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CANDILLAC, Maurice De. Gêneses Da Modernidade PDF
CANDILLAC, Maurice De. Gêneses Da Modernidade PDF
Ma urice de Gandillac
GÊNESES DA
MODERNIDADE
Tradução
Lúcia Cláudia Leão e Marilia Pessoa
editora.34
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201
X. O "RENASCIMENTO" PLATÓNICO SEGUNDO MARSILIO FICINO
5472
209
.1.94 XI. VIAGENS ALEGÓRICAS E UTÓPICAS
G195G (DANTE, MORUS, RABELAIS, CAMPANELLA, BACON)
E _-i
219
PSICO Post-scriptum
1998/161280-4
1998/07/17
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA
Gêneses da Modernidade 7
o que muito lhe agradeço, confesso que, nascido antes da Primeira Guer-
ra Mundial, testemunha de tantos progressos técnicos e de tantas abomi-
nações, eu resisto a me deixar embalar pelo canto da sereia (ainda mais
em uma economia de mercado regulada pela lei do lucro, onde as cotovias
farão seus ninhos?). Como última palavra fica, contudo, a esperança ra-
zoável de uma cooperação ativa, sem ilusão, acima das diferenças e das
controvérsias, entre os homens de boa-vontade.
GÊNESES DA
MODERNIDADE
8 Maurice de Gandillac
I. CIDADE DOS HOMENS E CIDADE DE DEUS"
Gêneses da Modernidade 11
dionais por essa Bizâncio que, lentamente, irá erodir a maré islâmica e onde quer "Santa" e que, comparada à Jerusalém celeste, é mais do que uma
reina como senhora uma "ortodoxia" detalhista (para muitos cruzados bem "figura" ou uma "sombra" ""'"'- termos que devem ser compreendidos se-
menos suspeita do que a "infidelidade" dos judeus ou a dos muçulmanos) gundo sua significação "tipológica", aquela que não remete da imagem
- enquanto, na direção do leste, para além das terras não totalmente la- ao modelo mas que vê, por exemplo, na Eva pecadora, o anúncio da im-
tinizadas em que se confrontam eslavos, bálticos e germânicos, tártaros agora pecável Maria.
expulsos ou assimilados, cresce um jovem e vigoroso ramo do helenismo Se é verdade que, para Agostinho, só a graça sobrenatural permite
cristão -, ser-lhes-á necessário defender seu poder temporal contra os papas ao príncipe fundar na justiça uma autêntica paz, isso não significa que a
romanos que, orgulhosos de sua tiara imperial e apegados a seu título arcaico instituição eclesiástica - com aquilo que o Maritain de O Camponês do
de sumos pontífices, pretendiam ser, pela graça de uma doação duvidosa, Garona chamará, não sem insolência, seu por demais humano "pessoal"
aO mesmo tempo sucessores de Pedro e herdeiros legítimos de Constantino. _ possa, ela mesma, santificar o poder temporal, quer o papa se arrogue
Mas não antecipemos, pois o que freqüentemente é denominado "agos- os "dois gládios", quer pretenda controlar o exercício da autoridade civil
tinismo político", ideologia medieval e, por vezes, moderna, está muito longe a ponto de não lhe deixar outro domínio próprio que não seja o da prote-
das verdadeiras posições do De civitate Dei. No princípio do século V, o ção dos bens da Igreja (e, se possível, seu aumento), o da defesa da pura
acontecimento que abala todos os espíritos é, sem dúvida, a tomada e o saque ortodoxia, assim como o das baixas tarefas atribuídas ao "braço secular".
de Roma, em 410, pelo visigodo Alarico. Alguns pagãos já censuram os Na verdade, o bispo de Hipona - muito censurado e por vezes tra-
imperadores batizados por terem afastado da Urbs a proteção de seus an- tado como o primeiro inquisidor - , inquieto diante do sucesso de deter-
tigos deuses, ao passo que outros - precursores de Maquiavel e de Nietzsche minadas heresias, recorreu, para combatê-las, a poderes temporais, sem
- acusam o Evangelho de enfraquecer as forças vivas da pátria, ao pregar imaginar que esse apoio limitado e, ao que parece, provisório, pudesse
o amor ao próximo e o perdão das ofensas (que, aliás, os sucessores de instituir neste mundo alguma prefiguração do reino de Deus. Para ele, com
Constantino não praticam). efeito, ao longo de sua "peregrinação" neste mundo, a "família dos re-
Sem ignorar essas polêmicas, Agostinho se situa em outro campo. Cer- dimidos" permanece indiscernivelmente misturada aos batizados que se-
tamente, ele chega a apontar para a Igreja a vantagem de serem varridos de rão finalmente excluídos da beatitude, enquanto que, inversamente, den-
Roma, por um príncipe cristão, "templos e estátuas de demônios" (V, 2), tre os inimigos declarados da fé cristã, dissimulam-se predestinados que
mas já a partir do capítulo seguinte especifica - após ter prestado home- encontrarão, um dia, seu caminho de Damasco (I, 35).
nagem ao devoto Teodósio - que os ambiciosos que vêem na fidelidade Será somente quando os corpos ressuscitarem - tema extensamen-
ao Cristo vencedor uma garantia de longo reinado, às vezes, se decepcio- te abordado no Livro XXII - que cada um saberá se pertence à Cidade
nam, pois o fielJoviano manteve seu trono por menos tempo do que o "após- de Deus, mas não se deve por isso supor que, até então, nossas cidades
tata" Juliano. Agostinho o escrevera desde o início: apenas no além serão humanas sejam totalmente entregues ao "Príncipe deste mundo". Ao as-
recompensados, segundo seu mérito, os bons e os maus; a felicidade e a in- sumir as funções de doutor e de bispo, o antigo mestre de retórica situa-
felicidade continuarão, neste mundo, como que "comuns" a todos, e essa va-se, de fato, em um campo prático onde nossos atos seriam irrisórios se,
é a condição necessária para evitar que os eleitos invejem esses bens mate- não obstante os impenetráveis mistérios da Predestinação, tudo estivesse
riais, por vezes usufruídos pelos condenados, e que temam, como opróbio, antecipadamente determinado. Como nenhum mortal tem, neste mundo,
os males que se abatem sobre o inocente (I, 8). acesso aos desígnios de Deus, cada um deve, a seu modo, trabalhar como
Além do mais, o teólogo - a quem, certamente, inspiram entusias- pode para o triunfo do bem. Em geral, considera-se Agostinho como um
mados elogios os produtos, úteis ou agradáveis, da engenhosidade huma- dos pais da "filosofia da História"; certamente, seria melhor vê-la como
na, e que, entretanto, os vê apenas como "consolos" concedidos às cria- uma "teologia do tempo", pois a seqüência dos acontecimentos, tal como
turas para as quais, na maioria das vezes, é reservada uma eternidade de ele a encara, diz respeito menos ao desenvolvimento das sociedades enquan-
martírios (XXII, 24) - insiste com excessiva complacência nas conse- to tais que à sua posição (aliás pouco discernível) no interior de um pro-
qüências da mácula original, por estar tentado a conceber, neste mundo cesso, ao mesmo tempo, cósmico e escatológico.
corrompido (o homem, freqüentemente, faz de sua arte apenas usos per- Interpretada, alegórica e anagogicamente, mais do que em seu senti-
versos, preparando venenos mais do que remédios e produzindo com mais
facilidade gládios do que relhas de arado), uma cidade terrestre que se l do literal, a Bíblia fornece um quadro geral a essa reflexão sobre o devir.
A divisão da família original em duas cidades adversas tem início, de fato,
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Ma urice de Gandillac Gêneses da Modernidade 15
a lenta germinação do celeste e do terrestre. Pouco tempo depois, em seu É igualmente o uso próprio do tempo vivido que constitui a prin-
"Livro inacabado sobre o Gênesis entendido no sentido literal" (esboço cipal diferença entre as duas cidades: todas as duas avançam, mas uma
de uma imensa obra que só será terminada em 415), ele renunciará a essa sucumbe à dispersão, enquanto a outra se unifica no recolhimento. Ao
interpretação para admitir, apoiando-se no Eclesiastes (XVIII, 1), que tudo término da viagem, ambas irão perceber a sucessão dos acontecimentos,
foi criado "simultaneamente", sendo o temporal, desde a origem, signo e como Agostinho remotamente sugere, ao mostrar como um canto pode
figura do eterno. Mas é sobretudo nas Confissões, face à sua própria his- se oferecer inteiro ao primeiro olhar de um músico (XI, 41). Todavia,
tória - a de um combate entre o desejo libidinoso e o arrependimento - entre o tempo e a eternidade, o autor das Confissões localiza um tipo
, que o filho de Mônica pensa descobrir, perscrutando sua alma imortal, de intermediário, que parece corresponder ao "céu" e à "terra" dos pri-
imagem de Déus, a verdadeira significação do tempo. meiros dias do Gênesis, criaturas anteriores à seqüência regular dos mo-
As aporias clássicas de uma dimensão vivida, cujo conteúdo não é senão vimentos astronômicos; por um lado o mundo angelical nascido da pró-
passagem do não-ser-mais ao ainda-não-ser, adquirem aqui uma ressonância pria Luz e, por outro, a confusão, o quase-nada da matéria pura (XII,
singular, porque o autor institui como interlocutor de seu eu a "eterna Razão 15-20). O comentário, denominado "literal" (mas que não o é), do pri-
na qual nada começa ou termina", o Verbo co-eterno ao Pai que diz tudo meiro Livro da Bíblia, sugere, para essas criaturas, um estatuto análo-
simultaneamente e deixa, entretanto, que se sucedam as criaturas nascidas go ao da beatitude e da perdição que devem se "seguir" ao "fim do
desse dizer (XI, 7-8). Se é sem dúvida leviano (mas sempre inquietante) inter- mundo", nO tempo "escatológico" que simboliza o "repouso do sétimo
rogar-se acerca de um "antes" da Criação - pois o "eterno" só precede o dia" (De Genesi ad litteram IV, 31).
