!. n. 330 (1216).
"príncipe cristão" e não duvida que, mesmo após o pecado, o homem possa criar para 17 Ord. IV d. 26 q. uno n. 3. 4 (ed. Viv(:s XIX 148a. 148b): "Nullus actus est
si "justas leis". Veremos que ele não parece fazer a esse respeito nenhuma distinção de sufficienter bonus moraliter ex ratione agentis vel obiecti. nisi amare Deum ... Nullus
princípio entre a cristandade e as comunidades antigas, mas seus exemplos remetem à actus est perfecte bonus ex genere tantum, sive ex solo obiecto, nisi amare Deum.
história judaica, não à dos povos pagãos. As sociedades que considera não estão abso- 18 Rep. IV d. 28 q. uno n. 6 (ed. Vives XXIV 378a): Omnís alius actus est indif-
lutamente abandonadas apenas a suas forças; sua fé religiosa e a Providência divina não ferens, qui est respectu alterius obiectí, et potest esse circumstionabilis bene aut male.
cessam de esclarecê-las em seu uso livre da vontade guiada pela recta ratio. Quanto a O adjetivo "indiferente" designa, aqui, um ato que, em outras circunstâncias (ou se, desde
isso, a situação do cidadão não deixa de ser análoga à do teólogo especulativo quando a origem, Deus tivesse tomado outra decisão quanto a isso) poderia receber uma outra
cle raciocina como filósofo (d. Gilson E.,Jean Duns Scot, Paris, 1952, 625s). qualificação moraL Parece adquirir um outro sentido onde Duns Escoto (Ord. 11, d. 41
9 Ord. 1II d. 37 n. 1 (ed. Vives XV 741 b). q. uno n. 4 [ed. Vives XIII 436a]) - opondo-se formalmente a Santo Tomás (cf. S. teol.
lO Santo Tomás, S. Teol. I-lI q. 100 a 8. 1-11 q. 18 a 8. 9.) - a aplica não apenas a atos que procedem somente da imaginação,
1! Para Santo Tomás (ibid. ad. 2. 3. 4.), Deus nada pode mudar quanto aos pre- como mexer na barba ou na mão, mas a livres decisões racionais que, entretanto, não
ceitos que resultam naturalmente de sua própria Justiça. A casuística permite entretan- implicam obediência nem desobediência a uma lei moral. Para o Doutor angélico (cf.
to alguma margem na definição daquilo que são, em cada caso, o homicídio, o roubo Sento IV d. 26 q. 1 a 4) qualquer ato é, por si mesmo, bom ou mau (ainda que o casa-
ou o adultério. Se os judeus se apoderaram sem dispensatio dos despojos dos egípcios, mento, enquanto "concedido", seja simultaneamente um mal menor e um bem menor,
é porque Deus os havia exatamente destinado a seu povo como bens legítimos (Ex. 12, o ato matrimonial pode apenas ser, de acordo com as circunstâncias, meritório ou de-
35-36); Oséas pôde se casar e retomar em seguida como mulher legítima a que Deus meritório). Na linha de Abelardo (que remonta de fato aos estóicos), Duns Escoto re-
lhe havia destinado como tal (Os. 1); quanto à autorização de combater no dia de Shahat serva as qualificações propriamente éticas a atitudes voluntárias de consentimento ou
(l Macch. 2, 41), esta é apenas uma interpretação da Lei, não uma verdadeira dispensa. de recusa diante de uma ordem reconhecida como taL
12 ~enos sensível à necessidade de conservar o valor absoluto de uma regra do 19 Santo Tomás, Sento IV d. 26 q. 1 a 1 - Cf. Summa contra gentiles III c. 123
que de interpretações que permitiriam uma acomodação às circunstâncias, Duns Escoto (onde a naturalidade do casamento é definida a partir do bonum hominis, exigindo a
admite que Deus efetivamente ordenou a Abraão um assassinato proibido pela Lei, que verdadeira ordo naturalis a sobrevivência da espécie por uma successio seeundum speciei
efetivamente prescreveu a Oséas uma conduta contrária às prescricões do Decálogo e similitudinem, mas também a instituição de um vínculo indissolúvel entre os cônjuges,
que os egípcios foram propriamente "despojados", como diz explicitamente o próprio pois se a educação das crianças requer a duração, a amizade recíproca a exige ainda mais).
texto da Escritura. Ele acrescenta que, segundo São Paulo (Rom. 3,20), é a Lei que dá Em Summa contra gentiles III c. 139, Santo Tomás evoca a conjunção entre uma lei hu-
o conhecimento do pecado. Ora, o que é malum ex lege naturae é conhecido natural- mana (baseada no instinto e na reflexão) e uma lei divina "sobrenatural" (concernente
mente como tal; a Lei teria sido então inútil se esses preceitos fossem de direito naturaL à significação mística do casamento). De qualquer modo, ea quae divina lege prae-
Enfim, a [ex naturae obriga em qualquer circunstância; se o Decálogo tivesse obrigado cipiuntur rectitudinem habent non solum quia lege posita, sed etiam seeundum naturam
i::
Adão antes do pecado, teria podido ser promulgado desde o início. Dito isso, o Doutor
sutil admite que as dispensas efetivas são raras e supõem uma intervenção explícita de
(ibid.). Duns Escoto, sem negar essa retidão, insiste mais no caráter contingente dos
preceitos aplicados às relações inter-humanas, de modo que, nele, o contraste entre a
r
Deus (Ord. IV d. 33 q. 1 n.4 fedo Vivés XIX 362b-363a]; q. 3 n. 5 [p. 386bll· "natureza" propriamente dita e exigências de perfeição sobrenatural é menor. E quan-
Li Rep. 11 d. 22 o. 3 (ed. Viv(:~ XXIII 104 b): "Omnia peceata quae sunt cirea to a essas últimas o Aquinate enfatiza seu aspecto de sacrifício, pois implicam a ampu-
deeem praecepta, formaliter non tantum sunt mala quia prohibita, sed quia mala ideo tação de certos aspectos do communis modus humanae vitae (ibid. c. 131).
prohibita. Através de seu ato livremente criador Deus deu então às coisas uma "nature- 20 Ord. IV d. 26 q. uno n. 7 (ed. Vives XIX 149b).
za" que determina a seu respeito uma certa "justiça" (Ord. IV d. 46 q. 1 n. 7 9-10 [ed. 21 Aqui o próprio jogo dos comparativos e dos superlativos destaca uma certa
Vives XX 424b. 425bA27a)). Ockham, ao contrário, define sempre o bem moral em margem de indeterminação entre ius naturale c ius positivum; cf. ibid. (p.IS0a): "Sicut
relação a uma prescrição positiva cujo caráter coativo prende~se como tal apenas à de- dictum est supra, distinctione 17, propriissime de lege naturae est principium practicum
cisão divina. Não esqueçamos entretanto que, ainda que, para ele, Deus é forçado pelo per se notum, et conclusio demonstrative descendens ex tali principio; secundario autem
princípio da não-contradição somente a não odiar a si mesmo, de modo que não se de lege naturae est verum evidenter consonum talibus princiípis et conclusionibus, /icet
poderia excluir _ de potentia absoluta - a hipótese teórica de uma decisão que torna- non necessario sequens; et hoc modo marem et feminam obligari ad finem praedictum
ria meritórios não apenas o roubo c o adultério, mas mesmo a idolatria (isto é, a trans- est de lege naturae.
gressão de um preceito da primeira Tábua), Ockham (Sent. II d. 19) admite, de fato- 22 É a propósito da penitência que Duns Escoro (Ord. IV d. lS q. 2 fedo Vives
de potentia ordinata - a existência de um direito natural no qual cle integra o conjun- XVIII 255a-354a] e Rep. IV d. 15 q. 4 fedo Vives XXIV 233a-2S4b]) examina a obriga-
to das instituições jurídicas de seu tempo. ção de restituir os bens injustamente detidos e considera antes de tudo o próprio prin-
14 Quodl. q. 16 n. 18 (ed. Vivé, XXVI 201 ab). cípio da apropriação.
1 ~ Em uma perspectiva análoga - porém mais radical, visto que se estende às ver- 23 Santo Tomás, Sento IV d. 26 q. 1 a. 1: "Alio modo dicitur naturale ad quod natura
dades matemáticas e, de certo modo, ao princípio de não-contradição - Descartes (Lettre inclinat, sed mediante libero arbitrio completur... Et hoc modo matrimonium est naturale,

Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 119


118
quia ratio naturalis ad ipsum inclinat dupliciter: primo, ad principalem eius finem, qui 30 Sem desconhecer seguramente o melius (acitde I Cor. 7, 38, Santo Tomás insis-
est bonum prolis ... ; secundo, quantum ad secundarium finem matrimonii, qui est mutuum te na variedade das vocações "naturais": a natureza não inclina igualmente todos os homens
obsequium sibi a coniugibus in rebus domesticis impensum. Sicut enim naturalis ratio dictat para as mesmas atividades, ainda que todas sejam úteis à comunidade; conseqüentemen-
ut homines simu/ cohabitent, quia unus non sufficit sibi in omnibus quae ad ipsam vitam te, se o casamento não é absolutamente exigido (como já o sabiam os filósofos antigos),
pertinent, ratione cuius dicitur homo naturaliter politicus; ita etiam eorum quibus indigetur é porque é importante que alguns se ocupem da contemplação: Et sic contingitquod quidam
ad humanam vitam, quaedam opera sunt competentia viris, quaedam mulierihus. Unde eligant matrimonialem vitam et quidam contemplativam. Unde nul/um pericu/um imminet
natura movet ut sit quaedam viri ad mulierem associatio, in qua est matrimonium. Con- (Santo Tomás, Sento IV d. 26 q. 1 a. 3). O conselho evangélico de castidade é aqui apro-
cordando com o Aquinate quanto ao primeiro fim, Duns Escoto define o segundo como ximado da vocação filosófica, correspondente à divisão natural das funções no interior
um contrato de troca entre dois corpos mais do que como uma divisão natural das tarefas. de uma sociedade hierarquizada. O Doutor angélico não ignora evidentemente que esse
24 Ord. IV d. 26 q. uno n. 9 (ed. Vives XIX 161 a): Minus obediunt homines soli conselho se dirija a todos os homens (não a uma casta restrita). Mas é por demais realis-
legi naturae quam Deo praecipienti, quia minus timent et reverentur conscientias proprias ta para considerar o caso em que, tendo a grande maioria (ou mesmo uma minoria muito
quam auctoritatem divinam. forte) de cristãos escolhido o caminho estreito, haveria efetivamente "perigo iminente",
25 Ibid. n. 19 (p.189b): Unde ergo primo est honestas contractus huius, vel obli- não apenas para a cidade inteira, no plano demográfico e no que concerne à produção e
gationis isto modo, vel institutio, vel approbatio divina respectu eius ad istum finem. à troca de riquezas, mas mesmo para o grupo ampliado dos contemplativos que só po-
Respondeo: non apparet facile quod secundum rectam rationem debeat quis in illo actu dem ser recrutados se o casamento for o prêmio do maior número e que só subsistem,
praecise ad delectationem aspicere, immo magis oppositum videtur consonum rationi; dia após dia, pela caridade dos menos perfeitos. Em uma hipótese como essa, seria ne-
ergo magl:s tolerandum, quia non videtur inveniri ibi (inis laudabilis, nisi procreatio prolis. cessário que os clérigos e os monges voltassem aos primeiros costumes dos primeiros
Ratio etiam naturalis non videtur conc/udere aliquam honestatem in actu iIlo, nec per tempos, quando São Paulo fabricava tecidos de tendas e o casamento seria provavelmente
consequens in obligatione, vel cum contractu obligatorio mutuo ad illum actum, nec per necessário como na época dos Patriarcas. Para solucionar um problema teórico desse tipo,
consequens quod legislator recte debeat contractum, ve/ obligationem, approbare vel as teses escotistas fornecem talvez mais elementos do que a visão tomista.
instituere. Após ter examinado a "justiça" própria à dupla doação de corpos entre CÔn- 31 A dupla maldição lançada sobre as crianças nascidas desse incesto (Deut. 23,
juges, Duns Escoto prefere recorrer ad institutionem Dei, tendo essa instituição como 3-4 e sobretudo 32, 31-32) não faz alusão de forma explícita à falta cometida pelas fi-
único fim a propagatio e tornando finalmente lícito (a título de concessão) o contrato lhas de Lot. Seu próprio pai será considerado como um "justo" (Sap. 10,6 e 11 Petr. 2,
mútuo dos cônjuges (ibid. n. 20 [p. 190ab]). 7) ainda que tenha oferecido suas filhas virgens à cobiça de seus compatriotas (Gên. 19,
261bid. n. 5 (p. 149a). Notemos a ordem dos três bens que representa uma hie- 9). Duns Escoto não se detém na exegese desses casos difíceis (associados a um estado
rarquia descendente. Santo Tomás coloca aqui como fim primeiro a educatio prolis. A arcaico da moralidade), pois estes quase não lhe fornecem argumentos utilizáveis para
diferença é que Duns Escoto cita de Aristóteles apenas a definição do homem como animal sua teoria das dispensationes.
natura/iter coniugale et domesticum, não como animal politicum; a faml1ia, com efei- 32 Cf. s. Agostinho, De bono coniugali c. 25 (PL 40, 395).
to, para ele, é mais imediatamente "natural" do que a cidade. 33 Esses textos poderiam fornecer alguns elementos ainda utilizáveis para o problema
27 Ibid n. 8 (p. 159b). Em uma perspectiva em parte feudal, mas de alcance mais da limitação dos nascimentos nos países superpovoados nos quais a doença e a fome não
amplo, todo contrato exige a aprovação do dominus superior. Não é pois contraditó- desempenham mais seu papel de equilíbrio demográfico. Na Idade Média a questão era
rio descrever o contrato conjugal como um pacto livre (submetido, às vezes, à estrita colocada, antes, em termos inversos, mas Duns Escoto (que escreve ainda em um período
regra do do ut des) e subordiná-lo às leis impostas por Deus, enquanto senhor de todos no qual a população acabava de conhecer um crescimento provisório) não imagina mais
os corpos. Esse duplo aspecto é retomado a propósito do uso dos dominia e mesmo no do que Santo Tomás a hipótese de um perigo iminente de diminuição da natalidade.
que concerne ao pacto social, mas apenas a lei divina pode impor a indissolubilidade 34 Ord. IV d. 33 q. 1 n. 2 3. 4 (ed. Vives XIX 359b. 360a. 362a). O argumento
do casamento; as sociedades políticas relacionam-se mais, em sua própria estrutura, à não vale evidentemente para Lamech, que desposou duas mulheres por sua própria ini-
livre decisão dos contratantes. ciativa e sem que a recta ratio justificasse aqui nenhuma dispensa. No entanto, é ape-
28 Essa adhaesio não é por isso imposta arbitrariamente; é aqui que intervém o nas "provável" que ele tenha pecado contra a lex naturalis (entendida secundo modo).
consonum rectae rationi. A doação mútua e definitiva dos corpos é, com efeito, razoáve~ O caso dos Patriarcas é diferente, pois a impiedade crescente fazia temer um desapare-
para evitar as dissensões, e a título de mal menor; como um bom suserano, Deus aprova cimento próximo do pequeno núcleo dos piedosos fiéis (ibid. n. 8 [p. 364b]).
apenas uma translação" honesta (cf. ibid. n. 10 [p. 161b]: Corpus cuiuscumque est Dei, 35 Ibid. n. 6 (p. 364a). Nessa hipótese, a justiça da troca permaneceria salva no
iure creationis; ergo nul/us potest transferre il/ud in dominium alterius, nisi in quantum que concerne à função procriadora (para a qual um só homem equivale a várias mulhe-
Deus approbat; ergo, si translatio est honesta ... , sequitur quod congruum est Deum istam res); no que se refere ao debitum conjugale, seria necessário que uma dispensa explícita
translatíonem corporum approbare). Trata-se apenas, bem entendido, de aprovação, não liberasse os maridos de uma parcela de sua obrigação.
mais de ordem formal. O homem é livre para se vender como escravo (ainda que a Escritura 36 O paradoxo é aqui o de ver Duns Escoto (que é freqüentemente acusado de
não aprove essa tolice, mas Deus permite tudo o que não é contrário ao Decálogo; cf. voluntarismo e de convencionalismo) multiplicar as justificações "naturais" e "racionais"
ibid.: in quibus Deus non obligat sibi hominem vel sua, relinquit ea voluntati hominis) A de "dispensas" e de "revogações" que dependem apenas da decisão divina, ao passo que
fortiori ele tem a licença para estabelecer um vínculo que a Escritura aprova expressis verbis. inversamente Santo Tomás (Sent. IV d. 33 q. 2a. 2) -que assimila mais a lei divina à lei
29 O que só seria possível após a paixão de Cristo, fonte de toda graça. da natureza - vê antes nessas intervenções sobrenaturais fatos semelhantes a milagres.

120 Ma urice de Gandillac Gêneses da Modernidade 121


"Ord. IV d. 15 q. 2 n. 7 (ed. Vivés XVIII 266a). decisão divina modifica os próprios termos do preceito, e tudo pertenceria de direito a
38 lbid. n. 3. 6 (p. 256h-257a. 265ab). A expressão [ex naturae não vem acom- um único homem, como os bens dos egípcios pertenceram aos hebreus e como a pros-
panhada aqui de nenhuma especificação, mas sabemos que apenas a primeira Tábua tituta se tornou a mulher legítima de Oséas. Não haveria aqui exceção à regra, mas uma
da Lei contém preceitos rigorosamente "indispensáveis". t preciso, entretanto, distin- formulação diferente do princípio de justiça.
guir o que poderia ser de outro modo de potentia absoluta (e especialmente toda a se- 45 No narrativa do Gênesis - que opõe (de passagem) a vida pastoral dos hebreus
gunda Tábua, como a própria natureza do homem criado) e o que comporta uma de- à organização urbana e agrícola dos egípcios (Gên. 46, 34) e que descreve demorada-
terminada variabilidade, mesmo de potentia ordinata. A comunidade original parece se mente (na única perspectiva providencial da sobrevivência assegurada ao povo eleito) a
impor absolutamente desde que Deus criou o homem tal como o fez efetivamente, sen- instituição, por José, de um verdadeiro socialismo de Estado (Gên. 47, 15ss), nada in-
do a revogação legitimada apenas a partir do pecado. dica uma preferência fundamental por esse ou aquele regime social. Ao proibir o rou-
39 Rep. IV d. 15 q. 4 n. 7 (ed. Vivés XXIV 233b-234a). bo, o Decálogo visa a um pecado que pode muito bem existir no interior de uma comu-
,rI,
40 Ainda aqui a posição de Santo Tomás é bastante diferente. Para ele, a apropria- nidade na qual tudo pertence ao soberano (ou em um falanstério no qual a apropriação
ção privada é de direito natural (o direito positivo apenas especificando as modalida- individual de um objeto comum é feita em detrimento de todos).
des peradinventionem rationis naturae, S. teol. lI-lI q. 66 a. 2). No próprio Paraíso não 46 Rep. IV d. 15 q. 4 n. 9 (ed. Vivés XXIV 234b). Cf. Ord. IV d. 14 q. 2 n. 7 (ed.
se podia conceber verdadeira "igualdade" pois, como disse Santo Agostinho (De civitate Vivês XVIII 59b): Finis autem legis positae ab homine legem (erente nOI1 est ipse legis-
Dei XIX c. 13 [PL 41, 640J), e como o mostrou Dionísio em sua De caelesti hierarehia lator, vel bonum eius, sed honum eommune. É por isso que a vindicta ad istum (inem é
na qual todos os Anjos são estritamente subordinados, ardo ... maxime videtur in dis- mais razoável do que a vingança privada.
paritate eonsistere (S. teol. I q. 96 a. 3). 47 Lagarde, op. cito p. 253.
41 Pode-se duvidar que um filho de São Francisco tenha se iludido tanto acerca 48 O termo eongregatio, diversas vezes empregado aqui, tem suas cartas de no-
da aptidão da propriedade privada em salvaguardar o quinhão dos pobres no interior breza na história eclesiástica. Quanto à palavra aggregatio, esta define, em Boécio,
de uma sociedade desigual. Mas a própria mendicância supõe que se insira em um mundo uma operação que é mais do que a justaposição de unidades; no latim de César, se
no qual preexiste um determinado acúmulo de bens. Os dominicanos e os franciscanos aggregare ad amicitiam alicuius sugeriria algo bem diferente do que a coligação ex-
não imaginaram instituir falanstérios produtivos, como tentarão fazê-lo mais tarde os terior de interesses.
jesuítas do Paraguai. Sonhos desse gênero derivam a seus olhos da utopia milenarista, e 49 Até o momento em que a pressão dos filisteus se torna mais diretamente ame-
apenas os elementos "joaquinzantes" da Ordem dos Menores puderam ser seduzidos açadora, os grupos seminômades que Josué havia instalado no país de Canaã tinham
pela extensão institucional de um tipo de comunidade que Duns Escoto julga tão seve- permanecido simples famílias, ou clãs exogâmicos, não tendo outra unidade a não ser
ramente quanto Santo Tomás. o culto do mesmo Deus (e ainda seria necessário que os Juízes lhes lembrassem periodi-
42 Ex. 10, 17: "Não ambicionarás a casa de teu próximo ... , seu servo, sua criada camente a fé de seus ancestrais). Quando as "gentes de Israel" propõem a Gedeão a ins-
nem seu boi ou seu asno; em suma, nada do que é dele". tituição em seu favor de uma monarquia hereditária, o vencedor dos madianitas res-
4, Além dos mandamentos explicitamente formulados no Paraíso (fecundida- ponde: "Não sou eu que reinaria sobre vós e tampouco meu filho, é Iavé que deve ser
de, trabalho, casamento, proibição de comer o fruto da árvore do conhecimento), ao vosso soberano" (Iud. 8,22). Ao lado da auctoritas paterna ele não reconhece então
lado das ordens circunstanciais dirigidas a determinados indivíduos (Noé ou Abraão), nenhum outro poder legítimo a não ser a ação imediatamente protetora e punitiva de
não encontramos, no Gênesis, senão proibições alimentares e o prece-ito ritual da cir- Deus. Abimelech, ao contrário, exigirá se tornar um verdadeiro chefe político (em nome,
cuncisão. O único texto que anuncia diretamente o Decálogo é, cle mesmo, apresen- é verdade, de seu parentesco materno) e se fará reconhecer como rei pelos notáveis de
tado sob a forma de prevenção e de ameaça mais do que de mandamento ("Quem Sichem (fud. 9,2-6), mas o apólogo profético de Yotham (Iud. 9, 7s) indica bem a re-
verte o sangue do homem pelo homem terá seu sangue vertido," Gên 9, 6). No en- pugnância dos hebreus quanto à instituição de uma monarquia. O problema seria co-
tanto, o dilúvio e a destruição de Sodoma (após a vã procura dos "justos") indicam locado de uma outra maneira a partir de Samuel, e se tratará efetivamente de justapor
suficientemente que Deus espera dos homens, mesmo após a queda, uma certa mo- assim à simples autoridade familiar uma autorictas po/itiea no sentido mesmo em que
ralidade "natural", que conceme tanto a suas relações sociais quanto a sua vida pro- a entende Duns Escoto, sem que nenhum desses poderes seja subtraído à regulação su-
priamente privada. A esse respeito, Duns Escoro destaca freqüentemente o papel da prema de Deus (cf. R. De Vaux, Les livres de Samuel (Bihle de Jérusalem], Paris, 1953,
liberdade humana. Veremos que para ele a autoridade política não é essencialmente Introdução 12-13).
fundada no "direito divino" nem mesmo em uma pura exigência da ordem como tal; 50 Aos judeus que exigem agora um rei, Iavé dá, parece, total liberdade; sob suas
como o contrato matrimonial, o pacto social, quaisquer que sejam suas finalidades ordens, Samuel se satisfaz em colocá-los em guarda contra os inconvenientes do pactum
superiores, é antes de tudo obra da vontade. suhiectionis. É verdade que é Deus que designa expressamente Saul (e que em seguida o
44 Rep. II d. 33 q. uno n. 20 (ed. Vives XXIII 164a): Regulariter de necessitate pune por sua desobediência favorecendo a ascensão de David), mas uma outra narrati-
salutis est reddere unicuique quod suum est... Si tamen Deus... diceret alicui: 'Consti- va evoca claramente um "sorteio", seguido por uma "aclamação" e por uma "procla-
tuo te dominum totius mundi', ipse tune posset capere ubicumque vellet, quia Sua esset, mação" (I Reg. 10,21-24; 11, 5). O próprio David será primeiramente "ungido como
et non esset debitor, reddendo euilibet quod modo est suum. Duns Escoto aplica aqui, rei" pelos "homens de Judá" (lI Reg. 2,4); após negociações, será um verdadeiro pacto
como vemos, a uma hipótese puramente dialética, o princípio de exegese utilizado por o que concluirão com ele "os homens de Israel", seguramente "na presença de Iavé",
Santo Tomás a propósito das aparentes dispensas do Decálogo referidas na Escritura; a mas Deus não sendo aqui senão testemunho e garantia (lI Reg. 5, 3).

122 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 123


51 Santo Tomás insiste, ao contrário, na ordem já institucional que devia regula- do que Duns Escoto, mas seus pensamentos são próximos, ainda que um insista mais
mentar no Paraíso as relações de subordinação. Do mesmo modo que Adão recebeu poder nos "direitos" atuais dos súditos, o outro na origem legítima do poder.
para regulamentar as competições naturais entre animais e dar a sua justa alimentação 58 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 2 (ed. Vivés XIX 446a).
aos animais carnívoros (como atualmente o senhor sacrifica suas galinhas a seus falcões), 59 Sobre a constituição dos "sauvetés", "bastides" ou "villes franches" sob a con-
foi preciso regulamentar as ordens de precedência entre indivíduos necessariamente de- duta de um promotor que chama colonos c lhes dá uma carta, cf. G. Duby, L'économie
siguais (quanto não fosse devido à "disposição do ar" e à "influência dos astros"). A es- rurale et la vie des campagnes dans /'Occident médiéval, I, Paris 1962, p. 148.
cravidão só foi impensável porque comporta uma certa poena subiectorum, mas a su- 60 Santo Tomás define sobretudo o poder real por sua função e pelas virtudes de
bordinação política dos menos sábios e dos menos fortes é naturalmente aceita pelo ser um bom pastor que se faz amar por seus súditos. O papel do príncipe é mais importan-
razoável (cf. s. Teol. Ia q. 96 a. 4: Unde homines, in statu innocentiae, socia/iter vixissent. te do que a origem histórica de sua autoridade. As leis que ele promulga procedem di-
Socialis autem vita multo rem esse non posset, nisi a/iquis praesideret, qui ad bonum reta ou indiretamente da lex naturae e, em todos os regimes, encontramos as mesmas
commune intenderet. Não chega a ser surpreendente, assim, que o Angélico invoque aqui articulações fundamentais (S. teol. I-lI q. 95 a. 4), mas a idéia de um poder "confiado"
Aristóteles como autoridade principal!). Apoiando-se em Santo Agostinho, que não faz por via contratual continua estranha à tradição aristotélica (da qual Dante é também
nenhuma distinção no Paraíso terrestre entre autoritas paterna e autoritas politica, A. testemunho) que concorda com a Bíblia para apresentar modelos superiores de bons
Hiquaeus, Commentarius ad Ord. IV d. 15 q. 2 fedo Vives XVIII 267 a., 269a, 270b], príncipes. A posição escotista parece em parte inspirada pela experiência inglesa das
defende Duns Escoto ao declarar que no estatuto da inocência os filhos obedeceriam es- liberdades e das franquias. Sobre a necessidade de uma "presidência" que se funda em
pontaneamente aos pais, sem iurisdictio e no plano da pura amizade, e que todo mundo outras bases institucionais além do simples exercício concreto da virtude de prudência,
obedecia a Deus, sem nenhuma auctoritas principans, a qual supõe sempre uma indigentia cf. Ord. IV d. 15 q.2 n. 6 (ed. Vives XVIII 265b): Lex positiva iuste requirit in legislatore
e um defectus na vontade ou no intelecto; nesse campo é preciso seguir o conselho dos prudentiam et auctoritatem. Prudentiam, ut secundum rectam rationem practicam dictet
Padres, não o de Aristóteles, que conhece apenas o status peccati. quid faciendum pro communitate. Auctoritatem, quia dicitur lex a 'ligando'; sed non
52 Segundo a Reportatio, Duns Escoto pensa que o princípio quod nul/ius iuris quaecumque setentia prudentis ligat communitatem nec aliquem, si nulli praesideat.
est, primo occupanti conceditur foi instituído, seja pelo próprio Adão em favor de seus 61 Especialmente, como veremos adiante, no que concerne ao controle das tro-
filhos, seja pelo "consentimento comum" desses últimos (o que sugere a possibilidade cas e ao direito da propriedade.
de um tipo de primeiro pacto social, mas limitado à divisão das terras e dos rebanhos) 62 A palavra latina servitus é de ampla extensão; pode designar a submissão po-
(Rep. IV d. 15 q. 4 n. 12 [ed. Vivés XXIV 235b·236aJ). lítica ou a escravatura antiga, situando-se as formas medievais da servidão em uma
53 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 8 (ed. Vives XVIII 270b-271a). Aqui Duns Escoto re- zona intermediária, freqüentemente mal delimitada.
monta apenas a Noé, o qual post diluvium ... filiis suis distinxit terras, quas singu/i 63 Cf. B. Landry, La philosophie de Duns Scot, Paris, 1922, especialmente p. 351-
occuparent pro se... ; vel ipsi de communi concordia inter se diviserunt, sicut legitur, Gên. 353, e as justas críticas de E. Longpré, mesmo título, Paris 1924.
13 [6-13] de Abraão e de Lot". Se a lei instituída pelo príncipe ou pela comunidade 64 S. Tomás, S.teol.lI-I1 q. 57 a. 3 ad 3. Em seu comentário das Sento IV d. 26 q. 1,
estipula que as terras livres pertençam ao primeiro ocupante, deve-se observar o inte- após ter estabelecido o caráter natural do casamento, Santo Tomás se pergunta se o pre-
resse de todos, mas essa não é absolutamente uma obrigação de direito natural. ceito matrimonial vale ainda sob a nova Lei. Ele observa que a natureza se inclina de duas
54 Ibid. (p.271a): Vellex a/iqua promulgata est a patre, vel ab aliquo electo ab eis maneiras, seja no que é necessário à perfeição do indivíduo (e nesse sentido essa tendência
in principem, ve/ a communitate, cui ipsamet communitas commisit istam auctoritatem. desemboca em uma obrigação comum a todos), seja no que é necessário apenas a perfectio
55 S. Gregório M., Regu/ae pastoralis liber pasto 2 c. 6 (PL 77, 34). mu/titudinis (e nesse sentido ninguém está obrigado ao casamento, não mais do que à
56 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 2 (ed. Vivés XIX 446a). profissão agrÍCola, visto que convém que algumas se dediquem à vida contemplativa e parece
57 Nicolau de Cusa, De concordantia catho/ica 11 C. 14 (Opera omnia, XIV-2, ed. que essa exceção concerne apenas por acaso a indivíduos de condição servil).
Kallen G., Hamburgi 1965, 162): Si natura aeque potentes et aeque liberi homines sunt, 65 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 5-6 (ed. Vives XIX 448ab). Para Duns Escoto ninguém
vera et ordinata potestas unius communis aeque potentis naturaliter non nisi electione está obrigado a "multiplicar a espécie". Th. Sánchez (De matrimonii sacramento VII dispo
et consensu aUorum cOnstitui potest, sicut etiam lex ex consensu constituitur. Apesar 21, tomo 11, Venetiis 1726, 64b-65a) objetará que é preciso distinguir entre direito e obri-
dessas fórmulas categóricas, o pacto assim definido será mais nitidamente do que em gação, e sobretudo que o segundo fim do casamento é o de evitar a fornicação. Forçando
Duns Escoto um pactum subiectionis (pacto generali convenit humana societatis velle o escravo ao celibato, corre-se o risco de induzi-lo ao pecado. É justamente por isso que
regibus obedire). O Doutor sutil está mais próximo, a esse respeito, de Godofredo de o Doutor sutil deseja que de fato o senhor renuncie a tal imposição. Mas lhe parece indevido
Fontaines que, em seu Quodl. XI, q. 17 (PhB V 77), a propósito do direito do príncipe e perigoso basear essa renúnica em uma verdadeira ius naturae.
em impor uma taxa ao povo, eScrevia que os homens livres não devem pagar impostos 66 E isso sem que uma quase-sacralização da "vontade geral" permita aqui apli-
a não ser após seu consentimento expresso, acrescentando que o príncipe "não tem o car os paradoxos de Rousseau quanto ao caráter inalienável de uma vontade que, em
direito de governar a não ser a comunidade inteira, pois é esta que o elege, o institui, o um contrato social, se afirma plenamente a cada vez que concorda com o bem público,
aceita ou lhe dá seu consentimento", com a condição de que ele exerça seu poder "para resolvendo-se os aparentes conflitos pela recusa das vontades privadas que seriam ape-
o bem comum". Senão os súditos podem resistir "até que conselheiros qualificados te- nas falsas manifestações da liberdade (Cf. Rousseau, Contrato Social III C. 2, onde a "von-
nham podido examinar a oportunidade das medidas propostas" (de acordo com Lagarde, tade própria do indivíduo, que tende apenas à sua vantagem particular", é expressa-
op. cito p. 196-197). Godofredo havia se formado em um ambiente mais "republicano" mente oposta à "vontade do povo, ou vontade soberana", que deve ser "sempre domi M

124 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 125


nante e a regra de todas as outras". É por isso que o pacto social era definido como uma za O homem livre, Aristóteles (política I led Bekker, 1254bJ) sugeria entre essas duas
agregação na qual "cada um de nós torna comum sua pessoa e todo seu poder sob a raças uma diferença de ordem moral, que é difícil de sustentar em uma perspectiva cris-
suprema direção da vontade geral" libido I c. 6], e Rousseau admitia finalmente, o que tã. Os comentadores medievais insistem mais na "fraqueza" daqueles que, como as crian-
prepara todos os excessos jacobinos, que se pode "forçar" o cidadão a "ser livre"). ças, têm necessidade de mestres que os conduzam à virtude. Duns Escoto particularmente
67 Essa tese é extensamente desenvolvida na segunda parte do Roman de la Rose, fornece desses textos célebres uma pia interpretatio que justificaria, não a condição
onde se enfatiza o valor natural da procriação de modo que o homossexualismo aí não propriamente servil, mas a necessária submissão dos cidadãos ao "príncipe que os rege,
é menos condenado do que a castidade. Mas as censuras de Estevão Tempier referem~ não para o mal, mas para o bem. Ora, a vil servidão é exatamente uma situação quae
se igualmente às proposições mais radicalmente hedonistas. est ad malum hominis. Pode~se, pois, defini-la como pure naturalis, sed tantum de lege
6SSe o escravo casa com uma mulher livre, esta deve ser advertida de que este só et iure positivo (Rep. IV d. 36 q. 2 n. 5 [ed. Vives XXIV 459a]). É bem verdade que,

~
pode lhe dar a parte "módica" de poder que ele mesmo conserva sobre seu corpo (Ord. como disse o Filósofo, pollens mente debet praesidere, pollens viribus debet servire, mas
IV d. 36 q. 1 n. 8 fedo Vives XIX 452 b]). É por isso que todos os doutores reconhecem esse princípio só vale de servitude politica, qua inferior disponitur a superiore, non tamen
como inválida uma união entre pessoas que esconderam sua condição servil uma da outra. sicut inanimatum, sed sicut minus vigens mente ordi114tur per il/um qui magis pol/et mente
A única nuance de expressão entre Santo Tomás e Duns Escoto (no caso do casamento (Ord. IV d. 36 q. 1 n. 3 fedo Vives XIX 447a]). Duns Escoto não ignora entretanto as
autorizado pelo senhor) é que um se dirige diretamente ao escravo e declara que este deve passagens nas quais Aristóteles comparava o escravo a um animal de carga, pelo me-
praetermittere servitium domini imperantis et reddere debitum uxori, pois a autorização nos no uso que dele faz seu senhor, ainda que o Estagirira reconheça uma certa superio-
dada implica por si mesma "a concessão de tudo o que o casamento implica" (Santo Tomás, ridade daquele que usa ferramentas em relação àquele que é, ele mesmo, apenas uma
Sento IV d. 36 q. uno a. 1 ad 3), ao passo que o segundo apela mais à consciência do se- ferramenta. O doutor franciscano estende essa diferença até o nível do "livre-arbítrio,
nhor, pois não é senão "implícito" que, por sua autorização, dominus relaxat iIla servitia ainda mais nitidamente definido em sua obra do que na do autor da Política I c. 4 (ed.
consueta. t. desejável que o bom senhor vá o mais longe possível nesse caminho, mas o Bekker, 1253s) (o qual falava apenas de uma forma sensitiva da razão, não inteiramen-
casal de escravos só tem direito de desfrutar seu casamento tanto quanto o que lhe per- te passiva), e ele conclui (Ord. IV d. 36 q. 1 n. 9 fedo Vives XIX 453a]): Quod Philosophus
mitem os servitia consueta (Ord. IV d. 36 q. 1 n. 8 fedo Vives XIX 452 bJ). dicit de servitude dia maledicta, qua servus est sicut pecus, potest intelligi quod est domini
69 A única restrição é que a esposa deve saber de todos os perigos que corre uma sui sicut possessio vel pecunia, non tamen quod in actibus suis ducatur tantum et non
união realizada sem a autorização do senhor e que, conseqüentemente, não cria para ducat, quia quantumcumque sit servus, est tamen homo, et ita /iberi arbitrii.
ele nenhuma obrigação, mesmo restrita. Se decide enviar o marido para a África e a 75 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 6 (ed. Vives XVIII 265b): {Lex naturaeJ determinavit in
mulher para a França, o senhor dá provas de evidente crueldade, mas não ultrapassa natura humana hoc, quod omnia essent communia. .1,
seus direitos. Como observa A. Hiquaeus em seu comentário (ed. Vives XIX 457a), muitos 76 No início do século XIV, na Europa ocidental, ainda que a atrelagem racional
doutores julgaram "dura" uma sententia que só se justifica na ordem do ius civile et dos animais de tração, a multiplicação dos moinhos, o progresso das técnicas agrícolas
politicum (e que devia surpreender um leitor do século XVII porque não correspondia tenham aproximado um pouco a humanidade do tempo do qual Aristóteles falava (sem
mais à situação efetiva de sua época). acreditar nisso), em que "as lançadeiras teciam por si mesmas", a participação da força
70 Sem evocar certos conflitos mais recentes, que concernem, por exemplo, à física continua preponderante no trabalho produtivo, mas o assalariado está em vias
oposição entre o dever militar de obediência imediata e o caráter desumano de certas de substituir, à servitus antiga, uma outra forma de exploração do homem pelo homem,
ordens (genocídios, massacres de civis, uso da tortura). que não depende menos de regras morais definidas por Duns Escoto.
71 Cf. Duby, op. cit, I, capo 1. Esse autor observa que o destino desses escravos 77 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 2 (ed. Vives XIX 446b): Ista vilis servitus non potest esse
tinha sido bastante abrandado desde a época carolíngia, mas eles podiam ainda ser ven- iuste inducta, nisi dupliciter. Uno modo, quia aliquis vo/untarie se subiecit tali servituti,
didos e comprados. Na época de Duns Escoto as diferenças de estatuto jurídico conta- licet talis subiectio esset (atua, immo forte contra legem naturae quod homo libertatem
vam menos do que a oposição dos níveis de vida entre os trabalhadores, proprietários suam a se abdicet. Bem entendido, esse argumento não vale, como vimos, contra os vo-
de um cavalo e de uma carroça, e os trabalhadores braçais que possuíam apenas sua tos de religião e tampouco contra a subiectio civilis. Aplica-se, antes de tudo, ao caso
força de trabalho para vender. de uma escravatura que privaria o indivíduo de sua autonomia moral (Rep. IV d. 36 q.
72 É verdade que a servitus, que por si mesma pertence aos fugienda (ao passo 2 n. 6 fedo Vivós XXIV 459aJl.
que o casamento é um per se expetendum), não responde à "primeira intenção da natu- 78 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 2 (ed. Vives XIX 446b): Postquam tamen facta est, necesse

reza" e é por isso, como já vimos, que o Paraíso excluía a poena subiectorum, ligada à est servare, quia hoc est iustum.
condição servil (S. Tomás, s. teol. I q. 96 a. 4), mas ela corresponde à secunda intentio 79 Ibid. - Duns Escoto espera do príncipe cristão que este use castigos severos
naturae, visto que foi introduzida in poenam peccati (como a submissão da mulher ao contra a blasfêmia e a idolatria, que contradizem a "honra de Deus", mais do que san-
homem, cf. Gên. 3, 16, e a aproximação nada tem de impertinente, visto que a nature- cionem com excessivo rigor as faltas que não dependem senão do commodum temporale
za visa antes de tudo a fazer homens e só produz como segunda intenção (eminam quae (Ord. IV d. 15 q. 3 n. 5 fedo Vives XVIII 366ab]). Se a [ex de vita pro vita reddenda
est mas occasionatus [5. Tomás, Sento IV d. 36 q. 1 ad 2]). parece conforme à natureza, ela só é contudo legítima potque foi confirmada por Deus
(admitindo-se, bem entendido, como fazem os escolásticos, que o versículo de Mateus