tempo por sua transcendência (XI, 12-16) - , isso não resolve o problema Mais significativa para o nosso propósito é a atribuição, nesse mes-
de uma medida da duração, cujas porções julgamos serem algumas maio- mo texto, de uma verdadeira "subsistência" das realidades que surgem para
res, outras menores, ainda que, na verdade - já que "do futuro o presente o ser por ordem de um fiat divino, apesar da alternância do "diurno" e
imediatamente voa ao passado" - , tudo nela se reduza a fugidios instantes. do "noturno", correspondendo ao duplo aspecto do devir: estabilidade das
Eis então que intervém, com toda sua polissemia, a misteriosa facul- formas ou idéias (que Agostinho nomeia species) , fluxo das coisas sensí-
dade que Agostinho denomina "memória". A rigor, a palavra deveria de- veis. Se tudo foi efetivamente criado de uma só vez, esse ato divino, entre-
signar apenas a rememoração de um passado que desapareceu; de fato, tanto, sem o qual tudo retornaria ao nada, nunca cessa. Ainda que "novo",
intimamente ligada a essa mens que Agostinho define como "o que é ex- cada dia é, de algum modo, "repetição" do primeiro, pois tudo está pre-
celente na alma" (De trinitate, IV, 11), a memoria refere-se, para ele, a toda sente desde a origem nas "razões seminais" que contêm "causalmente" e
forma superior de presença a si (Confissões XIV, 10-14). Reservatório do "racionalmente" todas as coisas futuras e pelas quais Deus, presente no
instantâneo e do efêmero, se a memória é também a "imensa capacidade" coração de sua obra, faz nascer e crescer, deixa que definhem e morram
de qualquer experiência e de qualquer saber, é porque o próprio Deus fez essas criaturas que ele pensa, desde sempre, "como nas raízes do tempo"
dela sua morada e porque, através desta, o Eterno de algum modo confe- (De Genesi, V, 11).
re ao temporal, para além da dispersão e da impotência, um valor positi- A história propriamente dita só começa, como vimos, no sétimo dia.
vO de reunião e de energia. O homem desempenha aí um papel central devido à sua potência laborio-
Desse modo, portanto, a autêntica duração não se reduziria à medi- sa, colaboração da natureza e da razão, mas as indicações" humanistas"
da dos movimentos celestes; mais do que "número" , ela é essa maneira de do De Genesi (VIII, 15-17) serão pelo menos infletidas em um sentido
"distensão" que o exemplo do poema ou da melodia bem demonstra e no pessimista pelo De civitate Dei que, até o fim (Cf. XXII, 24), enfatiza o
qual, mediante uma "atenção" global ao presente, reúnem-se o passado e infortúnio da condição humana. Contrariamente aos maniqueus, Agosti-
o futuro (11, 34-37). Semelhante temporalidade, porém, pode ser vivida de nho sustenta, entretanto, que o pecado original não apagou deste mundo
duas maneiras, sob o modo do puro escoamento ou sob o do recolhimen- todas as marcas da sabedoria criadora, aquela que, após ter inspirado Jó,
tO interior, quando o sujeito, esquecendo-se do passado enquanto tal e não o Idumeu, fez falar a Sibila de Cumas. Aos donatistas africanos, tão dese-
aspirando a nenhum futuro definido, tende para o eterno. Para o Agosti- josos de pureza, a ponto de só considerarem válidos os sacramentos con-
nho convertido, isso não ocorre sem lágrimas ou lamentações, mas é exa- feridos pelos ministros de uma impecável moralidade, ele responde que a
tamente essa prova que, graças ao "fogo" do "amor", permite que o "pe- coexistência de carnais e espirituais não impede uma lenta ascensão do
regrino" terrestre se "firme" na "Verdade" (XI, 40). corpo social em direção a um estado menos estranho ao ideal evangélico.
lidade para a caça. A arquitetura, rica em fórmulas esotéricas; a escultu- liberales, que a Idade Média herdou da antiga paideia helênica e helenística
ra, que mescla a uma efervescência alegórica a representação minuciosa (quadrivium platônico, mas sobretudo trivium de dominante lógico-grama·
dos gestos artesanais; a própria política, que coroa de poderes mágicos o tical). "Técnicas", seguramente, mas que não visam senão a finalidades
cavaleiro ou o rei, todas estão longe de ser inteiramente racionalizadas (a desinteressadas, que, de algum modo, agem diretamente na matéria e que
despeito do que se poderia imaginar lendo os comentários de Aristóteles). não exigem nenhum aprendizado manual; técnicas sobretudo - e eis sua
Dessas técnicas quase misteriosas, parece que a Idade Média dos "intelec- única justificação contra as suspeitas da "anti dialética " - que permane-
tuais", aquela da universidade e dos clérigos, nunca deixou de desconfiar, cem subordinadas à teologia. Seguramente, cada vez mais, ao lado dos mes-
assim como de tudo aquilo que, nas profissões propriamente ditas, nas tres da sacra pagina e da doctrina sacra, a universidade formaria canonistas,
"máquinas", nos segredos de fabricação, evocava esse segundo plano sus- legistas, os grandes "escriturários" que farão da Igreja e do Estado "má-
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Gêneses da Modernidade
UI. INTRODUÇÃO AO
"RENASCIMENTO" DO SÉCULO XW
Gêneses da Modernidade 35
de dois versos tomados da Farsália). Outros vêem naturalmente em um João Destinando suas maiores condenações à "noite" medieval e ao "psita-
de Salisbury, senão o herdeiro do mundo greco-latino (como já foi dito de cismo" escolástico, a "modernidade" principiante rejeita, como perecida,
Dante, tipicamente medieval e "anunciador" às vezes de uma modernida- grande parte da herança antiga; do Discurso do método ao Discurso pre-
de), ao menos o ancestral, ainda tímido, de Erasmo e de Budé. liminar à Enciclopédia de Diderot e d' Alernbert, encontramos a mesma
Evidentemente, ninguém pensa em negar ou em subestimar as ca- subestimação das origens, a mesma confiança no presente grávida de um
racterísticas propriamente medievais do século XII, por vários motivos imenso futuro. Ao contrário, pelo menos se acreditarmos em um dos mes-
"auge" brilhante de um período que se tem muito freqüentemente a ten- tres da célebre escola chartriana, os homens mais lúcidos do século XII
dência a só fazer culminar na época da síntese tomista e das catedrais latino, ainda que - sobre os ombros dos Antigos, como os Evangelistas
góticas. É certo que os trovadores e os trave iras, os autores de roman- sobre os dos Apóstolos (segundo a imagem de um célebre vitral) - fos-
ces, os imitadores de Virgílio e de Ovídio (mas primeiro de Boécio) que sem persuadidos a enxergar mais longe do que seus predecessores, consi-
criaram ou renovaram gêneros e estilos literários, tampouco os arquite- deravam-se "anões" que assumiam, de forma modesta, a sucessão de au-
tos, os escultores, os pintores de afrescos que - em continuidade com a tênticos "gigantes". Na lista de "inventores" de artes liberais e "mecâni-
arte romano-bizantina - transformaram pouco a pouco uma herança ja- cas" (realizada por Isidoro de Sevilha), encontramos em todos os autores
mais renegada, ou mesmo os filósofos e teólogos que, com temperamen- medievais de enciclopédias, didascálias, livros de excertos, tesouros ou
tos diversos, repensaram o tesouro que haviam recebido da Antigüidade espelhos os mesmos personagens misteriosos que Marsilio Ficino evocará
latina, pagã ou patrística, foram por isso, com três séculos de antecedên- como "autoridades" maiores para sua própria Teologia: Moisés, Orfeu,
cia, os antecipa dores do período - de contornos tão indeterminados - Hermes, Pitágoras, Platão.
que devia suceder ao "crepúsculo" ou ao "outono" medieval, com seus Um outro traço aproxima esse "Renascimento" daqueles dos séculos
traços bastante característicos: entusiasmo com as grandes descobertas XV e XVI; trata-se, sem dúvida alguma, em ambos os casos, de "transi-
filológicas e cosmológicas, viagens ao redor do globo, desenvolvimento ções". Todos os períodos, em graus diversos, é verdade, merecem ser as-
da imprensa, fragmentação da cristandade ocidental, tentações panpsí- sim definidos, e, particularmente, essa media tempestas que Andrea de Bussi
quicas e panteístas. evoca em 1469, em seu elogio fúnebre ao cardeal de Cusa, dizendo que
Com essa restrição fundamental, tornou-se banal atualmente usar a esse grande homem tinha lido, não apenas os livros dos Antigos e dos
palavra "renascimento" (com ou sem maiúscula) para designar primeira- Modernos, mas os de todo o período "intermediário". Media tempestas,
mente os tempos carolíngios, mas também, e mais ainda, os decênios par- media aetas, medium aevum; trata-se, efetivamente, de um tempo "media-
ticularmente fecundos que viram prosperar, de Anselmo de Aosta, de Bec dor", que não é mais a Antigüidade, e que prepara, a seu modo, os tem-
e de Cantuária, a Alain de Lille, de Monptpellier e de Paris, o mais ousa- pos "modernos". Nesse longo milênio - que vai de Platina e de Santo
do esforço de especulação acerca dos fundamentos da fé, e que correspon- Agostinho a Galileu, a Bacon e a Descartes - , as "transições" intermediá-
dem às mais belas realizações da arte romana. Já em 1927, Haskins dava rias formam, elas mesmas, uma cadeia contínua, mas seria injusto negli-
a uma grande obra de síntese o nome de The Renaissance af the Twelfth genciar seu aspecto singular, e às vezes original, para considerar apenas
Century, título retomado cinco anos mais tarde pelos quebequenses Paré, as fontes e a posteridade. É fácil observar que o século XII, particularmente,
Brunet e Tremblay para seu remanejamento de uma obra de Robert sobre tem suas raízes na patrística (ela mesma prolongada e renovada no tempo
as "escolas e o ensino da teologia no início do século XII", transformada, de Alcuíno e de João Escoto) e anuncia, simultaneamente, a escolástica.