73 Cf. Santo Tomás, S. teol. 11-11 q. 57 a. 2 e 3.
74 Apoiando-se em uma diferença biológica entre os corpos de escravos, vigoro- 26,52, sobre o destino prometido àqueles que usam a espada, justifique uma punição
sos para o trabalho pesado, mas excluídos da verdadeira "posição ereta" que caracteri- legal). Deus ama tão pouco o sangue que ele afastou da honra de construir o Templo

126 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 127


um rei como David que tanto tinha combatido e que matava "justamente" tantos ini- 88 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 4 (ed. Vives XIX 447b): Multae obligationes sunt iniustae

migos (cf. II Reg. 7, 13; III Reg. 5, 19; 8 16-20, implicitamente evocados em Ord. IV d. ex parte illorum quibus fiunt, et tamen, postquam factae fuerint, servandae sunt. A di-
15 q. 3 o. 6 fedo Vives XVIII 367a]). Cf. ibid. n. 7 (p. 374b): Nulla {ex positiva cons- ficuldade aqui é a de comparar a servitus a um verdadeiro contrato (fora do caso da
tituens hominem occidendum, iusta est, si in illis casibus statuat quod Deus non excipit. submissão voluntária). A escravatura nascida do direito de punir se associa sem dúvida
Essas próprias "exceções" foram restringidas pelo Novo Testamento, pelo menos no ao próprio pacto social (visto que este é instituído por uma lei positiva cujo autor está
que concerne ao adultério (lo. 8, 11). A fortiori, a misericórdia valeria no caso, muito investido de uma legítima auctoritas). Aquele que se prende ao direito de guerra baseia-
menos grave, do simples roubo, se Moisés já não tivesse previsto uma simples multa (cf. se em leis que Duns Escoto julga cruéis, mas contra as quais ele não dispõe de outro
Êx. 22, 3; Provo 6, 30-31, ao qual remete aqui Duns Escoto, ibid. n. 8 [p. 375ab] para meio de luta a não ser o apelo à misercórdia.
lembrar a maneira pela qual Salomão parece desculpar o furto do homem faminto, até 89 Na perspectiva de conjunto na qual se situa, o texto de São Paulo: Servus vocatus

~
mesmo o comércio da prostituta em busca de pão [Provo 6,26] em relação ao crime do es? Non sit tibi curae, sed et si potes fieri liber, magis utere (I Cor. 7,21) significa pro-
adultério, perdoado entretanto por Jesus). vavelmente que, em vez de desejar sua libertação, o escravo deve permanecer no lugar
80 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 2 (ed. Vives XIX 446b): Alio modo, si aliquis tuste domi- em que a Providência o situou e fazer um uso melhor de sua condição. Duns Esçoto se
nans communitati, videns aliquos ita vitiosos quod libertas eorum nocet eis et reipublicae, aproveita de um determinado equívoco para atribuir ao apóstolo um juízo de valor
potest iuste punire eos poena servitutis (continuação do texto citado na nota 77). quanto a uma instituição que, sem o aprovar em si mesma, ele considerava aqui apenas
81 Aristóteles observa, com efeito, que a guerra é freqüentemente injusta e que os de um ponto de vista pastoral (Ord., IV, dist.36, quo 1, o. 4 [Éd. Vivés, XIX, 447b]:
prisioneiros podem ser de raça nobre; admite-se, em geral, que não é preciso submeter Unde Apostolus ostendens servitutem secundum se non esse laudabilem, nec multo magis
à escravidão gregos de condição livre, mas será que se pode considerar seriamente que detentionem alicuius in servitude, ait: Si servus vocatus es [... ]).
todos os bárbaros sejam sub-homens? Por outro lado, serão os filhos de escravos ne- 90 Nos grandes domínios da Alta Idade Média, os trabalhadores imediatamente
cessariamente dotados de almas servis? É o caso em geral, mas não sempre. O Estagirita à disposição pessoal do senhor tinham uma posição bem próxima daquela dos servi
(Política I c. 6 fedo Bekker, 1255a slJ conclui essa enumeração de aporias distinguindo antigos e conservavam o nome de mancipia. Os donos das propriedades rurais (manses),
a servidão "natural" (que corresponde ao duplo interesse do senhor e do escravo e pode ligados hereditariamente ao solo, presos ao trabalho gratuito e ao trabalho em presta-
vir acompanhada por uma certa amizade) da servidão "contra natureza" (que exclui ções, dependiam da justiça senhorial, mas seu destino se tornou cada vez mais parecido
qualquer verdadeira relação humana). Diz-se que, em seu testamento, o Estagirita pres- com o dos pequenos proprietários "livres" (ver H. Pirenne, Histoire économique de
creveu ele mesmo que seus próprios escravos fossem libertados. /'Occident médieval, s.l., 1951, p.213 s.). Em contrapartida, os "artesãos" dos primei-
82 Cf Hegel, Fenomenologia do Espírito, B, IV, A, 3. Sabe-se que para o filósofo ros ateliês de tipo industrial, verdadeiros proletários, foram chamados em alemão Kne-
alemão o escravo em seguida encontra pelo trabalho a consciência de si (mas basica- chten e em inglês servingmen, termos que evocam uma forma nova de servidão (a dia-
mente "infeliz"). lética hegeliana do senhor e do escravo é a do Herr e do Knecht) [ver Pirenne, p.326].
83 Rep. IV d. 36 q. 2 n. 6 (ed. Vives XXIV 459b). Qualquer outra forma de tor- 91 Lagarde, op. cit., p.255: Na primeira edição de sua obra, o autor qualifica-
nar o prisioneiro escravo de guerra é propriamente "despótica". va como "deplorável" a interpretação de Duns Escoto; O adjetivo (que nos surpre-
84A propósito da prescrição (da qual tratou extensamente na disto 15), Duns Escoto endera) desapareceu da redação mais recente, mas a nota 104 evoca ainda um "ar-
(Ord. IV d. 36 q. 1 n. 4 fedo Vives XIX 447a]) pensa que esta se aplica mal aos descen- gumento inverossímil", que o autor se felicita (equivocadamente, parece) por não
dentes dos prisioneiros: Sed i/lud extendit se ad possessiones, non autem ad servitutem, encontrar na passagem correspondente da Reportatio. (O texto citado, que concer-
quia non est eadem ratio in possidendo aurum et servum, quantum ad legem naturae. Et ne à punição de uma negligência, tem seu exato equivalente na Ordinatio e só diz
ideo esset difficile salvare per praescriptionem iustitiam esse detinere tales servos". respeito aos motivos imediatos da expropriação, e de modo algum ao direito origi-
85 O comentarista precisa que o senhor só tem poder sobre as "obras" do escra- nário do príncipe ou da comunidade.)
vo, não sobre seu corpo, que pertence apenas a Deus, menos ainda sobre sua alma e 92 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 9 (ed. Vives XVIII 271b-272a): Haecergo translatiodominii
sua liberdade (A. Hiquaeus, Commentarius ad Ord. IV d. 36 q. 1 fedo Vives XIX 455b]). potest fieri, vel auctoritate publica, ve{ principis, vel auctoritate legis, vel auctoritate privata
Vemos que a definição da servitus tende cada vez mais a se confundir com a da condi- ipsius domini immediate possidentis. De prima translatione sit haec conc/usio prima in
ção proletária, no sentido moderno do termo. isto articulo: translatio dominii auctoritate legis iustae iusta est. Probatur, quia si lex iusta
86 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 9 (ed. Vives XIX 453a): Ex quo patet magna crudelitas potuit iuste determinare prima dominia, et non minor est auctoritas legis vel principis (quos
fuisse in prima inductione servitutis, quia hominem arbitrio liberum et dominum habeo hic pro eodem) post divisionem dominiorum quam ante, - ergo propter eamdem
suorum actuum ad virtuosse agendum, facit quasi brutum et /ibero arbitrio non uten- causam et eumdem finem potest iuste transferri dominium, postquam fuerat alicui appro-
tem, nec potentem agere virtuose. Duns Escoto exclui aqui a idéia estóica de uma priatum. Esse apelo à "justa lei" e essa referência à "justa determinação" originária dos
liberdade moral puramente interior, independenre da condição servil no sentido mais dominia parecem indicar que Duns Escoto visa aqui a algo diferente do costume feudal
cruel do termo. de dividir os bens conquistados e de punir eventualmente os vassalos mais inquietos to-
87 Não importa o que M. de Lagarde diga (op. cito p. 257), Duns Escoro não pede mando-lhes os feudos (como fez, por exemplo, em grande escala, Guilherme de Normandia
ao escravo que "sofra pacientemente a injustiça" por pura virtude cristã; ele o submete após a conquista da Inglaterra). Não se nega com isso que o regime antigo dos feudos,
a uma obrigação de "justiça" (suum cuique reddere), que deve ser respeitada não im- comparável a um usufruto mais do que a uma propriedade nua (cf. Le Goff, La Civilisation
porta o que se pense a respeito de seu fundamento original (cf. a nota seguinte). de /'Occident médiéval, p. 126), tenha podido inspirar em parte reflexões cujo alcance

128 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 129


ultrapassa entretanto uma instituição em vias de decadência na época em que Duns Escoro o valor de troca dos bens seja pontual, pois a vontade de justiça deve ser rigorosa, mas
ensina. O texto criticado por M. de Lagarde só adquire seu pleno sentido quando rela~ nem sempre o meio efetivo de sua realização concreta. Em Ética a Nic. V C. 8 (ed. Bekker,
cionado àquele que o precede e que acabamos de citar; observa~se que ele se situa expres~ 1133b s) o Filósofo observa, com efeito, certas flutuações inevitáveis no preço das mer-
samente no nível da "probabilidade" (cf. Ord. IV d. 15 q. 2 n. 10 [ed. Vives XVIII 272b]): cadorias e no próprio valor da moeda. É por isso que Santo Tomás (5. teol. lI-lI q. 77 a.
lstud etiam [isto é, o direito de expropriação das terras tidas como abandonadas] apparet 1) admitia uma leve margem, muito fraca contudo para toUere iustitiam.
probabile per hoc, quod si quilibet posset suum dominium transferre in alium, tota com~ 98 Santo Tomás, ibid. Toda a doutrina tomista baseia-se na vantagem mútua das
munitas posset cuiuslihet de communitate transferre dominium in quemlibet, quia in facto duas partes e visa, conseqüentemente, a não lesar nenhum dos contratantes. O texto do
communitatis suppono includi consensum cuiuslibet; ergo iUa communitas, habens istum Evangelho é aí interpretado à luz das exposições aristotélicas, aquelas da Política I so-
consensum quasi iam oblatum, in hoc quod quilibet consensit in leges iustas condendas bre a solidariedade humana, e as da Ética sobre a virtude de justiça como lsates.
a communitate vel principe, potest per /egem iustam cuiuslibet dominium transferre in 99 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 15 (ed. Vives XVIII 284a): Durum est enim ínter homines
quemlibet). Se ele evoca basicamente aqui o direito do indivíduo em transferir ele mes- esse contractus, in quibus contrahentes non intendant aliquid de illa indivisibili iustitia
mo seu próprio bem (por doação ou venda), o autor procede a fartiari, pois exatamente, remittere sibi mutua, ut pra tanto omnem contractum concamitetur aliqua danatia. Et
como veremos, esse direito é agravado por reservas muito fortes. Não se trata, pois, ab- si iste est modus commutantium, quasi fundatus super iUud legis natural 'hoc facias alH,
solutamente de um ius naturae que o pacto de submissão alienaria previamente em favor quod tibi vis fieri', satis probabile est quod, quando sunt mutuo contenti, mutuo volunt
do soberano, mas de uma concessão fundada na autoridade legítima do legislador; por sibi remittere, si secundum aliquid deficiunt ab illa iustitia requisita.
motivos ainda mais sérios, a própria comunidade pode usar um direito de transferência 100 Esse tipo de economia (doméstica, mas também "política") é, para Aristóte-
que está implícito no direito originário de divisio dominiorum; ao fazer isso, ela só lesa les, o simples desenvolvimento de um direito natural de colheita e 'de caça; o enriqueci-
o proprietário em um uso segundo e, por definição, precário. mento moderado que ele assegura prolonga o acúmulo instintivo das provisões neces-
93 lbid. (p. 272b): Neg/igens rem suam tanto tempore, transgreditur, ita quod eius sárias à subsistência do grupo (Política I c. 8 fedo Bekker, 1256b]).
transgressio est in detrimentum reipublicae, quia impedimentum pacis; ergo iuste potest 101 Cf. H. Pirenne, "Mahomet et Charlemagne", em Revue Belge de philologie
lex, sicut rem illam applicare fisco, ita ad maiorem pacem transferre illam in illum qui et d'histoire 1 (1922), eLes villes du moyen âge, Bruxelas, 1927.
tanto tempore accupavit, tamquam in ministrum legis. É por isso que a lei supõe que o ,02 Esses grandes mercadores, que formam já, no início do século XIV, impor-
proprietário faltoso abandonou seu bem (ibid: Etsi enim hoc non sit verum in re, tamen tantes associações, são ainda mais estimados pelos ricos porque lhes fornecem produ-
legislator punit istum, ac si habuisset eam pro dere/icta). tos raros - especiarias, sedas, peles - , e porque seus ganhos, justificados por seu tra-
94 Esse é, com efeito, o verdadeiro fundamento da prescrição. Sem esse uso, essent balho, sua engenhosidade e os riscos que correm, permitem que acedam eles mesmos à J
tales tites, quod impossibi/e esset eas decidere, quia nec probationem sufficientem hahere, posse de bens de raiz e que formem um patriarcado urbano. O exemplo de Godrico de
et ex talibus litibus perpetuis essent contentiones et forsitan adia inter litigantes, et sic Finchale, várias vezes evocado por Pirenne, mostra que desde o início do século XII um
tota pax reipublicae perturbata (ibid. n. 9 [p. 272a]). miserável de Lincolnshire, que se tornou vendedor ambulante, depois se associou a um
95 A transferência gratuita só é lícita se o doador e o beneficiário não estão impe- grupo de mercadores que iam de feira em feira, podia acumular bastante dinheiro para
didos de dar ou de receber por "nenhuma lei superior". Duns Escoto fala ora da auto- fretar com alguns associados um barco que assegurava a cabotagem no Mar do Norte
rização do superior, ora de cláusulas explícitas de uma lei. Não pensamos que ele opo- e, por um conhecimento dos mercados, construir muito rapidamente uma grande for-
nha contudo (ou justaponha) ao arbitrário da decisão individual a legalidade de uma tuna. Mas o cronista que conta sua vida é sobretudo sensível a seu fim edificante de pobre
instituição, pois é justamente a lex que confere certos poderes ao dominus superior, e eremita (Libel/us de vita et miraculis sancti Godrici, heremitae de Fincha/e, auctore
sabe-se que ela mesma é posta por um legislador que recebeu mandato da comunidade. Reginaldo monacho Dunelmensi, ed. Stevenson, Londres 1847).
96 Duns Escoto retoma aqui o exemplo agostiniano (cf. S. Agostinho, De civitate 103 Le Goff, op. cit p. 285.
Dei Xl c. 16 [PL 41, 331]) do rato, mais nobre enquanto ser vivo, e todavia menos de- 104 Santo Tomás, 5. teoI. II-II q. 77 a. 4.
sejável que o pão para a alimentação do homem. 105 A commutatio negotiativa vellucratíva que Duns Escoto acaba de definir como
97 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 15 (ed. Vives XVIII 283b): Ista autem aequalitas secun- o ato pelo qual um comerciante compra, non ut utatur, sed ut vendat, et hoc carius _
dum rectam rationem non consistit in indivisibi/i, sicut dicit quidam doctor, motus ex encontra-se assim integrada de pleno direito a essa forma de trocas, que Santo Tomás,
hoc quia iustitia hahet tantum medium rei, sed ceterae virtutes medium rationis. Hoc enim após Aristóteles, julgava a única completamente "natural", porque non proprie pertinet
falsum est, ut declaratur libro IH d. 34 q. 1; immo in isto medio, quod iustitia commutativa ad negotiatores, sed magis ad oeconomicos vel po/iticos, qui habent providere vel domui
respicit, est magna latitudo, et intra illam latitudinem non attingendo indivisihilem punctum vel civitati de rebus necessariis ad vitam (Santo Tomás, S. teol. 11-11 q. 77 a. 4).
aequivalentiae rei et rei, quia quoad hoc quasi impossibile esset commutantem attingere, 106 Desde o século XII, Ricardo de São Vítor incluía, entre as sete artes "mecâni-
et in quocumque gradu circa extrema fiat, iuste fito O Dourar criticado é Ricardo de Mida, cas" consideradas úteis e honrosos remédios à condição nascida do pecado, a navigatio,
seguido, nesse ponto, por Henrique de Gand. A distinção invocada é a que faz Aristóte- à qual pertinet omnis industria vendendi et emendi. Seu mérito é o de descobrir invisa
les entre as virtudes que se definem como justo meio entre dois extremos e a justiça, que litora, de estabelecer pacem et familiaritatem cum exteris nationibus e, enfim, de privata
se opõe apenas à injustiça (visto que essa última é simultaneamente excesso e insuficiên- bona communia facere (Richardus A Sancto Victore, Liber exceptionum, I c. 1 n. 17

cia, de acordo como se considera aquele que recebe demais ou aquele que é lesado); ex- [ed. Chatillon, Paris 1958, p. 110]). Esse monge de Conques conta ter reencontr"do,
posta de forma muito obscura em Ética a Nicôm. V C. 9, essa doutrina não implica que na época das Cruzadas, um clérigo do Puy que havia se instalado em Jerusalém questus

130 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 131


,

capiendi causa. O cronista enfatiza o conhecimento que esse homem havia adquirido deberet esse, et vilius vendenti, et sic damnificant utramque partem. O uso de um ter-
dos itinerários, dos países, de suas instituições, de seus costumes e de suas línguas (Liber mo francês não é surpreendente na Grã-Bretanha da época de Duns Escoto. Regrattier
miraculorum Sanctae Fidis, ed. Bouillet, p. 63, citado em Pirenne, Hist. économique, - um pouco antiquado - é ainda usado, em um sentido pejorativo, para designar um
28). Duns Escoto insiste na utilidade desse negócio, menos no valor de descoberta geo- revendedor de segunda mão, que impede a venda direta do produtor ao consumidor,
gráfica, e passa em silêncio sobre seu papel "pacificador". Mas sabemos a importância isto é, o ideal "econômico" da transação admitida por Arsitóteles, que alguns redes-
de uma viagem como a de Marco Pólo. É possível que, ao provocar litígios e conflitos, cobriram hoje em dia como uma novidade. Mas esse ideal só vale no quadro restrito da
as trocas comerciais entre o Islã e a cristandade tenham por vezes permitido um melhor sociedade de trocas que o Filósofo descrevia ao evocar o caso do sapateiro, do fabri-
conhecimento mútuo e favorecido outros tipos de comunicação. cante de camas e do construtor de casas (Úica a l\1.·ic. V c. 8 [ed. Bekker, 1133a]). Pare-
107 Às regras gerais'concernentes ao comércio, Duns Escoto (Ord. IV. d. 15 q. 2 ce que Duns Escoto percebeu a importância de uma outra economia, muito mais vasta,
n. 22-23 fedo Vives XVIII 317a-318a]) acrescenta duas que se aplicam à negotiativa que supõe profissionais da importação-exportação e do armazenamento.
commutatio: Primum est quod talis commutatio sit utilis reipublicae. Secundum est quod \09 A regra clássica é que se deve vender sem benefício da coisa que permaneceu
talis iuxta diligentiam suam et prudentiam et sollicitudinem et perícula accipiat in com- integra et immutata entre as mãos do intermediário. Se Santo Tomás admite a indeniza-
mutatione pretium correspondens. Prima condicio exponitur, quia reipublicae est utde ção correspondente a riscos corridos e mesmo um certo ganho lícito correspondente às
habere conservatores rerum venalium, ut prompte possint inveniri ab indigentibus, necessidades do comerciante, mal parece dar lugar ao pagamento da industria como tal
volentibus illas emere. In ulteriore etiam gradu utile est reipublicae habere afferentes nem à idéia de um "valor" acrescido à mercadoria pelo transporte e armazenamento.
res necessarias, quibus illa patria non abundat ... Sequitur secunda {condicio}, quia unum- 110 Sobre esse ponto, Duns Escoto (Ord. IV d. 15 q. 2 n. 16 led. Vives XVIII 289])

quemque in opere honesto reipublicae servientem oportet de suo labore vivere ... Nec defende uma doutrina tradicional: In istis .. contractibus !icet pcrmutantem vel vendentem
hoc solum, sed unusquisque potest industriam suam et sollicitudinem iuste vendere: pensare damnum suum, non autem commodum ipsius ementis, sive cum quo permutat ...
industria illius transferentis res de patria ad patriam requiritur magna, ut consideret Et inteIligo sic: si quis multum indigct re sua, et per magnam instantiam inducatur ab
quibus patria abundet et indigeat; ergo potest iuste ultra sustentationem necessariam alio ut vendat ve/ permutet pro re alia, cum possit se praeservare indemnem, et ex ven-
pro se et familia sua ad istam necessitatem deputata recipere pretium correspondens ditione ve/ permutatione ista multum damnificatur. potest carius vendere... Sed si emens
industriae suae, et ultra hoc tertio aliquid correspondens periculis suis ... Propter huius- magnum commodum consequatur ex iUa sihi vendita ve/ permutata, non potest carius
modi periculum potest secure aliquid accipere correspondens et maxime si quandoque vendi vel permutari. A rigor esse princípio excluiria qualquer economia de mercado, pois
sine culpa sua in tali servitio communitatis damnificatus est uptote mercator transferens a regra moral que me impede de beneficiar da necessidade do outro falseia desde o iní-
quandoque amisit navem onustam maximis bonis, et a/ius quandoque ex incendio causali cio o jogo "natural" da oferta e da procura. Mas vimos que Duns Escoto reconhece como
amittit pretiosissima, quae custodit pro republica ... Haec omnia confirmantur, quia trabalho legítimo o estudo das necessidades e dos mercados; o hábil calculador pode
quantum deberet a/icui ministro reipublicae legislator iustus et bonus retribuere, tantum assim ter lucro - de forma lícita mas indireta - da penúria que determina em seu pró-
potest ipse, si non adsit legislator, de republica, non extorquendo, recipere. Sed si esset prio país "justos preços" mais elevados do que no estrangeiro.
bonus legislator in patria indigente, deberet locare pro pretio magno huiusmodi mer- 111 Seguindo Santo Tomás (S. teol. lI-lI q. 78 a. 1), Ricardo de Middletown ar-

catores, qui res necessarias afferent et qui eas allatas servarent, et non tantum eis et gumentava contra a usura mostrando que não se pode vender ao mesmo tempo a coisa
familiae sustentationem invenire, sed etiam industriam, et perícula omnia locare; ergo que se consome (dinheiro ou vinho) e o uso dessa coisa. Se Duns Escoto critica o racio-
etiam hoc possunt ipsi in vendendo. Esses meios de enriquecimento são os que Aristó- cínio, é porque o dominum é às vezes separado do usus; é melhor dizer, pois, que tendo
teles considera como particularmente caros a qualquer um que estima a crematística; transferido a quem emprestou a posse plena e total do dinheiro emprestado, eu não
um filósofo hábil como Tales não hesitou em mostrar o valor prático de seu saber pre- poderia me beneficiar ou pagar pelo uso vantajoso ou danoso que ele fez dele. Seu úni-
vendo, por meios astronômicos, uma abundante colheita de azeitonas; tendo alugado a co dever é o de me fornecer na data fixada o equivalente exato daquilo que eu mesmo
baixo preço todos os lagares de Mileto e de Quios, ele os subloca por um preço ainda lhe dei, na medida em que o pode fazer sem se privar ele mesmo do estrito necessário
mais alto, provando que um sábio pode enriquecer se desejar, mas que esse não é abso- (Ord. IV d. 5 q. 2 n. I 71d. Vivés XVIII 292b·293aJl.
lutamente o objeto de seu zelo. Dionísio de Siracusa, tendo apreciado a inteligência de 112 Essa criação, à qual os franciscanos darão um apoio bastante ativo, está des-
um homem que havia astuciosamente comprado todo o ferro das forjas, deixou-lhe com tinada a permitir, por acúmulo de doaçôes gratuitas, a outorga aos pobres de emprésti-
seu ganho, mas o baniu de seu reino. Outros príncipes deram grande valor ao enrique- mos sobre penhores. Concebida para limitar a atividades dos banchieri judeus, ela con-
cimento de seu tesouro público por tais métodos (cf. Aristóteles, Política I c. 11 fedo tribuirá, de fato, para o desenvolvimento de novos bancos. Noonan J. T., The Scholastic
Bekker, 1259a]). Nem o Estagirita nem Santo Tomás, em seu comentário, dão a essa Analysis ofUsury, Cambridge, Mass., 1957, p. 121ss, mostrou em um exemplo preci-
aplicação da sabedoria crematÍstica ao bem comum um julgamento categórico. É pos- so (o empréstimo municipal de Florença no século XIV) o quanto os Frades Menores
sível que Duns Escoto, ao evocar o bom legislador que louva os serviços de um hábil eram atentos a esses novos mecanismos financeiros. Note-se que a exposição escotista
intendente, pense primeiramente no Faraó e em José, pois trata-se menos de enriquecer não traz aqui nenhum traço de anti-semitismo (sobre o problema da usura judaica e cristã,
o Estado do que fornecer aos cidadãos reservas necessárias em caso de penúria. cf. L. Poliakov, Les banchieri juifs et le Saint-5iege, Paris, 1965).
108 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 23 (ed. Vives XVIII 318a): Vocantur tales gallice 're- 113 Menos indiferente do que se disse às vezes às instituições econômicas exigi-
grattiers', quia prohibent immediatam communitationem volentium emere vel commutare das pela evolução da sociedade, Santo Tomás (5. teol. lI-lI q. 78 a. 2 ad 5) expõe clara-
oeconomice, et per consequens faciunt quodlibet venale ve/ usuale carius ementi quam mente as regras lícitas do contractus societatis pelo qual o arrendador de fundos conti-

132 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 133


nua como possuidor jurídico de seu bem e pode, assim, ter lucro com os benefícios que VII. A "DIALÉTICA" DE MESTRE ECKHART*
produz o trabalho do mercator ou do artifex.
114 Elas referem-se particularmente à poena conditionalis, que estipula um reem-
bolso rápido e admite uma indenização periódica para os atrasos que os contratantes
não estão obrigados a ter querido ou previsto (ainda que de fato se os considere como
um meio normal de introduzir a usura), ou sobre a cláusula do lucrum eessans, isto é, o
fato de levar em consideração um prejuízo que sofre quem empresta porque não pode
obter lucro do dinheiro imobilizado. Santo Tomás (ibid. ad 2) recusa expressamente esse
Deve-se observar que várias entre as proposições, ques-
método, pois não se pode vender aquilo que ainda não se tem; julga todavia lícita a
indenização, a título "amigável", não de quem empresta e que se queixa por não ter tões e exposições que serão lidas aqui parecerão, à primeira vista,
podido ter um ganho de seu dinheiro, mas daquele que teve problemas por não ter po- monstruosas, duvidosas ou falsas, mas se as estudarmos com
dido efetuar compras necessárias. Discutindo uma tese bastante rigorosa de Molina, habilidade e com mais atenção veremos que será diferente!.
Hiquaeus (Commentarius ad. Ord. IV d. 15 q. 2 [ed. Vives XVIII 297b-298b]) admite,
com a maioria dos "modernos", que um empréstimo gratuito - o único conforme com Advertências desse tipo não são raras em Eckhart; diante dos in-
as regras canônicas - não deve ser a fonte de nenhum prejuízo para nenhuma das duas
quisidores de Colônia, ele afirmará que <'espíritos grosseiros" são incapa-
partes; mesmo na falta de qualquer cláusula explícita, a prova trazida de um damnum
efetivo sofrido pelo emprestador abre um direito legítimo à indenização. zes de apreender o verdadeiro sentido de suas fórmulas aparentemente
115 No caso do pagamento diferido, as duas regras complementares são, primei- <'monstruosas"; sustentará, contudo, que, se seus modos de falar são fre-
ramente, quod eommutans non commutet vel vendat tempus, quia tempus non est suum, qüentemente "raros" e "sutis", são todos "verdadeiros"2. Já no Livro da
em seguida quod non ponat se in tuto de lucrando, et illum eum quo eommutat de damno. divina consolação ele afirmava:
Essa "segurança" deve ser entendida no sentido mais amplo, semper vel ut in pluribus
(Ord. IV, d. 15 q. 2 n. 20 [ed. Vives XVIII 303 a]). O vendedor é desculpável ratione
dubii se ele fixa - de acordo com a outra parte - uma majoração "moderada" do preço
o que posso fazer se não entendem isso? .. Basta-me que '::,
real quando o pagamento deve ser efetuado em uma data precisa na qual se sabe de em mim e que em Deus seja verdade o que digo e escrevo 3.
antemão que o valor terá aumentado. Ele não é desculpável se pretende exigir, entre o
momento a e o momento b estipulados pelo contrato, o pagamento ao preço mais van-
.'
Todavia, a obra de Mestre Eckhart nada tem de solilóquio, de um
tajoso para ele, e no momento imprevisível; cf. ibid n. 21 (p. 304a): Si autem velit pretium diálogo Íntimo da alma com Deus. Tanto em alemão quanto em latim, é a
determinari pro tempore indeterminato, hoc modo ut'ponat se in tuto luai, ut in p/uribus,
outros homens que ela se dirige, a clérigos, monges e monjas, rainhas ou
et alium in damno, utpote 'volo quod tantum solvas mihi pro isto quantum valebit in
quocumque tempore usque ad, quando earius vendetur', usura est, quia ponit se ve/
simples fiéis. Interessa, conseqüentemente, que seja entendida, e qualquer
partem suam quoad lucrum, ut in pluribus, in tuto, et illum cum quo contrahit ad dam- incompreensão pode se transformar em escândalo. É por isso que, por oca-
num; et tune habet pro se illud quod evenit ut in pluribus, et contra se illud quod evenit sião dos ataques de Wenck - o professor de Heidelberg que pretende en-
ut in paucioribus ... In tali pacto facit se certum de lucro ultra quam humana industria contrar na Douta ignorância um perigoso eco das teses eckhartianas - ,
pertingere posset. Nicolau de Cusa escreverá sua Apologia, esclarecendo que, se homens "do-
116 Cf. Hiquaeus, Commentarius ad Ord. IV d. 15 q. 2 (ed. Vives XVIII 312-313a).
tados de inteligência" podem encontrar no dominicano alemão muitas ver-
117 Essa será nitidamente a posição de Lutero em seu Traktat der Obrigkeit e em
sua polêmica contra Münzer (cf. E. Bloc., Thomas Münzer, trad. fr. Paris, 1964, p. 174s). dades "sutis e úteis", é importante, contudo, não divulgá-las para auditó-
118 Additiones magnae 11 d. 25 q. 1 (ed. C. Balic, Les Commentaires de Jean Duns rios mal-preparados para entendê-las (Apologia, ed. Klibansky, p.23 I. Essa
Scot, Louvain 1927, 299). portanto já seria - como demonstra claramente o preâmbulo da bula In
119 Cf. P. Vignaux, "Humanisme et théologie chez Jean Duns Scot", em La Franee agro - a principal preocupação dos juízes de Avignon.
franciscaine 19 (1936) 209s. Quaisquer que sejam os dons literários de um escritor excepcional-
mente dotado - e que talvez tenha sido, dois séculos antes de Lutero, o
verdadeiro fundador da prosa alemã - , só muito excepcionalmente, em
sua obra, os "chistes" e os concetti podem passar por puros jogos verbais.
A inesperada aliança de termos visa menos a surpreender ou a agradar do

.. Comunicação apresentada no Colóquio de Estrasburgo, sobre" A Mística rena-


na", em maio de 1961. (Posteriormente publicada por PUF, Paris, 1963, p.59-94.)