em 1933, em O Renascimento do século XII. As Escolas e o Ensino. Ao Alguns frisam, naturalmente, os aspectos "arcaicos" da escola chartriana,
preferirem esse título, os autores pensavam seguramente em duas marcas da mística cisterciense ou vitorina; outrOS insistem mais naquilo que pre-
características de todo revival em qualquer época em que este se produza: para o século seguinte: traduções do árabe e do grego, reflexão teológica
progresso patente após um período de estagnação ou de decadência, mas de Abelardo e de seus discípulos, primeiras realizações da arte ogival. Sem
também retorno consciente e voluntário às fontes antecedentes de um sa- desconsiderar as sobrevivências e os pressentimentos, gostaria antes de
ber mais autêntico, traço essencial porque distingue nitidamente o Rinas- destacar a especificidade de um tempo que viu nascer ou morrer tantas
cimento ticiniano das certezas triunfantes da época cartesiana e do século verdadeiras novidades e que - em oposição aos "endurecimentos" pos-
das Luzes, que valorizavam as certezas do homem adulto mais do que os ' teriores, onde denuncia tantos "fechamentos" - Friedrich Heer, no pri-
balbucios da infância ou as quimeras da adolescência. meiro capítulo de seu Mittelalter (Zurique, 1961; brilhante e por vezes
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Os autores do Renascimento do século XII insistem, como foi dito, na, a preocupação artística e a exposição das idéias filosóficas ou religio-
na emancipação das classes rurais; frisam de forma bastante romântica (e sas é menos marcante. Dom Leclerq considera o rígido cisterciense Bernardo
percebe-se a influência de Michelet) o papel "criador" do povo. Trabalhos de Claraval como testemunho do "renascimento das letras". Os poemas de
recentes, especialmente os de GimpeI, mostram que as catedrais não surgi- João de Salisbury e de Alain de Lille, os diálogos de Abelardo, certos ser-
ram de um entusiasmo religioso (e tampouco da transmissão de fórmulas mões dos vitorinos são verdadeiras obras de arte, e, ao mesmo tempo, ex-
esotéricas nas "celas" de iniciados). Sua edificação lembra muito a que temos posições teológicas. Não parece, entretanto, que esse período tenha conhe-
agora: levantamento de capitais, escolha de um mestre de obras, recruta- cido uma verdadeira unidade cultural; os romances e os poemas de amor
mento de operários qualificados (disputados de um país a Outro e freqüen- não se dirigem ao mesmo público que o Livro das Sentenças, e é provável
temente muito bem pagos), campanhas interrompidas pela falta de dinhei- que os canonistas e os médicos só se preocupem secundariamente com o belo
ro, pelo desaparecimento do príncipe ou do bispo que foi o instigador de estilo. É de se lamentar, contudo, que os autores do Renascimento do sé-
todo o empreendimento, por todos os tipos de catástrofes sociais ou natu- culo XII, após terem retomado o tema de uma espécie de "emergência", de
rais. Mas pouco importam esses detalhes; o essencial é corrigir um pouco movimento criador surgido das profundezas populares, tenham depois ne-
as páginas nas quais, sob a inspiração de Luchaire, os três dominicanos de gligenciado um pouco um traço muito mais evidente: a coesão relativa entre
Ottawa enfatizam o "apetite de cultura" desse "povo" cuja "emergência diversos tipos de expressão estética e de atividade cultural.
social" eles afirmam sem apresentar provas mais concretas (p.53). É essen- Durante uma conferência em nosso Centro de Pesquisas Compara-
cial também restringir a importância atribuída às corporações que são, de tivas acerca do Pensamento da Idade Média, Jacques Le Goff distinguia,
fato, em seu pleno desenvolvimento histórico, um fenômeno sensivelmente em face de um fenômeno de cultura, três atitudes possíveis: ou considerá-
mais tardio. Assim, estabelecidas essas premissas, quase já não se trata mais lo de fora, com um distanciamento total - o que é quase impraticável e
do povo, mas sim de escolas, de instrumentos de trabalho de uma classe completamente estéril-, ou situá-lo em seu ambiente histórico - o que,
bastante determinada - a dos clérigos, regulares, e, sobretudo, seculares. com certeza, é melhor, mas ainda demasiadamente exterior - , ou tentar,
O objeto do livro não era a poesia, o romance, a arquitetura ou a iluminura, enfim, explicá-lo como parte de um todo global. Tudo, se ouso dizer, deve
ou mesmo propriamente o conteúdo teológico das obras nascidas nas es- ser entendido a partir do que significa essa noção, cômoda mas um pouco
colas ou às margens destas. Com efeito, o que está por trás do pensamento arbitrária, de "todo". O próprio Le Goff, a esse respeito, é bastante pru-
de nossos três autores é a idéia de que todo o "renascimento" que descre- dente, e as opiniões que nos apresentou continuam, parece-nos, um tanto
vem já se orienta, há muito, para o auge que será, no século seguinte, a síntese negativas demais.
tomista. É nessa perspectiva, creio, que se deve entender o que eles dizem Ele deseja antes de tudo (e quem não o aprovaria?) que não se privi-
acerca do retorno aos Antigos (a mais fecunda redescoberta sendo, final- legie uma escola como a de Chartres porque esta teve, sem dúvida, alguns
mente, a de Aristóteles) e acerca da confiança conferida ao raciocínio dialético scholars mais brilhantes do que as outras. Mesmo no quadro capetíngio,
na elaboração do fundamento da fé. Reims ou Laon são também interessantes, pois espíritos mais medíocres
,,0,
Eles destacam, entretanto, um "equilíbrio intelectual" e uma "saúde podem ser representativos de um tempo, ao passo que os gênios o são menos
"
religiosa", ligadas a uma "alegre expansão de vida" (p.312) que são efeti- (e Chartres, em particular, é a cidadela de um platonismo ainda carolíngio).
vamente fenômenos próprios do século XII (posto que não se incorra no O segundo erro seria o de aumentar o papel das contribuições gregas e árabes,
erro de se ater a uma imagem demasiadamente elogiosa de um tempo que sem dúvida importantes, mas que só adquirem todo seu sentido pela pró-
também teve suas fraquezas). Os modos de expressão e o estilo da investi- pria necessidade à qual respondem, o empréstimo sendo menos essencial
gação são certamente mais "livres" e - como diz Heer - mais "abertos" do que o uso que dele se faz. O retorno às fontes é, por vezes, apenas uma
do que no século seguinte (mas a contrapartida é uma ausência evidente de máscara ou um álibi. A observação vale também, naturalmente, para o aristo-
rigor e a tendência, às vezes, ao ecletismo). Aí onde prevalece sem dúvida telismo averroísta dos séculos posteriores, para a conseqüente fama de Pla-
alguma o positivo, tem-se o domínio dessas "belas-letras", em breve con- tão, de Epicuro ou de Marco Aurélio, e para certos aspectos do classicismo.
denadas a um verdadeiro "exílio". Os doutores do século XIII, e sobretu- Terceiro erro, ou exagero, que já assinalamos, e que Le Goff denun-
do do XIV, escreverão uma língua técnica, cada vez mais bárbara. Mesmo cia muito apropriadamente: a ilusão de um marxismo simplificado que
o latim de Santo Tomás, tão sóbrio e tão preciso, já é bem menos literário desejaria encontrar, com a emancipação das comunas, o aparecimento de
do que o de São Bernardo. No século XII, o corte entre a literatura profa- uma verdadeira burguesia, já consciente de seu papel histórico de "classe
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Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 43
em ascensão", decididamente "racionalista" e virtualmente "revolucioná- pende em construções de prestígio, em obras de arte, uma grande parte do
ria". Tolerável (a rigor) em tal escritor contemporâneo que imagina He- "tesouro dos pobres", e o resto é simplesmente -"distribuído" aos miserá-
loísa explicando sua alienação aos operários que constroem Notre-Dame, veis sem contrapartida produtiva. Como o resto do mundo - mas de modo
enquanto Abelardo conversa como "filósofo" esclarecido com o irmão do tanto mais grave porque precisamente o período em questão conheceu um
rei (grande senhor libertino), essa forma - mesmo atenuada - de ana- imenso crescimento demográfico - , todo o Ocidente latino, apesar das
cronismo antecipatório pouco esclarece os autênticos antagonismos sociais belas aparências, é subequipado, "subdesenvolvido", constantemente ame-
do século XII. Sem dúvida, para além da tripartição oratores-belllatores- açado pela fome, afligido pelo subemprego e pela subprodução. Mas é ainda
/aboratores (grosso modo: clérigos, cavaleiros, camponeses), velho esque- difícil, a partir de análises - cujo excelente resumo encontramoS no capí-
ma que, através da divisão platônica da alma, remonta talvez às estrutu- tulo VII de A civilização da Idade Média - tirar conclusões suficientemente
ras arcaicas da sociedade "indo-européia", mas que só se aplica muito esclarecedoras no que concerne tanto à estrutura quanto ao conteúdo das
aproximativamente à nossa Idade Média, é preciso considerar, como nos obras e das doutrinas.
convida nosso amigo Mollat (cujas preciosas pesquisas explicam as revol- Em contrapartida, e com todas as reservas quanto a um vocabulário
tas rurais, o movimento valdense e a aventura franciscana), a imensa massa um tanto anacrônico, pode-se desde já destacar alguns elementos signifi-
de miseráveis, marginais que vivem de esmolas e de roubos. É indiscutÍ- cativos do estudo de Le Goff sobre Os Intelectuais na Idade Média (Paris,
vel, contudo, que entre a aristocracia dos proprietários de bens de raiz e 1957). A nova c/asse social, que é aqui definida como um tipo de "intel-
os agricultores de condição ainda servil tenha se desenvolvido, além da ligentsia" medieval, busca, sem dúvida, seu lugar. Ela se coloca freqüen-
categoria não desprezível dos "trabalhadores" e de outros "rendeiros" li- temente a serviço dos "poderosos", únicos que podem alimentá-la; ao mes-
vres, uma nova camada social, em sua grande maioria urbana, mas apre- mo tempo que zomba naturalmente do povo, despreza os ""burgueses",
sentando uma homogeneidade bastante relativa: administradores de bens, acusados de avaritia. E se define, contudo, como Abelardo, pela necessi-
funcionários imperiais ou reais (que em pouco tempo formarão uma nova dade que se impõe a ela de "trabalhar" - não com suas mãos mas atra-
nobreza), chefes de pequenas empresas artesanais, grandes comerciantes, vés do espírito. Proveniente de diversos meios, essa nova classe social é
sobretudo especializados na importação de produtos de luxo, etc. Mas essa recrutada em parte nas massas, que ascendem, assim, pelo saber, a um ní-
classe em ascensão está ainda longe de ser "reconhecida" (no sentido hege- vel social superior. Parece, sobretudo (simplificando bastante as coisas),
liano do termo). O antigo desprezo da crematística continua sendo a ide- que ela desempenha um papel essencial na promoção desses valores de "sub-
ologia dominante. É verdade que, em seu Didascalicon, Hugo de São Vítor jetividade" (que Maritain, em Humanismo integral, definia um tanto apres-
fala das "artes mecânicas" como remédios providenciais à miséria huma- sadamente como estranhos à Idade Média). Le Goff sem dúvida não está
na e, ao tratar da navigatio, frisa o valor das trocas que tornam, diz ele, equivocado ao associar esse fenômeno (ainda que tenha fontes agostinianas
"comum" o que era "privado", mas é ainda mais sensível aos benefícios fundamentais) à própria evolução da estrutura social.
das viagens que tornam os homens familiares uns aos outros e favorecem A teoria abelardiana da intenção como fonte única do mérito ou da
a paz. Ele não faz alusão, bem entendido, ao enriquecimento do importa- culpabilidade, inquietante na medida em que parece inocentar os judeus
dor nem ao sistema bancário que irá se esboçar assim que se saia um pou- tão comumente acusados de "deicidas" e, mais geralmente, de carrascos
co mais do sistema fechado de uma economia de pura subsistência. Será do Cristo e dos mártires, terá lugar nos Manuais de confessores apenas
necessário ainda muito tempo para que se distinga a investida da usura, e tardia e dificultosa mente. Com certeza se relaciona com uma valorização
para que a sociedade por comandita, cujo papel prático desempenhado, nova do indivíduo, bastante sensível nas cartas de Heloísa, mas também
muito cedo, na colonização dos territórios do Leste, nos grandes arrotea- na vida de certas personalidades fortes, especialmente femininas, como
mentos e no nascimento de novas cidades, Duby tão bem demonstrou, Eleonora de Aquitânia. A teoria foi vinculada ao primeiro nominalismo,
encontre seu eco na moral teórica e se reflita nas obras culturais. à curiosidade pelo singular (que Crombie destaca em sua Histoire des
Assim, para falar a linguagem econômica, o "acúmulo" permanece sciences de saint Augustin à Galilée, Londres, 1952). É no século seguinte
bastante limitado ao século XII. Mesmo "livre", o agricultor é, na maio- que a "profissão" de docente começará a ser verdadeiramente reconheci-
ria das vezes, esmagado sob o peso dos foros (enorme renda de proprie- da como tal (parece que Abelardo, que vivia dos cursos que administrava,
dades do grande proprietário, leigo ou eclesiástico); o pequeno senhor se é ainda uma exceção), que o trabalho intelectual encontrará seu verdadei-
endivida imitando a vida suntuosa de seu suserano; a própria Igreja des- ro lugar em uma sociedade de "estados" e não mais de "ordens", que uma
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44 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade
cadeira de professor em uma universidade de grande cidade não será mais IV. A "QUESTÃO DISPUTADA"
indigna de um monge e nem mesmo produzirá o mesmo efeito de escân- DA "FILOSOFIA CRISTÃ'''>
dalo aos olhos daqueles que, corno São Bernardo, não queriam conhecer
outra escola a não ser a scho/a caritatis do convento cisterciense, longe das
"Babilônias" urbanas. Mas o movimento se inicia no século XII e não
COncerne exclusivamente aos clérigos propriamente ditos. O antigo jogral
ambulante está em vias de se tornar um escritor por assim dizer "profissio- Etienne Gilson deixou-nos apenas alguns meses antes de que um pe-
nal", corno o construtor ou o decorador. O poeta da Corte está longe, queno grupo de especialistas - na maioria seus alunos e amigos - pu-
todavia, de conhecer uma verdadeira independência e, da "boêmia" dos desse celebrar o nono centenário de Abelardo. Nessas sessões de traba-
goliardos ao Sobrinho de Rameau, e ao fauno de Saint-Germain-des-Prés, lho e nessas festividades, esteve sempre presente a lembrança do mestre
a tradição de intelectuais famélicos, oscilando entre a servidão e o anar- que tão bem falou de Heloísa e de seu amigo Pedro - amante, esposo,
quismo, se manterá através dos séculos. guia espiritual-, que desejava que amássemos a Deus como ele próprio
o havia amado, pobre criatura, como o amou até o fim a sobrinha de
Fulbert, a mãe de Astralabe, a abadessa do Paracleto. Mas o signatário
dessas linhas tem ainda outras razões para associar Etienne Gilson ao
"peripatético do Pallet". Se devemos a ele, antes de tudo, o fato de nos
ter iniciado, desde 1925, em um domínio de pesquisas que parecia então,
rue d'Ulm e rue de la Sorbonne, um pouco marginal, senão completamente
insólito, e de nos ter em seguida indicado certas figuras e períodos de tran-
sição como campo de estudos particularmente férteis, não nos esqueça-
mos de que, quando Fernand Aubier desejou publicar textos escolhidos
de Abelardo, Gilson nos orientou em nossa seleção, frisando particular-
mente a importância do Dialogus inter Philosophum, fudaeum et Chris-
tianum, obra inacabada e entretanto significativa quanto ao problema tão
disputado da "filosofia cristã" porque nesta se vê, de algum modo, um
cristão incontestável dialogar consigo mesmo, consciente das fontes e raí-
zes hebraicas de sua fé e que ao mesmo tempo se quer, até o fim, verda-
deiro filósofo.
Assim, para Abelardo como para tantos outros (pelo menos desde
o tempo de São justino, tão freqüentemente evocado por Gilson) - mas
,~ I: ' talvez em um modo mais dramático para o autor do Diálogo (se imagi-
na-mos todos os tipos de suspeitas e censuras que essa espécie de dupla
obediência lhe valeu), a questão vitalmente levantada, bem diferente de
um simples debate acadêmico, estava bastante próxima, pelo menos à pri-
meira vista, daquela que, por meio século, iria ocupar por algumas tem-
poradas uma (pequena) parte do mundo dos professores, sem a caixa de
ressonância dos mass media que repercutem hoje em dia o "ruído" da
mais derrisória polêmica em "praças públicas" dificilmente comparáveis
àquelas nas quais, segundo a Escritura (Prov. I, 20) se erguia, na época
de Salomão, a voz da sabedoria.