134 Maurice de GandiUac Gêneses da Modernidade 135


que a fazer sobressair os aspectos aparentemente contraditórios de uma dizer, no plano de uma ratio que não está elevada ao nível do verdadeiro
verdade essencial, a única que importa a Eckhart e que é basicamente, para intellectus, parece efetivamente "monstruoso" supor que uma realidade
ele, aquela da Escritura - freqüentemente enfraquecida pelos "padres" qualquer, se divina for, esteja exatamente inteira em cada coisa de tal modo
_, mas igualmente a da Tradição, posível desde que se aceite extrair dela que esteja inteira fora de qualquer coisa; e mais estranha ainda pode pa-
todas as conseqüências que implica. Do mesmo modo, imediatamente após recer a afirmação de que nenhuma criatura é digna de amor precisamente
as linhas que citamos no início deste texto, o mestre acrescenta que tudo porque Deus a extraiu do nada, ele que, tendo tudo criado, reconheceu que
o que escreveu é "atestado" pela Escritura ou pela autoridade de santos e sua criação era "completamente boa". Tomadas separadamente, cada uma
de doutores ilustres 4 . dessas fórmulas paradoxais pode se apoiar sobre sólidos argumentos bí-
Não é sem razão, contudo, que as fórmulas eckhartianas pareceram blicos; o que inquieta o leitor é o uso de conjunções que parecem implicar
freqüentemente mais perigosas do que as auctoritates às quais elas se re- uma relação causal justamente onde o espírito enfrenta uma aparente con-
ferem segundo um modo de citação que não é feito sem artifícios. Com tradição. Mas, mesmo onde estão ausentes os enim e os ergo, a simples
efeito, bastante atento para não apresentar nada que possa parecer inova- justaposição de enunciados literalmente contraditórios surge mais como
ção, o mestre confere por vezes a fórmulas tradicionais um sentido extre- o sinal de uma estrutura dialética do que como estabelecimento de uma
mo que estas não possuíam em seu contexto original. Editando o comen- lista de "aporias", tais corno Aristóteles naturalmente as arrola no momento
tário da Sabedorias, o P. Théry, prematuramente afastado de estudos que de estudar o ser, o tempo, o lugar ou o vazio, e também como as enumera
muito lhe devem, observava, com um tom de irritação que reencontramos Abelardo no Sic et Non, como o catálogo de todas as dificuldades que a
ao longo de suas notas, que Mestre Eckhart, mais do que um "intuitivo", doctrina sacra tentará resolver.
foi um "dialético", isto é, sem dúvida um lógico intrépido, mais atento à No belo estudo sobre" A teoria da analogia em Mestre Eckharr"
análise de conceitos do que à experiência vivida de seu conteúdo. Sem fa- (Mélanges Étienne Gilson, Toronto-Paris, 1959, p.327 sg.l, Josef Koch
zer nossa uma interpretação que se aplica muito melhor, acreditamos, aos apontava que o Opus propositionum, no qual o dominicano pretendia
desenvolver sua ontologia, permaneceu infelizmente apenas como esboço,
analistas de uma escola na qual o predicante dominicano, como sabemos,
jamais foi bem visto, mantenhamos contudo o termo "dialético", confe- de modo que nos é necessário, por assim dizer, reconstituir o pensamento
.'
rindo-lhe aqui um outro sentido, justificado simultaneamente por lembran- eckhartiano a partir de sermões e de comentários que não passam de exe-
ças platônicas e antecipações hegelianas. geses de auctoritates fragmentárias. Não é que haja dúvidas, mas, a esse
Precisemos todavia que muitas das fórmulas paradoxais vêm direta- respeito, as Questões parisienses não são tão diferentes de outras obras
"'r:
mente, em Eckhart, de uma tradição teológica e mística que se preocupa latinas e pode-se acreditar que a justaposição de enunciados literalmente
muito pouco com o raciocínio "dialético" no sentido aristotélico. Quan- contraditórios, mas na verdade complementares, traduz da maneira me-
do o comentarista do Êxodo declara, por exemplo, que o que sabe de Deus nos inexata a concepção eckhartiana do ser. Sem desconhecer o inconve-
é apenas nada saber sobre elé, além da dupla referência - bastante clás- niente de certos anacronismos e sem cair nos excessos daqueles historia-
sica - à necedade socrática e aos oxymora da apófase patrística, como dores que, "modernizando" Eckhart ou Nicolau de Cusa (fazendo desses
esquecer que a própria Bíblia definiu Jeová como Deus absconditus: Mas grandes espíritos puros "precursores"), desfiguram o papel histórico que
quando o comentarista do Liber sapientiae declara audaciosamente: desempenharam em sua época, pode-se pensar - com um pesquisador
próximo como nosso amigo Vladimir Lossky (em seu livro póstumo, Théo-
Toda criatura é por si nada, pois [Deus! criou [todas as logie négative et connaissance de Dieu chez Maitre Eckhart, Paris, 1960)
coisas] para que elas fossem, e antes de todas as coisas não há - que o termo "dialética" define bastante bem, desde que se determine
nada. Logo, aquele que ama as criaturas nada ama e se torna seu sentido, um modo de filosofar que anuncia, em Eckhart, a ars coinci-
nada?, dentiarium do cusano e que, apesar das diferenças, que tentaremos desta-
car, se nutre das mesmas fontes bíblicas, patrísticas e neoplatônicas.
ou quando afirma, um pouco mais adiante, que "Deus está inteiro em Certamente, nenhum desses dois pensadores define seu método como
qualquer coisa, de tal modo que está inteiro fora de qualquer coisa"g, o "dialético" e, se Nicolau de Cusa se justifica bem acerca do que entende
uso de termos como enim e ergo, e sic quod exige uma justificativa que só por" douta ignorância" , Eckhart se mantém mais discreto sobre seus prin-
poderia ser, parece-nos, "dialética". À primeira vista (primo aspectu), quer cípios metodológicos. Com todas as reservas impostas, nos permitiremos

Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 137


136
entretanto, nem que seja por comodidade, retomar aqui a antiga e respei- sas ao mesmo tempo em que remete - bastante explicitamente no Livro
tável denominação platônica para designar um procedimento que o cusano da divina consolação - a doutrinas de origem estóica, não exclui em nada
devia definir com mais precisão que seu predecessor. Dentre tantos textos a afirmação simultânea de um princípio completamente diferente: o do
que visam a esclarecê-lo, tomemos, a esse respeito, um dos mais caracte- Sim e Não. Deve-se mesmo dizer que, na perspectiva eckhartiana, o "Isso
rísticos; extraído da carta na qual o cardeal responde aos monges de Teger- ou Aquilo" (Entweder-Oder) e o "Sim e Não" lJa und Nein) constituem
nsee que interrogam seu amigo acerca do emprego legítimo da theologia justamente os dois pólos dialéticos de uma única verdade.
mystica. O cusano julga igualmente equivocados aqueles intérpretes de Foi sem dúvida o que não puderam compreender os inquisidores de
Dionísio que insistem, de forma unilateral, no momento negativo - o das Colônia e de Avignon, e os juízes que finalmente tiveram de julgar a orto-
Trevas - e aqueles que só consideram, ao contrário, o momento positivo doxia de uma série de proposições separadas, segundo as regras habituais
- o da Iluminação. A verdadeira exegese do texto aeropagítico implica do procedimento inquisitorial 9 . As respostas de Eckhart corriam o risco
uma ultrapassagem da oposição entre os dois momentos; em vez de con- de lhes parecerem simples evasivas, enquanto exprimiam o essencial mes-
siderá-los em seu aspecto disjuntivo, é preciso colocá-los em um movimento mo de seu pensamento. A esse respeito, uma frase do Sermão 22 - que
copulativo, melhor ainda coincidencial, de modo a que se chegue ao nível toca em um dos pontos de acusação mantidos pela bula In agro - é par-
"no qual a Treva é Luz e o não-saber, saber". A única preparação "inte- ticularmente característica:
lectual" para uma compreensão misteriosa - que, por si mesma, depen-
de da mística - é, assim, uma crítica do princípio de identidade tal como Se me perguntares, visto que sou um único Filho que o Pai
o concebe toda "razão" pouco perspicaz, uma compreensão sintética (ou celeste engendrou eternamente, se por isso fui eternamente Fi-
supra-sintética) de termos aparentemente opostos e que no entanto o in- lho em Deus, eu respondo: Sim e Não. Sim [fui eternamenteJ
telecto - visto que usa do único método que ultrapassa a aparência - só Filho pois o Pai me engendrou eternamente, e Não [não fui eter-
pode colocar em sua necessária coincidência. Assim descobrirá ele final- namenteJ Filho, pois não fui engendrado. 1O
mente que "o que a razão julga impossível- ser e não ser conjuntamente
- é a própria necessidade" (Ep. V, in Vansteenberghe, Autour de la Docte Resposta aparentemente simples demais, mas que traduz, para Eck-
.'
Ignorance, Münster, i/W, 1914, p.114-115). hart, a ambigüidade fundamental da relação entre Deus e o homem deifi-
Incontestavelmente, o momento da "disjunção" - o imêma platô- cado. Nesse sentido, Eckhart pertence certamente a uma determinada tra-
nico entre a realidade efetiva e a pura aparência - desempenha um pa- dição - ela mesma bastante diversificada - que, desde os últimos diálo-
pel mais importante no místico Eckhart do que no metafísico Nicolau. gos platônicos e sua exegese procliana (na qual tanto se destaca a mistura ....
"I:'

Naquele, entretanto, trata-se menos de uma disjunção racional entre con- dos gêneros de ser e de determinações fundamentais de qualquer pensa-
ceitos que se excluem mutuamente e muito mais, na esfera superior da
l
mento: identidade-alteridade, movimento-repouso, etc.), através de toda
unia mystica, desse "despojamento" pelo qual a alma deificada se libera uma especulação teológica sobre a vida interior de um Deus trinitário, devia
de tudo o que, nela, é da ordem do criado (a Kreatürlichkeit). Apesar de sofrer, ela mesma, tantas transformações, até chegar ao "sistema" de Dom
toda a sua cultura de professor, Eckhart continua sendo sempre, mesmo Deschamps e à dialética hegeliana, antes do duplo contragolpe que iria
em suas obras latinas, o predicante de uma Abgeschiedenheil, que supõe conduzir, por um lado, ao mistério marxista da redenção proletária e, por
um radical e decisivo "corte", a afirmação, várias vezes repetida, de um outro, ao paradoxo existencial de um cristianismo simultaneamente ne-
Tudo ou Nada. Sem negligenciar as poucas passagens de seus tratados ou cessário e impossível, em Kierkegaard ou em Dostoiévsky.
de seus sermões nas quais ele atribui um lugar positivo a um progresso Dentre as fontes da dialética hegeliana, sabe-se toda a importância
espiritual, adquirido por uma luta de cada dia, é certo que esse tema pe- de certos temas teológicos e teosóficos. Em seu belo livro sobre Le malheur
dagógico tem menos lugar nele do que, por exemplo, em Tauler, e é cer- de la conscience dans la philosophie de Hegel (Paris, 1929), Jean Wahl
to que ele se situa, mais freqüentemente, em um nível onde nada conta insiste nesses textos de juventude no qual reaparecem tantas fórmulas ca-
mais do que a "abertura" total e definitiva, aquém da qual uma alma não ras à mística cristã: separação e retorno, desespero e beatitude, presença e
ainda plenamente "esvaziada" de sua "criaturidade" se mantém, não ausência - no qual aparece a dupla face do Mediador como Deus huma-
apenas na regia dissimilitudinis, mas, mais exatamente, no universo do natus, o duplo papel da morte que é vida, etc. Evocando essas influências,
puro "nada". Ora, essa posição, que se alimenta de experiências religio- das quais podemos pensar que permaneceram superficiais - e cuja colo-

138 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 139


'''-~

ração romântica com que se revestem para o jovem Hegel deforma sensi- Como veremos logo adiante, esses três ou quatro problemas aqui se-
velmente seu sentido original - , não esqueçamos de forma alguma o ris- parados apenas por comodidade de exposição, configuram-se, na verda-
co de confrontações demasiadamente audaciosas que não levam absolu- de, como um só, e a única solução que Eckhart pode propor para eles re-
tamente em consideração o contexto histórico. É entretanto notável que pousa finalmente na justaposição dialética de dois princípios aparentemente
entre os papéis de Hegel tenham sido encontrados, copiados de seu pró- opostos: Tudo ou Nada, Sim e Não.
prio punho, muitos artigos condenados na bula In agro, tais como o filó-
sofo os teria lido na obra do historiador Mosheim (cf. Theologische Ju- Ao tratar do que Eckhart apresentou como "a espinhosa e célebre ques-
gendschriften, ed. Nohl, Tübingen, 1907, p.367). tão de saber se a distinção dos atributos está em Deus ou somente na apre-
Certamente não se pode reduzir a essas experiências juvenis (e, em ensão de nosso intelecto,,12, Santo Tomás ensinou que os diversos concei-
particular, a essa "hipocondria" de 1800 que Jean Wahl- op. cit., p. 33 tos que correspondem à potência, à sabedoria, à bondade, etc., ainda que não
- compara ao Erlebnis de um "Não eterno") o processo espiritual vivo constituam no entendimento divino senão uma única e perfeita realidade no-
da Fenomenologia nem, menos ainda, a dialética excessivamente rígida da cional, representam entretanto aspectos positivos, que pertencem efetivamente
Enciclopédia. Entre o modo de pensamento do velho mestre turíngio e o ao pensamento e ao ser divinos13. Sem ficar expressamente contra o Dou-
que Hegel quis edificar, resta entretanto um ponto comum: a dialética, para tor angélico e mesmo usando termos que, à primeira vista, pareceriam su-
eles, não importa o nome que lhe tenham dado, não é um "sistema de gerir uma resposta comum, Eckhartconc1ui, todavia, que tais atributos per-
malabarismo", um "raciocínio em vaivém, sem conteúdo real", uma "arte tencem "totalmente" ao intelecto que os "recebe" e "recolhe" o conhecimento
exterior" que "conduz ao ceticismo" e só "produz uma aparência de opo- "a partir das criaturas" e por seu "inrermédio"14. A fórmula parece nomina-
sições". Para ambos, pensadores tão especificamente alemães, trata-se de lista; mas não é senão, como bem mostrou Lossky15, uma inferência enga-
um método que pretende apreender "a natureza própria e verdadeira" do nosa, baseando-se precisamente em uma consideração insuficientemente dia-
espírito e das coisas, que, aqui pela via do desenvolvimento histórico, lá lética do pensamento eckhartiano. Na perspectiva tomista, Deus, "ato per-
pela do despojamento espiritual, se esforça em ultrapassar "o caráter uni- feito de ser", é ao mesmo tempo potência perfeita, sabedoria perfeita, bon- .'
lateral e limitado das determinações próprias ao entendimento" 11 • dade perfeita. Para Eckhart - que, em um vocabulário semelhante, por vezes
equivocado, professa na verdade uma ontologia completamente diferente-
Dentro do quadro limitado de nosso propósito, não podemos, é cla- , Deus, enquanto "unidade pura" (pura unitas), exclui necessariamente qual-
ro, investigar tudo o que a "dialética" eckhartiana conserva das tradições quer diversidade, pois esta - segundo o princípio neoplatônico que faz da
teológicas e filosóficas nem determinar em que medida ela prepara a coin- mu/titudo um casus ab uno - implica não apenas imperfeição, mas "falha"
cidentia oppositorum de tipo cusano. Contentar-nos-emos com algumas e "mácula" (defectus et macula). A Unidade do Criador situa-se, pois, para
indicações a partir de uma série de exemplos particularmente significati- além de qualquer conceito humano, e é isso que indica a recusa de situar fora
vos. Esses exemplos concernem primeiramente a Deus no mais íntimo de do intelecto criado a distinctio attributorum. Porém, em sua relação verda-
seu mistério, como pura unidade na qual toda oposição está ao mesmo deira com a criatura, essa unidade divina não está mais "separada" de sua
tempo integrada e ultrapassada. Eles concernem igualmente a Deus em obra do que o Uno neoplatônico está propriamente separado da variedade
sua relação ambígua com o universo criado e levantam, assim, o difícil através da qual ele se manifesta. Eckhart, no entanto, vai ainda mais longe;
problema do tempo e da eternidade. Concernem, enfim, à própria cria- afirma várias vezes, em alemão e em latim, que todas as perfeições divinas
tura, e mais particularmente à pessoa humana como imago Dei, mas tam- pertencem tão intimamente à criatura purificada, iluminada e perfeita que,
bém a toda a obra dos seis dias, na medida em que "extra-feita" a partir segundo os termos surpreendentes do Livro da divina consolação:
do puro nada, ela pode ou permanecer nesse nihil que é seu verdadeiro
estofo, ou voltar - por meio de uma imagem (que aparece ao mesmo A Bondade é sempre engendrada, e tudo o que ela é no
tempo como imanente e transcendente à alma intelectiva), através do bom ... e isso é igualmente verdadeiro quanto ao justo e à Justi-
mistério de graça (e de natureza) de uma "abertura" instantânea (e sem ça, quanto ao sábio e à Sabedoria 16 .
dúvida irreversível), - até à pura Deidade na qual se mantêm indivi- •
sivelmente todas as coisas, no Silêncio eterno que está além de qualquer Aos inquisidores que achavam a fórmula inquietante, Eckhart res-
"processão" . pondeu que esta era simpliciter et abso/ute vera 17 • O comentário do Evan-

140 Maurice de Gandi!lac Gêneses da Modernidade 141


I':'
,

gelho segundo São João determina que o "justo" que se identifica assim à atento, em certas circunstâncias, a um desses aspectos, Eckhart entretanto
"Justiça" é o "justo enquanto tal" (justus ut sic)18. Dele pode-se apenas jamais o separou dos outros a ponto de negligenciar totalmente um ou outro
dizer que a Justiça o engendra como o Pai (in divinis) engendra o Filho. dos "momentos" constitutivos no mais fundamental de seu pensamento.
Não pensemos, entretanto, que essas fórmulas sejam válidas apenas para Como já sabemos, esses momentos são, por um lado, a separação entre
o mistério da Justificação, entendido stricto sensu; aplicam-se da mesma o Criador e o criado; por outro, a imanência de Deus em toda criatura dei-
maneira ao "bom", ao "sábio", etc., e implicam uma,total imanência, no ficada. Quando o Mestre define Deus como pura intelligere (referindo-se
interior da criatura deificada, de cada uma das "perfeições gerais" de Deus. ao naus amiges, ao intellectus impermixtus que, para Aristóteles, não pode
Essas perfeições poderiam parecer simples denominações humanas, ser ele próprio nada daquilo que ele conhece)20, fica bem claro que seu ob-
extraídas por abstração e generalização de uma observação empírica refe- jetivo é o de opor com todo rigor ao "ente criado" (ens creatum) -aquele
rente a puras criaturas. Recolocadas no conjunto do ensinamento eckhar- que não é senão "ex-existente", extrastans, em outros termos, o indivíduo
tiarro, as fórmulas nominalistas só adquirem seu pleno sentido quando concreto, a prote ousia das Categorias, o tode ti do Estagirita - esse "ente
justapostas às fórmulas de um ousado realismo. As perfectiones generales, incriado" (ens increatum), que melhor seria chamar de "Ser intelectivo" (esse
assim, longe de serem excluídas de Deus tal como ele é em si mesmo, en- intellectivum), porque é uma subsistência eterna no Pensamento divino, fora
contram-se tão profundamente enraizadas na Deidade (para além mesmo de qualquer "processão", de qualquer "extrafacção". Nessa perspectiva, o
do Deus nominável e descritível da teologia e da filosofia) que, em nenhu- melhor nome de Deus é intelligere e não esse. Esse, contudo, não é rejeita-
ma criatura tornada "perfeita" (homem ou anjo), elas podem possuir ou- do de maneira absoluta. Mas não se deve falar de Ser divino a não ser que
tra realidade que não aquela que lhes pertence enquanto perfeições divi- este seja entendido como uma puritas essendi que é exclusão de qualquer
nas. Conseqüentemente, o Uno é totalmente separado de qualquer diver- "ente", no sentido em que o ens implica queda e privação em relação à eterna
sidade. Mas, ao mesmo tempo, e na medida em que o diverso se une ao perfeição do intellectum como ta1 21 . E temos ainda apenas um dos dois
Uno, que é sua origem e seu substrato, ele vive no Uno e o Uno nele exa- extremos da cadeia. Outros textos - que talvez tenhamos erroneamente
tamente como o Pai no Filho e o Espírito, e o Filho e o Espírito no Pai. considerado contraditórios com as Questões parisienses - atribuem, com .l"
Esse exemplo único, que esperamos não ter deformado seriamente ao efeito, a Deus, a plenitudo essendi, isto é, eSse modo de ser que, no pensa-
expô-lo aqui de forma esquemática, mostra bem como estaríamos equivo- mento incriado, pertence simultaneamente ao Criador e a qualquer criatu-
cados se separássemos de seu contexto os diversos enunciados eckhartianos. ra na perfeição de seu ser-pensamento em Deus22 •
O paradoxo é, entretanto, como já observamos, que cada uma das fórmu- Mas é preciso acrescentar - de modo igualmente importante - que, ,
las, por mais surpreendente que seja, se defende melhor talvez em seu iso- se a perfeição divina só se expressa "puramente" pelo viés de termos negativos, •
lamento; e a audácia do mestre parece antes se dever à aproximação dialé-
tica de afirmações opostas do que ao próprio conteúdo dessas afirmações.
essa pura necedade está longe, todavia, de satisfazer às exigências de um ver-
dadeiro pensamento dialético. Nesse ponto, parece que Mestre Eckhart man-
x
Resta, é verdade, pelo menos em alguns casos, o recurso tão caro aos his- tém-se mais "tomista" do que se poderia supor. Para ele, a negação "supri-
toriadores, isto é, a hipótese de uma evolução doutrinaI. É assim que, no me" tudo o que encontra e, por si mesma, não "coloca nada"23. No contexto
que concerne ao valor e à hierarquia dos nomes atribuídos a Deus, a maio- em que surge aqui o verbo tollere, parece difícil tentar, quanto a ele, o jogo
ria dos eckhartianos supõe que o pensamento do mestre dominicano tenha verbal que sugere por vezes seu equivalente alemão úfheben24 . Toda nega-
evoluído sensivelmente. E é notável que, exatamente para evitar atribuir a ção remete entretanto a uma afirmação. Só existe "ausência", com efeito,
Eckhart uma espécie de dialética anacronicamente hegelializante, um dos em relação a uma "posse". Assim, a cada vez que excluímos de Deus um
melhores especialistas no assunto, Raymond Klibansky, tenha finalmente atributo inconveniente, supomos, nele, a existência positiva de "alguma coisa,
admitido, com a maioria dos críticos, que as Questões parisienses acerca qualquer que ela possa ser", cuja única presença remove dele o que não é senão
do ser e da inteligência em Deus indicam (por volta de 1302-1303) a ade- negativo, "como a luz exclui as trevas e como o bem exclui o mal"25.
são de nosso teólogo a uma terminologia pouco compatível com aquela que Eckhart se refere aqui ao Pseudo-Dionísio, para quem essa "Treva"
predomina no resto de sua obra 19 . Sem "hegelianizar" Eckhart, Lossky de que fala a Escritura e "na qual estava Deus" (Ex., XX, 21) é uma "Luz
sugere, contudo, que, de acordo com a ocasião, o mestre pôde esclarecer super-excelente" que permite conhecer "o que ultrapassa qualquer cog- •
aspectos aparentemente contraditórios, mas realmente complementares, da noscível" 26. Porém, como bem mostrou Lossky no primeiro capítulo de seu
relação entre os diversos nomes divinos. Se assim for, admitir-se-á que, mais livro, Eckhart não pode se contentar, como faz o autor dos Nomes divinos 27 ,

142 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 143


rr\õ!

em celebrar "sucessivamente" o Deus "anônimo" e o Deus "polinônimo". E, conseqüentemente, é preciso que haja {na alma] algo
Se é verdade que existe um Deus aliquid - quodcumque sit illud - , um de mais íntimo e de mais nobre, e de incriado, sem medida e
ser positivo que significa a real exclusão de tudo o que é imperfeito e limi- sem modo, onde o Pai celeste possa inteiramente se represen-
tado, seria necessário dizer que Deus possui em "próprio" um "nome ma- tar em imagem e se expandir e se manifestar: estes são o Filho
ravilhoso" e "inominável"28, aquele que, sem se "nomear", o próprio Deus e o Espírito Santo 35 .
entretanto revelou quando disse: Ego sum qui sum, isto é, seguramente: Eu
sou "isso" ou "aquele" que existe29 , o ser "puro" e "nu" no qual jamais se E quando se trata, no sermão alemão Intravit Jesus, dessa mesma
separam o quid e o an 30 , mas primeiramente-e melhor ainda - o Nome "potência" da alma, na qual "Deus floresce e verdeja com toda sua Dei-
indizível que apenas eu conheç031. Da mesma forma que às crianças curio- dade", pode-se admitir que o Geist do qual "emana" e no qual "se man-
sas por saberem muito cedo o que não podem ainda compreender, respon- tém" essa "potência", ainda que designe aqui o espírito criado enquanto
demos simplesmente: Isso é isso, aquilo é aquilo, à criatura preocupada em ultrapassa sua condição de criatura, remete, ao mesmo tempo que ao Pai,
nomeá-lo, Deus pode apenas dizer: Eu sou quem eu sou. Para conhecer esse ao Espírito Santo que, nessa Kraft,
nome que profere eternamente uma "Fala sem palavra ou, antes, para além
de qualquer fala", no "silêncio do Intelecto paterno,,32, é preciso sem dú- engendra o mesmo Filho único e se engendra como o mesmo
vida que Mestre Eckhart siga a via agostiniana e "entre em si mesmo", mas Filho e é o mesmo Filho nessa Luz e é a Verdade 36
menos, contudo, como o bispo de Hipona - para escapar assim de uma vã
"querela de palavras" e para remontar "psicologicamente" até a origem de Nesse nível de unidade, um verdadeiro dialético - no sentido que ten-
toda verdade 33- , do que para unir ao Uno-Pai essa ponta incriada da alma tamos precisar - não renuncia, por isso, a definir uma "estruturação" do
(esse aliquid tão inominável quanto Deus) que sozinha, ao final de uma Deus trinitário, que continua fundamental ainda que não se reduza propria-
ascensão dialético-mística, tornada una com a Fala sem palavra, pode di- mente aos ternários psicológicos ou lógicos transmitidos pela tradição agos-
zer em Deus e com Deus o nome indizível de Deus. tiniana (Mens-Notitia-Amor ou Unitas-Aequalitas-Concordia) nem às apro-
priações mais estritamente teológicas que implicam os nomes pessoais de Pai,
Em Mestre Eckhart, assim como em muitos teólogos ocidentais, a
fórmula latina da processão do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho, a
de Filho e de Espírito. Desses três nomes, o primeiro desfruta sem dúvida, -
em Eckhart, um estatuto privilegiado, com a condição, contudo, de que jamais
processio ab utroque, permite atribuir ao Espírito Santo o papel de um se separem fecundidade e unidade. É ao Pai, com efeito, que convém mais o '("
terceiro "momento" (amor e nexus) que é menos o ponto de chegada de
um processo descendente e o ponto de partida de uma ascensão do que a
primeiro transcendental, o "uno" que, mais do que o "verdadeiro" ou do
que o "bem", "se relaciona da forma mais-imediata" com esse "ser" no qual
."
,li
ligação interna imanente a todo o processo trinitário: a Deidade, admitindo-se que se possa separá-la de suas operações, estaria como
que "escondida" e "adormecida d7. Assim, uma dupla característica que só
o amor do Pai pelo Filho e do Filho pelo Pai... é o vín- pode ser apreendida "dialeticamente" em sua aparente ambigüidade. É do
culo entre os dois, e o Espírito, aspirado por um e pelo outro, Pai, como tal, que procede toda expressão ou manifestação (intra ou extra-
procede dos dois a fim de que os dois sejam um 34 • divina), mas é a ele que se une - ou que se "identifica" - a alma deificada,
uma vez esvaziada de toda wíse "maneira"e de toda Eigenschaft "proprie-
Do mesmo modo, se o engendramento misterioso do Verbo (como dade", lá onde o Deus que podemos humanamente nomear e definir
"verdadeira Imagem de Deus") na alma inteiramente esvaziada de sua
característica criada desempenha um papel essencial na mística eckhartiana, nunca olha por um só instante nem nunca olhou, visto que ele
o mestre turíngio não desconsiderou, por isso, - ainda que a mencione se comporta segundo os modos e apropriações pessoais ... Se
menos freqüentemente - a coabitação do Espírito Santo em qualquer alma Deus nunca deve olhar para aí, é necessariamente à custa de
deificada. Mas o papel de "ligação" atribuído à terceira Pessoa é tão de- todos seus nomes divinos e suas apropriações pessoais 38 .
terminante que leva às vezes o predicante a fundir, por assim dizer, a fun-
ção própria ao Espírito na única Geração da Imagem. É assim, por exem- Diferentemente do Filho e do Espírito, o "Pai" é transcendente a
plo, no Livro da consolação: qualquer "imagem" que se situe no nível da igualdade ou da semelhança.

144 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 145


I~

Usando essas comparações físicas que têm, para ele, sobretudo um senti- fases: bullitio e ebullitio - , ele situa em Deus uma dupla "ebulição" -
do simbólico - pois a natureza "criada", por receber todo seu ser empres- interior e exterior - que aparece, em certos textos, exatamente como a
tado ao Deus que ilumina seu nada, mesmo não podendo pretender ao' condição exterior de sua perfeição, até mesmo de sua mais-que-perfeição:
estatuto ontológico que lhe confere, em Santo Tomás, uma ontologia aris-
totélica, está apta, em contrapartida, a expressar simbolicamente um cer- É preciso que alguma coisa borbulhe e termine por der-
to caráter teofânico de tipo boa-venturiano - , o autor do Livro da divi- ramar-se a fim de ser em si completamente perfeita e, em seu
na consolação observa que o fogo, quando atiça, por "assimilação", o ignes- transbordamento, mais-que-perfeita41 .
cente até à perfeição do ígneo, se comporta como se ele "odiasse" tudo o
que, nesse processo progressivo, comporta ainda, em qualquer grau que o difícil é, evidentemente, determinar o que deve ser entendido aqui
seja, "diferença e dualidade" (Underscheit und Zweiung): por "mais-que-perfeita". Se é verdade que plenitudo essendi é, como Lossky
aponta, mais "inclusiva" do que "exclusiva", a exuberantia (ou transbor-
E é por isso que eu disse que a alma odeia a igualdade e damento), que é aqui um outro nome para a ebulitio (ou fervura), não pode
não ama a igualdade em si e por si, mas que ama pela unidade designar, de modo algum, a criação das coisas enquanto estas são "extra-
que é latente nela e que é verdadeiramente "Pai", princípio sem feitas" , pois seria necessário admitir então que Deus, pela gratuidade de
princípio de tudo o que está "no céu e sobre a terra,,39. um dom supérfluo, acrescenta o que quer que seja à sua própria substân-
cia, o que não é defensável em nenhuma teologia e menos ainda na teolo-
Mas justamente porque o verdadeiro "Pai" é simultaneamente ima- gia eckhartiana. Parece que a ebullitio - que corresponde à irradiação da
nente a qualquer semelhança - enquanto produtor de uma imagem na qual Luz divina - dá lugar aqui a esse "movimento de retorno" que Dionísio
se expressa perfeitamente sua própria essência - e transcendente a qual- apontava expressamente, desde as primeiras linhas da Hierarquia celeste.
quer imagem - visto que a imagem se distingue ainda do modelo - , não As coisas criadas só têm valor real quando "retornadas" a Deus, ou em
se poderia alcançá-lo apenas pelas vias da apófase e, como já sabemos, por seu movimento de retorno. O transbordamento inclui, pois, toda a "vi-
detrás de todas as denominações negativas está dissimulado um "nome sitação "42, como processão e como anagogia, mas também - e muito mais
próprio", um Etwas positivo que traduz, ou que pretende traduzir, a dia- explicitamente do que no Corpus aeropagiticum - a constante imanência
.
lética do Uno-Pai. Ainda aqui não se pode dissociar - sem graves contra- da Unitrindade na "segunda emanação". Assim se explica sem dúvida o
sensos - os dois aspectos complementares de uma única "teologia", a que fato de Eckhart ter afirmado a "simultaneidade" entre o Engendramento
apreende conjuntamente a Unidade originária e o processo interior da
,•.
·f,r

do Verbo no interior da Trindade e a criação do mundo, a qual só adqui-


Unitrindade - , o qual, por sua vez, é, em Eckhart, inseparável da cria- re seu sentido pleno pela "filiação" das almas deificadas43 . No único ins- ,.,'"
ção. Apesar das aparências que por vezes enganaram os admiradores ou tante eterno no qual ela realiza a perfeição de sua própria fecundidade
detratores de um Eckhart falsamente comparado a Boehme (ou a Schelling), (bu/litio), a Deidade transborda dessa perfeição infinita pelo dom total de
o mestre dominicano jamais imaginou nenhuma "teogonia" na qual, de uma graça deificante (ebu/litio) que deve ser situada para além de qual-
um Ungrund antecedente, teria saído, por meio de desenvolvimento tem- quer criação ad extra. É por isso que o "retorno" (ou "abertura") - que,
poral, uma divindade cada vez mais determinada, mas, antes, no interior ligado da forma mais íntima ao Engendramento do Verbo na unidade do
da mesma Deidade, duas funções complementares correspondendo ao du- Espírito, contém em si, por união de graça ao Nunc do Uno-Pai, a insepa-
plo papel da puritas essendi - como unidade "exclusiva" - e da plenitudo rável totalidade da ebulição e da fervura - é, para Eckhart, "mais nobre"
essendi - como unidade" inclusiva". do que a simples "emanação", isto é, do que esse mundo criado como tal,
Segundo a tradição que pretende esclarecer o mistério da Trindade cristã em sua relação de simples "efeito" exterior a um Deus concebido, ele mes-
por meio de fórmulas "cíclicas" como a do Livro dos XXIV Filósofos: Monas mo, no nível de seus "modos" e de suas apropriações 44 .
monadem gignit vel genuit et in seipsum reflectit amarem seu ardorem,
Eckhart evoca por vezes em Deus um movimento de algum modo "reflexi- Essas considerações trinitárias conduziram-nos, como era de se es-
vo", que pode fazer pensar na passagem, da primeira à segunda hipóstase, perar, à relação entre a vida interior de Deus e o universo que ele fez surgir
em Platina. Por outras vezes, tomando sem dúvida de Thierry de Vrieberg, do nada. Tanto em Eckhart como no Cusano, o mundo é, de certo modo,
que a supõe procliana, a imagem da ebullitio 40 - na qual ele distingue duas comparável à célebre esfera infinita do Pseudo-Hermes 45 , na qual tudo

146 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 147


'I

coincide com tudo (cf. Mahnke, Unendliehe Sphiire und Al/mittelpunkt, no diálogo irênico e semi-utópico inspirado ao cardeal pela queda de
Halle/Saale, 1937). Ele está "completo em cada criatura, em cada uma Constantinopla, o De pace (idei, permitirá apenas a reconciliação terres-
como em todas" (In Eecli., n.19-20, LW lI, p.247-248), e entretanto, tre dos irmãos inimigos, o apaziguamento das lutas e o fim das persegui-
devido à sua transcendência, "exterior" a todo o criado. Mas deve-se ções, esse programa de reformas políticas e eclesiásticas que já prefigura
observar que se Eckhart, como destaca Mahnke, amplia um pouco o sen- a Concordance catholique, esse desenvolvimento progressivo das artes e
tido original da fórmula pseudo-hermetista, não é nunca o mundo, a das técnicas em que a quarta parte do Idiota afirma o muito ousado pro-
machina mundi, que ele compara, como o farão o Cusano e, depois dele, grama, na linha do sermão pela Epifania de 1456, inseparavelmente cris-
Pasca1 46 , a uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e a circun- tológico e humanista (Ubi est, ed. Koch, Sitzungsberiehte der Heidelberger
ferência em lugar nenhum. Sua cosmologia continua medieval e, parece, Akademie, 1936, n.U sq., p. 94 sq.).
de tipo nitidamente arcaico. Faltam, entretanto, a seu universo - por Eckhart jamais negou, bem entendido, a Providência, e até mesmo
razões que derivam de sua ontologia, não de sua física - essa subsistên- insistiu nas virtudes de Marta, que sabe contemplar tudo dedicando-se aos
cia e essa eficácia que a escolástica aristotélica atribuía às causas segun- cuidados da casa 47 . Mas a "presença" do eterno no temporal aparece na
das. E é por isso que o mundo criado não poderia quase aparecer, em maioria das vezes, em sua pregação, em relação aos "instantes" da união
Eckhart, como esse "infinito reduzido" (maximum eontraetum) que Ni- mística - ou do "verdadeiro arrependimento" que dá sentido ao pecado
colau de Cusa situaria, na Douta ignorância, diante do "infinito absolu- antecedente 48 . Quando ele fala de um enraizamenro que é o produto de
to" (maximum absolutum), na qualidade de imagem que "se aproxima uma "busca,,4<;l, só se pode tratar de uma busca "total" que encontra no
tanto quanto pode" de seu modelo perfeito, na qualidade também de uni- instante mesmo em que procura, pois, enquanto permanecer no nível do
dade mediadora pela qual o próprio Deus se torna presente à totalidade "mais" e do "menos", ela não pode ser "divina"so. A alma que "escolheu
das coisas (cf. Doeta ignorantia, lI, 4). Na perspectiva eckhartiana, a re- a melhor parte" (Lucas, X, 42) só pode progredir continuamente se rece-
lação entre Deus e o mundo não pode de forma alguma se assemelhar beu de uma só vez (cf. o ezaíphnes do Pseudo-Dionísio, Ep. m, 1069 b)
àquela concebida pelos matemáticos entre um limite e a progressão as- "o todo na parte, o fruto na flor", isto é, precisamente essa forma de ima-
sintótica que daí se aproxima sob a forma do indefinido. As imagens ge- nência intemporal que significam o "tudo em tudo" de Anaxágoras e a
ométricas, que serão caras ao cusano (o ângulo infinito que se anularia "esfera infinita" do Pseudo-Hermes, aquela que simboliza igualmente o
como ângulo, a porção de circunferência, que, quando o raio fosse infi- maná no deserto 5 ]. Porém, assim como o Uno-Pai é dialeticamente inse-
nito, se tornaria linha reta etc.), quase não interessam a Eckhart, que ra- parável da "ebulição" unitrinitária, essa graça instantânea, que se apre-
ramente fala a linguagem matemática e prefere ilustrar seu pensamen- senta com as características da Glória, não exclui de forma alguma a lin- .'"
to, em um modo poético ou usual, com imagens físicas tratadas em um guagem pauliniana da coroa reservada ao atleta que lutou bem (lI Tim., ",
,I.,
estilo qualitativo e antropomórfico (a taça inteiramente vazia que se ele- lI, 5). Interpretando à sua maneira o Vade in pace de Lucas, VI, 50, Eckhart
varia para além do mundo sublunar, a pequena centelha que voltaria ao mostra que "se deve correr rumo à paz, não iniciar na paz,,52. A substi-
empíreo se o ar úmido não a sufocasse etc.). tuição de um acusativo (questão quo) pelo ablativo latino (questão ubi)
Mas é claro, sobretudo, que nenhuma formulação desse tipo escla- não deve, contudo, nos enganar. É ao mesmo tempo "rumo" à paz e "na"
rece efetivamente a verdadeira relação entre o Deus criador e a criatura paz que se deve "correr". E, se é "bom" e "louvável" ir de paz em paz,
extraída do nada. O Verbo eterno, que contém eternamente os arquéti- esta é ainda uma atitude "insuficiente"53. Eckhart pensa menos na "epec-
pos de todas as coisas, na forma de pensamentos divinos, e que só se en- tase" de um Gregório de Nissa do que em um movimento bem próximo
gendra, nas almas purificadas, tornadas virgens e fecundas, pela via de do repouso, cujo melhor símbolo continua sendo, para ele, a regular phora
uma "abertura" instantânea, parece longe e como que estranho em rela- do primeiro "céu" aristotélico, aquele de todas as mudanças que, pela
ção a uma "história" cósmica ou humana que só se desdobraria nessa apa- imaterialidade de seu substrato, é o menos propriamente metaphore:
rência de ser tão freqüentemente qualificada de nada. A esse respeito ele
parece muito pouco com o que será - pelo menos em um de seus aspec- o homem que está correndo, e em uma corrida contínua
tos, mas que nos parece essencial- o Mediador cusaniano, esse Deus hu- e de tal modo que esteja em pazS4 , este é um homem celeste. O
manatus, conexão necessária entre o infinito reduzido e o infinito abso- céu volta-se sobre si mesmo em uma corrida contínua, e nessa
luto, aparição histórica que liga o tempo humano à presença divina e que, corrida, procura a paz55 .