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Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 47
Sob a aparência de cortesia polida ou às vezes apaixonada, o debate as posições da Ética a Nicômaco IX, 7-8, 11 77 b 29-1178 a23) quanto ao
concernente à própria noção - e à realidade histórica - de uma autênti- caráter "mais do que humano" de uma virtude perfeita.
ca "filosofia cristã" foi muito mais animado do que se teria imaginado. Se o autor tivesse podido levar a termo essa última obra (talvez ima-
Competidor intrépido, Gilson possuía as armas ofensivas e defensivas em ginada antes da condenação de Sens, mas realizada, muito provavelmente,
várias frentes. Alguns adversários, eles mesmos por vezes divididos quan- em seu retiro de Cluny), teria sem dúvida advogado a lex naturalis, encon-
to aos limites do racionalismo (admitindo ou recusando, por exemplo, trando no cristianismo simultaneamente a realização das promessas do An-
Plotino ou Schelling como autênticos "filósofos"), defendiam a pureza de tigo Testamento (às quais ele mesmo se associa, lateralmente, através de seu
uma disciplina que, tanto em moral quanto em epistemologia, deveria ancestral Ismael) e o meio de atribuir pleno valor e eficácia às mais Íntimas
continuar isenta de qualquer contaminação religiosa. Outros, às vezes os exigências de sua razão natural.
mesmos, invocavam a história, recusando-se a descobrir nesta algo que se Sem que se possa afirmar que Abelardo tenha qualificado de "cristã"
parecesse com o círculo quadrado de uma verdadeira filosofia merecedo- uma "filosofia" assim firmada ou coroada por uma adesão à fé, a relação
ra do epíteto de "cristã"; sob esse rótulo falacioso, viam apenas, diziam, entre os dois domínios pareceria bastante clara se Pedro o Venerável, com-
fragmentos de platonismo, de aristotelismo, de estoicismo, mesclados e pondo, por ocasião da morte do amigo e protegido, o seu epitáfio, não usasse
costurados de forma artificial a mitos e a ritos que não decorriam, por sua fórmulas que não somente parecem sugerir um verdadeiro corte entre sabedo-
vez, de nenhum tratamento racional. ria profana e autêntica vida religiosa, como operam também um tipo de deri-
Vindos de um extremo bem diferente, os defensores da "neo-esco- vado semântico. Ele começa, com efeito, por celebrar a vis rationis do dia-
Iástica", certamente sem negar a harmonização final entre razão e fé, de- lético e sua ars loquendi, mas, após tê-la apresentado como uma reencarna-
fendiam a autonomia e o rigor próprio daquilo que consideravam uma ção conjunta de Sócrates, de Platão e de Aristóteles, reserva a palavra philo-
philosophia perennis, podendo servir, bem entendido, de auxiliar à apolo- sophia para designar exclusiyamente a última etapa de sua vida, sua profis-
gética e à teologia, mas possuindo em si mesma, de maneira universal, seu são e seus hábitos de monge beneditino na pax clunisiana, após uma "vitó-
pleno valor demonstrativo e uma espécie de suficiência. Entre os reticen- ria" sobre a sabedoria deste mundo e uma "passagem" a um estado superior.
tes é preciso também mencionar a coorte pouco homogênea dos defenso- Um uso semelhante do termo "filosofia" é bem antigo e o encontra-
res da pureza evangélica. Por desconfiarem de qualquer filosofia pagã, es- mos, no Dialogus, justaposto àquele que opõe aos fiéis das Leis reveladas
tes opunham, em termos às vezes simplistas, o "realismo cristão" ao "idea- o defensor da lex naturalis. Seria absurdo, portanto, atribuir ao Venerá-
lismo grego", censurando, não sem irritação (e de forma freqüentemente vel uma atitude como a de um São Pedro Damião, que rejeitava, toman-
injusta) os tomistas medievais e modernos por preferirem ao Deus-Pessoa, do-as por quase demoníacas, a lógica, a gramática e a aritmética. Nem para
que ama e salva suas criaturas, o Ato puro de Aristóteles, motor indife- o abade de Cluny nem, menos ainda, bem entendido, para Abelardo -
rente de ilusórias esferas cristalinas - ao passo que outros (que não in- mesmo tendo "passado" à Christi vera philosophia, isto é, vivendo segundo
tervieram no debate instituído em torno das teses gilsonianas, mas que a disciplina do claustro - se poderia tratar de renunciar ao exercício da
foram por vezes visados através de Karl Barth) opunham dramaticamente dialética, outrora justificada por Agostinho. Quando Abelardo, justamente
o salto existencial na fé às dialetizações hegelizantes. no período em que compõe seu diálogo, declara que recusa o título de
"filósofo", se for necessário sê-lo para usá-lo, em desacordo com São Paulo,
A dificuldade se deve, por um lado, à polissem ia da palavra "filoso- e quando se recusa a "ser Aristóteles" se o preço a pagar for o de "se se-
fia". Opondo-a à "filomitia" (simples etapa na via que leva a uma busca parar do Cristo" (Confessio fidei), é certo que desacordo e separação per-
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racional da sabedoria), Aristóteles duvidava que alcançar que é "o me- manecem, nesse caso, puramente hipotéticos. Se ele marca aqui, talvez
lhor na natureza inteira" fosse tarefa propriamente "humana" (Metafísica melhor do que em outros textos, o primado de uma fé entendida no senti-
A2, 982 b 7-28). Ora, é a esse áriston que corresponde, no último texto de do paulíneo, está longe de reduzir a "verdadeira filosofia do Cristo" aos
Abelardo, o summum bonum (definido em termos ciceronianos) que o Phi- exercícios de devoção. Na verdade, uma vez que o crente ultrapassa a ati-
losophus coloca como objetivo último de sua investigação. Não é, portan- tude denunciada (desde o começo do Dialogus) pelo judeu - a adesão da
to, surpreendente que o defensor da Lex naturalis não se furte a completar criança a tudo o que lhe ensinam aqueles que a cercam e que ela ama, e,
suas certezas racionais aderindo a uma Lei revelada. Se o autor, de acordo no caso, como escolher legitimamente entre as diversas religiões dentre as
com sua intenção, enfatiza a moral mais do que a teoria, ele alcança, de fato, quais cada uma pretende ser a única verdadeira? - , só um esforço da ra-
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50 Mau,içe de Gandillaç lI
Gêneses da Modernidade 51
Hegel ou Schelling, muito menos engajados na experiência vivida da espi- do Vaticano II (especialmente algumas discutíveis traduções na missa fran-
ritualidade e da disciplina cristã, as leituras são numerosas, desde o deísmo cesa). Aberto a todo tipo de diálogo, era às vezes reticente diante de formas
moralizante de um Semler traduzindo o De pace (idei no Século das Luzes de ecumenismo que favorecem o vago e o equívoco. Se o estudo dos esco-
até às abundantes construções de um romantismo com tendências teosóficas, lásticos latinos nele suscitava, necessariamente, uma crescente atenção aos
com bases em Para celso e em Boehme. judeus e aos árabes do mesmo período, se ele orientou cada vez mais alu-
Gilson certamente não ignorava os pensamentos do Renascimento nos e amigos para a islamologia, colaborando, ele mesmo, com orientalistas
(consagrou a Pomponazzi páginas precisas e abrangentes) nem os sistemas como Vajda e Pines; se nos últimos tempos falou freqüentemente de uma
mais recentes (um grande capítulo do L'Etre et l'Essence demonstra sua "filosofia do Antigo Testamento" (entendida de forma bastante ampla para
familiaridade com Hegel). Mas evidentemente a "filosofia cristã", para ele, incluir o Corão) quando em trabalhos anteriores evocava, a filosofia "cris-
significava algo bem diferente. Gilson se preocupava muito pouco em dis- til", ainda que se trate de temas comuns às religiões monoteístas, como a
cernir temas vindos da teologia cristã no interior de construções, a seu ver, criação, a contingência do mundo e o valor da pessoa, parece ter mantido,
incompatíveis com a religião na qual fora educado desde a infância, tal em relação às igrejas da Reforma, a despeito de grandes amizades pessoais,
como a vivia e a sentia em sua prática cotidiana. Se o naturalismo do sé- uma distância bastante crítica. Mostrou-se provavelmente menos interes-
culo XVI e o idealismo alemão permaneciam para ele como um mundo sado que Maritain nas contribuições das teologias bizantina e eslava, nos
estranho, não possuía nenhuma simpatia real por uma filosofia agostino- pensamentos de um mais longínquo Oriente. Esse incontestávellatino-cen-
cartesiana como a de Malebranche, que um Léon Brunschvicg interpreta- trismo (que não excluía uma vasta cultura e a prática de muitas línguas,
va, com tanta facilidade, no seu próprio sentido. Cada vez mais seu inte- inclusive a russa) permitiu, sem dúvida, que se concentrasse melhor nas
resse de historiador pelo tomismo se tornava plena adesão do coração e doutrinas com as quais tinha mais afinidade, e é nesse quadro, voluntaria-
do espírito. Sem ignorar a importância das reflexões patrísticas, o papel mente restrito, que conduziu sua investigação e defendeu suas teses, cada
de Santo Anselmo (com sua palavra de ordem de uma (ides quaerens intel- vez mais marcadas pelo primado da teologia.
lectum) e a participação das escolas franciscanas na elaboração da filoso- Na perspectiva que havia adotado, não poderia cogitar de se interro-
fia cristã, à medida que, a cada edição, o livro de Gilson sobre o pensa- gar acerca dos elementos babilônicos, egípcios, iranianos, que constituíram,
mento de Santo Tomás se avolumava, o autor se sentia cada vez mais pró- em parte, o pano de fundo sobre o qual se fixou, pouco a pouco, a revela-
ximo das principais posições do doutor angélico. ção paleotestamentar (e sobre a qual o texto bíblico, em suas camadas su-
Para expor suas teses, Gilson tinha decididamente adotado não a or- ' perpostas e justapostas, traz ainda mais de um vestígio, apesar da purifica-
dem artificial de uma neo-escolástica que se queria pura filosofia, mas a i ção "sacerdotal" das diversas tradições, na época do cativeiro babilônico).