148 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidadt: 149


':~

°
Se essas fórmulas de "coincidência" deviam inspirar Cusano, pare- como que sendo um com ela, então não lhe é necessário falar
ce-nos que uma tal imagem está, entretanto, bastante longe daquela que o como fez essa mulher: Senhor, mostre-me onde devo orar e o
cardeal utilizará quando evocar esse pião que parece" dormir" porque é que devo fazer para ser a mais cara de todos na verdade; e Je-
movido por uma velocidade que se aproxima do infinito 56 . Em sua carta sus responde que ele se revela verdadeira e plenamente em tudo
ao jovem noviço Nicolau Albergati, obra de circunstância na qual Mme. o que ele é, e preenche o homem tão superabundantemente que
Gerda von Bredow, que em outra ocasião a editou (Cusanus-Texte, Brief- ele jorra e flui da mais-do-que-plena6 2 plenitude de Deus, como
wechsel In, Heidelberg, 1955), vê um verdadeiro "testamento espiritual" fez essa mulher em pouco tempo perto da fonte, ela que não
do cardeal, parece-nos que as expressões do parágrafo 7 (loc. cit, p.38) são estava de forma alguma antecipadamente preparada. E é por
diferentes de um "abrandamento" (ou de um "enfraquecimento") das te- isso que digo aquilo que já disse: que nenhum homem nesse
ses eckhartianas acerca da imagem de Deus na alma deificada. Para o Cusano, mundo é tão grosseiro nem tão desprovido de entendimento nem
como mais tarde para Leibniz, existe realmente - ou virtualmente - uma tão mal disposto a isso, desde que possa, com a graça de Deus,
espécie de "república dos espíritos", na qual cada "mônada" pode desem- unir sua vontade pura e totalmente à vontade de Deus, e tem
penhar um papel singular em uma verdadeira" história". É nessa perspec- apenas necessidade de dizer em seu desejo: Senhor! Mostre-me
tiva "progressista" - no duplo nível do indivíduo e da sociedade - que tua tão cara vontade e fortalece-me para cumpri-la! E Deus o
faz tão verdadeiramente que ele vive, e Deus lhe fez um dom
nossa natureza intelectual, compreendendo-se pela inteligên- perfeito em todos os aspectos em tão rica plenitude como o fez
cia como uma imagem viva de Deus, possui o poder de se tor- para com essa mulher. Vede, é isso que o mais grosseiro e infe-
nar continuamente mais luminosa e mais conforme a Deus, rior dentre vós pode receber de Deus antes que hoje mesmo ele
ainda que, visto que é imagem, não se torne nunca modelo ou saia dessa igreja, o que digo? Antes mesmo que hoje eu tenha
Criador'í7. terminado esse sermão, em toda a verdade e tão verdadeiramente
que Deus vive e que eu sou homem. E é por isso que digo: Não
Sabemos que o pensamento eckhartiano estaria deformado se se in- temeis, essa paz não está distante de vós, se vós a procurardes
sistisse unilateralmente no tema do Tudo ou Nada, negligenciando-se o de forma sábia63 •
valor dos textos nos quais o mestre dominicano (que se situa, quando es-
creve para a rainha da Hungria, em um plano mais "pedagógico") obser- Porém, se é verdade que o mestre fala aqui como guia espiritual -
~::.,
va que, "se não se instruírem as pessoas que não são instruídas, ninguém ainda que se dirija, como acabamos de ver, não a religiosos já formados
jamais será instruído,,58. Ou, mais meta fisicamente, em termos que M. mas ao mais grosseiro de seus ouvintes - , o paradoxo de sua posição só ~r'
,",
Quint aproxima de certas fórmulas kierkegaardianas: "Se não houvesse se esclarece, cremos, pela referência à sua ontologia. Nele, o problema da
nada de novo, não haveria nada de antigo,,59. Mas é no entanto claro que, santificação e o do arrependimento, que na verdade são apenas um, não
para Eckhart, na instantaneidade de um "dia de eternidade" é que a alma se separam realmente da questão mais geral que coloca a relação entre o
pode - "para além do tempo", e cada vez que se repete nela esse ato de Deus criador e o universo criado. Finalmente, a presença do Deus trinitário
abandono que a faz mãe de Deus - se identificar com o único Filho que no "pequeno posto" da alma (Pred. 2), no "templo" libertado de seus
engendra eternamente o único Pai 6o . Como o "verdadeiro arrependimen- "mercadores" (Pred. 1), ainda que ela seja um dom de graça que já está
to", tal como o descreviam os Discursos do discernimento, faz "desapa- descrito como um dom de gloriosa beatitude, mantém-se provavelmente
recer todos os pecados no abismo de Deus" em menos tempo do que ° do mesmo tipo que a imanência geral da Luz divina nas trevas do nada.
necessário para Eckhart "fechar o 0Iho,,61, essa conversão não exige ne- Para definir essa imanência, que se assemelha antes a uma teofania do que
nhuma prova preparatória, nenhuma ascese prolongada. Assim que a Sama- a uma doação de ser, Eckhart usa freqüentemente a palavra «analogia"
ritana ouve Jesus, ela se volta para ele e é nesse mesmo instante que en- que, apesar das referências aristotélicas e tomistas, é entendida aqui de
contra "seu verdadeiro marido"; forma bastante particular. Em seu artigo Mélanges Étienne Gilson, Koch
"
apresenta, a esse respeito, conclusões bem próximas daquelas a que havia
Se o homem é senhor de sua livre vontade, na graça, e de chegado, por sua vez, Vladimir Lossky64. Podemos apenas fazer um levan-
modo que possa uni-la à vontade de Deus de maneira total e tamento de seus elementos mais essenciais.

150 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 151


~''o,'

A analogia eckhartiana não se define absolutamente em termoS de sentido oriental). Sabe-se, por conseguinte, que não apenas a "estraneidade"
proporcionalidade matemática, e não encontramos nos textos do domi- da criatura não a impede em nada de manifestar a "honra" e a "glória"
nicano alemão fórmulas como as de Santo Tomás declarando que, se "ver- de Deus, mas que é precisamente pelo que nela é, de forma real e não ilu-
dade, bondade e outras perfeições do mesmo gênero são ditas analogi- sória, "bom" e "perfeito", que ela testemunha, simultaneamente, sua mi-
camente de Deus e das criaturas", importa que elas estejam presentes, tanto séria de "mendicante" e essa "riqueza" do Deus "misericordioso"69 que
em umas quanto em outras, "segundo seu ser", mas "em graus de maior e não cessa de "alimentá-la" sem nunca "saciá-Ia"7o. A esse respeito a ima-
menor perfeição"6S. O que Eckhart situa entre a equivocidade e a univo- gem da urina como sintoma da saúde é bastante indelicada, mas a ima-
cidade é muito menos uma relação a quatro termos como as que descre- gem da coroa de palha, como tabuleta de taberneiro, é mais insuficiente
via, por exemplo, Aristóteles no V Livro da Ética a Nicômaco (para de-
terminar as diversas espécies de justiça), do que essa forma de raciocínio
ainda visto que não remete senão a um "signo". Ora, enquanto ela é em
si "absolutamente nada", a criatura é menos do que um signo; enquanto
~
que concerne ao uso, pelo Estagirita, de "equívocos por referência" (ou criatura de Deus, ela o é mais, na medida em que recebe, em toda plenitu-
eras en)66 tais como os definiam vários textos da Metafísica (particular- de - sem a degradação progressiva que descrevia o Pseudo-Dionísio em
mente 2,1003 a, e K, 3,1061 a). Se o "ente" se diz "em vários sentidos", relação à existência de telas materiais cada vez mais opacas 7! - , uma luz
existesempre um sentido primeiro que, em relação aos sentidos derivados, que não se "enraíza" no ar que ela ilumina, que, em um sentido, não é senão
desempenha o mesmo papel que a saúde do ser vivo em relação àquilo que "emprestada" e entretanto a torna mais rica do que qualquer doador que
a conserva, a produz ou a revela, isto é, a dieta, o médico, a urina. Ora, não estivesse ele mesmo na plenitudo essendi. Graças a esse empréstimo
diferentemente de Aristóteles e de Santo Tomás, em vez de ver nessas es- de luz, a criatura pode assemelhar-se ao ar translúcido e, ao se reconhecer
pécies de "análogos" modi praedicandi e modi relationis, Eckhart os des- mendicante, tornar-se ela mesma teofania 72.
creve ousadamente como modi unius eiusdemque rei simpliciter6 7, de for- Assim se esclarecem os abundantes paradoxos da obra de Eckhart e
ma que se poderia considerá-lo, uma vez mais, bastante próximo de uma que resumem bastante bem as linhas tomadas ao comentário do Êxodo (a
teoria da pura univocidade. E isso exatamente no momento em que o lei- propósito de XX, 4):
tor desatento ao jogo de sua dialética poderia acusar o dominicano ale-
mão de sucumbir a tentações equivoquistas. É notável, com efeito, que, Nada é ao mesmo temlJO tão dessemelhante e tão seme-
remetendo aos célebres exemplos aristotélicos, Eckhart negligencie o pa- lhante a outra coisa ... do que Deus e a criatura. O que há, com
pel do médico como agente positivo da saúde, se interesse pouco pelo da efeito, de tão dessemelhante e semelhante a outra coisa do que
dieta como causa conservadora e acentue deliberadamente o caráter mais isso, cuja dessemelhança é a própria semelhança, cuia indistinção ",,,
"exterior" da urina, efeito fisiológico mas sobretudo sintoma médico, visto é a própria distinção? .. Sendo distinta por sua indistinção, quan- :1::
que ele a compara a uma tabuleta de taberneira, nem mesmo imagem de to mais é indistinta, mais é distinta; sendo semelhante por sua
barril, mas simples coroa de palha, ideograma em si perfeitamente estra- semelhança, quanto mais é dess.emelhante, mas é semelhante 73 .
nho à natureza do vinho cuja presença ele anuncia. Na mesma frase, na
qual descreve - como vimos - a dieta e a urina como os "modos de uma É o conjunctim que forma aqui o cerne mesmo do raciocínio. É ele
única e mesma coisa" - a saúde - e como "numericamente unas" com também que dá seu verdadeiro sentido às afirmações aparentemente con-
ela, Eckhart usa o "de modo que" (ita quod que lhe é cara) para precisar traditórias, as quais, mais ainda do que os comentários latinos, povoam
que nem uma nem outra contêm entretanto essa saúde mais do que a con- os tratados e os sermões alemães: a alma contém uma imagem que é ao
tém a pedra. Ora, é precisamente desse mesmo modo que mesmo tempo interior e exterior, não de dois pontos de vista diferentes,
mas porque "o interior é o exterior" e "o exterior, o interior,,7\ ela está
o ser e toda perfeição, sobretudo geral, como o ser, o verdadei- "presa no corpo" e, contudo, "o corpo está antes nela do que ela nele"75;
ro, o bom, a luz, a justiça, etc., se dizem? analogicamente de "o Anjo mais elevado não pode tocar no fundo nem na natureza da alma"76,
Deus e das criaturas 6S • e no entanto o Anjo é "uma imagem mais próxima de Deus,,77 e o mais
nobre dos espíritos puros participa de tal forma da Potência divina que
Mas já encontramos, no início dessa exposição, o caso significativo pode-se dizer que ele criou tud0 78 , mas a verdade é finalmente que "em
das "perfeições gerais" (transcendentais, atributos divinos, "energias" no Deus nenhuma criatura é mais nobre do que uma outra,,79; a alma que

152 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 153


.... ,

procura Deus no fundo de si mesma é denominada "viril", ela deve ultra- Unidade que eu sou, que recolho, por minha presença interior e minha
passar o nível inferior no qual a qualificamos de "mulher"so, e no entan- imanência, no Seio e no Coração do Pai" 87. Estamos, então, para além de
to o fundo da alma deve ser, não apenas "virgem", mas "mulher", isto é, uma ascese, de um verdadeiro caminho da Cruz, de uma lenta e dolorosa
capacitado para conceber a imagem de Deus S1 ; a "centelha" da alma é imita tio Christi; e, se o que se considera em geral como um "preceito"
"incriada"S2 e entretanto foi Deus quem a "criou"S3; os amigos de Deus merece antes ser chamado "promessa" e "recompensa", o apelo do Cris-
renunciam a qualquer consolo mas, para eles, consolo e não-consolo são to é menos, entretanto, o anúncio de uma alegria a colher, após uma par-
igualmente consolo s4 etc. ticipação real em seus próprios sofrimentos, do que a certeza de que todo
Desses paradoxos, cuja lista seria interminável, mantenhamos ape- sofrimento desde já é abolido e que, na verdadeira via cristã, o trabalho
desapareceu em benefício de puros prazeres 8S . Ainda melhor do que um
nas, como conclusão, aquele que, do ponto de vista cristão, pode parecer
o mais escabroso, pois, com uma "ingenuidade" bem diferente da síntese "arroubo" místico, deve-se falar, a rigor, de uma graça beatificante que ~
dialética de tipo hegeliano, dá lugar a uma Aufhebung a qual se poderia une a alma, de forma total e imediata, ao próprio Verbo encarnado e subs-
temer que chegasse praticamente a "esvaziar" o mysterium crucis. Eckhart titui à sua "natureza" de ser criado e "extra-feito" uma outra "natureza",
acaba de descrever, simbolicamente, uma luta laboriosa entre o fogo e a "superior" e "celeste"89.
madeira que aparece como um verdadeiro "momento" negativo, cujo papel É aqui que intervém o duplo sentido do verbo tollere (em alemão
é efetivo no apaziguamento final: ufheben), que significa antes de tudo -literalmente - "elevar", "tomar
sobre os ombros", "assumir", mas, para Eckhart, mais ainda: "suprimir",
Não se apaziguam nem se calam nem se satisfazem jamais até mesmo "depor", de forma que, quando o dominicano alemão, em vez
nem fogo nem madeira em nenhum grau de calor, de ardor, nem de compreender o versículo evangélico segundo sua significação mais evi-
de semelhança, até que o fogo se engendre ele mesmo na ma- dente, joga aqui - de passagem - com um termo que Hegel colocará bem
deira e lhe dê sua própria natureza, até mesmo sua própria es- mais tarde no centro de sua dialética, ele não pensa em atribuir ainda o
sência, de modo que tudo se torne um único fogo, em uma igual terceiro sentido de uma "síntese" que, "conservando", "ultrapassaria" ou
apropriação, sem diferenças, nem menos nem mais. É por isso "superaria" o momento da negatividade:
que, antes que s,eja assim, há sempre uma fumaça, uma resis-
tência, um estalido, um trabalho e um combate entre fogo e Nosso Senhor diz: "Quem quer vir a mim deve sair de si,
madeira. Porém, assim que toda dessemelhança é rejeitada e renunciar a si e carregar90 sua cruz" - isto é, deve depor e su-
suprimida, então se apaga o fogo e a madeira silencia S5 . primir tudo o que é cruz e sofrimento. Pois é certo que aquele
que renunciasse a si mesmo e saísse inteiramente de si, para esse ""
,rlll
Mas o primado do conjunctim exige que, se o sofrimento e o traba- não poderia haver nem cruz nem sofrimento nem pena; tudo
lho são mais do que epifenômenos, situados por assim dizer em um nível seria para ele um prazer, uma alegria, uma adoração 91 .
infra-ontológico, eles constituam, finalmente, com a paz e o silêncio uma
só e única realidade. Esse é o caso, sem dúvida, da Paixão de Cristo e de Efetivamente,Eckhart, em sua pregação, dá muito menos lugar do que
qualquer participação humana nesse evento "temporal" que, por ser "di- Tauler e sobretudo do que Seuse aos "acontecimentos" (históricos e meta-
vino", deve apresentar os traços de um Nunc intemporal. Seguramente, históricos) da Crucificação e da Ressurreição. O essencial é sempre, para
se os "amigos de Deus" sofrem de bom grado "incomodidade e dano", é ele, a vida gloriosa no interior da eterna Deidade. Ele não seria contudo
porque sabem que Deus enviará, àqueles que sofreram em uma "honesta um verdadeiro "dialético" se abstraísse completamente a negatividade: erro,
disposição", um certo "consolo" capaz de "ajudá-Ios"s6. Mas essa não é reparação, sofrimento e morte. Mas sua tendência é a de querer pensar em
ainda senão uma maneira exterior de falar e a exegese do texto evangéli- sua inseparável- e insondável- unidade apenas sob o rosto da beatitude,
co Tolle crucem nos introduz em uma perspectiva da qual parece excluÍ- os dois "momentos" da processão e do retorno, e - o que é mais grave
da qualquer temporalidade. As três prescrições de Mateus, XVI, 24 ("Se - os dois "eventos" do erro e do arrependimento. Pode-se duvidar que
alguém quer vir atrás de mim, que renuncie a si mesmo, que se encarregue essa visão eternista da felix culpa seja estritamente compatível com os fun-
de sua cruz e me siga") formam na verdade uma só, e esta significa, para damentos da fé de uma "história" sagrada e de uma "Paixão" redentora.
Eckhart: "Torne-se Filho como eu sou Filho, Deus engendrado e a mesma Notaremos igualmente que, na passagem que acabamos de citar - como
.. ,~, .. ...,.. ~,

Gêneses da Modernidade
\..;r·'R38 155
154 Maurice de Gandillac
~~- G I.~~
no texto dos Discursos de discernimento aos quais remetemos anterior- dia para ser o horizonte comum do tempo e da eternidade, essa imagem
mente 92 - Eckhart desliza, ele mesmo, em um uso bastante significativo de Deus que carrega em si toda a aspiração do "infinito reduzido" rumo
do condicional. Se jamais fosse possível a um homem chegar efetivamente ao "infinito absoluto". Ele exaltará, na própria história, a "cooperação"
a um total desprendimento (Abgeschiedenheit), então o paradoxo do "im- na obra divina desse microcosmo criado que tem vocação para ser "canto
possível necessário" se tornaria para a criatura uma realidade; de fato, ele vivo" e "cítara intelectual,,10o. O "segundo deus" do Pseudo-Hermes 101
é apenas um ideal, um limite inacessível. Só que o Cristo que apareceu para será menos, para ele, a "máquina do mundo", por mais infinita que seja,
o fariseu perseguidor no caminho de Damasco não é a idéia reguladora do que a mens foecunda do próprio homem no paciente trabalho de suas
de uma "tarefa infinita" nem o brâmane indiferenciado da tradição vedân- sucessivas "aproximações". Ele dará lugar, assim, por mais de uma vez, a
tica. Na medida em que o Verbo se "fez carne", em que "entrou na histó- essas "utopias militantes" que um revolucionário romântico como Ernst
ria", em que realmente carregou sua Cruz nas encostas do monte Calvário, Bloch opõe hoje em dia ao rasteiro racionalismo do marxismo vulgar 102.
na medida em que realmente agonizou no Jardim das Oliveiras e nos bos- Resta que Mestre Eckhart, pela dialética do totum intra e do totum deforis,
ques ignominiosos dos supliciados, não se pode negar que a fórmula eck- é o arauto de uma outra elevação prometida ao homem. Pois a efusão de
hartiana de um elevar-se que será, ao mesmo tempo, uma "deposição" e luz que se espalha sobre ele por pura graça 103 o revela em sua natureza
uma "abolição", uma gloriosa descida da Cruz identificada a uma ascen- divina, para além do nível natural no qual o calor se dá ao ar e o fogo à
são, uma metamorfose imediata da dor reparadora em eterna fruição, madeira. Basta que a criatura reconheça seu nada para que ela seja imedia-
corresponda também, no plano antropológico, a uma exigência sobre-hu- tamente elevada para onde a própria graça não é mais graça.
mana e, no plano teológico, a uma tentação docetista. Diferentemente da dialética cusaniana, a dialética eckhartiana dei-
xa na sombra o doloroso momento da ruptura, assim como o laborioso
O Eros platônico - não o encantador e inútil "pequeno deus" que momento da aproximação. Diferentemente da dialética hegeliana, ela evita
inspira a Sócrates uma "palinódia expiatória "93, mas o "grande demônio" deificar a história como se recusa a confiar à luta entre a natureza e a cul-
intermediário entre o divino e o human0 94, aquele que Diotima associa à tura a finalização de um livro morto que seria o fim da história mas igual-
concepção quase ignominiosa, no jardim de Zeus, por ocasião do banquete mente o fim do homem. A diferença da dialética kierkegaardiana, ela não
que acompanhava a chegada ao mundo da Afrodite popular 95 - nasceu reduz absolutamente a dimensão humana ao trágico confronto entre a
do encontro entre a mendicante Pênia e o hábil Poros, filho de Métis, que pura subjetividade e a transcendência absoluta de uma pura alteridade.
é tanto astúcia quanto sabedoria. Maltrapilho, sem casa, ele reúne em si É no instante eterno, mas aqui e agora, que ela exige do homem vivo esse
mesmo os traços complementares da indigência, que é uma necessidade vazio interior que o transmuta no mesmo instante em plenitude supera- 1.,
estimulante e da engenhosidade produtiva. Quando escapar às vulgariza- bundante, nesse nível em que, deificado sem ser Deus, ele só pode signi-
ficar sua condição paradoxal por acúmulo dos oxymora: o distinto que I"
ções do mito, é ele que irá aspirar, com todas as suas forças de necessita- "
do, a essa plenitude ontológica que só move o universo por ser, ela mes- é indistinto e o indistinto distinto, o outro que é não-outro, o ente que é
ma, o objetivo final de seu amor 96 . Em certos textos Eckhart, subestima não-ente e o não-ente, ente.
às vezes o misterioso valor da temporalidade; exalta tanto a criatura glori-
ficada e totalmente iluminada que a unidade primeira parece absorver, em
si, para sempre, as fases necessariamente sucessivas da "separação" e da
"reconciliação", de modo que quase não sobra lugar, nessa perspectiva, NOTAS
para a humilhação - usque ad mortem Crucis 97 - da vítima inocente
imolada pela salvação de todos. Mas, ao mesmo tempo, ele insiste bastante 1 Prologus generalis in Op. tripart., LW I, n.7, p.152. Citamos as obras publica-

'no absoluto desenlace de "todas as coisas,,98 para que o ens passivum- das por Kohlhammer em Strugart pelas abreviações LW (Lateinische Wcrke) e DW
(Deutsche Werke).
que recebe de fora o empréstimo mais precário - apareça freqüentemen-
2 Resposta aos artigos incriminados in "Edition critique des pieces relatives au
te mais como "nada" do que como "pobreza". proces", Arehives d'hist.litt. etdoetr. du Moyen Age, I, Paris, 1926 (ed. Théry), p. 186.
O Cusano, ao contrário, enfatizará - segundo uma tradição que vem 3 DWV, p. 60.
de Poseidônio, de Cícero, mas também de São Gregório de Nissa 99- o 4 Prol. in Op. trip., loe cit ..
caráter positivamente "industrioso" do homem que foi criado no último 5 Arehives d'hist. lit. et doet. du Moyen Age, 1928, IV, p.345, n.3.

156 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 157


6 "Hoc solum de Deo scio quod ipsum nescio", in Exod., n.184, LW 11, p.15S. 33 Cf. Santo Agostinho, De Doctr. christ., I, 6 (PL XXXIV, cal. 21), e De vem
7 In Sap., ed. Koch, n.34, LW 11, p.354. relig., I, 39 (ibid., cal. 154).
8 In Sap., éd. Théry, p.240. 34 In Johan., n.162, LW m, p.133.
9 Cf. Josef Koch, "Kritische Studien zum Leben Meister Eckharts", Archivum 3S DW V, p.38.
fratrum praedicatorum, XXX 1960, p.27 sq. A má vontade do arcebispo Henri de 36 Pred. 2; DW I, p. 32. Esse sermão contém três descrições sucessivas da Kraft
Virnebourg, a prevenção de certos franciscanos, o papel desagradável de dois "falsos in der Seele na qual encontramos, como conseqüência da "descriaturização" ligada ao
irmãos" dominicanos não são duvidosos. O fato é que, no conjunto, os inquisidores "despojamento", a criação do Verbo na alma deificada. Admite-se, geralmente, que as
trabalharam sem precipitação nem má-fé. Não cremos, todavia, que, como pensa Koch duas primeiras descrições correspondem aos diferentes papéis do intelecto e da vonta-
(ibid., p.41), Eckhart tenha ganho muito por insistir em sua defesa na questio facti e no de. Nos dois textos Eckhart afirma que a Kraft "brota" do "espírito" e "permanece"
caráter inexato de certas reportationes. Dentre os textos mais autênticos havia um nú- nele; mas, no primeiro, Deus "desabrocha e flore~ce"; no segundo, Eckhart utiliza uma
mero suficiente para condená-lo, desde que se recusasse a entender o conjunto de seu linguagem que evoca o fogo do amor e as labaredas do Pentecostes. O texto citado
pensamento, com tudo o que ele comporta precisamente de "dialético". anteriormente é, ou uma terceira redação - mais arrojado e que insiste mais em tudo o .~
la Ave gratia plena, n. 5, DW I, p. 381-382. que identifica a "potência na alma" ao Deus "supradivino" da teologia negativa - , ou
11 Cf. Hegel, Enzyklopadie, ed. Lasson, V, p.l02-103. uma referência final a um nível superior de indistinção onde inteligência e amor são uma
12 In Exod., n.58, LW 11, p.63 sq. coisa só. A potência na alma é chamada uma "guarda", uma "luz" do espírito, uma
13 In Sento I, 2, 1, 3; Suma téoI., 1"\ parte, XIII, 2-4. "centelha" ou, melhor ainda, fora de qualquer denominação, um quid que transcende
14 In Exod, loco cit.. "isso" e "aquilo" como o céu transcende a terra (ibid., p.39). Eckhart fala aqui apenas
15 Op. laud., p.89 sq. de "desabrochar" e "florescer", não de "arder" e de "queimar", mas a identificação
16 DW V, p.9 sq. total ao Deus-Pai inclui, sem dúvida, de forma indissolúvel, Engendramento e Expiração.
17 Edição crítica, Archives, I, p.lS. Eckhart invoca em seu favor II Cor., m, 18 37 Quanto a esse ponto, remetemos aos textos do Comentário do evangelho de
("Revelata facie gloriam dei speculantes in eandem imaginem transformamur") e Ato João, que Lossky cita e comenta (op.laud., p.16 sq. e 66 sq.).
Ap. XVII, 28 ("Dei genus sumus, in ipso vivimus, movemur et sumus"). 38 Pred. 2, loccit., p.43.
18 In João, n.14, L W m, p.13 sq. 39 DW, p.34.
19 Cf. Commentoralium de Eckhardi magisterio, Oeuvres Iatines de Maitre Eckhart 40 Encontramos essa fórmula também em Bertoldo de Moosburg, mas aplicada
(Leipzig, 1934-1936), VIII, p.XIII sq. Essa hipótese permitiria datar o sermão Quasi stelIa ao ser das formas na matéria física (Comentário da Elementatio theologica, cod. Oxf.
matutina segundo critérios análogos àqueles que Grabmann havia utilizado para datar BaHiol 224 b, foI. 4 vb, e cod. Vat.lat. 2192, foL 3 valo Em Thierry de Vrieberg, ela diz
o Deus unus est, apresentando os dois textos, em alemão e em latim, afinidades doutri- respeito à atividade "imanente" de realidades puramente intelectuais (Cf. os textos do
nais com as Questões parisienses (cf. Lossky, op. cit., p.208 sq.). De intellectu et intelligibili, in Krebs, Meister Dietrich, Beitrage, V 5-6, Münster, 1906,
20 Utrum intel/igere Angeli sit suum esse, n.2, LW V, p.50. p.129-130). Lossky, de quem tomamos a primeira referência (mas ele fornece igualmente
21 "Deo non competit esse, nisi talem puritatem voces esse" (Utrum in Deo sit a segunda) condui que Mestre Eckhart, estendendo a Deus o que seu predecessor dizia
idem esse et intelligere, n.9, ibid., p.45). acerca das substâncias separadas, inspirou-se provavelmente mais em Thierry do que
22 Cf. Liber paraboralorum Genesis, n.53, LW I, p.521. em Bertoldo (loc. cit., p.117, n. 73). É possível que a fonte comum dos três autores este-
23 In Ex., n.179, LW 11, p.154: "Negatio siquidem tolIit totum quod invenit, nihil ja em alguma paráfrase latina de Prodo.
ponens" . 41 Serm./at., 49,3, LW IV, p.428: "Oportet enim prius se toto bullire quidpiam,
24 Veremos que, no caso do To/le crucem, se aufheben significa levantar e supri- ut sit in se toto perfectum, exuberans plus quam perfectum".
mir, o sentido "ablativo" entretanto ainda predomina. 42 Cf., no Pseudo-Dionísio (Cel. Hier., I, I, 120 b), o uso do particípio phoitosa
2S In Ex., n. 181, p.155-156: "Et quia privatio necessario consequitur habitum, (" Qualquer processão que, sob o impulso do Pai, revela sua luz quando nos visita gene-
et negatio funditur in affirmatione, convincitur consequenter aliquid esse in Deo, quod- rosamente, em retorno, na qualidade de potência unificadora, suscita nossa tensão rumo
cumque sit illud, excludens ignorantiam, passibilitatem et huisusmodi, sicut lux tenebras ao alto e nos converte a uma unidade e à simplicidade deificante do Pai que assemelha" l.
et bonum ma/um". 43 Cf. bula In agro, Prop. 1,2 e 3, e, como texto particularmente significativo, o
26 Ibid., n.237, p.196 (remetendo à Ep. 1,1065 a). Pred. 10 (In diebus suis, DW I, p. 171 [na tradução Aubier-Molitor, Paris 1942, p.167,
27 I, 6, 596 a-e. a primeira frase é omitida]: "Disse uma vez que Deus cria o mundo em um momento só
28 In Gen, (cod. Ampl.l, n. 298-300, LW I, p.95-96. e que todas as coisas são igualmente nobres nesse dia ... Deus cria o mundo e todas as
29 Ibid., n. 298: "hoc quod est sive qui est". coisas em um instante presente ... A alma, que se encontra aí em um instante presente, é
30 In Ex., n. 15 LW 11, p.21. então que o Pai engendra nela seu filho único, e, no mesmo engendramento, ela é reen-
31 Ibid, n. 19, p.25. Em todo esse comentário, Eckhart segue bem de perto Mai- gendrada em Deus". A continuação evoca essa "potência na alma", que, por ocasião
mônides. de sua "primeira saída", não alcança Deus em sua bondade e em sua verdade, mas em
32 In Gen. (cod. Ampl.), n. 77, p.62: "Verbum sine verbum autpocius supra omne seguida "se enraíza" nele e o assimila então em sua "unidade", sua "solidão", seu "de-
verbum ... in silencio paterni intellectus." serto", seu "fundo próprio").

158 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 159


, ~

44 Cf. Pred. 32 (Beati pauperes), Pfeiffer, p. 280 (trad. Quint, in Deutsche coincidência com sua função paterna. Porém, quando cle admite que, pela dupla via da
Predigten und Traktate, Munique, 1955, p. 308, trad. Aubier-Molitor, p. 259): "Um falta e do arrependimento, o zelo do homem c seu amor por Deus podem "crescer" (ibid.,
grande mestre diz que sua penetração é mais nobre do que sua emanação. Quando p. 234), Eckhart considera, evidentemente, apenas uma fase preparatória, pois a plena
emanei de Deus, então todas as coisas disseram: Há um Deus. Ora, isso não pode Absgeschiedenheit exclui - como veremos - o "mais" e o "menos".
me tornar bem-aventurado (selig), pois aí não me conheço senão como criatura, mas 49 Pred. 10, DW 1, p.171.
n3 penetração, onde quero me encontrar na vontade de Deus, e me encontrar vazio 50 In Ex., n. 91, LW II, p. 94: "Videns, quaerens et amans plus et minus non est
(ledig) da vontade de Deus e de todas as suas obras e do próprio Deus, então estou divinus. "
acima de todas as criaturas e não sou Deus nem criatura, mas sou o que fui e o que 51In Ecdi., n. 20, LW lI, p.248: "In divinis quodlibet est in quolibet et maximum
devo permanecer agora e sempre. Aí recebo uma pressão que deve me conduzir para in minimo [fórmula que o Cusano destaca no manuscrito em seu poder, e que lhe inspirará
além de todos os anjos. Nessa pressão recebo uma riqueza tão grande que nada pode longos desenvolvimentos], et sic fructus in flore [segundo Eccli., 24, 23: Flores mei fructus].
me impedir de ser Deus segundo tudo aquilo pelo qual ele é Deus [entendamos: se-
gundo seus modos e suas apropriações], segundo todas as suas obras divinas, pois
Ratio quia deus, ut ait sapiens, est sphoera intellectua/is ro acréscimo vem de Alain de
Lille e de São Boaventura J infinita cuius centrum est ubique cum circumferentia et cuius ~
recebo nessa abertura isso: que Deus e eu somos um. Então, sou o que fui e não di- tot sunt circumferentiae quam puncta ut in eodem fibra [prop. XVIII] seribitur.In cuius
minuo nem aumento, pois sou então uma causa imóvel que move todas as coisas". É figura Exodi 16 dicitur de manna divino: Nec qui minus paraveraI repperit minus, e Lucas
daro que para além do "motor imóvel" da Física e mesmo da Metafísica aristotélica, 10: Marie optimam partem elegit, quia optímum et totum est in parte, fructus in {lore."
Eckhart evoca aqui o Uno-Pai de sua teologia trinitária. 52 Pred. 7 (Populi eius) DW I, p.117.
45 Liber XXIV Philosophorum, ed. Baumker, Beitrage, XXV, p. 207 sq., prop. 53 Ibid.
2: "Deus est sphoera infinita, cujus centrum est ubique, circumferentia nusquam.". Cf. 54 Reencontramos aqui o sic quod que assinalamos no início desse estudo, a pro-
Alain de Lille, Regulae theologicae, VII, PL 210, cal. 627. pósito de um texto em In Sapientía.
46 Cf, nossos dois estudos acerca da esfera infinita de Pascal, Revue d'histoire de 55 Ibid., p. 118.
la philosophie et d'histoire génerale de la civilisation, Lille, janeiro-março 1934, fasc. 56 Cf. Possest (ed. de Basiléia, p. 253. No sermão Ubi est (ed. Koch, Sitzungs~
33, p. 32 sq.; c "Pascal et Ic silence du monde", in Blaise Pascal, Cahiers de Royaumont, berichte, n.5-6, p. 90), no qual o nunc aeternitatis é denominado "essência estável do
I, Paris, 1956, p.342 sq. movimento" pois que "todo móvel se move do ser do repouso ao ser do repouso" (de
47 Ed. Pfeiffer, Pred.IX, p. 47 (ed. Quint, Deutsche Pred. und Trakt., Pred. 28, esse quietis ad esse quietís), a dialética motusquies separa, de início, os dois termos para
p.280). uni-los apenas no infinito. Ela nos parece bastante diferente daquela que, em Eckhart,
4S Cf. Rede der underscheidunge, IX, XII, XIII. Se é verdade, contudo, que - para além de qualquer "passagem" (mesmo instantânea) de "ser" a "ser", implica, de
segundo Il Cor., XII, 9 - a virtude se realiza na fraqueza e, por conseguinte, "procede saída, uma verdadeira coincidência entre o "decurso" e a "paz".
do combate" (ibid, IX, DW V, p. 213), esse não é absolutamente um traço da perfeição 57" Nostra intellectualis natura, cum se Dei vivam imaginem intelliget, potestatem
como tal, mas apenas uma seqüência da presença do criado na regia dissimilitudinis. habet continue darior et Deo conformatiar fieri, /icet, cum sit imago, nunquam fiat
Veremos mais adiante que o fogo, antes de ser assimilado, luta contra a madeira. Mas, exemplar aut ereator".
assim que o dessemelhante se torna, nem sequer semelhante - o que, como sabemos, é 58 Gotl. troest., DW V, p.60.
ainda "detestável" - mas idêntico, o passado está, de algum modo, abolido (como o 59 Ibid., p. 61: "Enwaere niht niuwes, sô enwurde niht altes" (cf. a nota 224 do
,-,
,.,
futuro, que só tem sentido por um projeto e que desaparece, conseqüentemente, na to- editor, ibid., p. 105).
tal renúncia a qualquer vontade própria). Para quem realmente se arrepende, "o peca- 60 Pred. 10 DWI, p. 167: Fórmula tida como suspeita pelos inquisidorcs do pro-
do não é pecado" e nem mesmo há mais lugar para qualquer penitência (no sentido de cesso (Théry, "Pieces relatives au proces", Archives, I, 1926-1927,11, art. 57, p. 264;
um castigo reparador): "Sim, aquele que estivesse verdadeiramente instalado na vonta- "Quotquot autem sunt filii, quas anima parit in eternitate, tunc tamen non est plus quam
de de Deus não deveria querer que o pecado ao qual sucumbiu não tivesse se produzido unus filius, eo quod accidat supra tempus in die eternitatis".) A resposta de Eckhart atenua
[fórmula condenada em Avignon, bula In agro, prop. XIV] ... Se o homem se recupera sensivelmente a doutrina e parece deixar lugar a um tempo próprio do homo viatorque
completamente de seus pecados e deles se afasta inteiramente, então o Deus fiel faz como não seria "imagem" mas apenas "à imagem": O Cristo é "o primogênito nascido den-
se o homem jamais tivesse sucumbido ao pecado, e não exige reparação, nem por um tre vários irmãos. Ele é herdeiro, nós somos co-herdeiros, enquanto seus filhos e seus
só instante, de todos os seus pecados ... Visto que ele o encontra no instante presente membros, de tal modo que ele é o único salvador" (ibid., p.165).
bem disposto não considera absolutamente o que foi previamente. Deus é um Deus do 61 XII!. DVI V, p. 238.
presente -lbid., XII, DW V, p. 233-234. O tema teológico do Deus redentor, do ino- 62 Cf. a fórmula anteriormente observada do Deus se tornando "mais do que
cente que expia os pecados do mundo, desempenha um papel secundário na pregação perfeito" no movimento da "extra-ebulição".
do dominicano. Se às vezes dá lugar ao tema da fe/ix culpa, é na perspectiva geral que 63 Pred. 27 {Euge, serve bone}, Pfeiffer, p. 187 (trad. Quint, p. 277-278).
o faz declarar que o Durchbruch é mais nobre do que o Ausfluss, o que implica menos
uma valorizado do próprio tempo - o tempo da história sagrada - do que o reco-
64 A única diferença notável é o fato de Lossky insistir na preferência de Santo
Tomás - tal como ele a expressava, por exemplo, em seu Comentário da Ética, lect. 7
,
nhecimento, como observamos, de uma superioridade ontológica do processo total - por uma analogia de proporcionalidade, que alcança uma "bondade inerente às coi-
(bullitio e ebullitio) sobre a Unidade adormecida considerada fora de sua necessária sas", ao passo que os modos aristotélicos de pregação ab uno principio e ad unam fi-

160 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 161


, W,

nem - que apenas os escolásticos posteriores denominarão "analógicos" -concernem ex se nec ut inhaerens in se, sed mendicasse et accepisse mutuo et continuo accipere quasi
apenas a uma "bondade separada", cuja denominação se mantém extrínseca (Théologie in transitu ... et sic non esse suum sed esse ab altero et in altero, cui est omnis honor et gloria,
négative et connaissance de Dieu chez Maitre Eckhart, Paris, 1960, p. 312, n. 276); Koch quia il/ius est.". Os termos empregados (mutuo, in transitu) sugerem um tipo de relação
privilegia, ao contrário, e com razão, o papel da analogia chamada de "atribuição" (Zur "real" que, apesar da inventiva sugestão de M. Gilson (History of Christian Philosophy,
Analogielehre Meister Eckharts, p. 336). Mas os dois historiadores concordam em si- New York, 1955, p.441), é bem mais do que uma "imputação" no sentido luterano (Koch,
tuar Eckhart em uma tradição neoplatonizante que corremos o risco de deformar sub- p.337). O in altero remete, aliás, claramente ao in ipso sunt omnia de Rom., XI, 36.
metendo-a à alternativa entre a univocidade escotista e a analogia tomista. Lossky, que 70 Para Eckhart, a fórmula.do Eclesiates: "Aqueles que me comem ainda têm fome."
se recusa a atribuir a Eckhart uma confusão grosseira entre o Ipsum Esse e o ens commu- (XXIV, 29), significa, se bem compreendida, "a verdade da analogia de todas as coisas
ne, escreve, a propósito da interpretação proposta por M. Galvano delta Volpe, essas ao próprio Deus ... Elas comem porque são, têm fome porque recebem seu ser de um outro"
linhas, que cremos esclarecedoras quanto à "dialética" eckhartiana: "Simplificado ao (In Eccli., n. 53 LW lI, p.282).
extremo, o pensamento de Mestre Eckhart perde, nessa interpretação, a antinomia do 7I Cf. Cel. hier., VIII, 2, 240 c, IX, 3, 260 d, e sobretudo XIII, 3, 301 a-c.
transcendente e do imanente que vimos enunciada nas proposições dialéticas acerca do 72 Eckhart volta freqüentemente a uma imagem tradicional, mas que esclarece
distinto e do indistinto, do dessemelhante e do semelhante. Ora, a dialética desse teólo- bastante sua exegese do Edunt, non esuriunt. Cf. In. Jo, n. 70, LW m, p. 58; In Eccli.,
go, encantada com o mistério da Vida que jorra de seu próprio fundo, borbulha em si n. 46 LW 11, p. 274; Got. troest., DW V, p.36; Prcd. 46 (Beati qui esuriunt), Pfeif., p.
mesma e se expande assim na ação criadora, não tem nenhum outro objetivo senão o 148, trad. Quint, p. 373, etc. É de Santo Tomás que ele toma a comparação do ar ilu-
de mostrar, através de uma série de antíteses, a relação de analogia das criaturas a Deus, minado oposta à do ar aquecido. O Doutor Angélico distingue, com efeito, o calor que
relação dinâmica de dependência na qual o que não é acede ao ser, sem se tornar o Ser é "recebido aqui nesse mundo sob o modo em que está no fogo" da luz que "não se
que é por Ele-mesmo" (loc. cit., p. 307-308). Lossky remete ao estudo de M. Hans Hof enraíza no ar" e não pode ser recebida, no mundo sublunar, "no modo em que está no
(Scinti/la animae, Eine Studie zu einem Grundbegriff in Meister Eckharts Philosophie, Sol" (Suma teol., 1\ 104, 1). O De veritate (XXI, 4, 2) aproxima esse último caso da-
Lund-Bonn, 1952) que rejeita, com razão, as interpretações panteístas de H. Ebeling, quele da urina em relação à saúde; em ambos os casos, só pode se tratar, de fato, de
mas sem marcar suficientemente determinados aspectos "essencialistas" da ontologia uma "denominação por referência a outra coisa". A diferença, portanto, é que a urina
eckhartiana. Ainda que ele não professe uma univocidade de tipo escotista, Eckhart usa, é apenas um signo, ao passo que o Sol intervém propriamente como causa, visto que
com efeito, para "se elevar" rumo ao Ens não cogn·oscível, um conceito geral de ens, "~i:1
ilumina o ar terrestre; é, pois, apenas no caso da urina que Santo Tomás destaca a au-
que não se reduz a um ser lógico e desrealizado e que, entretanto, "se deixa determinar sência de "forma inerente" e, ainda que não o precise diretamente, parece admitir a pre- .:.
pelos gêneros e pelas diferenças" (ibid., p. 311-312). sença transitória, no ar iluminado, de uma espécie de "forma" que não é a do Sol (cf. ..•1
65 ln Sent., I, 19, 5, 2: "Dico quod veritas et bonitas et huiusmodi dicuntur ana- Koch, loco cito p. 340, n. 31). É o que Mestre Eckhart parece, ao contrário, recusar, já ~-.

logice de Deo et creaturis. Unde oportet quod secundum suum esse omnia haec in Deo
sint et in creaturis, secundum rationem majoris perfectionis et minoris."
que o "passivo" para ele não tem nada de inherens in se (11, ln Gên., n. 25). Para me-
lhor marcar essa "não-inerência", para opô-Ia ao "dom" total que faz o Pai ao Filho e
::.
66 Cf. J. Owen, The Doctrine of Being in the Aristotelician Metaphysics, Toron- ao Espírito, sobretudo nos textos de "consolo", nos quais o vocabulário é freqüente-
to, 1951, p. 59 sq. mente estóico, ele fala, como Epicteto, de um "empréstimo" sempre revogável (Consol., .~ll
67 In Eccli., n. 52 sq. LW 11, p. 280 sq. Cf. Koch, loco cito p. 330-332. p. 36) mas que, como graça, tem mais valor do que um "dom" natural. Deve-se obser-
68 In Eccli., n. 52, LW 11, p. 280-282 [as palavras sublinhadas foram tiradas lite- var que em Santo Agostinho (De Gen. ad !it., VIII, 12), a imagem do ar que não "se .~.

ralmente do texto de Santo Tomás - In Sento I, 23, 3, 2 - que o acusado da Inquisição torna" realmente luminoso, visto que recai na obscuridade assim que o sol desaparece,
oporá a seus censores]: "Rursus nono advertendum est quod distinguuntur haec tria não se aplica, como sugere Santo Tomás (Suma teol., Ioc. cit.), ao caso de qualquer cria-
univocum, aequivocum et analogum. Nam aequivoca dividuntur per diversas res signi- tura em sua relação a Deus, mas apenas ao caso do homem justificado por graça e que
ficatas, univoca vero per diversas rei differentias, analoga vero non distinguuntur per rerum continua livre, entretanto, para se desviar dessa graça justificante para voltar às trevas
differentias, sed per modos unius eiusdemque rei simpliciter. Verbi gratia: sanitas una sem nada conservar da luz divina. Eckhart toma de Santo Tomás a extensão "ontológi-
eademque, quae est in animali, ipsa est, non alia, in djaeta et urina, ita quod sanitatis, ut ca" da fórmula agostiniana, mas conserva, ao mesmo tempo, o sentido religioso que
sanitas, nihil prorsus est in diaeta et urina, non plus quam in lapide, sed hoc solo dicitur lhe conferia originariamente a doutrina da "iluminação".
urina sana quia signidicat illam sanitatem eandem numero quae est in anima/i, sicut circulus 73 In Ex., n.117, LW 11, p.112: "Rursus etiam nihil tam dissimile et simile con-
vinum, qui nihil vini in se habet. Ens autem sive esse et omnis perfectio, maxime generalis, junctim alterL .. quam deus et creatura. Quid enim tam dissimile et simile alteri quam
puta esse, verum, bonum, lux, iustitia et huiusmodi, dicuntur de deo et creatuns analogice. ". id, cuius dissimilitudo est ipsa similitudo, cuius indistinctio est ipsa distinctio? .. Quia
Cf. Sermo lat., XLIV, 3, n.446, LW IV, p.372: "Rursus notandum quod omnia parata indistinctione distinguitur, dissimilitudine similatur, quanto dissimilius, tanto similius."
[Mat., XXII, 4) sunt servire deo, quia res una est in causa et effectu analogis, differens Cf. In Sap., Théry, Archives, IV, p. 253 a 256: "Nimic tam distictum a numero sive
so/um modo ... Sicut ergo circulus vino servit ipsum indicando et urina sanitati animalis, numerabili, creato seilicet, sicut Deus et nichil tamen tam indistinctum ... Omne quod
nihil in se penitus sanitatis habens, sic omnis creatura pari modo servit deo. " indistinctione distinguitur, quanto est indistictius, tanto est distinctius: distinguitur enim
69 In Gen., n. 25 (in Koch, loc.laud., p. 341): "Passivum ... clamat et testatur in omni ipsa indistinctione. Et e converso, quanto distinctius, tanto distinctius, ut prius ... "
sui perfeaione et bono suimet egestatem et miseriam [grifo nosso], activi vero sui superioris 74 Pred. 16 a (Quasi vas), DW I, p. 259. (Cf. a tradução latina em "Edition criti-
praedicat divitjas et misericordiam. Docet enim naturaliter se id quod habet habere non que des pieces", Théry, p. 180: "Unde subditur de hoc imagine quod... illud quod ibi

162 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 163


exit est illud quod intus manet, et id ipsum quod intus manet est i/lud quod ibi exit"). 98Sobre os omnia, cf. Lossky, op. cit., p. 80 sq.
As três similitudes utilizadas são as da imagem no espelho, do muro no olho e do ramo 99Gregório de Nissa, De opi( hom., VII sq., 140 d sq. Cf. Cícero, De natura
saindo da árvore. Mas trata-se da ymago como fi/ius patris e como sapientia patris tal deorum, n, 151 e - sobre Poseidônio e a invenção das técnicas - Sêneca, Ad Luci/.,
como nasce na alma deificada, conjuntamente intus e extra. Ep. Xc.
75 Pced. 17 (Quid odit), DW I, p. 285. Nicolau de Cusa, Ad Nicol. Albergati, ed. citada, & 15, p. 32.
!()()

76 Pred. 17 (Quid adit), DW I, p. 289; Pred. 21 (Unus deus), p. 360. No Pred. 22 101 De Beryllo, VI. Cf. Asc/ep., l, 8.
(Ave Maria), p. 375, Eckhart afirma que o Anjo da Anunciação sente-se excessivamente 102 E. Bloch, Prinzip Hoffnung, l.eipzig, 1954.
"pequeno" para "nomear" a Mãe de Deus, porém, é a um "grande rebanho" que se dirige 103 Cf. In]o .. n. 185, LW m, p.159; Serm.lat. XXV, 2, LW IV, p. 240 etc.
quando fala a Maria: o rebanho de "todas as almas boas que desejam Deus."
77 Pred. 3 (Nunc seio vere), p. 54. É por isso que o Anjo é enviado à alma para
conduzi-la à Imagem original segundo a qual ele mesmo foi formado (cf. Pred. 20 b,
Homo quidam, p. 348).
iH Pred. 18 (Adolescens, tibi dica), p. 300-301.
79 Pred. 3, p. 55.
!lO Pred. 20 a (Homo quidam), p. 337.
!lI Pred. 2 (Intravit Jesus), p. 27.
R2 Pred. 22, p. 380-381. Cf. bula In agro, art. XXVII.
83 Ibid., p. 380. Pred. 20 b, p. 348. Na Pred 20 a, p. 332, tendo lembrado que o
servidor que preparou a refeição da qual fala Lucas (XIV, 16) pode simbolizar o pre-
dicante ou o Anjo, Eckhart acrescenta que ele significa também "a centelha criada na
alma" e que "é uma luz".
S4 Rede der underscheidunge, X, DW V, p. 223-224: "Der mensche sol williclichen
:1:
beraubet sín aller dinge durch got und in der minne sich verwegen und getroesten alles
trôstes von minne ... Du 50ft aber wizzen, das die vriunde gotes niemer áne trôst sin, wan
swaz got wil, das ist ir aller hoehster trôst, ez si trôst oder untrôst."
S5 Gotl. troest., DW V, p. 33-34. (Cf. Pred. 11, Impletum est, p. 180, na qual o
papel do "tempo" é determinado:" Ais das viur das holz in sich ziehen wil und sich wider
in das ho/z, sô vindet ez im das holz unglich. Des hoeret dá zit zuo."
K6 Consol., p. 15.
87 Ibid., p. 46.
S8 Ibid., p. 45. ,,,",,
89 Essa ação da "natureza superior" vai contra todas as leis da natureza inferior. ,,"li
Usando aqui uma imagem puramente simbólica cujo sentido "físico" talvez não deves-
se ser buscado com tanto afinco, Eckhart a compara à influência da Lua que força a
água do rio para montante de seu curso, através de um movimento "contra natureza",
porém mais fácil e mais alegre do que sua queda natural rio abaixo (ibid., p. 45). Ob-
servaremos que aqui Ausfluss (contrariamente ao que sugere a tradução de Mme Ancelet-
Hustache, Maftre Eckhart et la mystique rhénane, Paris, 1956, p. 95) não significa
emanação, mas, antes, "ascensão rio acima".
90 "Aufheben".
91 ConsoI., p. 45.
92 Discernement, XII, DW V, p.233.
93 Pedro, 242 e.
94 Banquete, 202 d-e.
9S Ibid., 203 a sq. Cf. Plotino, Enéadas, 11, 3.
96 Ainda que transpostas em uma perspectiva completamente diferente, as céle-
bres fórmulas de Aristóteles (Met. ", 7, 1072 b) só adquirem seu sentido pleno quando
ligadas ao tema platônico do Eros.
97 Philip., 11, 8.

164 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 165


VIII. DUPLA FACE DA FILOSOFIA
NO "CONVIVIO" DE DANTE*

Sob a pena de Dante - mesmo quando este se utiliza da prosa -


as noções abstratas raramente permanecem sem forma. Para a isso as tra-
dições antigas e medievais forneceram-lhe um sortimento, por vezes um
pouco esgotado, de imagens e de símbolos. Contudo, para além das frias 1
alegorias, herdadas de Alain de Lille ou de João de Meung, e de todo o
arsenal mitológico de Virgílio ou de Ovídio, ele dá corpo às figuras que
povoam seu inferno, seu purgatório e até mesmo seu paraíso, mais subs-
tanciais do que "sombras" e menos vaporosas do que "espíritos", eleva-
das no entanto a um nível significativo que ultrapassa sua humanidade
sofredora ou beatificada. Inversamente, a donna gentile do Convivio iden-
tifica-se primeiramente, por ficção literária, com a donna pietosa da Vita
Nuova, com essa jovem florentina que, após a morte de Beatriz, sorri um
dia do alto de sua janela 1 ao poeta abatido pela dor. Mas, em seu novo :~I

papel, à sua tarefa de consoladora, a "nobre dama" acrescenta duas fun-


ções cuja unidade, por diversas vezes, se torna problemática. A herança
da Sabedoria da Escritura - que justifica um sentido um tanto arcaico
da palavra "filosofia"2 - soma-se, de fato, com as sete artes liberais da
antiga paideia, todo o corpus aristotélico das ciências teóricas e práticas
(até mesmo poéticas).
Assim, o Convivia - com apenas um quarto de seu projeto original
realizado - suscita interpretações divergentes. Sem pretender dar a última
palavra sobre dessa discutida questão, gostaríamos de reler alguns textos,
aproximá-los daqueles da Monarchia e da Cammedia, determinar uma dupla
orientação e o esboço de uma conciliação que Dante parece ter de algum modo
presumido, ainda que sem plena consciência. Ocupamo-nos desse primeiro
delineamento juntamente com nosso colega e amigo Paul Wilpert durante
o mês de setembro de 1966, três meses antes de sua morte. Esperávamos muito
de seus conselhos; e é à sua memória que dedicamos estas notas de trabalho.
A Dama Filosofia, tal como se apresenta a Boécio na prisão, é uma
ama-de-leite de idade respeitável, que se opõe expressamente às jovens se-
dutoras. Poeta cortês, Dante a imagina, ao contrário, com os traços de uma
donzela tão agradável que, nela, seríamos tentados a ver o símbolo de um

.. Artigo publicado em Archiv {ür Geschichte der Philosophie, número consagrado


à memória de Paul Wilpert, tomo 50, caderno 112, Walter de Gruyter, Berlim 1968
(p.165-180).

Gêneses da Modernidade 167


novo amor profano, uma dessas rivais que fará com que Beatriz o censure samente disfarçados em ardentes lembranças da Beatriz terrestre, e a de
por tê-las seguido per via non vera 3 . Em uma obra que é, nesse campo, o arrastá-lo rumo a um amor mais digno da idade "viril"17. Ascese ainda in-
guia mais confiável, Etienne Gilson, ao afirmar que Beatriz permanece como suficiente, sem dúvida - e o fato de o Convivia ter permanecido tão trun-
a inspiradora secreta do Convivio4, parece admitir um "circuito Beatriz - cado talvez seja um testemunho disso - mas que não deve ser confundida
filosofia - Beatriz,,5 que a própria cronologia das obras torna difícil situar 6. com uma errância culposa visto que se situa em um caminho ascendente e
Mais do que uma dupla evolução, tudo sugere um conflito permanente, que será o que tornará possível a analogia da Commedia.
porém implícito, que Dante espera ultrapassar descrevendo a filosofia como É verdade que Dante abusa às vezes de termos como "milagre" e
uma "rainha" (análoga às esposas de Salomão), mas a qual não usurpa "maravilhoso", e pode-se sem dúvida hesitar em interpretar literalmente
absolutamente o papel único da "pomba" cantada pelo Cântico •
7
o poema Vai ch'entendendo no qual os "motores" (moviteri) do "tercei- ~
..
Qualquer que seja o papel central que desempenha, em sua obra, o ro céu" (terzio cielo) aparecem como os introdutores e os mandantes "da
terna das competências 8, no momento em que o poeta apresenta sua nova nobilissima e belissima Filosofia" 1oS, a ênfase é, no mínimo, pouco contes-
amante corno figlia di Dia, figlia de lo imperadore de lo univers0 9, o faz tável quando, ao anúncio dessa missão, o poeta responde pelos termos evan-
menos para afastá-la de suas origens sobrenaturais do que, ao contrário, gélicos do Fiat mariaP9. No sistema de correspondências que o Convivio
para melhor exaltá-las. De acordo com os contextos, são enfatizados a au- admite entre esferas astrais e artes liberais, o céu de Vênus é aquele da re-
tonomia da reflexão filosófica ou o seu enraizamento direto em Deus, mas tórica, e é efetivamente, pela doçura de seus discursos, que Boécio e Cícero
os dois temas estão ligados, no Convivia, de maneira bastante íntima. Se - através da Consolatio e da De Amicitia - prepararam Dante para aco-
Beatriz sai de cena no meio do segundo Livro, certamente não é porque se lher a Dama Filosofia. Não é de surpreender, portanto, que ele use, por
tornaria inoportuna ao autor, lembrando-lhe não se sabe qual promessa sua vez, metáforas mais ousadas, mais literárias talvez do que teológicas.
traída 10, mas antes - como já o indicava a frase da Vita Nova, talvez ajus- Não esqueçamos, contudo, o nível bastante elevado no qual se situa, para
tada demasiado tarde à ficção do Convivia 11 - porque Dante não se sen- ele, "a Dama plena de doçura, vestida de honestidade, de admirável saber,
te ainda digno para cantar como ela merece a santa que o aguarda em um gloriosa de liberdade" (la donna piena di dolcezza, ornata d'onestade,
outro mundo, di carne a spirto salita. É precisamente oferecendo um mo- mirabile di savere, gloriosa di libertade2o ).
desto banquete aOS profanos que não haviam tido, como ele, a sorte de Dentre os problemas que a função atribuída a essa rainha levanta,
freqüentar as scuole de li religiosi e as disputazioni de le filosofanti 12 , que tomemos sobretudo dois paradoxos que Etienne Gilson particularmente
ele se prepara para urna tarefa mais elevada. Nada sugere que tal pro- destacou. O primeiro concerne às restrições trazidas ao poder cognitivo
pedêutica tenha algo a ver com a selva oscura 13 . do intelecto neste mundo. Seremos tentados a evocar, a esse propósito, aqui-
Além disso, mesmo que a donna gentile não figure mais, em pessoa, lo que Duns Escoto afirmará quanto ao estatuto da metafísica quoad nos,
até os últimos cantos da Commedia, o poeta usará sem nenhuma reticên- e a descrever certos balbucios da donna gentile como os de uma "teologia
cia o saber que ela lhe havia ensinado. A via non vera não é evidentemente malograda "21; pelo menos enfatiza-se deliberadamente o corte, quase pla-
a desses silogismos que, mesmo invidiosi, não impedem de modo algum que tônico, entre o sensível e o inteligível 22 . Por outro lado, na perspectiva do
a luce etterna di Sigieri brilhe, com as de Alberto di Colonia e de Tomás de Convivia, é o céu dos fixos que controla simultaneamente a física e a meta-
Aquino, lá onde "o maior ministro da natureza ... com sua luz mede o tem- física, mas a ética depende do cristalino, isto é, do primeiro móvel; ela é,
po para nós"(lo ministro maggior de la natura ... cal sua lume il tempo ne portanto, elevada ao nível supremo dos saberes naturais 23 .
misura)14; ela tampouco é o ensinamento moral do "mestre daqueles que Acerca desses dois pontos, e acerca de alguns outros, seria necessário
sabem" (maestro di calor che sanno), do Estagirita, mentor desses sábios abusar das piae interpretationes para fazer de Dante um tomista fiel, mas
gregos, latinos e árabes que giram em torno dele, em companhia de bravos estaríamos equivocados em exigir de um poeta excessivo rigor técnico e, às
e de heróis trágicos, em um vestíbulo do inferno que mais se assemelha aos vezes, o contexto corrige consideravelmente fórmulas que parecem a prin-
Campos-Elísios I5 . Os descaminhos que afligem Beatriz e justificam a mis- cípio insólitas. É verdade, por exemplo, que no fim das contas a Revelação
são confiada a Virgílio - quer dizer, a um poeta pagão!- são mais os da se apresenta como-a mais segura referência no que concerne à imortalidade
sensualidade 16 do que os do "filosofismo". Muito ao contrário, desde o da alma, verdade essencial para o autor, que só pode ocupar-se em paz da
início, a nobre dama que consola Boécio não tem outra função senão a de filosofia se Beatriz velar sempre por ele; mas a demonstração racional que
arrancar o poeta das ligações demasiadamente carnais, ainda que insidio- ele defende - baseada no consenso universal, no princípio de uma nature-

168 Ma urice de Gandillac Gêneses da Modernidade 169


, ,)

za que ignora qualquer operação vã24 (e, em uma outra passagem que dá pleno dena para um fim supremo. E nada seria mais simples se esse próprio fim
valor às precedentes), no "'supremo desejo de toda coisa, e primeiro dom da fosse completamente celeste ou deliberadamente terrestre. O paradoxo é
natureza" (samma desiderio de ciascuna cosa, e primo de la natura doto), que Dante, como veremos, imagina duas beatitudes e postula sua harmo-
entendamos: «o retorno à sua origem" (lo ritornare a lo suo principia)25- nia mais do que a demonstra.
é por si mesma de um rigor que Dante considera bastante convincente26 . Ele menciona elogiosamente os sábios que desprezam os cuidados do
Quando ele destaca, aliás, que para nós as substâncias separadas, em geral corpo e fazem passar ao segundo plano as exigências da cidade humana 35 ,
só são cognoscíveis neste mundo por seus efeitos27, conforma-se ao ensina- mas atribui um valor muito grande à comunidade política - estando ela
mento tomista 28 . O culto que consagrou à donna gentile e o papel maravilhoso ampliada, em seu quadro imperial, às dimensões da Terra inteira - para
que esta desempenha em sua vida não implicam de forma alguma que a seus não preferir uma moral de outro tipo. Mas quando quer universalizar essa II
olhos a inteligência humana possa chegar, por suas próprias forças, a um saber respublica que o preceptor de Alexandre havia concebido ainda em um
total. Se evita, contudo, definir a filosofia como ancilla theologiae, é, sem dú- quadro limitado, é então de Aristóteles que toma sua definição do homem
vida, devido à sua dignidade real, mas também porque a teologia, tal como (e da sociedade). Se todos os membros da "família filosófica" não cessam,
a concebe, não tem praticamente necessidade de servidores. Seria difícil en- nos Limbos, de "admirar" e de "honrar" o "mestre daqueles que sabem"36,
contrar, no Convivio, um lugar explicitamente reservado à doctrina sacra se daí para frente, em virtude de uma "opinião quase católica", o Estagirita
no sentido em que a Suma Teológica a compreendia, ciência subalterna em é efetivamente dignissimo di fede e d'obedienza, na mesma medida em que
relação à visão dos bem-aventurados mas especulando, neste mundo, por - em seu próprio terreno, o da moral-, completando as lições daqueles
meios humanos, acerca do fundamento da fé 29 . Pelo menos em Dante esse que o precederam e mesmo, antecipadamente, aquelas de seus sucesso-
tipo de saber quase não se distingue dos outros usos do entendimento em seu res 37 , ele definiu claramente o fim ao quall'uomo à ordinato in quanti elle
estatuto terrestre. É no mesmo "céu" do Paradiso que - sem desconsiderar à uomo 38 . Em outros domínios, Ptolomeu, Donato, Graciano (dentre tantos ~
as diferenças de função, mas tampouco sem supervalorizá-las 3o - ele colo- outros) são certamente guias mais seguros e autoridades incontestáveis; aqui
ca lado a lado Santo Tomás e Siger de Brabante, em companhia de Gracia- o "Filósofo" continua sem rival e, nesse ponto, do Convivia à Commedia,
no, de Dionísio, de Isidoro, de Beda e do vitorino Ricardo 3 !, deixando para Dante não mudará de opinião; por toda parte, tanto em prosa quanto em
São Bernardo o privilégio de fazer ascender o viajante, muito mais tarde, ao verso, ele exporá, com a mesma preocupação de precisão e com a mesma
domínio da pura contemplaçã0 32 • Comparados ao luogo quieto e pacifico, reverência, a teoria do hábito e das virtudes 39 .
no qual vivem os spiriti beati33 , os debates dos filosofanti - como se fos- É possível que, terminado o Convivia, tenha ele mesmo comentado,
sem professores na Sorbonne - continuam envolvidos em muitas polêmicas livro após livro, todas as virtudes definidas na Ética a Nicômaco, e a exegese
para que uma querela de precedência universitária entre "cultores da arte" proposta em uma carta (cuja autenticidade na verdade é discutível) suge-
e «teólogos" possa parecer derrisória. re que a Commedia, ainda que vise a uma "felicidade (felicitas) superior",
Entretanto, é a "pomba da paz" que, do alto e de longe, orienta todo situa-se, também ela, em uma ordem de ação moral (marale negotium)4o.
o trabalho do intelecto, e eis o que justifica o papel eminente reservado à De qualquer modo, o próprio plano do Inferno se afina muito bem com o
ética. A donna gentile tem por tarefa essencial mostrar aos homens a arte esquema do Convivio e, apesar da complexidade de seus gironi e de seus
de uma vida honesta. Não certamente o contemptus mundi - a esse res- bolge, os nove círculos infernais correspondem - aproximadamente -
peito Dante é bem menos "platonizante" do que será Petrarca. Sem ne- aos vinte e dois vícios, "inimigos colaterais" das onze virtudes enumera-
gligenciar os saberes teóricos - mas na medida em que estes levam a esse das por Aristóteles41 • A luxúria e a gula são certamente os únicos "extre-
fim prático - , a filosofia conduz antes de tudo à "beatitude", e sua fun- mos" aos quais um poeta cristão pode opor a temperança, e a "insensibi-
ção primeira é a de ensinar como se hierarquizam os objetos sucessivos que lidade" quase não tem lugar aqui, mas a liberalidade, a magnificência e a
a criança, o adolescente, o homem maduro e o velho desejam; Dante os grandeza de alma mantêm seu valor de "meio" entre a avareza e a prodi-
compara aos planos superpostos de uma pirâmide, na qual cada um es- galidade, punidas no mesmo círcul042 , e a mansidão permanece como uma
conde a visão do seguinte, até à última base, realmente divina 34 • Trata-se justa medida entre a cólera e a acedia43 . Quanto aos violentos do sétimo
menos de um corte abrupto entre aparência e verdade do que de um esca- círculo, seu erro comum é uma ofensa à justiça 4 4, assim como uma altera-
lonamento de bens, cujo valor os mais humildes, em determinadas época ção da natureza 45 . A propósito da usura, Dante remete expressamente à
da vida ou em determinada condição social, conservam; mas tudo se or- Física, precisando assim o sentido de "Filosofia"46 como sabedoria práti-

170 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 171


ca, baseada em uma análise dos fins humanos, ela mesma inseparável de ses), que ao menos ela tenha sido criada diretamente por Deus e que sua
uma definição da physis. Mesmo no Paraíso onde - renunciando à sua rotação proceda de um motor próprio, não seria válido se o próprio autor
primeira imagem do empíreo - o poeta distribui os eleitos através das não acrescentasse honestamente:"Ela só tem uma luz abundante porque a
esferas astronômicas, domicílios e reconciliações obedecem sempre a uma recebe do Sol" (Non habet lu cem abundanter, nisi ut a sole recipit)62, o que
regra funcional. Paralelas, as vocações de São Domingos e de São Fran- justifica em suma o poder indireto, fonte de tantos conflitos.
cisco continuam distintas, uma orientada sobretudo para a o ensinamen- Se, a rigor, é possível distinguir, dentre as atribuições pontificais, o que
to teórico (dottrina)47, a outra centrada na "sua dama mais querida, sua dependeria do Cristo e aquilo que só teria referência a Pedro63 , até mesmo
dona Pobreza" (la sua piu cara donna Povertà)48. Apesar de suas diver- circunscrever um domínio "paternal", puramente carismático, sem nenhum
gências com os milenaristas, Boaventura encontra lugar no mesmo céu que traço de dominatio, a divisão das competências entre o magistério espiri-
o eremita Joaquim, com Tomás e Siger, mas não Hubertino e Mateus, tual e a autoridade filosófica parece ainda mais delicada. Para Dante é efe-
acusados de terem deixado a regra enfraquecer ou de a terem, ao contrá- tivamente o filósofo que define o "melhor dos homens" (optimus homo),
rio, desejado muito rigorosa 49 . quer dizer, a "medida" (mensura) à qual "os homens devem ser reduzidos
Seria necessário dispor de mais tempo para que se fizesse o inventá- enquanto homens" (habentreduci prout sunt homines)64; e nem mesmo seria
rio dos temas aristotélicos que, definidos quanto ao essencial no Convivia, necessário um imperador se esses homens estivessem suficientemente afas-
assumem um aspecto mais tecnicamente escolar na Monarchia so e reapa- tados da animalidade para alcançar por simples persuasão a "beatitude daqui
recem ao longo da Commedia. Ao lado da ação "inclinante" dos astros, deste mundo, a qual consÍste na operação de sua própria virtude e tem como
Dante destaca, por exemplo, a importância da razão diretriz do livre-ar- figura o paraíso terrestre" (beatitudo huius uite, que in operatione proprie
bítrio S1 , mas, para ele, é igualmente fundamental a dupla necessidade de uietutis consistit. et per terrestrem paradisum figuratur). Se lhe é necessá-
leis justas e de monarcas prudentes s2 . A regra das funções - tendo por rio apoiar-se em um poder impositivo, é ele, de qualquer modo, que guia o ..11
~l, ..
corolário a seleção das aptidões s3 - permanece sempre, como sabemos, soberano, como o Espírito Santo auxilia o papa a orientar os fiéis, "segun-
como primeiro critério. Se o imperador não deve invadir o domínio do saber do a Revelação, para a via eterna" (secundum reuelata, ad uitam eternam).
,:'
".i!
filosófico s 4, o papa vai além de seus direitos quando intervém ali onde, Mas como acreditar numa harmonia preestabelecida entre os meios con-
desde a origem e por delegação divina, apenas o imperador é senhor s5 . No cretos que devem conduzir o homem, no tempo da história, rumo a dois ~:~ ,I
plano propriamente moral- tratando-se do homem "enquanto homem" tipos de paraíso? Através de belas frases equilibradas, que justapõem phi-
- parece que o primado do "Filósofo" não é em nenhum momento pos- losophica e spiritualia documenta, aprendemos que, como o segundo leva ';
to em dúvida. E, sem falar de "averroísmo", surpreende-nos que, em um à beatitude celeste, o primeiro fornece a chave de uma beatitude terrestre, ~. J
tempo no qual o que se denominou "o nascimento do espírito leigo"56 já graças às "conclusões" e aos" meios" da "razão humana"; e Dante afirma
suscite conflitos que serão, na história moderna, fatores decisivos de de- que essa própria razão per philosophos tota nobis innotuitf>5. Concluiremos :::1
sunião, Dante, tão atento à disputa das duas Romas, quase não perceba a então que, para ele, "a filosofia nos ensina a verdade total acerca do fim
oposição possível entre a ética aristotélica e o ideal evangélico. natural do homem"66? O texto diz apenas - o que já é muito - que os
Seria suficiente dizer que César governaria melhor se tivesse em rela- filósofos nos fizeram conhecer "toda" a razão humana, não expressamen-
ção a Pedro a "reverência" que um filho mais velho deve a seu paiS? e que, te que essa razão contenha "todos" os meios da plena beatitude humana.
assim como a vida contemplativa é excelente, boa é a vida ativa, ambas pro- Como se sabe, é necessário, além disso, a arte prática de um chefe de Esta-
cedendo da mesma nobreza s8 ? Ou ainda que os Anjos encarregados de re- do, pois as mais nobres lições morais seriam vãs sem um regime efetivo de
ger as esferas celestes congreguem harmoniosamente em si as tarefas da paz e de liberdade. Ora, as disposições concretas que, na república dos ho-
theoria e as da praxis? Mas justamente o mesmo texto enfatiza, no homem, mens, asseguram a ordem necessária, estão em consonância com a Provi-
a dualidade entre duas beatitudes, a da vita civile e a da "contemplativa"s9. dência universal; requerem que o romanus princeps dependa, não apenas
Já difícil no nível da vida privada, a conciliação não se torna mais difícil do filósofo que o instrui mas, primeiramente, de Deus, que é seu verdadei-
ainda para essa respublica unius populi com a qual o poeta sonha na época ro "eleitor" e que não cessa de fazer descer sobre ele as torrentes de sua bon-
do efêmero acordo entre Henrique VII e o papa Clementé O, e que deve apenas dadé 7 . Estamos longe, como se vê, de uma visão racionalista na qual o bem
atualizar plenamente as virtudes do "intelecto possível"?61 O argumento comum, concebido fora de qualquer transcendência, estaria garantido e
de que a Lua possua sua luz específica (perceptível no momento dos eclip- definido apenas pelas forças do homem.

172 Mauricc de Gandillac Gêneses da Modernidade 173


n,. '

Apesar de certas fórmulas incisivas, cujo tom deriva do gênero polê- loca em termos classicamente tomistas, fica-se condenado, parece, a osci-
mico, Dante não imagina uma ordem da natureza que fosse de algum modo lar entre respostas contraditórias. Pelo menos, ao lado de temas aristotélicos
separada da ordem da graça. Certamente nada é mais "natural" do que o (mas transformando-os de dentro), deve-se reconhecer a presença contÍ-
movimento que leva os homens a se agregarem; esse processo, entretanto, nua de uma outra visão, de inspiração escrituraI, com ressonâncias neo-
só é possível e eficaz na medida em que se harmoniza com a "intenção do platônicas. Nessa perspectiva, uma luz vinda do além é transmitida até o
Primeiro Agente, que é Deus" (intentio primiagentis, qui Deus esiJ8). Quando nível terrestre, passando primeiramente de esfera em esfera; dentre as In-
eles vivem virtuosamente, na tranqüilidade de uma paz que um imperador teligências separadas, nenhuma preenche uma função que sugira interpretar
coroado pelo papa assegura, a obra própria dos cidadãos da respublica é em um sentido muito menos metafórico do que poderíamos imaginar a
chamada "quase divina"69. Em um ambiente de cristandade, e para um ho- princípio o discurso do spiritel d'amor gentile no poema Voi ch'entendendo.
mem como Dante, a autoridade da Ética a Nicômaco não acarreta a des- Conhecendo de fato como o mostra o Livre des Causes 74, "essa forma
sacralização, nem do ofício monárquico nem da função docente. Antes de humana tal como foi intencionamente organizada no pensamento divino"
tudo foi, efetivamente, nas "escolas de religiosos" que o poeta recolheu as e
(Ia forma umana, in quanto ella per intenzione regolata ne la divina men-
migalhas do banquete que oferece a leitores leigos. Certas proposições con- te), os "pensamentos angélicos que produzem tais coisas em colaboração
denadas, alguns decênios antes, pelo bispo de Paris sugerem que alguns já com o céu" (menti angeliche che fabbricana col cielo queste cose di qua
tinham podido conceber uma felicidade puramente terrestre que escaparia guisa), têm como missão engendrá-la neste mundo, tanto quanto o per-
a qualquer regulação religiosa; em todo caso, não é certamente sem algu- mitam as imperfeições da "matéria" cujo papel, segundo Santo Tomás, é
ma razão que um século mais tarde Gerson acusará de naturalismo o Roman "individualizar" (de la materia la quale individuaiS). Nessa perspectiva,
de la Rose. Mesmo para criticá-las, o autor do Convivia parece ignorar tais que mescla diversos vocabulários76 ,a própria filosofia assemelha-se à alma,
tentações. Toda a Commedia exclui, aliás, a interpretação literalista de fór- que é simultaneamente "ato" e "causa" do corpo, e lhe transmite uma parte ".
,I."
mulas que, para melhor combater as usurpações políticas do papa, expõem
em termos separatistas a divisão das competências entre os responsáveis pela
da "bondade que ela recebe de sua própria causa", quer dizer do próprio
Deus. Esse dom transcende bastante o "dom de nossa natureza" (lo debi-
:)
,I
dupla felicidade humana; aliás, mesmo quando insiste mais na autonomia to de la natura nostra) para que se possa falar de uma espécie de "graça"
do temporal, Dante reconhece expressamente que "a felicidade mortal está que prepara o homem para a ultrapassagem de si mesmo, por intermédio ':',
de alguma maneira subordinada à felicidade imortal" e, apesar da restri- dessa donna da Dia beneficiata et fatta nobile cosa 77 ,
ção do quodammodo (que indica apenas que a ordem propriamente humana Testemunho oferecido graciosamente"a todos os que vivem nos dias 'li
' . ,!I

guarda sua autonomia em relação a outros pontos de vista), Dante leva a de hoje"78, a nobre Dama apresenta o maravilhoso espetáculo de uma har- .. :1
sério, não duvidemos, a "reverência filial que César deve a Pedro"7o. Se não monia entre as virtudes cardeais que apenas o verdadeiro amor permite 79 ; "'~
fosse assim, a aversão do poeta florentino pelos reis capetianos não seria mas esse próprio amor é inseparável do conhecimento e é por isso que Fi- .'~
suficiente para explicar sua indignação contra o atentado de Agnanj71 , ainda losofia se chama donna de lo 'ntelett0 80 . Pitágoras, que foi o primeiro a
mais característico visto que Dante denunciou com vigor os erros pessoais nomeá-la, quis muito justamente que seu próprio nome remetesse simul-
de Bonifácio 72 e todas as conseqüências de uma suposta doação constantina taneamente ao amor que engendra o desejo de saber, e ao saber nascido
que fez do papa um ricco padre73 . Quando um soberano temporal se arro- em cada um desse desej os1. Sapienza procedendo daquela que, desde a
ga o poder de atacar não apenas o homem privado, mas o pontífice como origem, proclama: "eu amo quem me ama"S2, a "primeira e verdadeira
tal, então a distinção entre o Cristo e seu vicário se atenua. Um Marsilio de filosofia"83, mostra assim por uma via "natural" e contudo supra-huma-
Pádua será menos respeitoso, mas isso porque Dante tem provavelmente na, a (vera felicitate che per contemplazione de la veritade s'acquista)84.
uma outra idéia da filosofia. Irradiação de um Sol inteligível que ilumina o mundo inteir0 85 , ela se ofe-
Consideradas fora de seu contexto, as fórmulas que enfatizam a in- rece a Deus como o mais belo produto de sua própria reflexã0 86 ; os ho-
dependência da ética falseariam mais gravemente a imagem da donna genti- mens participam dessa visão apenas de longe e por alguns instantes; a maio-
le do que as asserções que, na mesma obra, descrevem a filosofia em ter- ria se contenta em "suspirar" ao evocá-lo como amantes indignos que so-
mos "teológicos". Mas nenhuma delas deve ser compreendida de manei- nham com sua dama" longínqua" 87.
ra isolada. Quer Dante tenha tido ou não consciência disso, elas são para O deslizamento da sabedoria propriamente filosófica à contempla-
ele mais complementares do que exclusivas. Desde que o problema se co- ção trinitária que tentará descrever os últimos cantos do Paradiso é aqui

174 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 175


1I
,(
imperceptível. Se o universo da Commedia permanece, sob muitos aspec- Questi si to/se a me, e diessi altrui.
tos, aristotélico, com sua superposição de esferas e de zonas que depen- Quando di carne a spirto era safita,
dem todas de um primeiro motor mas que conservam seu valor próprio E bel/eza e virtit cresciuta m'era,
Fu'io a [ui men cara e men gradita;
de causas segundas, com sua mistura de determinação e de liberdade, se E volse i passi suoi per via non vera,
mesmo o punto do qual depende il dela e tutta la natura 88 corresponde, Imagini di ben seguendo false,
de uma certa maneira, ao ato puro que move o céu por puro amor, um Che nulla promission rendono intera". (Purg., XXX, 124-132).
esboço de síntese entre o Estagirita e Plotino aparecerá nessa curiosa pas- 4 E. Gilson, Dante et la Phi/osophie, Paris, 1939, p.l0l.

sagem na qual Beatriz desenvolve a imagem dos círculos cada vez menos 5 Ibid., p. 94.
6 Os primeiros cantos do Inferno são contemporâneos ao Convivia (e anterio-
rápidos que, nascidos do "ponto" divino, se ampliariam em torno dele.
res à Monarchia). Cf. P. Renucci, Dante disciple et juge du monde gréco-fatin, Paris,
Ao poeta surpreso, que não reconhece em tal visão o universo de Aristó-
1954, p.64.
teles, ela declara então que os espíritos mais próximos do centro irradiante 7 Conv., 11, XIV, 20 (d. Cant., VI, 9).
devem mover justamente as esferas mais volumosas e mais distanciadas da 8 Mas permanece exatamente assim nos textos posteriores ao famoso "circuito".
Terra 89. Nessa perspectiva sincretista, a Commedia será, de certo modo, 9 Conv., 11, XII, 9 e XV, 12.

o poema que canta o retorno a Deus, senão de todas as criaturas disper- 10 Ninguém admite mais, com Mandonnet (Dante le Théologien, Paris 1934), que

sas 90 , pelo menos daquelas que não se recusam deliberadamente ao apelo Beatriz simbolize a teologia e mesmo a visão beatífica, e que seu reencontro (alegórico) tenha
significado para o jovem Dante um noviciato edesi,istico. Cf. E. Gilson, loco cit., p. 3-51.
de seus anjos protetores. Entre a primeira aparição da donna gentile e a
11 lo vidi code che mi fecere proporre di non dire piu di questa benedetta infino
última epifania de Beatriz no décimo céu, quase não é possível ver onde se a tanto che io potesse piit degnamente trattare di lei (Vita Nova, XLII, 1).
situaria exatamente o corte entre filosofia e teologia. 12 Conv., I, 1,4-7 e 11, XII, 7.
Assim, longe de se opor, mas também sem se confundir, as duas "bea- 13 Inf., I, 2. ,'"
,I."
titudes" se unem harmoniosamente em um movimento comum, e esse "de- 14 Par., X, 28-30,97-99,136-138.
15 Inf., IV, 131-144. Transposição da Atenas celeste evocada em Conv., m, XIV,
:'?J
sejo elevado" (alto disio), acerca do qual o poeta nos diz que ele o infiamme ,~il
15, onde lo Stoici e Peripatetici e Epicurii, per la Iuce de la veritade etterna, in uno volere
e o urge a conhecer tudo aquilo que se oferece à sua visão 91, procede sem concordevolemente concorrono. Em um poema teológico, Dante não podia situar no
nenhuma dúvida da mesma fonte fecunda que, no início do terceiro livro céu senão "batizados", mas aos pagãos e aos muçulmanos ele reserva o destino que foi :"~I
do Convivia, no poema Amor che ne la mente, fazia descer uma virtude o dos patriarcas antes da vinda de Cristo.
divina na graciosa imagem de uma donna gentile 92 . Do mesmo modo, di- 16 Inf., 11, 61-69 e Purg., XXX, 109 sq. - E. Gilson (op. cit., p. 99, n.l) invoca,

ríamos nós, com um dantólogo tão considerado quanto Renucci, que Dante contra a interpretação de Miche!e Barbi, os versos 85-90, nos quais Beatriz fala da scuola .. :1
jamais "dirige uma tradição contra a outra" e que finalmente "tudo é aco- que o poeta havia seguitata e de uma via mais distante da "divina" do que da terra il
lhido e conflui em seu poema para uma representação" na qual, não ape-
cieI che piu alto festina. Trata-se aqui menos da filosofia como tal do que de uma etapa :.:1
ultrapassada, a do sensível em geral; seria necessário beber a água do Lete (e a do Êmeno)
nas, como o enfatiza nosso colega, "o passado e o futuro" mas, acrescen- para se elevar ao nível das mais altas contemplações.
taríamos, a natureza e a graça, a razão e a fé "são agenciados segundo uma 17 Conv., I, 1,16-17.

ordem simultaneamente providencial e, quase no último mistério, inteli- I::; Ibid., 11, XII, 9.

gível"93, que é o signo específico da presença revelada de Deus"94. 19 "Che que//e be//a donna che tu senti
Ha transmutata in tanto la tua vita
Che n 'hai paura, si sé fatta vile!
Mira quant' eU' e pietosa e umile,
Saggia e cortese ne Ia sua Rrandezza,
NOTAS E pensa di chiamaria donna, amai!
Che se tu non t'inganni, tu vedrai
1 Vita nova, XXXV, 1-2. Di si alti miracoli adornezza,
2 Cf., por exemplo, Gregório de Nissa, Vita Moysi, I; 19, 30Sc,- lI, 200, 392c, Che tu dirai: Amor, segnor verace,
11,305, 425a, - Pseudo Dionísio Aeropagita, fcd. Hier., VI, III, 2, 533d, - Ep. Ecco l'ancelIa tua; fa che ti piace." (Rime, LXXXIX, V. 43-53)
VII, 2, 10S0b. A justificativa do feminino (e da evidente alusão à Anunciação) é a de que o dis-
-' "Si tosto in su la soglia fui curso do spiritei d'amor gentil é dirigido à anima do poeta.
Di mia seconda etade et mutai vita, 20 Conv., 11, XV, 3.21. E. Gilson, op. cit., p. 123.