da Suma teológica, convencido de que o Aquinate tinha expressado com: Se tivesse se detido nesses temas, talvez tivesse reconhecido a inextricável
exatidão seu pensamento de filósofo através da própria edificação daqui- ' confusão entre imagem e razão, entre o núcleo de uma mensagem propria-
lo que chamava doctrina sacra (melhor, em todo caso, do que nos comen- mente religiosa e todas as sedimentações culturais que moldam os modos de
tários de textos aristotélicos, nos quais ele traduz menos diretamente sua i expressão, que freqüentemente o falseiam ou o deformam. Ora, é todo esse
posição pessoal). Nessa filosofia, colocada a serviço de uma teologia, tra-!i complexo conjunto -ligado a outras contribuições posteriores e, simulta-
tava-se, para o historiador, de definir a impregnação e a modificação pe-: neamente, ou pouco após, às conquistas da razão helênica - que o cristia-
los data fidei de um conjunto de doutrinas aristotélicas, já infletidas (e i nismo devia herdar enquanto corpo de doutrina e realidade sociopolítica. Para
enriquecidas) pelos elementos neoplatônicos (provenientes, sobretudo, do: discernir esses diversos elementos e instituir um rigoroso confronto entre aquilo
Pseudo-Dionísio e de Santo Agostinho). que diz respeito à fé e aquilo que pertence, antes, à reflexão filosófica, seria
Gilson compreendia esses fundamentos da fé - e é um bom método necessário um trabalho muito minucioso, extenso e ardiloso, e que ousasse
I
-tal como Santo Tomás os havia compreendido, mas igualmente tal como abrir espaço a certas analogias estruturais (não por isso "redutoras") entre
ele mesmo os havia recebido no catecismo e no seminário. Ele se interessa! omistériocristãoeessesgrandesmitosdevastaextensão~concernentes à morte
muito pouco, parece, pelos trabalhos dos exegetas e pelos métodos moder- e à ressurreição de um jovem deus salvador, aos sacrifícios de inocentes, às
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nos da hermenêutica (segundo ele, o único "modernismo" que tivera êxito purificações pelo fogo e pelo óleo, às comunhões omofágicas .
fora o de Santo Tomás). Católico fervoroso de estilo tradicional (não se diz Igualmente complexo é o pano de fundo religioso de toda filosofia.
"tradicionalista "), iria se inquietar, mais tarde, com as diversas subseqüências Gilson bem o sabia, e, por várias vezes, evoca os resíduos politeístas na me-
IV (em nada diferente, pensa ele, daquela que teria aprendido se tivesse: cialmente estranhos aos próprios artesãos dessa obra, permitiu definir
permanecido, até o final, no seminário de Notre-Dame-des-Champs), quase: como "cristã" toda filosofia que, "ainda que distinguindo formalmente
não possuía vínculo aparente (nem simpatia nem hostilidade) com o con·' as duas ordens, considera a revelação cristã como um auxiliar indispen-
I
,,,I;: junto de crenças e de hábitos religiosos com os quais ele fora, desde a in· sável da razão" (I, p.39).
fância, solidamente impregnado. Paradoxalmente, foi na Sorbonne, a con· Em vez de "considera" poder-se-ia dizer "utiliza", o que permitiria
selho de Lévy-Bruhl (a quem sempre rendeu uma calorosa homenagem)" estender melhor a noção às filosofias posteriores, menos organicamen!e
que estudou as fontes medievais de Descartes, prolongando em seguida sua! ligadas ao cristianismo, por vezes hostis, e por meio das quais se manifes-
pesquisa em tese de doutorado. E apenas então - de maneira progressi·! ta, entretanto, (como Gilson bem demonstrou) a mudança operada em um
va, à medida que conhecia melhor o. tomismo e que, pa.ra situá-lo com ~aisi ce~t~ númer,o .de conceitos ao longo de sua ,associação med~eval c..?m re-
precisão, ele estudou Santo Agostmho e todo o con) unto das doutrmasl qUlSltoS teologlCos. Talvez fosse melhor tambem levar em conslderaçao que,
medievais - , se definiu, para ele, a "questão discutida" an sit et quae sitl na maioria dos escolásticos, o apelo à revelação como "auxiliar indispen-
philosophia christiana. ! sável da razão" permaneceu, no mínimo, inconsciente. Certamente, se ocor-
~
i . . ll\JSTITUTO DE PSiCOlC'GiA - UFRGS
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l
Maurice de Gandillac Geneses da Modernidade B I B L I OT E C A 55
zões e primeiramente porque se queriam mais teólogos do que filósofos, que Agostinho (com sua concepção das razões seminais e sua teoria da ilu-
julgaram paradoxal, senão inconveniente, inverter a fórmula de uma phi- minação) os dois extremos da cadeia (nada de liberdade e predestinação, aqui,
losophia ancilla theologiae. O fato é que, se houve auxiliaridade e serviço mas dependência radical do finito e estatuto ontológico da criatura). A esse
(senão servidão, o que Dante rejeita vivamente, por respeito à donna gentile, respeito, o capítulo 7 do tomo 1 (sob o signo da gloria Dei) é bastante escla-
consoladora de Boécio e inspiradora do "mestre daqueles que sabem"), essa recedor, mas, por mais eloqüentes que sejam as fórmulas agostinianas acerca
ajuda foi recíproca, e a relação operou-se nos dois sentidos. das "magnificências do mundo" e acerca do homem - corpo e alma - , defi-
Dentre os temas escolhidos por Gilson para sua demonstração, o mais nido, com efeito, como opus magnum et admirabile, não se deve esquecer
caro é, seguramente, o ontológico. Evocando, não sem humor, Condorcet que o vibrante elogio das artes e das ciências concerne expressamente, na
e o culto revolucionário do Ser supremo, o conferencista de Aberdeen sus- Cidade de Deus (XII, 24), aos derrisórios "consolos" reservados, desde a que-
tenta que, mesmo reduzida à abstração deísta, essa noção seria impensável da, a essa humanidade na qual os raros eleitos mesclam-se à massa damna-
sem a reflexão patrística e medieval acerca da revelação a Moisés do nome ta; humanidade que faz, na maioria das vezes, o pior uso dos melhores dons5 .
divino tal como reportado no Êxodo. Ele não ignora que o "Eu sou quem Não há dúvida de que Gilson mostra, em seu capítulo sobre a "an-
sou" significa, antes de tudo, de forma negativa, o mistério do insondável, tropologia cristã" (I, p.173 sq.), que a "reabilitação" do corpo exigida pelo
e que sua interpretação ontológica só foi historicamente possível através do dogma da Ressurreição (mas não se trata, na boa doutrina, de um "corpo
on ne on do Estagirita (senão o pantelous de Platão, subordinado ao Bem glorioso" ao qual parece difícil atribuir funções propriamente biológicas?)
sobre-essencial). Ele pensa, entretanto, que essa osmose ressaltou uma noção fornecia argumentos em favor do hilemorfismo aristotélico. Essa posição
nova do Ser infinito como ato de existir e fonte de existência. Ao elaborá- tomista, com o papel atribuído à inteligência como forma única do animal
la, em diversos graus de precisão, os escolásticos discerniram, diz Gilson, I racional (e conferindo por ela mesma sua substancial idade ao composto
conseqüências que implicavam sem dúvida determinadas intuições platônicas humano), destaca, sem dúvida, a dignidade de uma criatura criada no últi-
e aristotélicas, mas das quais os Antigos não puderam ter plena consciência; mo dia como imagem de Deus e, por sua forma-intelecto, aproximando-se
de forma que a leitura medieval de suas obras teria acarretado, para a "meta- das inteligências puras. Mas não se deveria restringir excessivamente, na
física grega", "progressos decisivos" (mas sem ruptura radical, visto que esse busca dos elementos constitutivos do "humanismo", a participação dos
desenvolvimento iria no mesmo sentido do pensamento helênico; "arco mag- Antigos (o aspecto divino do nous aristotélico como da psiché platônica, o
nífico cujas pedras, todas, ascendem em direção a essa pedra angular", I, p.86).I! valor reconhecido por Epicteto à pessoa singular desempenhando seu pa-
Não se pode seguir o encaminhamento de Gilson em todas as suas I pel no teatro do mundo etc.). Gilson se conforma, de forma bem honesta,
etapas. Se concordamos com ele, quanto ao essencial, no que diz da ana- ao fim de seu livro (11, p.20S): para levar seu projeto a termo, seria neces-
logia, da causalidade e da finalidade, que possamos entretanto marcar ai-I, sário que ele apresentasse mais de uma vez "uma grave injustiça em rela-
guma reserva quanto ao capítulo dedicado ao "otimismo cristão" (I, p.llll ção ao pensamento grego".
sq.), o qual parece subestimar um pouco, no cerne de uma experiência vi-! Tratando, por exemplo, da teologia de Aristóteles, Gilson mantém, com
',,'I
vida e pensada durante longos séculos, a obsedante atualidade do demô- certa predileção, um politeísmo remanente (sem insistir, aliás, na angeologia
11,::': nio como "príncipe deste mundo", a corrupção da natureza pelo pecado cristã, nos espíritos motores dos astros e em um culto dos santos no qual,
original, o apelo ao contemptus saeculi, o horizonte de um inferno eter- sobretudo no caso de Maria, a dulia toca, às vezes, em uma quase-latria). Ele
no. Temas que tiveram seguramente fortes ressonâncias práticas e teóri- mantém, sobretudo, a imagem de um primeiro motor, primus inter pares (isto
cas no universo pós-medieval, e que, precisamente - abusando, às vezes, é, subordinado a muitos outros). E entende o Pensamento do pensamento
da fórmula - tem-se o costume de definir, em geral de um modo pejora- como excluidor de qualquer conhecimento do universo sublunar - o que
tivo, como herança "judaico-cristã". O que não é completamente sem sugerem seguramente vários textos, mas o que parecem invalidar passagens
pertinência, mesmo se for necessário revelar, em um certo desprezo do mun- como Met. LI0, na qual a imagem do general e do exército implica uma cons-
do sensível como na depreciação do corpo, mais de um componente pla- ciência desempenhando, na oikia cósmica, o papel de um chefe único (1075
tônico-gnóstico, mas infiltrado muito rapidamente no cristianismo e, por a 14.:.24). E, a propósito do personalismo, se é normal lembrar que, para o
um lado, já presente no judaísmo posterior. Estagirita, os indivíduos passam, enquanto apenas as espécies permanecem,
É bem verdade que Santo Tomás, afirmando a eficácia das causas se- é exagero observar aqui uma "irrealidade" (p.197) dessa substância primeira
gundas e atribuindo ao intelecto um trabalho positivo, mantém melhor do que, em sua singularidade, é justamente a única existente.