176 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 177


, ~ti '
í:
22 Conv., m, IV, 9-10. 48 Ibid., XI, 74 e 113.
I.
23 Ibid. 11, XIV, 14. 49 Par., XII, 121-140.
Ib;d. VIII, 15. 50 Desde a terceira alínea do primeiro Livro, o autor remete a Aristóteles para
24 Ibid., 8-10. definir os finis totius humamae ciulitatis; em I, XIV, 3, ele usa notações literais caras ao
25 Ihid. IV, XII, 14. Estagirita para estabelecer a relação de fim e meio; em sua demonstração (no entanto
26 Dante escreve: Noi non potemo perfettamente vedere [la nostra immortalitadeJ bastante retórica) do direito sagrado de Roma em dominar o mundo, no segundo Li-
mentre che 'I nostro immortale con mortale e mischiato, acrescentando logo em segui- vro, ele recorre tão freqüentemente ao raciocínio pelo absurdo que, em sua tradução
da: Ma vedemolo per fede perfettamente (lbid., 11, VIII, 15). Muito já foi discutido acerca francesa, Pézard julga necessário lembrar em nota a definição do contrário e do contra-
da passagem do feminino ao masculino; quer se considere o fato de que o que vemos ditório (11, IV, 4, etc.).
perfeitamente pela fé seja o immortale ou de que nossa alma seja imortal, trata-se de 51 Purg., XVI, 73-78, XXVII, 139-140.- Cf. Mon., I,XII, 6: Hoc uiso manifestum
qualquer modo de "visão", e de uma natureza diferente daquela da apreensão intelec- esse potest quod hec libertas siue principium hoc totius libertatis nostre est maximum
tual, enfatizada por Santo Tomás (De pot., V, 4, ad 7); essa última, de fato, baseia-se donum humane nature a Deo collatum, quia per ipsum hic felicitamur ut homines, per
em uma relação conceitual entre a imortalidade e a imaterialidade. Dante não nega tal ipsum alibi felicitamur ut dii. Mas essa dupla felicidade não parece ser problema, e ambas
relação, mas esta não lhe interessa aqui. Sobre esse ponto, E. Gilson (loc. cit., p. 125, se fundam aqui na mesma liberdade, sem referência à graça.
n.l) parece-nos um pouco severo quanto à interpretação proposta pelos dois editores 52 "Onde convenne legge per fren porre;
do Convivio, Busnelli e Vandelli. Convenne rege aver, che discernesse
27 Conv., m, VIII, 15. De la vera città almen la torre." (Purg., XVI, 94-96).
28 Sumo theol., I, 89, 2. 53 "Ma voi torcete a la religione
29 Ibid., 1,1,1-3. Tal che fia nato a cignersi ia spada.
30 Como os outros companheiros de Santo Tomás, Siger ensinou a "verdade" E fate re di tal ch'e da sermone." (Par .. , VIII, 145-147).
(sillogiso invidiosi veri, Par., X, 138). 54 Conv., IV, IX, 1.
31 Par., X, 94-138. 55 Cf. as últimas linhas da Monarchia: ... ut fuce paterne gratie illustratus uirtuosis ~l~:
32 Ibid., XXXI sq. orbem terre irradiet, cui ab iUo solo perfectus est, qui est omnium spiritualium et tem- "'"'
",;1
33 Conv. m, IX, 10. poralium gubernator. (Mon., m, XVI, 18).
56 Cf. P. de Lagarde, La Naissance de I'Esprit lai"que, 6 vaI., Saint-Paul-les-Trois-
..1
34 Ibid., IV, XIII, 17.
35 Ib;d., 111, XIV, 8. Châteaux, 1934-1946.
36 Inf., IV, 132-133. Esse texto segue bem de perto o apelo de Beatriz transmiti- 57 Mon., m, XVI, 17-18. ")
do por Virgílio. Dante não percebe então nenhuma oposição entre sua "fé" e sua "obe- 58 Conv., IV, XVII, 10-11.

diência" em relação a Aristóteles e, por outro lado, a exigência religiosa que ilustra toda S9 Conv., 11, IV, lO.

a Commedia. 60 Entre 1310 e 1312. Cf. P. Renucci, loc.cit., p.111-114. ..:!


37 Conv., IV, VI, 9 e 15-16. 61 Dante evoca erroneamente aqui a doutrina de Averróis (Mon., I, m, 9) enquan-
''''1-
,,,,OI
3" Ib;d., 7. to, no canto XXV do Purgatorio (versos 62-65) - que deve ser quase contemporâneo
39 Especialmente Rime LXXXII, 81-86, - Conv. IV, XVII, 1-8, - Inf., XI, 79 re
-, toma de Estácio uma crítica expressa daquele para quem disgiunto da l'anima ii
sq. - Purgo XXX, 115 sq. possibi/e intelletto. t. verdade que a unidade à qual remete o texto da Monarchia não implica
40 Omissa subti/i inuestigatione, dicendum est breuiter quod finis totius et partis nenhuma separação, mas, antes, um quase tornar comum atividades intelectuais próprias
est remouere uiuentes in hac uita de statu miserie et perducere ad statum feiicitatis. Genus à totalidade dos homens reunidos em uma só república. A potência do intellectus possibi/is,
uero philosophia sub quo hic in toto et parte proceditur est morale negotium, siue ethica; que o autor estende aliás aos agibilia e aos factibilia (Mon., I, m, 10), não pode ser "re-
quia non ad speculandum, sed ad opus inuentum est totum et pars (Ep., XIII, 39-40). duzida em ato" por um só homem nem por uma comunidade parcial (lbid., 8); ele a
41 Conv., IV, XVII, 7. compara deveras bizarramente à materia prima, que permaneceria separata sem a pre-
42 Inf. VII, 16-66. sença contínua de res generabilis, mas é para significar que não se pode tratar de uma
43 Ib;d., VII, 115-126. espécie de inteligência angélica extra-individual. Sonha evidentemente com o acréscimo
44 D 'ogni malizia, ch 'odio in cielo acquista, dos atos intelectivos, que só se pode realizarem nível da humanidade total. Idéia interessante
Ingiuria e'l fine, ed ogni fin cotale e, de um certo modo, bastante moderna, mas que parece bastante distante do verdadeiro
O con forza o con frode altrui contrista (lnf., XI, 22-24) averroísmo, visto que remete, não à última das hierarquias celestes, mas à propria operatio
45 Sobre o tema da "inversão" e da hábil definição da "sodomia", que poderia humane uniuersitastis hominum in tanta multitudine ordinatur (ibid., 4). Perfeitamente
justificar principalmente o destino reservado a Bruno Latini, cf. A. Pezard, Dante sous convincentes nos parecem a esse respeito as conclusões paralelas de B. Nardi, Saggi di
la pluie de feu, Paris, 1950. filosofia dantesca, Milão-Roma 1930, p.161-264, e de E. Gilson, loco cit., p. 167 sq.
46 Inf., XVII, 97-111. 62 Mon., m, IV, 17-20. Dante acrescenta também que essa abundante luz recebi-

47 Par., XII, 97. da do Sol permite à Lua uirtuosis operari.

178 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 179


63 Ibid., m, 111, 7. -Acerca da incompatibilidade entre a fórmula de Dante (Petri Quivi dov'elle paria, si dichina
successor, cui non quicquid Christo, sed quicquid Petro debemus) e a de Santo Tomás, Vn spirito da ciel, che reca fede
em De regimine principum, I, 14 (Successor Petri, cui omnes reges populi christiani oportet Come ['alto valor ch'e/le possiede
esse subditos, sicut ipsi Domino nostro Jesu Christo), cf. E. Gilson, op. cit., p. 183. 'E oltre quel che se conviene anui," (Rime LXXXI, 37-44).
64 Mon., III, XIl, 7. 93 Se desconsiderássemos esse "último mistério", distorceríamos seriamente o

65 Ibid., XVI, 7-11.


sentido de todo o "agenciamento".
66 E. Gilson, op. cit., p. 195. 94 P. Renucci, "Dante ct I'Hisroire", Furope, set-our. 1965, pA5.

67 Mon., m, XVI, 12-15.


" Ibid .• I. VIII, I.
69 Ibid., I, IV, 2-3.
70 Mon., 1Il, XVI, 17-18.
71 Purg., XX, 86-88.
72 In(., XIX, 43.
n Ibid., 117.
74 Citado sem dúvida segundo Santo Tomás, Contra Cent., rI, 98 (In Libro De
Causis dicitur quid intelligentia seit quod est sub se et quod est supra se per modum suae
substantiae); mas o Doutor Angélico considera somente, de forma teórica, o modo de
intelecção própria dos Anjos, não o papel "inventor" que evoca aqui o autor do Convivia.
75 Conv., m, VI, 4-6.
76 Desde as pertinentes observações de Santo Tomás nas primeiras linhas de seu
comentário acerca do Liber de Causis, ninguém poderia mais ignorar que se trata de
um texto neoplatônico e não de uma obra de Aristóteles. ;i",
77 Conv., 1Il, VI, 11-13. "'!)
,.'"
n Ibid., VII, 17. ,,;!
79 Ibid., VIII, 1 e 12.
*lO Ibid., XI, 1.
~)
Sl Ibid., XI, 6.
~2 Pro v., VIII, 17.
H3 Conv., I1I, XI, 18.
" Ibid., XI, 14. .J
RI Ibid., XII, 6-8.
Só Ibid., XII, 11.
:::t
S7 Ibid., XII, 14.
8R Par., XXVIII, 41-42.
"9 Ibid., 25-78.
90 A presença de um mal irreversível é uma das constantes de uma visão de mundo
que exclui qualquer apocatástase. Cf. sobre a queda dos Anjos. Conv., 111, XII, 9-10. Ao
criá-los, Deus sabia bem que os angeli rei sucumbiriam à malizia, ma tanta fu l'affezione
a producere la creatura spirituale, che la prescienza d'alquanti che a mala fine doveano
venire non dovea né potea Iddio de quella produzione rimovere. E Dante invoca então
um estranha comparação com a Natureza che non sarebbe da laudare se, sappiendo prima
che li fiori d'un arbore in certa parte perdere si dovessero, non producesse in quella fiori,
e par li vani abbandonasse la produzione de le fruttiferi. Estranho, pois as flores que
murcham não estão absolutamente condenadas a um suplício eterno!
91 Par., XXX, 70-71.
92 "[n lei diescende la virti! divina
Sç come face in angelo che 'I vede;
E qual donna gentil questo non crede,
Vada con lei e miri li atti sui.

Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 181


180
IX. PLATONISMO E ARISTOTELISMO
EM NICOLAU DE CUSA"

No mundo latino da Idade Média, o conhecimento do grego se tor-


nara raro e, dos diálogos de Platão, só se possuía uma parte do Timeu na
versão de Calcídio. Mesmo quando tornaram-se acessíveis, por causa das II
traduções, alguns outros diálogos, estes não eram lidos com muita freqüência.
Nicolau de Cusa maIos conhecia, raramente os cita, e, quando o faz, é de
modo bastante aproximativo (notadamente o Mênon, no capítulo 31 do De
venatione sapientiae). Capaz, no máximo, de decifrar algumas palavras
gregas e vaidoso por possuir uns tantos manuscritos bizantinos, ele só pode
utilizá-los nas versões latinas que às vezes se fazem esperar por muito tem-
po, como é o caso da T eo/agia platônica de Prodo, que só será traduzida
por Balbo em 1458. Em contrapartida, parece que possuiu bem cedo o co-
mentário do Parmênides e a Elementatio theologica (nas versões de Moer-

..=:
J.
becke), e seus exemplares continham anotações marginais que revelam uma
leitura atenta, mas as citações explícitas nos tratados do cardeal surgem so-
bretudo depois de l459; com o Pseudo-Dionísio (que ele lê e relê na nova

,.-'""
, versão de Traversari, composta, parece, a pedido seu), Prodo é uma de suas
fontes essenciais quanto ao conjunto um pouco compósito de doutrinas e
,•• de tendências que ele atribui aos platonici (não se deve, todavia, negligen-
ciar o que vem de Santo Agostinho e dos padres gregos). Nos seus últimos

-xx anos, utilizará Diógenes Laércio (igualmente traduzido por Traversari). Seu
conhecimento de Aristóteles é mais direto, sobretudo após 1450, quando
pôde utilizar a versão organizada por Bessarião (o bizantino que se tornou
cardeal), mas suas citações são em geral imprecisas, por vezes equivocadas,
e ele não teme exegeses conciliatórias. Ainda que seus modos de exposição
sejam pouco escolásticos, seu vocabulário depende em grande parte da Escola
e se adensa mais com muitos neologismos.

Terá Nicolau Krebs (em latim, Krebs de Cusa), em Deventer, sido o


aluno (antes de Erasmo) dos Frades da Vida Comum, conhecidos como adep-
tos fervorosos daquilo que se denomina a devo tio moderna, mas editores
também dos mestres nominalistas? Arquitetada a partir de um dáusula de
seu testamento, essa hipótese é hoje em dia fortemente contestada. Ao menos

* Comunicação apresentada no colóquio do Centre d'Etudes Supérieures de la


Renaissance (julho, 1974) acerca de "Platão e Aristóteles no Renascimento". (Publica-
do posteriormente por Vrin, Paris, 1976)

Gêneses da Modernidade 183


li
pode-se pensar que, em 1416, na Universidade de Heidelberg onde estuda- ciaI preside o movimento dos átomos. Pode-se julgar entretanto significa-
va Direito, o Cusano esteve em contato com um ambiente ockhamista, no tivo que, no De venatione sapientiae (caps. 8 e 21), se refira ao atomismo
qual se havia rompido de fato com alguns princípios da física aristotélica para criticar a teoria segundo a qual as coe/estia teriam função diretriz em
(primado do qualitativo, corte radical entre a mecânica celeste e a mecâni- relação à haec terrena, como se "tantos inúmeros astros, maiores do que
ca sublunar, imobilidade perfeita da Terra no centro de um universo finito). essa Terra" pudessem ter sido criados "para este mundo terrestre". De fato,
E por alguns aspectos de sua cosmologia e de sua mecânica, Nicolau per- como veremos, Nicolau de Cusa nem sempre pensou que o aristotelismo
tence à tradição dos moderni. Se não basta, para ser "nominalista", consi- fosse incompatível com a idéia de uma potência divina agindo no próprio
derar os universais in mente como entia rationis, é ainda significativo que cerne do cosmos e, em sua própria perspectiva, os átomos de Epicuro te-
o domínio em que o cardeal será o menos platônico seja o da recusa de um riam apenas podido se integrar, assumindo mais ou menos a aparência de
realismo que situaria no concreto formas inteligíveis preexistentes. "mônadas" leibnizianas.
Em Pádua, onde continua seus estudos, ele quase não parece marca- Na Universidade de Colônia, que ele freqüenta em 1423, o Cusano
do pela influência averroÍsta. Ao lado do Direito, interessa-se pela Medi- entra, sem dúvida, em contato com o aristotelismo neoplatonizante dos
cina, e mais ainda pela Matemática. Apesar de algumas referências à as- "albertistas", mas é sobretudo a influência de Eckhart que ele mais so-
trologia árabe (sobretudo nos sermões antigos), encontra-se bastante dis- frerá. Após uma breve fase "humanista", encontramo-lo padre em Co-
tanciado do fatalismo astral. De resto, eliminará rapidamente de sua vi- blença, depois advogado no concílio de Basiléia, no qual intervém primei-
são de mundo o sistema das esferas cristalinas e, a partir de 1440, no De ro para defender a causa de um Manderscheid, cuja designação como bis-
docta ignorantia, irá descrever uma machina mundi, cujo centro está por po era fortemente contestada; impõe, por seu talento, sua personalidade,
toda parte e a circunferência em lugar nenhum, onde a Terra não é astro e logo lhe são confiadas tarefas delicadas, Como a negociação com os hus-
vil nem o Sol pura luz. Quando usar círculos concêntricos para simboli- sitas. Sua Concordantia catho/ica (1443) revela que ele vê mais longe do
zar o duplo envolvimento do sensível pelo racional, e do racional pelo que seus amigos do partido "conciliar". Seria difícil descobrir nesse tra- '.':
intelectual (por exemplo em seu De coniecturis, escrito e revisado de 1441 tado de canonista e de historiador alguma influência de Platão ou de Aris-
.'I
a 1445), essas imagens não terão nenhum caráter cosmológico; não obs- tóteles; apesar de alguns empréstimos ao Defensor pacis de Marsilio de
tante, ele as corrige pelo esquema de sua figura P (figura paradigmatica) Pádua, o autor quase não pode passar por um representante do aver- ""1
na qual se vêem todas as criaturas recebendo a dupla influência da luz e roÍsmo político. Sua teoria do pacto social o mostra mais próximo de
da sombra, no feixe cruzado de duas pirâmides que têm como respectivas Duns Escoto do que de Santo Tomás; se sua atenção significativa a todo
extremidades a unidade e a alteridade (ou, ainda, Deus e Nihil). Sabe-se, orbis terrarum lembra o universalismo de Dante, o imperium, nele, ad- "
".:1

por outro lado, que análises geométricas da transmutatio o auxiliam a quire uma forma claramente federativa, sem privilégios para Roma. Pa-
~::I;
sugerir a "coincidência dos opostos", fazendo sobressair a identidade do triarca do Ocidente, o papa, a despeito de sua primazia, não possui para
máximo e do mínimo quando a circunferência se torna, por hipótese, a de ele poder direto no Oriente; deveria dirigir a Igreja latina com um conse-
um círculo de raio infinito, ou quando o polígono cujo número de lados lho de cardeais eleitos pelas comunidades episcopais. A ênfase é coloca-
aumenta tende a se confundir com o círculo circunscrito. Tudo isto é bas- da no acordo entre as partes e o todo por imanência global do "espíri-
tante estranho ao aristotelismo e se relaciona, antes, à reflexão eudoxiana to", por estabelecimento dos indivíduos e dos grupos em um corpo se-
acerca dos limites. guramente hierarquizado, mas no qual a autoridade vinda do alto se exer-
Contra uma certa visão hierárquica do mundo, o Cusano evoca às ce segundo o consenso dos fiéis, através de todo um sistema de "repre-
vezes os logoi spermatikoi do estoicismo e, ainda que o faça em termos sentações". Quer se trate da Igreja ou do Império, esse plano de reformas
aristotélicos, mas utilizados de uma maneira que coloca paradoxalmente é, em grande parte, "utópico" (característica que será reencontrada, de
a simultaneidade do ato e da potência (unde aiebant veteres stoici formas outras maneiras, no Idiota de staticis experimentis, de 1450, e no De pace
omnes in possibilitate actu esse, Doct. ign., li, 8), essa audácia relativa (po- fidei, de 1453), mas de forma alguma no sentido de Morus ou de Cam-
dendo as razões seminais de Agostinho lhe servirem de garantia) será con- panella e sem referência à República platônica. Mais tarde o autor insis-
firmada pelos textos posteriores que reabilitam Epicuro. Certamente Ni- tirá mais na noção de "bem comum" no sentido de Aristóteles e de San-
colau de Cusa é aqui enganado pelo texto incorreto da Carta a Heródoto to Tomás. É essa noção, finalmente, que irá determinar que o Cusano se
na tradução latina da qual dispõe, pois imagina que uma ordem providen- agregue ao partido pontificaI e defenda, na Alemanha, a causa de Eugê-

184 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 185


~I'. '

nio IV. No Natal de 1448, Nicolau V o nomeará cardeal e, para o jubi- po e dos meios de que dispõem, os sábios tentam aproximar de forma
leu de 1450, fará dele seu legado itinerante através das terras germâni- conjetural o mistério vivo de um Deus escondido e infinito, unidade pura
cas, dos Países Baixos à Boêmia. que entretanto se diz ela mesma e volta a si mesma, a imanência universal
Desde 1437, fazendo voltar de Constantinopla os delegados orien- de um movimento ternário do uno, do igual e do conexo, o papel do ho-
tais ao concílio de união, o Cusano estabeleceu relações estreitas com muitos mem que, pela potência da mens, mede e cria - o idiota do De mente,
deles. Amigo fiel de Bessarião, desejava a conciliação entre os platônicos que, fazendo colheres de madeira, dá forma à matéria, está mais próximo
puros e os sectários de Aristóteles. Além disso, ele tem seu próprio cami- da arte divina do que o pintor que simplesmente copia o real-, a relação
nho, que deve, segundo diz, a uma inspiração do alto. Da De doeta igno- do infinito absoluto ao infinito "contraído" ou cósmico, que exige a me-
rantia ao tratado do Berilo, ele apresenta esse método como um meio de diação como a de Cristo do homo maximus simultaneamente "micro-
ultrapassar as oposições doutrinais retendo, de cada filosofia, aquilo que cosmo", aequalitas essendi e Verbo encarnado (Doet. ign., lII, 3-4).
representa, a seus olhos, uma abordagem positiva da única verdade que é, Nessa perspectiva, e ainda que as oposições entre Platão e Aristóte-
aliás, em 'si, inacessível. Como quase todos os homens de seu tempo, ado- les sejam por vezes reduzidas a questões de vocabulário, o platonismo
ra entretanto se despojar de seus precursores. Desde seus sermões de ju- corresponde certamente, tal como o Cusano o considera, a uma melhor
ventude, vemo-lo invocar as mais heteróclitas auctoritates. As que man- aproximação, a uma mais autêntica intuição da verdade. Desde a Douta
tém em suas obras posteriores são certamente melhor selecionadas, mas ignorância, ele qualifica Platão de divino, e a fórmula é retomada na Apo-
seu uso depende freqüentemente da pia interpreta tio. logia, mas o contexto revela que se trata aí de algo bem diferente do ver-
Sem seguir aqui o cardeal em sua vida difícil de bispo (lutando em Brixen dadeiro platonismo dos Diálogos. Tendo Com efeito louvado Avicena por
com seu clero assim como com o duque de Tirol) , nem em seu trabalho dos sua teologia negativa, o autor acrescenta: sed acutius ante ipsum diuinus
últimos anos na Cúria romana, e sem nos deter nos textos de caráter sobre- Plato in Parmenide tali modo in Deum conatus est viam pandere, quem
tudo científico ou nos de predominância religiosa, reteremos - desde o De adeo divinus Dionysius imitatus est ut saepius Platonis verba seriatim 'lO,
,.,.'
docta ignorantia, de 1440, até o De venatione sapientiae, de 1463 - algu- posuisse reperiatur (ed. de Basiléia, 1565, p.66). Essa literalidade é a de .,11
mas das referências mais significativas ao platonismo e ao aristotelismo. Proclo, não de Platão. Acreditando ainda que "Dionísio" é o Aeropagita
Veremos que, se Platão parece freqüentemente privilegiado, se Aristóteles de São Paulo (e essa atitude surpreende em um homem que foi mais lúci- ",
é às vezes criticado em termos bastante severos, o Cus ano recusa em geral do diante das falsas decretais e que criticou a autenticidade da "doação"
(como o idiota de seus diálogos) qualquer sujeição a qualquer tipo de seita. atribuída a Constantino), o Cusano acha normal ler nele fórmulas que
Diferentemente de Ficino, só raramente se refere a uma antiga tradi- pertencem ao neoplatonismo tardio e que atribui ao autor do Parmênides, ::I
ção de caráter mais ou menos misterioso, vinda do Egito, do Irã e da Cal- menos preocupado do que será Lefêvre d'Étaples em considerar as afirma- ' 'lO,
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déia. Se louva Platão por ter imitado Pitágoras, é por aquele ter utilizado ções de Dionísio em sua pureza pauliniana para opô-las às elucubrações
- no nível da ratia - um método numérico capaz de ligar o uno e o múl- pagãs de Porfirio e de Prado. Nessa mesma Apologia - na qual ele de-
tiplo (neque arbitrar quemquam rationabiliorem philosophandi modum fende sua própria ortodoxia, mas amalgamando aí judeus, gregos e cristãos,
asseeutum, quem quia Plato imitatus est, merito magnus habetur, De ludo e sem hesitar em incluir entre seus mestres autores suspeitos e mesmo con-
globi, lI). O tema do progresso (desenvolvido no Sermão Ubi est, de 1456) denados - , ele qualifica de sapientissimus Fílon de Alexandria (a quem
exclui, aliás, a idéia de uma verdade original, mais ou menos obscurecida atribui o inspirado livro da Sabedoria) e invoca a seu favor uma linhagem
na seqüência dos tempos, e que conservaria uma descendência mais ou que, de João Escoto dito o Erigena, por Hugo de São Vitor e Robert Gras-
menos esotérica. Sem dúvida, o desenvolvimento das artes (consolo ofe- seteste, conduz a Mestre Eckhart (p.?O-?1). "Platão" é aqui menos o au-
recido ao homem que, como qualquer outro animal, nasce nu e desarma- tor dos Diálogos do que o suposto inspirador de uma longa tradição. Seu
do) não é rigorosamente unilinear, e tampouco se trata de uma sucessão privilégio se mantém, no entanto, relativo; tudo o que ele disse não mere-
de ciclos, mas antes, parece, de um devir histórico deveras complexo, no ce uma confiança cega, e outros filósofos são freqüentemente evocados.
qual Maomé, por exemplo, ainda que vindo após Jesus, tem por função Como "pai" de Zênon e "avô" de Sócrates - segundo o esquema
positiva adaptar a verdade mosaica para os rudes árabes, preparando-os transmitido por ProeIo - , é verdade que Parmênides, assim como Pitágoras,
assim para uma fase de desenvolvimento que permite compreender melhor é efetivamente o àntepassado do diuinus Piato, mas é sem referência a
o sentido universal da Trindade e da Encarnação. Na medida de seu tem- qualquer parentesco que o Cusano facilmente enaltece Anáxagoras e Em-

j 186 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 187


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pédocles, defende mesmo Epicuro e, por sua doutrina do homem-medida, o Estagirita teria sido seu "imitador"? Mais adiante, referindo-se a um outro
reabilita Protágoras. Isso no mesmo texto (De beryllo, capo 36) no qual texto do mesmo De anima que concerne à identificação órfica da alma a
os dois grandes adversários da sofística, Platão e Aristóteles - todos dois, um sopro (A 5, 411 a), o cardeal estende visivelmente para sua própria
entretanto, "princípes da filosofia", eles que atacam Anaxágoras, - são filosofia a argumentação segundo a qual, visto que nem as plantas nem
acusados da mesma deficiência que ele, por não compreenderem (pelo mesmo os peixes respiram, a animação não pode ser definida por uma
menos com suficiente clareza) que Deus é conjuntamente ato e potência. característica que só vale para alguns seres vivos. Logo, quando escrevia: r
Não existe, aliás, nenhuma filosofia que 'não permaneça aquém da perfei- "É pelo reto que conhecemos o próprio reto e também o curvo, pois a regra
ta precisão, e o primeiro mérito dos "sábios" é justamente o de reconhe- é juiz tanto de um quanto de outro", Aristóteles não pensava certamente
cer esses limites. Platão por vezes é louvado como o "único" que, ultra- na infinitesimal "transmutação" da curva na reta, e, aliás, o Cusano o
passando "um pouco" os outros, admirou-se com o fato de que se pudes- censurará expressamente por ter considerado curvum e rectum como ver-
se "encontrar" Deus e, mais do que isso, revelá-lo (Solus Plato aliquid plus dadeiros contrários (De beryllo, capo 26). E,contudo, após ter reconheci"
aliis philosophis videns dicebat se mirari si Deus inveniri, et plus mirari si do como justificada, no nível do "mundo", a divisão de todas as coisas
inventus posset propalari, Ven. sap., capo 12), mas Aristóteles, que já o em "substância" e "acidente", é ao Estagirita que o autor da Douta igno-
Douta ignorância chamava profundissimus (no capítulo 8 da Venatio ele rância se refere para apoiar uma reflexão bastante estranha, parece, ao
é denominado apenas Peripetaticorum acutissimus), tem o mérito, como aristotelismo: uma vez restabelecida como uma reta finita, a curvitas mini-
veremos, de apresentar como "sempre buscada" a "qüididade de todas as ma remete indiretamente à simplicior participatio da reta infinita, de forma
coisas enquanto cognoscível" (Non aliud, capo 18). Certamente, tivesse ele que illa diversa participatione non obstante, adhuc, ut ai Aristoteles, "rec-
apreend{do como terceiro princípio, ao lado da forma e da materia, não tum est sui et obliqui mensuraj e do caso da linha infinita (ao qual Aristó-
uma suposta privatia, mas o nexus ativo como inchoatio farmarum, teria teles não fez nenhuma menção) o Cusano conclui então ao próprio Infini-
sem dúvida ido mais longe nessa "busca" (De beryllo, capo 29). Ao me- to como medida de tudo o que diversamente participa dele (sicuti infinita
nos pressentiu os limites dessa filosofia primeira à qual remotos sucesso- linea rectae et curvae, ita maximum omnium qualitercumque diversimode
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res darão apenas as qualificações de metafísica ou de ontologia. Da parte participantium, capo 18). A seqüência irá, entretanto, precisar que a adae-
de um impositar nominum peritissimus (que Lefevre d'Étaples definirá quatissima mensura, sem dúvida mais substancial do que acidental, trans- --"1]1
como "teólogo da fala" , tendo sobretudo o mérito de preparar o caminho cende uma distinção ainda intramundana, de forma que dois adjetivos
para os "teólogos do silêncio"), essa modéstia e esse acanhamento teste- dionisianos supersubstantialis et nonsubstantialis, remetem respectivamente
munham, como que apesar dele, que o infinito escapa a qualquer apreen- ao superlativo e ao ablativo, sendo o segundo o menos inadequado.
são por signos sensíveis e por conceitos (De venatione, capo 33). Ainda que Da mesma forma, em lI, 8, ao louvar Aristóteles por situar as formas
em potência na matéria, o Cusano desconfia que ele subestima o papel verda- :::::;
Platão pareça no geral mais facilmente "recuperável", é mais de uma vez
no filósofo da linguagem e da razão que o Cus ano encontra intuições que deiramente "formal" da causa produtora, mas pensa que, de seu lado, os
não apenas retomam a dos platônicos, mas, que se forem bem compreen- "platônicos" valorizaram demasiadamente o caráter privativo daquilo que
didas, parecem mais perspicazes do que estas. ele nomeia, por sua vez, uma possibilitas absoluta, e que ele coloca - inse-
Assim, desde o começo do De docta ignorantia (I, 1), após ter lem- paravelmente - enquanto aptitudo e carentia. Se parece aprovar, em lI, 12,
brado que Sócrates dizia não saber nada a não ser que nada sabia (necedade o qualificativo de animal aplicado ao mundo no Timeu, ele só julga a fór-
bastante próxima daquela do Eclesiastes I, 8), Nicolau de Cusa evoca a mula esclarecedora com a condição de que se conceba absque immersione
frase de Metafísica (993 b) acerca do olhar humano que uma verdade por como uma anima mundi mais ou menos identificável ao Infinito divino.
demais luminosa cega, assim como o brilho do Sol ofusca o pássaro no- Assim, nesse duplo jogo de assimilações e de retificações, o Cusano
turno. Mais curiosamente, em I, 11, louva Aristóteles por ter traduzido sua parece manter uma espécie de equilíbrio entre Platão e Aristóteles. Mas logo,
doutrina em figuras matemáticas; o único exemplo citado é o da imagem, vivamente atacado por um mestre de Heidelberg que invoca contra ele o
pouco significativa, da alma inferior inclusa na superior como o é o triân- Estagirita, vemo-lo em 1449, em sua Apologia (tomada ficcionalmente de
gulo no quadrilátero (De anima B 3, 414 b). Será que esse apoio é sufi- empréstimo, é verdade, a um "discípulo" indignado), bem mais severo do
que nos textos anteriores e futuros, contra essa aristotelica secta que colo-
"
ciente para insinuar que, apesar do gosto pela singularização que o torna
injusto para seus predecessores (singularis videri voluit priores confutendo), ca em dogmas religiosos os limites de sua própria abordagem, tornando quase