66 Maurice de Gandillac
Gêneses da Modernidade 67
dade e Encarnação. Ao evocar Sócrates, Hermes e a Sibila, Alain denun- tros nomes e com uma indispensável fecundidade, uma das obsessões de
cia as tolices de Epicuro e as argúcias de Aristóteles; se é sobretudo severo Alain; esta parece excluir, se não as anomalias morais denunciadas no De
quanto à loucura maniqueísta (de fato, a dos cátaros que, segundo ele, planctu, especialmente o homossexualismo que aos "martelos de Vênus"
deviam seu nome ao fato de se relacionarem com gatos, mas cujo crime substitui as "bigornas" [P.L coI. 450 b], pelo menos a existência real de
era sobretudo o de pretenderem se libertar do "mau" princípio - o da monstros e de híbridos) - mas antes de tudo, e mais fundamentalmente,
geração - através de um luxurioso desperdício de seu líquido seminal, ed. operação específica da Natura procreatrix, esse personagem alegórico que
Glorieux, p.130), parece julgar "insano" esse mesmo Platão que, em um aparece, com diferenças sensíveis de posição e de função, nas duas gran-
texto de estilo completamente diferente (Anticlaudianus I, 132-134), ele des obras "literárias" de nosso autor.
louva por ter sabido, "mais divinamente" do que outros, "sonhar, com um Antes de chegarmos a esses escritos singulares, lembremos - para II
espírito profundo, os arcanos das coisas". Segundo a Suma Quonian ho- melhor percebermos determinados contrastes - o tom desdenhoso (em um
mines (p.125), seu mais grave erro seria o de ter explicado a eternidade, texto posterior que poderia ser um arrependimento, senão uma retratação)
sem dúvida não a do mundo (Alain não ignora o Timeu) mas a das Idéias com o qual o autor do sermão "De clericis ad theologiam non accedentibus"
e da matéria (condenação que precisa e limita o que sugere o "De Sphoera" (Textes inédits, p.274 sq.) considera tudo o que para ele pode ter relação
quanto à materia prima). Nessa mesma perspectiva, o teólogo lembra a com uma vana philosophia. Certamente não desconhece a prescrição fei-
rejeição, pela Igreja, das teses como as de Orígenes sobre a preexistência ta aos hebreus de carregar em seu êxodo os "despojos" dos egípcios (lem-
das almas (p.289). brada, aliás, desde o início de Quoniam homines, p.120); mas o sermão
A polissemia do termo natura (de forma alguma próprio a Alain) se "De clericis" frisa sobretudo a obrigação, para a ratio naturalis, de se
manifesta com total evidência quando lemos, por exemplo (p.139), que "a manter em seu nível de "servente". Alain escreve aqui ancilla coelestis
natureza do próprio Deus" não poderia ser "plenamente" compreendida philosophiae, tomando "filosofia", no sentido antigo, como significando
nec in via nec in patria, em nenhum de seus quatro aspectos: essentia, subsis- modo de vida mais do que disciplina científica. O trabalho da razão não é
tentia, substantia e persona. Mas não resta dúvida de que aqui o teólogo senão um tipo de "estribo" em direção a essa intelligentia (ou intellec-
- diferentemente de João Escoto descrevendo a divisio naturae, e certa- tualitas) que mal se distingue daquilo que certos textos (mesmo o De planctu
mente de Honório de Autun em sua Clavis physicae - evita englobar, sob e o Anticlaudianus) designam como (ides (às vezes ela mesma personifica-
a denominação de "natureza", o conjunto do incriado e do criado. Insis- da como o são ratio e natura). Mas é preciso sobretudo destacar o quanto
tindo no caráter "gratuito" da justificação e da exprobração (Deus "co- ° Egito é aqui desvalorizado, com suas triplas "trevas" - palpáveis, inte-
~ :: roa" apenas seus próprios "dons", não os "méritos" humanos, e sua gra- riores e exteriores - , que simbolizam o próprio "mundo" (objeto de um
ça procede apenas de "sua vontade", segundo um justum judicium que necessário desprezo, assim como todos os seus carnales scientiae quae sunt
),,'"
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exclui sem dúvida tudo o que é arbitrário, mas que permanece pela razão vasa (ictilia, p.277). Em uma tal perspectiva, a philosophia terrestris não
o.' natural perfeitamente occultum), Alain enfatiza que, per se, o homem é um é senão uma árvore inútil, sine (oliis e sine (ructu.
f';' spiritus vadens ad peccatum e non rediens ad bonun (p.243-245). E nota Menos radical, a posição indicada por Quoniam homines corresponde
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várias vezes o caráter de algum modo "milagroso" da criação propriamente melhor, sem dúvida, ao que foi o pensamento de Alain na maior parte de
dita, a que se realiza ex nihilo e sine ministerio inferioris causae ("Expositio sua carreira. Primeiramente porque ela dá lugar a certas continuidades e
prosae de Angelis", Textes inédits, p.199). Quoniam homines precisa que transições entre natureza e graça, notando, por exemplo, a inserção, na
o homem não foi absolutamente feito opere naturae, sed sola Dei auctoritate própria "natureza" de Adão, de uma "possibilidade" de não morrer. A
(veremos entretanto que, no De planctu, quando se trata de produzir um natureza, com efeito, tende ela mesma à vida, não à morte; graças à "ár-
novo Adão, uma espécie de homo perfectus feito para um mundo que vore da vida" plantada no paraíso terrestre, o homem inocente podia sub-
chegou à perfeita harmonia, Deus cria apenas o spiritus, deixando à Natura sistir colhendo e consumindo frutos "naturalmente" destinados à sua sub-
o resto da obra). sistência; assim, ele teria podido escapar (sem milagre) à doença e ao en-
Essa (actio divina, prolongada por uma necessária conservatio (sem velhecimento. Como se vê, as fronteiras entre o antes e o depois da queda
a qual a "natureza" do homem, como a do Anjo, não poderia subsistir), são permeáveis (Alain pensa, bem entendido, que Adão, caso não tivesse
se distingue da simples procreatio, operação reprodutora dos seres mor- pecado, teria se dedicado a um "comércio carnal", meio normal de "cres-
tais engendrando-se segundo a mais rigorosa taxinomia (eis aí, com ou- cer e multiplicar"; ele não acrescenta, como fará Tomás, que, senhor de
73
72 Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade
se fez receber, como em um leito nupcial, pelo seio de uma virgem, "con-
como Natura vel Deus naturae ("Hierarchia Alani", Textes inédits, p.228).
juntamente filha do Pai e mãe do filho", V, 480-485).
Com exceção do sexo (e talvez da idade) ele praticamente não se distingue
Não se trata igualmente do Adão Kadmon das tradições cabalistas, ainda
de nosso Dei vicaria com o qual parece muito intimamente associado, tan-
mal elaboradas na época em ambiente judaico e pouco conhecidas pela cris-
to no "sacerdócio" quanto na obra de procriação. É ao contrário como uma
tandade; tampouco do Adão de antes da queda do Gênesis, já que precisa-
habitante do mundo sublunar que o Anticlaudianus apresenta Natura. Parece
mente o homo perfectus não é um retorno ao passado, mas o anúncio de
que esta não deve absolutamente abandonar ela mesma sua morada terres-
tempos novos. Em alguns traços ele prefigura o homo maximus de Nicolau
tre, pois para trazer ao Céu a súplica deliberada com as Virtudes é forçada
de Cusa, tal como aparecerá no terceiro livro da Douta ignorância, verda-
a recorrer à mediação de uma outra ela-mesma, Prudência ou Fronésis (ob-
deiro nexus entre o infinito divino e o indefinido cósmico. As diferenças são
servemos que, se tomarmos essa palavra grega em seu sentido platônico mais
evidentes, pois a entidade postulada como exigência dialética, culminação
do que aristotélico, ela evoca a Sabedoria em pessoa).
de todas as potências naturais chegando à ultrapassagem de si, se identifica
Mas isso não é tudo. Essa mensageira - qualificada, assim como
no Cusano ao Deus-Homem da fé cristã (ainda que a Natividade, como em
Natureza, de virgo parens rerum - não percorre senão uma parte da es-
Eckhart, se despoje nele, bem mais do que em Alain, de qualquer determi-
trada em sua primeira carruagem. Em Dante, após ter substituído Virgílio
nação temporal). Pode ser que Nicolau tenha, diretamente ou não, se inspi-
(e Estácio), Beatriz cederá o lugar a São Bernardo. Aqui ela vai até o fi-
rado em Alain. Quando escreve suas Con;ecturas, ele lamenta não ter mar-
nal, mas conhece até na última etapa, diante do céu empíreo, uma dessas I
cado suficientemente, em sua obra precedente, a transcendência de Deus. A I'
fraquezas que marcam, para Alain, a presença de um tipo de ruptura, de
esse propósito, retoma um dos vocábulos do sermão alaniano "De sphoera"
passagem a um nível superior, sem que nenhuma dessas aberturas seja in-
(a intellectualitas superposta à intelligentia) e, ao aplicá-lo não apenas a Deus
transponível. Abandonando o carro preparado pela Ratio, Fronésis recebe
mas também - em uma outra perspectiva - ao próprio cosmos (que per-
o reconforto de uma outra dama, chamada muito enigmaticamente Re-
de então sua aparência medieval), encontra igualmente a famosa imagem da
gina poli; ela é geralmente identificada à teologia, mas apresenta traços
esfera infinita (outra versão: inteligível) cujo centro está por toda parte e a
que a aparentam, senão à Sofia gnóstica, pelo menos à Sabedoria bíbli-
circunferência em lugar nenhum (poder-se-ia lê-la nas Regulae, no Livro dos
ca, aquela que estava presente em Deus desde a criação do mundo, sím-
XXIV sábios, em São Boaventura, e ainda em vários outros lugares).