188 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 189


impossíveis tanto a ultrapassagem da razão quanto o acesso a uma verda- como se vê, não se dirige menos às diversas hierarquias platônicas do que
deira "teologia mística": unde cum nunc aristotelica secta proeualeat, quae à concepção de Aristóteles imaginando um Ato puro, que por simples atra-
heresim putat esse oppositorum coincidentiam, in cuius admissione est ascen- ção teria movido o primeiro céu (e todas as esferas incorruptíveis), ao passo
sus in mysticam theologiam, in ea secta enutritis haec via ut penitus insipida, que no nível sublunar a seqüência das gerações e das corrupções obedece-
quasi propositi contraria, ab eis procul pellitur, ut sit miraculo simile, sicuti ria apenas à physis (ela mesma limitada pela sorte e pelo acaso), A partir
sectae mutatio, reiecto Aristotele, eos altius transilire (ed. citada, p.64-65). do ternário omnipotentia, sapientia et nexus omnipotentiae cum sapientia,
Apesar dessas gentilezas, e no momento em que o Cusano situa sua o Cusano quer reencontrar, ao contrário, tanto nas coisas quanto no es-
reflexão em uma "altitude" inferior, suas fórmulas são em geral mais con- pírito, a participação ativa de um spiritus universorum.
ciliantes do que fulminadoras. Pouco posteriores à Apologia, os diálogos Seria a diferença entre as duas abordagens (positivas e todavia incor- ~
do Idiota insistem no princípio socrático segundo o qual qualquer igno- retas) desse "espírito" que é "conexão" puramente verbal? Para além do "
rante (ou "profano") pode, por um método justo, fazer crescer as semen- problema de vocabulário (aqui anima mundi e lá natura), o autor do Doete
tes do verdadeiro que ele traz inatas em si, e decifrar o "livro do mundo" Ignorance destaca dois encaminhamentos de algum modo inversos. Logo
melhor do que o pedante nutrido de saberes completamente livrescos, Os de saída Platão procura a "imagem" de Deus na intelectibilitas ubi se mens
diálogos enfatizam seguramente o valor de um pensamento atento primei- simplicitati divinae conformat, situando, nesse nível, a substantia mentis
ramente à gênese dos números e das figuras, à fecundidade da mensura, capaz de escapar à morte, mas é necessário que, em seguida, descreva a
superior a qualquer vã "retórica" e graças ao qual se concretiza em ver- descida (ou degeneratio) da pura "inteligibilidade" em "inteligência" (quan-
dadeiro saber a sapientia bíblica que "grita nas praças públicas", mas ainda do a alma considera in se as coisas distintas e separadas), e mesmo até o
aí se poderiam ver todos os filósofos se "conciliarem", desde que se con- estágio inferior da "razão" (aí onde a idéia não é mais do que "forma na
sidere de forma mais "precisa" esse Infinito que os pensadores das diver- matéria variável", capo 14). Aristóteles, ao contrário, parte do "sensível" ",.
sas tradições só puderam pressentir em termos inadequados. A esse res- a fim de submetê-lo ao império "racional" da linguagem, mas o "idiota" ""
peito, no terceiro diálogo (De mente), entre Platão e Aristóteles, o equilí- do diálogo cusano lhe atribui aqui hipoteticamente (forte) um desígnio que
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brio é quase igual. seria o de percorrer no outro sentido a via platônica e, pela "disciplina"
No capítulo 2, o "idiota" reconhece ao Estagirita que gêneros e es- que se manifesta "através das palavras", de se elevar até à intelligentia, até "!I
pécies são apenas entia mentis, posteriores no espírito à primeira apreen- mesmo à intellectibilitas. Na perspectiva Cu sana, os dois modi conside-
são do sensível (e, vinda de um admirador dos "platônicos", esta não é rationis mantêm seu lugar e seu valor. E observar-se-á que ao fim do diá-
uma concessão qualquer), mas é para corrigir uma fórmula quase ockha- logo, esboçando uma venatio da imortalidade baseada na função genéti-
mista, comparando em seguida o trabalho da mens que forja seus concei- ca do "número", o "idiota" remete à definição aristotélica do tempo como
tos ao do artesão, aquele que não copia formas preexistentes em algum número do movimento; é verdade que ele substitui "medida" por "núme- ""I

topos noetos e que, contudo, quando entalha a madeira, faz "resplande- ro" e, aplicando a fórmula a todo motus (não apenas à cicloforia celeste),
cer" nesta uma inventiva participação na ars divina. Entre os dois "prín- pensa aí descobrir o sinal de uma fecundidade do espírito, capaz de de-
cipes da filosofia", o capítulo 13 percebe uma comunidade de intenção sob senvolver infinitamente seu poder criador.
diferenças verbais; um fala, com efeito, da "alma do mundo"; o outro, de Parece sobretudo que em suas obras posteriores, sem renunciar a
"natureza". E certamente podemos compreender as duas expressões como qualquer exegese acomodadora, o Cusano enfatiza firmemente a insuficiên-
já remetendo a esse "Espírito universal", operação de Deus fazendo "tudo cia comum a seus predecessores (e não apenas aos adeptos da "seita aris-
em tudo" e que ilumina a reflexão cusana acerca da Unitrindade: Puto quod totélica "). No mesmo capítulo 25 do De beryllo, no qual recusa a privatio
animam mundi vocavit P/ato id quod Aristoteles naturam. Ego autem nec como terceiro princípio unido à forma e à materia (pois apenas pode ser
animam illam nec naturam aliud esse coniicio quam Deum omnia im om- "privado de contrariedade" o nexus ativo que liga os contrários), para além
nibus operantem, quem dicimus spiritum uniuersorum. O fato é que o erro do Estagirita, e juntamente com ele, Nicolau de Cusa parece visar a "to-
comum às duas escolas rivais é o de ter acreditado ser necessária uma es- dos os filósofos": arbitror ipsum, quamuis super omnes diligentissimus
pécie ou outra de "intermediário" entre a arte divina e sua manifestação atque acutissimus habeatur discursor, atque omnes in uno maxime deficisse. "
cósmica, por terem ignorado que, "na onipotência, velle coincide com Pois é de acordo com todos que, omnes philosophos concordando (sem
exequi, visto que ars em Deus é artifex e magisterium magister. A crítica, exceção reconhecida aqui em favor dos platônicos), na base do "primeiro

190 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 191


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princípio, o qual nega que os contraditórios sejam simultaneamente ver- geia" (VI, 7, 17), O Uno é, de algum modo, "potência de tudo" (pantôn
dadeiros", Aristóteles quer demonstrar "semelhantemente, que os contrá- dynamis, V, 3, 15) e contém mesmo em si, segundo uma fórmula difícil
rios não podem ser ao mesmo tempo", desconhecendo, assim, que os opos- de traduzir, "o ser do infinito e da multiplicidade" (to einai apeiron kai
tos coincidem efetivamente in principio connexivo ante dualitatem, "an- plethos, VI, 5, 9). Em parte, sem dúvida, sob influências judaico-cristãs,
tes que haja dois contraditórios", assim como se compreende ao conceber essa "reabilitação", pelo menos parcial, do apeiron é discernível em um
o ponto-limite no qual se confundem o minimum do frio e do calor, o len- vasto setor do platonismo tardio; porém, bastante curiosamente, em 1461,
to e o rápido, a passagem do arco à corda, e mais simplesmente ainda o quando ele compõe sua Directio speculantis (ou De non aliud), é no pró-
angulus rectus, minime acutus et minime obtusus. Certamente, acrescen- prio Estagirita que o cardeal pensa descobrir uma virtus infinita imanente
ta o cardeal, os "platônicos" tiveram alguma noção, como diz Santo Agos- ao Primeiro Motor e de algum modo compartilhada pelo universo intei-
tinho, do Pai e do Filho (que correspondem à unitas e à aequalitas), mas, ro. Aristóteles, com efeito, dizia com razão que uma série infinita não po-
não tendo conhecido o Espírito, verdadeiro principium connexionis, não deria ser percorrida (recte dicebat Aristoteles in infinitum mon posse per-
puderam apreender em operação, no devir intramundano, o princípio ati- transiri), mas essa fórmula concerne somente à "quantidade como o espí-
vo da inchoatio formarum in materia rito a concebe" e, mesmo para seu autor, não podia então "excluir" o
Um dos textos nos quais Nicolau de Cusa acompanha mais de perto verdadeiro infinito "tal como é, antes da quantidade e tudo aquilo que é
o comentário procliano do Parmênides, desenvolvendo em particular a nota outro, e tudo em todas as coisas". A prova é que, "vendo" ele mesmo, in
marginal que se lê em seu exemplar (num et multitudo non in intellectu omnibus participata, essa "potência" (que Nicolau de Cusa chama, aqui,
sunt, sed est intellectus; hic omnia unum et multitudo, cod. cus. 186, foI. o non aliud), Aristóteles a ela referiu todas as coisas ut de primo matore,
33, rect.), é o tratado De principio (tomado por Lefevre como um sermão quem virtutis reperit infinitae (cap. 10).
e publicado por ele sob o título de Tu quis es). Nessa exposicão muito Exegese assimilativa e concordante, que surpreende ainda mais quando
metafísica, escrita um ano após o De beryllo, retomando, através de Proclo, se a descobre em um "tetrálogo" no qual dois capítulos inteiros irão conter "',

o Platão do Parmênides, mas também do Filebo e do Sofista, aquele que novamente uma crítica severa ao aristotelismo. Lefevre d'Étaples tinha bus-
destaca a mútua participação das formas, o autor evoca a universal co- cado em vão a Directio speculantis, que só foi publicada (por Uebinger) em
niunctio da unitas e da multitudo, e essa díade fecunda da qual pode-se 1888. Parece que o cardeal não a conservou no conjunto dos manuscritos ".
"
dizer que seja "nem unidade nem multiplicidade" (no De coniecturis, de que, apenas às vésperas de sua morte, destinou à impressão. Trata-se, no
1440, ele já observaria que a unidade só é alcançada mediante alteritate, entanto, de um texto bastante importante, não apenas pelo papel que atri-
e a alteridade mediante unitate, 11, cap.16). Ora, se concorda aqui com o bui à negação, definindo aqui a Trindade como non aliud que é non aliud
comentarista de Platão para criticar um Primeiro Motor separado, que só do non aliud - isto é, por uma afirmação feita de três apófases e que, ao
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se moveria na qualidade de fim, recusa igualmente a imagem de um de- mesmo tempo, coloca três vezes a própria alteridade que ela nega - , mas
miurgo que, contemplando um mundo todo feito de formas inteligíveis, também porque se vêem aí, conversando com o autor, três de seus amigos:
produziria, através de hierarquias descendentes, uma rede de idéias capa- o humanista Pedro Balbo, o médico português Ferdinando Matim (advo-
zes de "finalizar" a matéria indeterminada e "confusa" (De principio, ed. gado das teses peripatéticas, deferente entretanto e bastante atento às ob-
de Basiléia, p.355). É essa mesma deficiência, ainda que com outra formu- jeções e a explicações cusanas), e o secretário de Nicolau, esse João André
lação, que impedia aos filósofos (mesmo na descendência menos inapta à de Bussi que, na epístola dedicatória a Paulo II da edição de Apuleio (1469)
ultrapassagem da ratio) uma autêntica apreensão da connexio. O que lhes - aí mesmo onde declarara que seu mestre reverenciava as historiae, não
escapou foi que, "tudo considerado, não se encontra senão o infinito". apenas priscae mas mesmo mediae tempestatis - , irá defini-lo como refu-
Apesar de sua teoria dos mistos, Platão admite sempre a superioridade do tador de Aristóteles e mais curioso do que qualquer um acerca da tradição
peras sobre o apeiron; assim, não vê que a díade autêntica é aquela de duas pitagórico-platônica: philosophiae aristotelicae acerrimus disputator fuit;
infinitates, a finibilis (que é post omne ens), mas também a finiens (isto é, {... I at Platonis nostri et Pythagoreorum dogmatum ita cupidus atque stu-
Deus ante omne ens). Tivesse o Cusano podido ler as Enéadas, teria en- diosus, ut nemo magis illi scientiae putaretur intendisse (texto citado por <
contrado aí, em termos por vezes confusos, algumas intuições acerca do Wilpert em sua tradução do Non aliud, Hamburgo 1952, p.191-102).
Ato-Potência (que ele mesmo denominará, em 1460, o Possest), por exem- Ora, no início do capítulo 18, Ferdinando insiste para que o cardeal
plo, onde Plotino sugere que, situado por assim dizer, "para além da ener- diga, se tiver vontade, aquilo que, em sua opinião, "o muito sutil Aristó-

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7
teles, tantae so/licitudinis philosophus, teria querido nos mostrar". Wilpert, Abandonemos aqui o problema "científico". A reflexão matemática
que expressa tanta sollicitudo por "um tão vivo apetite de pesquisa", jul- é certamente um dos pontos de apoio da coincidentia, mas as sugestões
ga severa a resposta do Cusano. Certamente, quando lhe perguntam: "O do De staticis experimentis dizem respeito sobretudo ao emprego sistemá-
que ele encontrou?", sua resposta - "Para falar honestamente, não sei" tico da medida e da observação. Quanto aos "filósofos", ainda que a fór-
_ poderia parecer impertinente; maS a continuação remete precisamente mula da Directio seja menos afirmativa do que a do De beryllo, eles pare-
a esses textos da Metafísica que o De beryllo (cap. 12) evocará novamen- cem todos visados pela crítica do aristotelismo: verum idem fortasse de
te e que apresentam a qüididade como "sempre buscada, jamais encon- omnibus speculativis dici philosophis posset (e, dessa vez, é Nicolau quem
trada" . Ter destacado a extrema dificuldade do problema ontológico já é fala, não Ferdinando). Visto que se trata de conduzir à verdade, os spe-
sinal de uma lucidez que merece estima e, no tratado de 1463, encontrar- culantes, speculativi nessa frase surpreendem um pouco. Hegel reservará
se-á a referência a Aristóteles entre o elogio do indiano que, interrogado o epíteto (sempre elogioso) de spekulativ àqueles que ultrapassam o pla-
por Sócrates, teria declarado, segundo Eusébio, que o melhor saber acer- no da Vernunft, e incluirá nesse grupo o próprio Aristóteles, com certeza
ca de Deus é a consciência de um não-saber; e, por outro lado, as remis- não por sua lógica, mas por referência a determinadas passagens de sua
sões a Prodo concernentes a "aquilo que é de todas as coisas o mais difí- Metafísica (notadamente o texto de A 12, 1072 b que ele cita em grego co-
cil de encontrar", isto é, a imanência do múltiplo no interior da unidade mo coroação final da Enciclopédia). O Cusano toma a palavra em um sen-
pura. Talvez sem que ele mesmo o soubesse, o Estagirita pertencesse, de tido mais geral, querendo indicar que se encontraria sem dúvida uma de-
uma cert~ maneira, a essa tradição da "douta ignorância", segundo a qual ficiência análoga àquela do Estagirita nos speculantes que não foram se-
quanto quis melius sciuerit hoc sciri non posse, tanto doctiar. Assim, não não filósofos e que, conseqüentemente, não merecem a qualificação de .
é muito surpreendente o fato de que, na Directio speculantis, Ferdinand divini, porque permanecem no nível da ratio e de suas artes, incapazes de
pareça considerar no bom sentido a resposta negativa do Cusano, e, a compreender o paradoxo do a/iud que é simultaneamente ele mesmo e non
propósito dos textos aristotélicos que acabaram de ser citados por ele (Met., a/iud quam aliud; quer dizer, incapazes de alcançar - como dizia o cardeal
B 1, 996 a e Z 1, 1028 b), declare primeiramente: "Verba haec magni em sua qüinquagésima carta ao abade de Tegernsee - a "forma de união !'I r
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philosophi ubique sunt aeesti manda. Chocar-se contra um muro é menOS absolutamente simples, ubi ablatio coincidit cum positione (in Vansteen-
erro do que paralisia, e Aristóteles, a esse respeito, compartilha o destino berghe, Autour de la Docte ignorance, Münster, 1914). Contra eles, no "I: :'
comum ("non erravit, sed ibi, sicut alii homines, cessavit). Contudo, se entanto, o cardeal não se refere a nenh uma experiência mística, mas a uma
existe erro, esse é o de ter acreditado ser possível constituir uma ciência argumentação de caráter dialético. Se Aristóteles, diz ele, se recusa a se
real deste lado do limite correspondente à exclusão mútua dos opostos, elevar até um principii principium (ou substantiae substantia), é porque ""
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isto é, apenas no terreno da ratio. É preciso convir aqui que as fórmulas sua extensão abusiva do princípio de contradição o impede de colocar a :.li
da Directio, sem apelarem a uma fé revelada, evocam um oculus mentis contradictionis contradictia, isto é, de conceber unitariamente os opostos,
acies que pertence mais à linguagem da mística do que à da filosofia (e a anterioriter, sicut causam ante effectum. E se é verdade que no florilégio
impressão se confirma pelo lugar que ocupam, no tetrálogo, o Corpus de textos dionisianos dos capítulos 14-17, que figuram alguns excertos das
areopagiticum, comentado e citado ao longo de quatro capítulos). À lógi- Hierarquias e da Teologia mística, os mais numerosos vêm dos Nomes
ca laboriosa e incompleta do Esragirita, Nicolau de Cusa, que celebra a divinos; sob diversas formulações, eles concernem ao unum supersubs-
"facilidade do difícil", opõe a simplicidade de uma "visão" que apreen- tantiale, inominável raiz de todas as coisas e que "antecipadamente" as
deria os "contraditórios" (aqui o autor não fala apenas de "contrários"), contém todas, sem ser jamais, entretanto, "outro que não ele mesmo" (o
na raiz mesma de sua futura oposição. Lamentando, sem dúvida, tanto a que, transposto para o vocabulário do tetrálogo, se torna, segundo uma
longa fadiga de seus próprios estudos, quanto o trabalho perdido por Aris- anotação marginal na Teol. plat., 11, 3, unum est nihil aliud quam unum,
tóteles, Ferdinando imagina que o Estagirita, tivesse ele mesmo descober- -cod. cus. 185, in Wilpert, loco cit., p. 203·204). Visto, porém, que Dio-
to esse "segredó", teria sabido transmiti-lo facillimis, clarissimis ac pau- nísio, como sabemos, "repete" Platão, e que mais tarde (segundo a cro-
cissimis verbis (cap. 19), o que não é o caso, convenhamos, de Nicolau de nologia ainda admitida pelo Cusano), Prado refere-se por sua vez à mes-
Cusa, sempre em busca, até suas últimas obras, de novas formulações, que ma doutrina, não seria necessário pensar que o autor do Parmênides (com-
não são fáceis, daras ou breves e que, de qualquer modo, não poderiam parado, no capítulo 24, ao próprio Moisés) escaparia inteiramente à fa-
ser substituídas pelo antigo organon na prática dos filósofos e dos sábios. lha comum aos "filósofos especulativos"?

194
Maurice de Gandillac 1 Gêneses da Modernidade 195
R'
:1

É bem isso o que sugeririam as últimas páginas da Directio. Parece texto no qual ele retoma (com numerosas referências a outros filósofos) o
que Prodo alcançou essa ascensão até a intellectibilitas (que, segundo o paralelo entre Platão e Aristóteles. No "prólogo", o autor, que se sente en-
idiota do De mente o próprio Aristóteles tinha "talvez" visualizado); pelo velhecer, remete significativamente a duas de suas obras antigas, o De quae-
menos, passando do sensível à alma e da alma ao intelecto, ele compreen- rendo Deum e o De coniecturis (um redigido e o outro retomado e corri-
deu que era necessário remontar até um princípio que foi verdadeiramen- gido em 1445, logo, dezoito anos antes); a simples aproximação dos títu-
te "primeiro" (o Cusano, naturalmente, ignora as fontes plotinianas do los resume todo o projeto cusano. Contudo, enquanto o Compendium
esquema, cf. En., V, 1, 3 e 6, VI, 7). A luz que irradia desse princípio asse- (também de 1463) não contém basicamente nenhuma referência histórica,
melha-se à "revelacão" de Deus em suas obras, tal como a evoca São Pau- a De venatione sapientiae é inspirada em uma leitura de Diógenes Laér-
lo em Rom., 1, 19 (cap.20). E, sem duvidar que a "Teologia de Platão" cio, e, em um tom menos vibrante do que no De beryllo (no qual ele apre- •
mereça verdadeiramente esse título, é ao mestre da Academia que Nicolau sentava seu "berilo" como um meio seguro de "dirigir o fraco intelecto
atribui, revelationis via, a "percepção" in mente do autêntico rerum subs- de cada um" para que ele "se aproxime mais da verdade", capo 1), é aqui
tantia (cap. 21). Verdade no entanto secreta, que Platão não comunicou de forma "tímida e reservada" que Nicolau associa, diz, suas próprias
jamais a não ser por palavras encobertas, pois ela permanece em si ina~ venationes àquelas dos" diversos filósofos" .
cessível "a todos os modos de visão", até mesmo (dirá o Cusano no capí- Tendo lembrado, como nos primeiros diálogos do Idiota, que a sa-
tulo 22) através da pessoa e do ensinamento de Cristo. O termo "revela- bedoria é o alimento do intelecto (comparada ao sopro vital dos pitagóri-
ção" não remete então aqui ao "depósito de fé" no sentido em que os te- cos, ao pneuma do Pórtico, e até mesmo às exalações do Oceano com o
ólogos o entendem comumente, mas a uma descoberta "supra-intelectual" qual a mitologia alimentava os astros divinizados), o Cusano enfatiza que
cujo método de coincidência fornece a chave. Apesar das diferenças bas- o instinto natural dos vivos os orienta rumo à alimentação que lhes con-
tante evidentes, essas fórmulas já fazem pensar na geoffenbarte Religion vém, o que Platão atribui à preexistência das idéias. Mas seria necessário,
de Hegel. Em todo caso, os textos "revelados" de São Paulo demonstram, para tanto, fazer dessas idéias "exemplares exteriores às coisas individuais"? ":1
na Directio, o mesmo tratamento exegético que os de Prodo, e são tradu- Sabe-se a esse respeito qual é a posição constante do autor. O que lhe in-
zidos semelhantemente no vocabulário do non aliud. teressa, em sua presente perspectiva, é sobretudo a informação transmiti-
O que significa dizer que, por eles mesmos, permanecem "inadequa- da por Diógenes (Vidas dos filósofos, m, 64), segundo a qual a idea pla-
dos"; de forma que os capítulos finais do tetrálogo, em qualquer nível que tônica é simultaneamente unum e multa, quies e motus e a exegese dessa
situem o divinus Piato, não contradizem de forma alguma as reservas já doutrina (vinda naturalmente do Sofista), que permitiu que Proclo escre-
freqüentemente expressas pelo cardeal, e retomadas de maneira explícita vesse (Teol. Piat., IV, 34) que, em virtude de sua conexão com o mundo
no capítulo 10 da Directio. Qualquer que tenha sido sua intuição primei- das Idéias, as realidades singulares deste mundo encontram-se em ligação ''I
,'I'
ra, Platão, no Timeu, equivocou-se ao situar, entre Deus e as coisas, um direta com o divino. Sem dúvida, "maldosos" intérpretes (pensamos, cer-
mundo de modelos puros. Pode-se mesmo pensar, como sabemos, que ao tamente, em Wenck) vêem em tudo isso grandes perigos para a fé, mas o
fazer depender todo o cosmo de um único motor, de "potência infinita", Cusano afirma que tais fórmulas, se são "bem compreendidas" (si bene
Aristóteles, nesse ponto, se aproximava mais da verdade. Interrogado, no intelliguntur), se "aproximam" bastante da verdade (cap. 1).
capítulo 17, acerca de David de Dinant - que chamava Deus Hyle, Nous Elas não possuem, contudo, um valor exclusivo e, no momento, não
e Physis, e definia o próprio mundo como "Deus visível" - , Nicolau re- se trata mais de excluir de uma visão cada vez mais abrangente a aristotelica
conhece o valor positivo de todas essas fórmulas, sendo o seu erro apenas secta. Se o Estagirita apresenta a lógica como "o instrumento mais exato
o de se prenderem ainda ao plano do quid e do aliud. Assim, pode-se pen- para a busca tanto do verdadeiro quanto do verossímil", esta é uma asserção
sar que, se os místicos platônicos pressentiram melhor do que os outros duplamente justificada, e porque a sabedoria, nós o sabemos, "brilha em
"especulativos" a unidade secreta do principium connexionis, nenhum variadas razões, as quais participam de forma variada da própria ratio",
entretanto, como dizia expressamente o Cusano no capítulo 25 do De be- e, do mesmo modo, porque essa razão deve procurar primeiramente no
ryUo, compreendeu plenamente o papel do spiritus, nem em nível da Uni- sensível o "alimento" que em seguida ela poderá oferecer ao intelecto. ,<
trindade nem no próprio mundo como vínculo ativo do mesmo e do outro. Assim, portanto, é efetivamente à luz de uma logica (em si inata) que cada
Perspectiva confirmada pelo De venatione sapientiae, um dos qua- um procura, mas com "grandes diferenças", a mesma verdade. E é signi-
tro tratados escritos pelo cardeal um ano antes de sua morte, e o último ficativo que, em um tratado que dá tanto lugar à dialética do posse facere,

196 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 197


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do posse fieri e do posse factum (ternário de inspiração certamente lulliana), potentia in actum et omne actu exsistens non caret boni participatione. [... J
o Cusano remeta antes de tudo à frase do Estagirita dizendo que "nada Omne enim eligibile sub ratione boni est eligibile,etc.
ocorre que seja impossível" (Fís., H 9, 241 b), e do que se deve inferir que Sem dúvida Platão discerniu melhor, não apenas que Deus governa
o "poder ser feito", antecedente a tudo o que "é feito", remete ao ato puro, todo o universo e não exclusivamente os coe/estia (cap. 8), mas que esse
como "causa absoluta", mas contém ele mesmo, enquanto aeuum creatum universo é "engendrado" e que o tempo nasce com ele (cap. 9). Aristóte-
e, entretanto, perpetuum, em estado de "complicação", a "natureza" de les, entretanto, possui seus méritos próprios: além de sua justa crítica das
todos os singulares que se "desdobram ',' no tempo segundo a Providência idéias separadas, e de sua descrição do intelecto como produtor de con-
divina (caps. 2 e 3). Certamente essa transposição agostiniana do plotinismo ceitos, ao mostrar o caráter mutável dos transcendentais, ele reconheceu
nos afasta bastante de Aristóteles. E, na continuação do tratado, os exem~ de forma implícita o princípio superior que é ao mesmo tempo causa unius
pIos geométricos, primordiais no De doeta ignorantia, reencontrarão seu e entis et bani (cap. 8). É verdade que Moisés, falando "antes dos filóso-
papel (notadamente no capítulo 5). Contudo, no capítulo 4, é a própria fos" - e para quem sabe decifrar as figuras enigmáticas do "céu", da "ter-
criação da "arte silogística" que o cardeal toma como exemplo da fecun- ra" e da "luz" - percebeu melhor do que ninguém a relação inicial entre
didade intelectual, tal como se exprime na ligação de duas proposições no os três posse: e que, sem ter lido o Gênesis, "platônicos e estóicos" (se-
interior de uma terceira, e ele enfatiza que um raciocínio desse tipo con- guindo Anaxágoras) souberam denominar Iogas, mens e opifex esse "Verbo
tém necessariamente três termos, e os associa apenas segundo três figuras. de Deus que a natureza considera para tudo que seja feito" (Verbum Dei
É essa mesma "triplicidade" que ele pensa encontrar "analogicamente" em ad quod natura respieit ut fiant omnia), e que é ele mesmo Deus (cap. 9).
uma ars creativa constituindo a harmonia do mundo a partir de três ter- E, entretanto, é ainda ao actus purissimus do Estagirita que remete esse
mos inseparáveis: ser, vida, inteligência. mesmo texto para designar o posse facere da omnipotentia.
No capítulo 8 (Quomodo P/ato et Aristoteles venationem fecerunt), Conseqüentemente, não é de surpreender que no capítulo 29 (ou
o Cusano coloca em relevo (e no mesmo plano) os dois "príncipes da filo- Epilogatio), reunindo uma vez mais "os dizeres dos platônicos e dos peri-
sofia". Se o primeiro é chamado "maravilhosamente circunspecto" (miro patéticos", o cardeal repita que só se encontrará a intuição do possest,
modo circumspectus), por ter visto que as coisas superiores estão nas in- unidade primordial do ser e do poder, com a única condição de "bem
feriores "no modo da participação", estas naquelas "no modo da excelên- compreendê-los quanto ao princípio e à causa". Mas não é igualmente
cia" (segundo Diógenes, III, 13), o segundo é qualificado de acutissimus de surpreender - pois praticamente não cessa a oscilação entre as duas
porque discerniu em cada processo físico a necessidade de um recurso úl- atitudes - , que ele enfatize com um particular cuidado o quadro de caça
timo à causa primeira, contendo eminenter tudo o que age em seus efeitos dos "platônicos", lembrando que para eles (Segundo Prado, Teo/. plat.,
(aqui, ainda, a fonte é Diógenes, V, 32). E o projeto conciliador se impõe m, 9) "tudo é feito de finito e de infinito", mas também qual o lugar que
bastante para que o autor, esquecendo-se do que havia dito em uma ou- deram à imagem do Sol, que é a melhor "semelhança da sabedoria". De
tra passagem quanto à recusa aristotélica de um principii principium, atribui modo que em companhia do magnus Dionysu, bem próximo do theologus
pela mesma razão aos dois filósofos o fato de terem aberto o caminho à Gregorius (Gregório de Nazianzo, não Gregório de Nissa como acredita
ultrapassagem simultânea do ser, da vida e da inteligência, por referência, Wilpert) e mesmo do divinus Paulus, nosso magnus Plato reencontra Sua
pelo menos implícita, a uma causa causarum que seja conjuntamente "ser primazia; alcançando com ele seu apex, a filosofia "especulativa" junta-
entre os seus, vida dos vivos e entelecto dos inteligentes" (ens entium, uita se então à sabedoria teológica. Mas, como bem sabemos (e o Campen-
uiuentium e intellectus intelligentium). Trata-se aí, bem entendido, de um dium, contemporâneo do De uenatione, o repete), mesmo nos textos sa-
Estagirita fortemente "platonizado" e, inversamente, a exposição do plato- grados e em seus comentadores mais autorizados, os signos permanecem
nismo é aqui rica em termos aristotélicos, como facilmente demonstram inadequados e intrinsecamente conjecturais. Ao apresentar a "Douta Ig-
as seguintes frases: "Platão considerava que todos os entes, inclusive os que norância", o Cusano falava de seus "ineptiae, isto é, formulações "inap-
não estavam ainda em ato, mas somente em potência, são considerados tas" para dizer o indizível. Ele termina agora seu discurso com uma nova
bons pela participação no único Bem. Só há, com efeito, passagem da confissão de humildade e com um apelo àqueles que, lendo-o, irão mais
potência ao ato, e existência em ato pela participação no Bem". (Plato do que ele (e que seus próprios mestres) em um caminho realmente sem
autem [... ] considerabat omnia entia atque etiam nondum actu entia, sed fim: "Penso, assim, ter explicado de minhas caçadas o conceito bruto e
tantum potentia, participatione unius boni bona dici. Processus enim de não tê-lo plenamente depurado tanto quanto me seria possível, subme-

198 Ma urice de Gandillac

I Gêneses da Modernidade 199


"!

tendo tudo isso a quem irá lançar um melhor olhar sobre essas elevadas x. O"RENASCIMENTO" PLATÔNICO
realidades." (Per haec arbitror mearum uenationum rudem et non plene SEGUNDO MARSILIO FICINO*
depuratum conceptum quantum mihi possibile fuit, explicasse, omnia
J

submittens me/ius haec alta speculanti.)

Quando em 1439 desembarcaram na Itália os enviados bizantinos


que vinham negociar com a Igreja romana uma reunificação que a imi-
nente ameaça turca parecia impor, Marsilio Ficino era então apenas um
menino de seis anos de idade, mas ocorreu justamente que seu futuro
protetor, Cosme de Médicis, gonfaloneiro da república florentina durante
aqueles últimos seis anos, fosse encarregado de recepcionar os represen-
. tantes da "ortodoxia". E ocorreu, também, que estivesse entre eles, mui-
to paradoxalmente, o chefe da tendência "helenista", esse Gemisto Pletão,
cujo encontro com Cosme, segundo Ficino, teria, pela virtude de uma
propícia configuração astral, condicionado a fundação da Academia pla-
tônica de Careggi. Pelo próprio nome que escolhera, esse singular perso-
nagem se apresentava como sucessor de Platão e de Plotino. Com sua
I morte, um outro grego, João Bessarião, que se tornaria amigo de Nicolau
• de Cusa e, com ele, cardeal da Cúria, escreveria que, forçada pelos "de-
cretos de Adrasto" a voltar à terra, a alma do grande Platão "teria recupe-
rado corpo e vida" em Pletão 1. Singular asserção da parte de um teólo-
go, ele mesmo menos paganizante que Gemisto, mas, para além da ênfa-
se retórica e das conveniências familiares (Bessarião se dirigia aos filhos
do velho defensor do "helenismo"), a fórmula ressalta um dos aspectos
do "Renascimento" tal como o concebiam Ficino e seus amigos, pois a
"metensomatose" aqui não é senão uma maneira de figurar o autêntico ,.
ressurgimento de um passado exemplar. ,,'
Nascido em Constantinopla por volta de 1360 e dotado de uma tallon·
gevidade que permitiu que perdesse, por apenas dois anos, a possibilidade
de ver sua pátria sucumbir aos golpes do exército otomano, Gemisto era ini-
ciado em Cabala e conhecia os Oráculos caldaicos, erroneamente atribuí-
dos a Zoroastro.1uiz imperial em Mistra, na fortaleza erguida perto de Esparta
pelos cruzados, é seguramente aos "platônicos" que ele associa sua "restau-
ração" helênica e, nesse sentido, Ficino é, efetivamente, de sua linhagem, mas
é necessário precisar que a seus olhos o filósofo das Leis (título que Pletão
retém para sua própria "Suma" neopagã) só faz prolongar uma tradição muito
antiga, a de um veio de sabedoria mais ou menos secreto, vindo do Oriente,
e que teria sido comunicado a uma elite de judeus e de gregos.

>:- Versão resumida de uma comunicação apresentada no Colóquio Platônico de

Beaulieu-sur-Mer, setembro de 1990.

200 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 201


Acreditando, como os estóicos, na universalidade de "noções co- Quando Ficino, especialmente em uma carta a Paulo de Middleburg
f
u
muns" que todo homem sensato deve reconhecer, contanto que tape os (Opera, Basiléia, 1576, II, p.944), descreve seu século como uma verda-
ouvidos às "inovações de alguns sofistas modernos" ("sofista", na lingua- deira "idade de ouro", ele não pretende absolutamente glorificar as no-
gem codificada da época, significa, em geral, "escolástico", isto é, defen- vas descobertas (é na Alemanha, não em Toscana, que se desenvolve a
sor de uma teologia estrita, fechada ao legado antigo - e é bem signifi- imprensa, e as viagens além-Atlântico do genovês Cristóvão Colombo
cativo que o termo aqui esteja ligado a "moderno", qualificativo então pouco interessavam a Marsilio), mas sim saudar a "invenção" - no sen-
aplicado sobretudo aos aristotélicos nominalistas, tão fortemente hostis tido próprio da palavra quando esta designa o encontro de um tesouro há
ao idealismo platônico), Pletão e seus amigos de Mistra desejavam quase muito escondido - das artes e disciplinas esquecidas ou desprezadas, gra-
abertamente a ressurreição, ou o despertar, mas de qualquer modo a re- mática e retórica; mas também escultura, pintura, arquitetura e, bem en-
abilitação, de uma espécie de politeísmo, sem dúvida depurado das "fic- tendido, essa "sabedoria" que ele vê agora, às margens do Arno, ligada à
ções poéticas" que a República denUfl.ciava em Homero e em Hesíodo, eloqüência (à qual se acrescenta, sem qualquer desmerecimento, a união
mas raramente dando lugar, apesar das indispensáveis prudências lingüís- entre a virtude da prudência e a renovação da arte militar, e, de resto, antes
ticas, às "visões proféticas" das religiões reveladas. Em seu opúsculo acer- as antigas "máquinas" de guerra do que o uso novo da pólvora).
ca das Diferenças entre Aristóteles e Platão, escrito para esclarecer os la- Ressurreição da fênix imortal, despertar da Bela Adormecida, esse tipo
tinos, o autor das novas Leis (do qual lêem-se apenas os fragmentos, tendo de "renascimento" é simultaneamente uma ponte lançada através das épo-
a obra sido queimada pelo patriarca Genádio) reconhece a primazia _ cas e - como bem notou Burdach - a transposição de um tema cristão, o
se não a plena transcendência - do "Uno", definido à maneira neopla- de uma regeneração do indivíduo por uma água batismal que o faz, de al-
tônica como "sobre-essencial". Mas, antes, insiste no modo intermediá- gum modo, "renascer". Com certeza o sacramento assume, aqui, aspectos
rio das "Idéias", às quais parece atribuir um estatuto de autênticas "cria- que mais de uma vez - sobretudo quando Ficino redescobre Lucrécio-
doras", no quadro, entretanto, de uma "ordem" cósmica em que tudo tem inquietam o bom bispo Antonino, que era prior de São Marcos no tempo
seu lugar desde sempre, incluindo-se aí os "deuses do Tártaro, filhos ile- em que Fra Angelico cobria de afrescos as paredes do convento dominicano.
gítimos de Zeus" , encarregados de administrar os reinos vegetal e animal, Porém - melhor do que Pletão - o renovador da Academia, que logo acede,
onde o conjunto dos seres formaram uma cadeia contínua, o Sol e o Ho- ele mesmo, ao sacerdócio, evita opor à sua bastante sincera fé cristã aquilo
mem desempenhando os papéis de mediadores privilegiados. Retornan- que irá em breve designar como "teologia platônica".
do à sua pátria após o concílio, Pletão devia - muito simbolicamente- Posição delicada, que será também, em uma outra ambiência, a de
voltar para sempre para a Itália, pois o condottiere Malatesta, tomando um Erasmo e de um More. Encontrar o sentido mais puro do Evangelho
dos turcos seus restos mortais, interessa-se em transfer"i-los para Rimini, - sem com isso sacrificar a liberdade humana a uma rigorosa predestinação
onde repousam ainda no sarcófago que foi instalado, não sem motivo, no - não é ainda uma maneira de "invenção" paralela à redescoberta de
lado de fora da catedral. antigas estátuas, à restauração de uma filosofia despojada de seus ouro-
Há aí, sem dúvida, uma série de "signos" que fazem de Pletão o inspi- péis "bárbaros"? O que poderia freqüentemente enganar é o uso de uma
rador e, de um certo modo, o patrono do Renascimento florentino, aque- retórica impregnada de paganismo e, mais ainda, a importância atribuída
le de Ficino e de Pico. Como o mestre de Mistra, às vezes tão inquietantes pelos nossos florentinos aos horóscopos e às conjunturas astrais. Se, para
quanto ele, os protegidos dos Médicis - em torno de uma "Academia" Ficino, o encontro de Cosme com o velho Pletão parecia quase um mila-
solenemente instaurada, na qual diante do busto de Platão ardia, diz-se, gre, em uma segunda vez, no momento em que ele termina para Cosme
uma chama eterna - pretendem não apenas restaurar essa "elegância sua tradução latina de Platão - a primeira tradução completa e a que foi
ática" , louvada na inscrição funerária em honra de Ficino, mas, mais es- por muito tempo a autorizada - , "admirará" (no sentido forte do termo)
sencialmente, "fazer renascer o dogma platônico". Este é, efetivamente, que o "heróico espírito" do jovem conde de la Mirandola, nascido como
para Cosme, o elemento fundamental dessa palingenesia da antiga Hélade ele sob o signo de Aquário (sendo então, além disso, Saturno "senhor do
tal como a define Agnolo Poliziano, que elogia Marsilio por seu êxito na céu") se apresente a ele para encorajá-lo a prosseguir em sua obra, ou seja,
tarefa na qual o grande Orfeu falhara: trazer dos Infernos uma "Eurídice", a de traduzir, agora, as Enéadas plotinianas (Opera 11, p.491).
cujo nome significa, etimologicamente, mais do que beleza plástica, "am- Apesar de seu gosto pela Cabala, cuidadosamente cristianizada po-
plo julg~mento". rém, o quase onisciente Pico permanecerá, mais nitidamente que seu an-

202
,1;-:·"-
Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 203
~,
tecessor Marsilio, atento às continuidades históricas. Sempre preocupado dância entre Moisés e Platão, e uma Confirmação do cristianismo pelo
em relacionar o que chama a "dignidade do homem" à defesa do livre- socratismo, tanto mais preocupado em difundir a boa palavra quanto mais
arbítrio (o que o conduz a uma crítica da astrologia), ele saberá apreciar inquietante se fazia o ruído das bombardas no momento em que os turcos
o estilo "parisiense" dos escolásticos, e conciliará o aristotelismo ao plato- continuavam a avançar em direção ao norte e ao oeste, enquanto o ban-
nismo, considerando fútil a discussão acerca dos respectivos primados do queiro Lourenço defende pelas armas, contra o papa Sixto IV, o privilé-
Ser e do Uno (que com o Verdadeiro e o Bem, transcendental mente enten- gio de exploração das minas de alúmen.
didos segundo a regra da analogia, não constituem, como as quatro cau- O que significa, nessa perspectiva, a própria idéia de "Renascimen-
salidades do Estagirita, a verdadeira chave do "Quaternário" pitagórico?). to"? Lutando contra um determinismo astrológico que ele imputa ao aris-
Ficino é muito mais hostil a tudo o que vem de Aristóteles e não tolera a totelismo árabe, Ficino parece associar, ainda e sempre, às conjunções de
aspereza lingüística da Idade Média - essa media tempestas que exata- estrelas e de planetas, para além dos episódios de sua própria vida, a reno-
mente o antigo secretário do Cusano, João André de Bussi, enaltecendo vatio veterum que deveria conduzir Florença e o mundo a uma nova idade
seu mestre morto há pouco, por ter lido todos os livros, os velhos e os de ouro. Às críticas de um bispo húngaro contra sua adesão ao platonis-
recentes, mas igualmente aqueles da época intermediária, delimita clara- mo, ele responde que seu propósito é o de encontrar, no interior do "gênero
mente, em 1469, distinguindo-a tanto do mundo dos Antigos (prisci) quanto comum da religião", o que ele denomina "a melhor espécie". Com efeito,
do dos moderni ("modernidade" que certamente não é mais nesse momen- jamais o brilho do Sol é totalmente ofuscado, mas a sabedoria fundamen-
to, e será mesmo cada vez menos, a via moderna dos ockmamistas). tai, da qual os textos de Platão são um testemunho incomparável, tem neces-
No momento em que Bussi define assim (e batiza) o período de obs- sidade de ser periodicamente "renovada". Será preciso pensar que essas
curidade do qual a Itália do século XV, mais nitidamente do que qualquer renovações sejam anunciadas pelos astros? Certos árabes ligaram o judaís-
outra parte da cristandade, tem o sentimento (ou a ilusão) de emergir, Ficino mo a Saturno, o cristianismo a Mercúrio e o Islã a Vênus (opinião que evo-
traduz hinos árficos e vários tratados do Corpus hermeticum, mas sobre- cava Nicolau de Cusa, sem endossá-la, em um de seus primeiros sermões).
tudo mais de dez Diálogos platônicos. No ano anterior, diante de Louren- Ao que Ficino objeta que "as mudanças de religião são bem mais raras do
ço o Magnífico, reconciliando-se com um uso religioso caído em desuso desde que os encontros entre os astros"; para ele, não mais do que o eclipse que
a morte de Porfírio, os hóspedes de Careggi celebraram muito solenemente acompanhou a Crucificação, a estrela que guiou os Magos para Belém não
o suposto aniversário de Platão. Marsilio comentou o Banquete e parece pertence ao curso "natural" dos corpos celestes (Opera I, p.818)2.
que ele desejava cada vez mais se identificar de algum modo ao mestre, que Mas isso significa admitir que a "alma astral" - avatar da anima
ele descreve, em sua Vita Platonis, com traços que se parecem com os seus. mundi platônica (a mesma que Abelardo quis identificar ao Espírito San-
Reafirmemos, contudo, que por mais fiel tradutor que ele deseje ser to) - se exprime, de tempos em tempos, como que por intermédio de fe-
(e que seja, realmente), lhe é tanto menos penoso conciliar o platonismo nômenos significativos, cujos únicos intérpretes são os raros hermeneutas
com seu cristianismo, pois, para ele, o autor do Fédon não é apenas o que participam, eles mesmos, do caráter "divino" das almas astrais. Atra-
herdeiro de Pitágoras e do Trimegisto, mas (sem o saber) o discípulo de vés da sucessão dessas espécies de teofanias mediatizadas, poder-se-ia fa-
Moisés. Quando apresentar ao Magnífico, em 1484 (dez anos após sua lar de um verdadeiro progresso no qual a roda do tempo não traz, sob a
ordenação), o conjunto enfim concluído de suas versões comentadas dos forma de "renascimento" ou de "despertar", senão o simples retorno do
Diálogos, enaltecendo Platão por ter sabido levar todas as partes da filo- mesmo? É preciso observar que, nesse ponto, os textos de ficinianos não
sofia, ética, lógica, matemática e física, "à contemplação e ao culto de são muito claros. Os mais antigos parecem a atribuir a Hermes, a Zoroastro,
Deus", ele anunciará que a Academia deve se tornar o lugar no qual, "de a Pitágoras o mesmo saber que encontrarão em seguida Platão e Plotino,
forma agradável e fácil", os jovens sejam iniciados à arte de dissertar à luz e que diz respeito às revelações de Moisés. A partir do De christiana reli-
dos preceitos morais, ao passo que os homens feitos aprenderão a disci- gione, Marsilio se afina mais com a abordagem bíblica. Inclinando-se a
plina "tanto dos assuntos privados quanto da coisa pública" e que os ido- acreditar que o antigo legislador iraniano foi filho de Cam (outras vezes
sos "esperarão a vida eterna" (Opera 11, p.1130). Mesmo o De Christiana discípulo de Abrãao), ele chega a sugerir, retomando um tema de Bruni,
religione (1474) invocava a verdade platônica, descrita, é verdade, como pouco compatível com sua própria depreciação de Aristóteles, que o Esta-
"reflexo lunar do verdadeiro Sol". Retomando o combate de Petrarca girita era judeu, assim corno o "bárbaro" que, segundo o Epinomis, "in-
contra os paduanos, Ficino escreve, de uma só vez, em 1481, seu Concor- ventou a filosofia" . Entretanto, ao término de urna discussão em Pico della

204 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 205


P
6
Mirandola, entre médicos "hebreus" e um de seus correligionários con- racterizam O conjunto do que nós chamamos "o Renascimento", mas
vertido, Ficino remete finalmente a Platão como ao "mestre não vencido cujos aspectos (para nós arcaicos), que ele imagina constitutivos do úni-
de nossa santa religião". Graças a ele, e graças igualmente a Próculo e a co corpo de verdade e, por esse motivo, reviviscentes em cada novo ci-
lâmblico, os filhos de Israel devem aprender, como outrora Fílon, a com- clo, Marsilio separa.
preender melhor a mensagem de seus profetas. Ainda que pouco progressista no sentido moderno da palavra, essa
Na linha de certas exegeses de lndividuum und Cosmos in der Phi- filosofia permanece, no conjunto, otimista. Sem dúvida o próprio Ficino
losophie de Ernest Cassirer (concernente a uma suposta "aspiração faus- se diz de temperamento melancólico (não será essa, segundo o Aristóteles
tiana para o infinito" , dificilmente discerníve1 em autores como Ficino ou, dos Problemas, a característica comum a todos os intelectuais?), mas pensa
após ele, Charles de Bovelles), André Chastel destaca as passagens da Theo- que, através de um bom regime de vida (aquele que, na qualidade de mé-
logia platonica, especialmente em XIII, 3, nas quais a vis hominis aparece dico, ele descreve cuidadosamente em De triplici vital, o homem pode lu-
como "quase semelhante à natureza divina" porque, nascendo mais de- tar contra os efeitos maléficos da conjunção entre Marte e Vênus e, assim,
sarmado do que os outros animais, o homem criou habilmente para si os se encontrar em harmonia com o conjunto de mediações hierarquizadas
meios técnicos de subsistir. Tema banal já desenvolvido no mito de Pra- através das "almas" vegetais e animais que constituem um universo qua-
tágaras e retomado, desde Gregório de Nissa, por vários autores cristãos. se mágico. Melhores do que outras, entretanto, algumas regiões privilegia-
Ficino enfatiza preferencialmente os aspectos espirituais da civilização, e das, em períodos propícios, reatando ligações com uma eterna platonica
enaltece particularmente tudo o que manifesta a vocação específica de uma theologia quase indiscernível da christiana religio, podem chegar ao "es-
alma imortal. Se evoca naturalmente as estátuas falantes e andantes dos plendor do Bem soberano" - pela graça do Amor que "se oferece a quem
egípcios e o planetário de Arquimedes (sem fazer nenhuma alusão às des- quer que o procure", ao passo que as outras divindades (numina) se mos-
cobertas de seu tempo a não ser por uma referência, mas bastante insis- tram "apenas e aos poucos àqueles que as procuram por muito tempo"
tente, à construção de relógios e de autômatos), é preciso notar que Zêuxis - essa "via agradável e fácil" que Marsilio sonhava abrir, em sua nova
é exaltado por ter imitado a natureza a ponto de enganar os pássaros, e Academia, a todos os beneficiários de uma nova idade de ouro.
que a engenhosidade da mens humana consiste, aqui, apenas em subme-
ter a matéria a formas preexistentes no intelecto divino (Theol. plat. X,
20), e absolutamente em não criar algo novo.
Em 1463, ao apresentar sua tradução do Poimandres, Marsilio evoca NOTAS
o tempo em que, segundo ele, teriam vivido simultaneamente Moisés,
Atlas e Prometeu, suposto antepassado de Hermes. Mais tarde acrescen- 1 Ver F. Masai, Pléthon et le pléthonisme de Místra, Paris, 1956, p. 306 sq.

tará Zoroastro à sua lista, mas sem infletir para um dualismo qualquer a 2 Ver Nicolau de Cusa, Opera omnia, XVI, 1, éd. Haubsr, Hamburg, 1970, Ser-
mo 2, p. 21 sq.
"única religião, sempre semelhante a ela mesma" que ele quer discernir
por toda parte. Mitra, Ormuzd e Ahriman não são, para Marsilio, senão
"os três princípios que Platão denomina Deus, Espírito e Alma" (De amo-
re 11, 4). Assim, bem mais do que no De pace fidei do Cusano, parece aqui
excluída a própria noção de sucessivos "renascimentos", em que cada um
significaria um autêntico progresso. Se o cristianismo é apresentado aqui
ou lá como "fé nova", resta que seus dogmas próprios, julgamento dos
mortos, ressurreição, vida eterna, já sejam anunciados pelos antigos pro-
fetas, judeus ou gentios, e deve-se convir que a imagem que deles oferece
Ficino - na qual a narrativa bíblica da Criação é entendida como uma
simples multiplicação da Luz original em potências que movem as órbi-
tas celestes, comunicando sua força unitiva aos quatro elementos - per-
manece, quanto ao essencial, bastante próxima de uma koine plotino-
estóica, cujos temas fundamentais (panpsiquismo e simpatia universal) ca-

206 Ma urice de Gandillac Gêneses da Modernidade 207


XI. VIAGENS ALEGÓRICAS E UTÓPICAS
(DANTE, MORUS, RABELAIS, CAMPANELLA, BACON)

Na imaginação de Dante, o Ulisses homérico, tendo escapado dos sor-


tilégios de Circe, ao invés de tomar o caminho para fraca, quer alargar seu
horizonte, para além do pequeno Mediterrâneo 1. Para descobrir um mun-
do mais amplo, ele conduz seus velhos companheiros por esse Okeanós, onde
- graças aos mesmos textos de Aristóteles que, quatro ou cinco gerações
depois de escrita a Divina Comédia, iriam inspirar Colombo - os leitores
do "mestre daqueles que sabem" pressentiam que essas correntes perigosas,
algum dia, conduziriam um navegador audaz sobre uma Terra indiscutivel-
mente esférica até as índias, ao mesmo tempo ocidentais e orientais.
É possível que Ulisses, pregando aos marujos enfraquecidos por um
descanso muito prolongado, tome por um mondo senza gente (v. 117) esse
oceano supostamente sem ilhas nem margens próximas para onde os cha-
ma a grande aventura, mas trata-se também dessas terras desconhecidas
cuja exploração se oferece a todo ser humano digno de sua vocação. De
fato, aos velhos companheiros que a feiticeira outrora transformou em
porcos, o herói dessa expedição fictícia e verdadeiramente insensata ape-
la com vigor para que não vivam como animais e sim como devem fazer
aqueles que são dotados de virtute e conoscenza (v. 119-120).
Os benefícios que o Ulisses de Dante espera obter de sua última ex-
pedição são antes morais que econômicos: manifestar sua audácia, sua força
de caráter, a vocação do homem novo em vias de conquistar o comando e
a posse do mundo, mas também sua hybris, pois Dante, afinal de contas,
não escapa dos velhos tabus sobre o Okeanós intransponível.
Após cinco meses de navegação para o sudoeste no sentido contrá-
rio à luz que vem do Oriente, mas na própria linha do percurso solar (dietro
ai Sol), aumentando a imprudência por um desvio progressivo em direção
à Antártica, uma vez que o naufrágio vai ocorrer nos antípodas de Jerusa-
lém, em algum lugar no Oceano Índico, Ulisses em vez de encontrar uma
ilha povoada por bons selvagens ou por sábios utopia nos acabará por se
chocar com a "montanha escura" do Purgatório, cuja base chega ao In-
ferno, lugar mítico aonde o grande Lúcifer, segundo uma tradição mul-
çulmana, depois de expulso do Céu, teria se projetado de cabeça baixa.
Decerto não é por sua última audácia que o rei de Ítaca será punido no
oitavo círculo do Inferno, o dos fraudadores, nem por suas aventuras pro-
priamente odisseanas, mas sim por ter imaginado com Diomedes O ardil
infame do cavalo de madeira. E contudo não resta dúvida de que o dis-

Gêneses da Modernidade 209


curso de Ulisses a seus companheiros, quando eles ultrapassam as Colu- não certamente o Marrocos à índia, mas pelo menos as Canárias a Gua-
1
nas de Hércules, tem também a ver com a "fraude", porque não há bús- nahani. Ali onde esperava um encontro com a brilhante civilização asiáti-
sola nem leme (gouvernail d'êtambot), a embarcação desde a partida está ca descrita por Polo, ele é acolhido, de modo ingenuamente afável, por
condenada ao naufrágio. homens nus que parecem desconhecer até o uso de armas brancas. Gente
completamente diferente, com certeza, dos utopianos de Morus. A liga-
Para sua primeira viagem transatlântica, esta bem real, Colombo ção histórico-mítica entre lenda, história e fábula política é, entretanto,
estará evidentemente mais bem-equipado. A partir de 1340, logo depois perceptível. Isso por intermédio de Vespúcio, o qual- por causa de uma
da época de Dante e de Duns Escoro, portugueses e magrebinos descobri- expedição talvez fictícia e que ele situava em 1497, um ano antes de Col-
ram pouco a pouco as possíveis escalas na entrada do Oceano, Madeira, ombo aportar em Trinidade -logo iria se tornar o herói epônimo do novo
as Canárias, os Açores. E o genovês dispõe da caravela. Mesmo assim, por continenteS. Terá sido por simples acaso que o Raphad Hythlodée de
seu princípio mesmo - sem ser propriamente utópico, por não visar mun- Morus, esse "contador de lorotas", se apresenta como companheiro de
dos imaginários, proporcionadores de exempla políticos, mas aqueles países Américo? Mas não se trata mais de descobrir uma quarta parte do mun-
do Extremo Oriente já descritos, não sem alguns embelezamentos pelo do, nem a terra dos bons selvagens (os arauaques das Bahamas, logo re-
veneziano Marco Polo - o projeto passa com toda justiça por quimérico duzidos à escravidão), nem a dos malvados caraíbas (sem tardar acusados
aos olhos dos prudentes geógrafos de Lisboa. de canibalismo e destinados à exterminação imediata), e sim de imaginar
No De coe/o, Aristóteles declarava que, pelo menos comparado ao um lugar de Nenhuma Parte para a república platônica.
dos outros astros, o volume da esfera terrestre não era considerável, pois
um mínimo deslocamento em direção ao norte ou ao sul é suficiente para Deve-se abrir aqui um lugar, como convida o próprio texto de Ra-
que se perceba uma nítida modificação na figura do céu; ora, não é "ab- belais, à viagem burlesca que se anuncia desde o capítulo XIII do Pan-
surdo" imaginar que um único mar separe a índia do Marrocos, países aliás tagruel, quando o bom gigante abandona Paris diante da notícia de que
aparentados uma vez que ali como aqui se encontram elefantes2 • Segundo os Dipsodos invadiram o país dos Amalrotas? Episódio rapidamente es-
os Meteorológicos só é possível a vida para o homem numa zona restrita, quecido ou adiado, mas que remete a Morus pelo nome de Amalrota, que
espécie de cinturão de clima temperado que inclui justamente as Colunas se tornou o de um povo, enquanto na Utopia designava a capital da ilha
de Hércules e a foz do Ganges. A distância entre os litorais africano e asiá- imaginária. No capítulo XXVIII, o patrônimo do rei Anarca retoma e
tico é avaliada pelo Estagirita em cinco terços daquela que separa, diz ele, prolonga os jogos marianos de Nenhuma Parte. No Terceiro Livro as alu-
a extremidade meridional da Etiópia da ponta setentrional da Cítia, limi- sões se multiplicam. Ali, Pantagruel transporta para sua terra vassala de
tes do que considera regiões inabitáveis 3 • Dipsódia uma colônia de utopianos encarregados de propagar entre uma
Colombo conhecia bem esses textos mas, raciocinando por analogia população arredia o espírito de "fidelidade" e de "obediência", mas o que
a partir de uma documentação mais recente, julgava pelo menos provável se segue é o longo, o enigmático desenvolvimento sobre as dívidas e os
a existência de um cordão insular nos postos avançados da Ásia. Previsão devedores, dificilmente referível ao paradigma de uma cidade sem moeda.
certamente razoável; em troca, de todas as estimativas propostas sobre o Sem dúvida o tema do pantagruelião não deixa de ter relação com o
comprimento da circunferência terrestre, ele escolheu deliberadamente as da viagem, aqui mais profética do que "utópica", quando o vemos servir
menores. Por outro lado, interpretando ao modo de T oscanelli o relato de aos povos "árticos" para "vencer o mar Atlântico, passar os dois Trópi-
Marco Polo, superestimava bastante a extensão da China e a do mar do cos, girar sob a zona tórrida, medir todo o zodíaco, brincar sob o equinócio,
Japão. Todos esses erros somados, ele situava "Cipango" a duas mil e ter um e outro pólo diante dos olhos, à flor de seu horizonte", a ponto de
quatrocentas milhas marítimas das Canárias, ou seja, mais ou menos no atemorizar os deuses olímpicos e de anunciar verdadeiras expedições no
mar de Sargaços4 cosmos (cap. LI), mas muito mais do que em Morus - a despeito da evi-
dente diferença de tom - se pensa aqui em Nicolau de Cusa que, no Li-
Desse conjunto de ilusões, assim denunciadas pelos geógrafos lusi- vro II (cap. XI) de sua Douta ignorância, simula uma espécie de viagem
tanos, melhores especialistas que os conselheiros de Isabel a Católica, o espacial para mostrar que um astronauta, em qualquer lugar do mundo
ardil da história iria fazer do 12 de outubro de 1492 a mais fabulosa rea- onde se encontrasse, acreditaria estar no centro (fictício) de uma circunfe-
lidade. Excelente navegador, em menos de cinco semanas o genovês liga rência (ilusória). Em Rabelais trata-se apenas de enganar os olimpianos,

210 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 211


1
.
único meio para os mortais de uma espécie de deificação. Brincadeira im- da "Casa de Salomão", enquanto o episódio das palavras geladas (cap. LV
pertinente ou esboço de antecipação científica, trata-se em todo caso de e LVI) pertencem ainda ao domínio da ficção científica, estranho ao uni-
algo muito diferente dos propósitos de Morus. verso mariano, mas importante em Campanella e Bacon; em um Contexto
De fato é apenas no Quarto Livro que Pantagruel embarca para o mais propriamente utópico, a passagem em Ganabin (cap. LXVI) implica
Oceano para consultar o oráculo da divina garrafa Bacbuc. Esquadra fan- a abolição de toda sanção penal. Ao que denomina as "Musas Anti-Par-
tástica de trirremos, galeras e outras embarcações heterogêneas, tão nu- naso", Rabelais opõe, como se sabe, o remédio radical de um grande gol-
merosas quanto as de Ajax no tempo da guerra de Tróia, mas todas equi- pe de bombarda; conclusão direta mas um pouco decepcionante no plano
padas com o maravilhoso pantagruelião. O canto do Salmo CXIV parece da reflexão política.
atribuir ao empreendimento uma finalidade religiosa, a busca de algum
segredo libertador. Na verdade, empurrados por um vento norte-nordes- Depois da viagem rabelesiana falta-nos lembrar as duas imitações da
te as embarcações vagam na mesma direção que o barco de Ulisses no Canto obra de Morus, a de Campanella, que escreve em 1602 sua A Cidade do
XXVI do Inferno. Como para Colombo, o objetivo da viagem é "Catay Sol e a publica em 1623, e a de Bacon, que compõe em 1622 sua Nova
na índia superior", não pela rota africana dos portugueses (o cabo da Boa- Atlântida, que aparecerá em 1627.
Esperança), mas sempre em frente através do Okeanós, entretanto um O périplo descrito pelo dominicano calabrês se situa na Ásia e num
pouco ao sul, à "esquerda" do "paralelo de Olona". Na verdade Rabelais clima francamente equatorial. A Cidade do Sol se apresenta como um re-
não nos diz nada sobre a América, mas descreve, realizada em quatro meses, pública encravada entre reinos hostis, em algum lugar no arquipélago da
a travessia da Europa para a Ásia com que sonhava o almirante genovês. Sonda nas vizinhanças de Sumatra. Marinheiro de Colombo, o narrador
Estabelecidas essas premissas geográficas, que nos reconduzem ao conta sua navegação ao redor do mundo, sua chegada ao Ceilão, Sua fuga
quadro aristotélico no qual encontramos, sucessivamente, Alighieri, Co- diante dos indígenas enfurecidos. Mais ainda que o Amalrota de Morus,
lombo, Vespúcio e o Hythlodée mariano, o autor parece esquecer seu pro- a cidade solariana é o tipo da cidade utópica feita em sete círculos con-
jeto inicial (e iniciático); sua enumeração bufa de escalas absurdas - a cêntricos, com quatro portas como as castra romanas. Subtraída das in-
despeito de tantos trabalhos científicos onde se evocava ora o Egito ora fluências ela é cercada por muralhas impenetráveis. O espírito pedagógi-
o Canadá - parece escapar a qualquer identificação precisa dos lugares. co da utopia, cada vez mais manifesto, se revela aqui no papel do templo
Para o que nos interessa agora, retenhamos apenas que no capítulo II o central com seus preciosos mapas do Céu e da Terra e seu livro sagrado,
nome de Medamothi (entendido como "Lugar Nenhum" na Breve decla- contendo todos os segredos da metafísica campaneliana, mas também seu
ração) equivale com bastante exatidão ao de Utopia - se é verdade que museu de pedras preciosas, suas coleções de minerais e de vegetais, de pás-
essa ilha de belo aspecto reúne, como A Cidade do Sol e a Nova Atlântida, saros e peixes, os inventários de todos os saberes e de todas as técnicas.
prolongamentos, tanto uma como outra, da cidade mariana, os mais ra- Originário ele também de um país de velha civilização, não mais a
ros exemplares de espécies animais, as plantas e as obras de arte de to- Pérsia ou o Egito, mas a índia, o povo solariano, fugindo dos mongóis,
dos os continentes, se ali vemos em "quadros" as Idéias de Platão e os abrigou-se nas montanhas para adotar um modo de vida "realmente filo-
átomos de Epicuro, bem como animais estranhos de pelagem variadas -, sófico e comunitário", mais próximo do ideal platônico que do descrito
mas sobre sua constituição política e seu regime social Rabelais nada diz. por Morus, porque o princípio de comunidade se estende com algumas
Em troca - mas essa utopia não é mais do que a das antecipações técni- modalidades singulares ao domínio sexual, e porque Campanella atribui
cas -, é ali que Pantagruel recebe de uma gaivota a mensagem de Gar- grande importância à eugenia. Ali também as muralhas com as quais os
gântua, o qual, à falta de Chappe e Edison, só pode responder por inter- solarianos se cercam não os impedem absolutamente de enviar através de
médio de um pombo-correio. todos os oceanos pesquisadores encarregados de inventariar tudo o que
Inútil nos demorarmos com os carneiros de Panúrgio, cujo simbolis- se faz, aqui e ali, seja de bem seja de mal. Assim as viagens desempenham
mo sócio-político é uma evidência banal de todas as épocas, nem insistir um papel essencial na vida da cidade, mas só concernem aos simples cida-
na bizarra confusão de parentescos do capítulo XI, na ilha de Enasin. Jo- dãos de modo indireto. Em troca, assim como na utopia de Morus, a guerra
gos lingüísticos de caráter paródico, mais do que fábula filosófica, cotejando permanece como um meio positivo de comunicação e propaganda. Cora-
a utopia. Por sua vez, na ilha dos Macreons (cap. XXV)6, os monumentos josos, bem armados, os solarianos conquistam pela força "amigos" que
reunidos de todas as civilizações prefiguram o estilo da "Cidade do Sol" e em seguida tratam de "proteger". Embora reconheçam que outros povos

212 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 213


1
possuem alguma sabedoria, por exemplo os habitantes do Sião, da Co- para ficar seis semanas na cidade proibida de Bensalem, confinados em
chinchina e da costa de Malabar, eles praticam um proselitismo ativo. É princípio num lazareto especial onde são muito bem cuidados (em espe-
por isso - surpreendente paradoxo para uma cidade encravada, onde o cial do escorbuto, com limão e uma dieta apropriada), mas mesmo depois
autor não descreve qualquer porto - a marinha tem todas os privilégios que seus anfitriões os consideram bastante inofensivos para lhes revelar
e eles chegam mesmo a inventar - outra forma de pantagruelião - na- uma parte de seus segredos, em hipótese alguma, devem se afastar da ca-
vios sem velas nem remos, cuja única força motriz seria feita com contra- pital mais do que uma milha e meia. A palavra de ordem aqui parece ser a
pesos e cordas entrecruzadas. O ideal de Campanella, evidentemente, mais dos sentinelas em seus postos de observação: ver sem ser vistos e conhecer
que uma cidade fechada, descrita a título de puro modelo, é essa unifica- sem ser conhecidos.
ção do universo com a qual ele sonhará até o fim e para qual as viagens Convertidos ao cristianismo vinte anos depois da Ascensão (por
de Colombo são, a seus olhos, um dos sinais precursores. meio de uma miraculosa arca de cedro contendo um Bíblia acompanha-
Assim se justifica para ele a audácia dos aventureiros, fossem eles da de uma epístola de Bartolomeu para autenticá-Ia), os indígenas des-
conquistadores "sedentos de riquezas", "em busca de terras novas". Por- critos por Bacon conheceram originariamente outras tradições. Parece que
que estes precisamente (assim talvez como os mercadores que Duns Escoto misturados aos fenícios e aos asiáticos eles navegaram muito até o mo-
evocava em termos mais prosaicos) eram destinados pelo próprio Deus, mento em que recolheram os últimos sobreviventes da antiga Atlântida.
como se não quisessem, a um fim mais nobre. Para Campanella, em me- É por imitação dos chineses que, para salvaguardar seus tesouros cultu-
nos de um século o mundo mudou mais do que em quatro mil anos. Fica rais, eles recusam aos estrangeiros o acesso a seu litoral, mas para acumu-
claro que não se trata mais de uma utopia propriamente insular, mas de lar essas coleções e essas informações de que se orgulham precisam de
uma verdadeira embriaguez da descoberta. Não mais um ideal de vida agrá- navios. O autor estima que para isso seriam suficientes dois navios par-
ria, apenas artesanal, mas de uma sede de técnica; depois da bússola, das tindo em expedição a cada doze anos.
armas de fogo, da imprensa, as invenções só podem se multiplicar. Os O caráter limitado e absolutamente unilateral dessa espécie de comu-
solarianos já descobriram a aviação, eles esperam muito da arte das lune- nicação, pouco compatível a primeira vista com o tema baconiano do
tas e, no domínio da acústica, não estão longe de captar a harmonia das Advancement of Learning, sugere a referência a um tipo de iniciação, li-
esferar celestes. Nada disso, evidentemente, deve se limitar a um pequeno gado sem dúvida a algum esoterismo, tema muito distante do humanista
povo asiático, num mundo onde, a se crer no autor, o reinado crescente Morus, mas do qual se encontra mais de um testemunho em Campanella.
das mulheres torna manifesto o progresso. É verdade que esse aspecto da Nova Atlântida se manifesta sobretudo na
segunda parte da obra, quando intervem uma Cabala vinda, segundo o
Em Bacon, que deixou inacabada a sua Nova Atlântida, é do Peru autor, do próprio Moisés. Mas a esses temas religiosos se mesclam in-
para a China, e com mais detalhes técnicos do que em Morus ou em Cam- dissoluvelmente os sonhos técnico-científicos de Bacon, quando o narra-
panella, que se realiza uma travessia do Pacífico em doze meses, interrom- dor autorizado a penetrar nos porões profundos da "Casa de Salomão",
pida finalmente por falta de vento e de víveres. O narrador e seus compa- ali descobre singulares receitas de coagulação e refrigeração, uma estra-
nheiros chegam a um porto desconhecido num país rico em belas flores- nha alquimia herdada de Paracelso e que anuncia Novalis. Bensalem possui
tas. Também ali - é a regra para o gênero - um velho passado de sólida também altas torres para observação dos astros, estufas botânicas e par-
civilização serve de base cultural para o exemplum pedagógico. Os habi- ques zoológicos onde se praticam muitas transformações de espécies ani-
tantes de Nova Atlantis praticam em relação ao estrangeiro uma profilaxia mais. Fonógrafos, aeronaves, submarinos - vindos do imaginário ances-
bastante minuciosa, mas é em hebreu, em grego, em latim e em espanhol tral - anunciam menos a república platônica que O universo moderno.
que eles notificam por escrito aos passageiros aflitos a proibição de desem- Quando o visitante descobre os principais tesouros desse mundo fu-
barcar, anunciando-lhes, entretanto, que podem fazer levar a bordo os turo com todas as suas invenções proféticas ou quiméricas, pacíficas ou
víveres que lhes faltam. Como é preciso que o narrador se informe dos usos guerreiras, o livro se interrompe. O país encantado do saber universal teria
e costumes da cidade, Bacon imagina que, ao fim de uma longa negocia- então revelado seus derradeiros recursos? Ou o autor teria, ele mesmo, se
ção, tendo provado seus atributos de bons cristãos (os habitantes da Atlân- assustado com os desdobramentos de tal perspectiva? Por volta da época
tida nova parecem menos tolerantes e menos ecumênicos que seus mode- em que Descartes recebe, nas fronteiras do esoterismo, suas primeiras ilu-
los utopianos e solaria nos), os infortunados navegantes obtêm permissão minações, e enquanto Campanella, após tantos anos de prisão e de inútil

214 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 215


correspondência com papas e reis, espera do futuro Rei Sol a chegada de
um regime de paz e prosperidade na ordem e na justiça, os sonhos progres-
sistas começam a assumir novas formas, menos utópicas. Mas desde a aven-
tura mítica do Ulisses de Dante até a moda recente das odisséias romanes-
cas ou cinematográficas através das galáxias, passando (especialmente) pelos
"Mundos celestes" de Doni, pela "Cidade dos eudemoniânos" de Stiblin,
pela "Cristianópolis" de Valentin André, pelo "Outro Mundo" de Cyrano,
pela "Basilíade" dos misteriosos Morelli, as fábulas de tipo guliveriano, as
façanhas robinsonianas e a busca dos iearos - sem contar (de Mercier a
Wells e a Orwell) as escapadas para um futuro sonhado ou temido - sem-
pre haverá lugar, e não só no universo infantil, para as viagens imaginárias
numa busca onírica ou pedagógica de uma outra humanidade.

POST-SCRIPTUM
NOTAS

1 Inferno, XXVI, 90-142. No Ulisses de Dante, o que triunfa sobre o amor pater-
nal e filial, assim como sobre a ternura por Penélope, é o "ardor de conhecer o mundo".
2 De coe/o, 11, 14, 298a, 12
3 Meteor., 11, 5, 363b, 22-24.
4 P. Chaunu, L'Expansion européenne du XIlIe siecle, Paris, 1969, p. 172 s.
5 Ver acima "Thomas More ou l'utopie réaliste", p. 557s
6 A despeito de um relativo parentesco fonético, esses "homens de vida longa"
(em cuja terra encontram-se obeliscos e pirâmides ao lado de estelas gregas e de inscri-
ções árabes e eslavas) nada têm a ver com os "macarianos" (ou bem-aventurados) de
Morus; ou pelo menos Rabelais, mais uma vez, nada diz sobre seus costumes políticos.

216 Maurice de Gandillac


I
POST-SCRIPTUM

Nesse ano de 1992 (da graça ou da desgraça?), quando se comemo-


ram os grandes feitos da rainha castelhana que expulsou de Granada os
últimos magrebinos, limpou seus reinos de todo o sangue misturado e, ainda
por cima, ajudando Cristóvão Colombo, contribuiu sem malignidade ex-
pressa para o genocídio ameríndio, a cada dia se confirmam o deslumbra-
mento e, com o mesmo impacto, a apostasia de um império totalmente
diferente do hispânico, mas também de expansão, virtualmente universal,
e que se dizia vetor da mais sedutora utopia, vinda de Platão através de
Morus, mas finalmente alçada à problemática dignidade de verdade cien-
tífica com pretensões totalizantes.
Ao reler hoje as últimas palavras do nosso capítulo final, como não
especular sobre o que pode significar o sonho ou o modelo daquilo que
designamos enfaticamente como "outra humanidade", no momento em
que parece se impor por toda a parte, sob a capa de uma "economia de
mercado", triste expediente mais do que uma norma, a luta de morte de
grupos financeiros, mais mortífera, afinal de contas, do que as justas dos
cavaleiros e os assaltos da infantaria contra fortalezas que, entretanto, não
eram mais que moinhos?
Experimentada em escala reduzida por pequenas confrarias evangé-
licas e seitas pentecostais ou milenaristas, a comunidade dos bens e dos
pensamentos - muito excepcionalmente, como em Münster, com Jean de
Leyde, aquela das mulheres - mereceria permanecer como um "não-lu-
gar" que o autor da Utopia definiu a contragosto? As coisas não poderiam
ter sido melhores sem os acasos históricos (ou, se preferirmos, as finalida-
des providenciais, no caso mais demoníacas do que divinas que induziram,
em 1917, dessa maquete totalmente teórica a aplicação, no mínimo pre-
matura, mal adaptada em todo caso, à conjuntura, de modo que o recur-
so a formas de coação mais sistemáticas (e mais perniciosas) que as pre-
vistas por Thomas Morus, como simples necessidades temporárias, com-
prometeu permanentemente o ideal comunista e tornou derrisórias as be-
las promessas de uma libertação do indivíduo, de sua harmonização com
a natureza, da maravilhosa passagem da pré-história para a história?
Sob as formas as mais diversas, algumas das quais - as carnificinas de
1914-1918, Auschwitz, Dresden, Hiroshima - nada têm a ver com o mau
uso da utopia e apenas prolongam as barbáries ancestrais, acrescentando-
lhes os atrozes aperfeiçoamentos da alta técnica, nosso século (na vã com-

Gêneses da Modernidade 219


pensação de seus inegáveis progressos médicos) conheceu destruições ma- SOBRE O AUTOR
ciças, iguais ou superiores às piores atrocidades de um passado sombrio.
Será isso o mesmo que dizer que foram totalmente abafados os te-
mas de paz e concórdia que se tentou valorizar em Pedro Abelardo, Rai-
mundo Lullo, Nicolau de Cusa, Guilherme de Postela, predecessores do
Abade de São Pedro, de Emanuel Kant, do cândido presidente Wilson e
de alguns idealistas rapidamente saídos de cena? Professor de filosofia na Sorbonne de 1944 a 1977, autor de mais de
Qualquer resposta que se dê à pergunta, vê-se que, no que se refere trezentos artigos que constituem um verdadeiro corpus, Maurice de Gan-
a peregrinações frutíferas através de ilhas bem-aventuradas, deixando de dillac publicou livros notáveis sobre Nicolau de Cusa, Plotino e Dante.
lado as puerilidades da ficção científica com suas fantásticas escapadas para Medievalista, mas também germanista, desenvolveu uma atividade consi-
fora de nosso tempo e de nosso espaço, aliás mais belicosas, em geral, do derável como tradutor: do Pseudo-Denis a Abelardo e Nicolau de Cusa;
que pacíficas, este século pode de fato se vangloriar de ter lançado huma- de Hegel, Novalis, Nietzsche, Scheler e Brentano a Benjamim e Bloch ...
nos no deserto lunar e robôs curiosos até a extremidade de nosso peque- Maurice de Gandillac é presidente da Associação dos Amigos de Pon-
no Sistema Solar, mas numa época em que se anunciam - em simetria tigny, que organiza os célebres colóquios de Cerisy.
talvez com os dilúvios legendários e os míticos engolfamentos de terras
civilizadas - possíveis, prováveis ou confirmadas catástrofes: desertificação
dos solos e ruptura das camadas protetoras na alta atmosfera.
À falta de uma revolução (ou de uma revelação), que o autor de A
Cidade de Deus só situava no recônditos da consciência (ou num para-além,
onde o joio se separa do trigo), pode-se ainda esperar da ciência e da téc-
nica os novos mirabilia que, entre Campanella e Descartes, o autor de A
Nova Atlântida profetizava? É de Ernst Bloch, encontrado em Cerizy em
1959 e acolhido na Sorbonne como doutor honoris causa, que, contra todo
desencorajamento, o velho homem que assina estas linhas tomará de em-
préstimo sua última palavra. Com efeito, completando e corrigindo a docta
ignorantia de Cusano, o autor de Prinzip Hoffnung a ela associou, com
um teor mais estiml).lante, essa inextirpável esperança, nutrida pelo conhe-
cimento e guarnecida pela coragem, que nomearemos aqui, como ele, na
antiga língua sábia de nossa Europa, uma docta spes.

Maio, 1992

220 Maurice de Gandillac

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