bolo superior da virtude da sabedoria e da natureza procriadora, ligada,
Três séculos após o autor do Anticlaudianus, em uma conjuntura com-
ela mesma a esse Noys~' que se é tentado a comparar ao Verbo, de for-
pletamente diferente, o Cusano explicitará (em ligação com seu tema do homo
ma que a continuidade se afirme desde a matéria até mesmo ao mistério
maximus) os elementos de algum modo "progressistas" da civilização hu-
da Trindade.
mana, imaginando um trabalho coletivo e convergente, um avanço, ao mesmo
Mas o que mais cria problema no Anticlaudianus é o projeto de Na-
tempo científico e religioso, rumo à "concordância católica" e rumo à "paz
tura e de seus companheiros terrestres; pois não se trata mais apenas de "ex-
da fé". Alain imagina antes uma Natureza que recebe do alto, por puro dom
comungar" os vícios contra a natureza para encontrar uma harmonia an-
divino, a alma do homem perfeito, e fabrica em seguida, como tudo o que
terior. O trabalho conjunto pelo qual o supremo Artesão e sua colabora-
a humanidade até então produziu de melhor, tanto antes como após a Re-
dora (terrestre sem dúvida, mas igualmente cósmica, em virtude da ligação,
denção, um corpo adaptado a essa alma, em vistas de um tipo de idade de
sempre reafirmada, entre o microcosmo e o macrocosmo) irão constituir
ouro, muito inspirada nos Antigos, e que seria talvez o fim da história, vi-
um "homem perfeito", dotado de uma "alma pura", quase não pode se iden-
são atenuada de uma escatologia simplificada e desdramatizada. Apesar do
tificar à missão do Verbo encarnado, inicialmente porque a relação entre
uso da palavra spiritus para designar a alma do novo homem, não parece que
pessoa divina e pessoa humana de Jesus corresponde muito pouco à rela-
haja nada em Alain que anuncie verdadeiramente o Terceiro Reino de Joa-
ção que indica o poema entre a alma celeste descida aqui por intermédio de
quim de Flore, e, se a excomunhão do De planctu, proferida contra os vio-
Fronésis, e corpo material que forja para ela Natura, mas mais simplesmente
ladores da lei natural, é como que o substituto de um Juízo Final, o ordo novus
ainda porque a viagem simbólica aqui narrada ocorre expressamente após
do Anticlaudianus descreve sobretudo um universo sem doenças, sem enfer-
a Encarnação (guiada pela Regina poli, Fronésis aprende lá em cima de que
midades e sem ódio, não verdadeiramente uma Jerusalém celeste.
maneira maravilhosa, "em vista de nossa salvação", o Filius artificis summi
Conforme já observamos, encontramos, através de toda a obra lite-
rária de Alain, o grande tema central da ascensão progressiva, mas tam-
); Transcrição latina do naus grego. (N. da T.)
Gêneses da Modernidade 75
74 Maurice de Gandillac
I
"i
bém uma sumária dialética dos opostos de tipo platônica (um e múltiplo, hiato da síncope) perscrutar os mistérios da ordéhl divina (VI, 73-155). Cer-
mesmo e outro, finito e infinito), com uma multiplicação freqüentemente tamente, nesse nível, reina a sola voluntas e, sob o "ditame do mestre", "a
fatigante de oxímoros (eis alguns exemplos, dentre tantos outros: inaequalis regra se cala"; o que se busca, para além de qualquer ratio, é, sem dúvida
aequalitas, de(ormis con(ormitas, divisa identitas, odor sapidus insipidusque alguma, a sola (ides (VI, 180): a coisa, no entanto, não é tão simples, pois
sapor, mors vivens, moriens vita, in De planctu naturae, 443 c, 445 etc.). longe de eliminar a razão, a fé aqui tende a satisfazer seus verdadeiros de-
Mais do que uma coincidência de opostos, Alain acentua paradoxos que sejos e, antes de tudo, a sistere seus somnia (VI, 80). O que no momento
provocam, em seus personagens, síncopes fisiológicas e "êxtases". No De Fronésis discerne lá no alto, incluindo-se os mistérios da predestinação e o
planctu, é o desfalecimento do próprio poeta quando lhe surge em sonhos motivo original de todas as vocações, é muito menos um conjunto de de-
a dama Natureza e quando ele se encontra "sepultado na alienação do cretos do que todo um jogo complexo de celestes ideae e de ingenitae speeies
êxtase, nem morto, nem vivo" (in extasis alienatione sepu/tus, nec vivus (VI, 214 sq.), realidades, pois, em nada heterogêneas aos modelos ofereci-
nec mortuus) (442 b) - estado que não corresponde a nenhuma das duas dos à Natura para conduzir sua obra demiúrgica.
espécies de "saídas de si" apresentadas no Prólogo da suma Quoniam No outro extremo da escala, as continuidades são igualmente mani-
homines: nem o arroubo místico diante do indizível mistério divino nem, festas. O projeto renovador de Natura é deliberado em concílio e é um desejo
ainda menos, esse mergulho degradante nas paixões que faz do homem, comum do universo criado que Fronésis irá apresentar a Deus. Pilhas dessa
metaforicamente, um lobo ou um porco. O êxtase é aqui o assombro de mensageira, nas quais ela mesma infundiu "todos os dons de Sophia" (Il,
ver surgir essa Dei auctoris vicaria que, no momento desejado, extraiu, diz 331), as sete artes liberais que constituem as partes do carro ascensional pouco
ela expressamente, da matéria informe, o rosto humano do poeta, organi- lembram os sombrios despojos egípcios. Aqui a velha mitologia funde-se
zando um corpo digno de receber como consorte o espírito que lhe con- sem falha aparente com a analogia cristã. Minerva, com efeito, vendo as
vém (spiritus é aqui tomado por anima, devido à metáfora nupcial) e con- artes resplandecerem com um tal brilho, ordena ela mesma ao maravilho-
ferindo-lhe a harmonia sem a qual ele teria repugnância pelo sponsus di- so veículo que tome a rota do Céu para aí perscrutar "os segredos de Noys".
retamente saído das mãos divinas (442 c). Ao longo da subida, é com o mesmo olhar que Fronésis parece perscrutar,
Esse discurso de Natura nos lembra que a vicaria é responsável ape- à sua passagem, as hierarquias celestes (e diabólicas), os fenômenos me-
nas por um receptáculo, mas comparado à esposa do Cântico, e que deve teorológicos, e o movimento dos planetas com seu duplo aspecto físico e
ser compreendido no sentido mais amplo, visto que comporta explicitamente, astrológico. Certamente, para além das constelações, os arcana Dei a as-
além do sentido, a memória e o raciocínio (o que veio do céu sendo apenas, sombram e fazem-na balbuciar (V, 126-127), mas logo o auxílio de uma
em suma, a ponta superior da alma intelectiva, esse nous que também Aris- espécie de irmã mais velha a conduz para além de si mesma, na ascensão
tóteles dizia vir "de fora"). O todo fabricado "à semelhança" do "grande daquilo que Alain não hesita em denominar um "Olimpo" (V, 258 sq.). Ora,
mundo" do qual nosso corpo é de certa forma o "espelho" (443 b). Sem é curioso que, mesmo nesse nível, que diríamos puramente teológico, ao lado
dúvida permanece a oposição entre a operação divina e a de sua auxiliar, dos Serafins, dos Querubins e dos Tronos, em companhia agora dos bem-
reduzida a forjar seres caducos (de uma certa maneira potentia impotens, aventurados que, sem renegar a carne, forçaram-na a servir ao espírito (V,
ela forja "para a morte", ela que tanto ama a vida). Se é verdade, entretan- 457), a viajante contemple ainda realidades paradoxais, mas de ordem fí-
to, que ignora os mistérios da Natividade no que estes possuem de inson- sica, não apenas as águas celestes presas ao cristalino, cujo gelo nenhum fogo
dável, ela é incessantemente conduzida até à fé. Ainda que o domínio pro- derrete - fenômenos que excedem as leis da Natureza mãe (excedunt matris
priamente celeste não seja seu "ofício", ao Credo ut intelligam de Anselmo naturae jura) (V, 368) e diante dos quais a filosofia fracassa, pois eles cor-
ela opõe literalmente um Seio ut credam (446 b). Assim, como o compara- respondem a "formas novas" e a "novas leis" (V, 425) - , mas, ainda uma
tivo entre o positivo e o superlativo (Ala in adora as metáforas gramaticais), vez, realidades de ordem simplesmente meteorológicas, responsáveis pelas
ela é efetivamente o meio entre o humano e o divino. precipitações de granizo e pelos temporais (V, 325).
No Anticlaudianus, quando Fronésis, diante do Céu empíreo, perde Seria cansativo acompanhar todos esses episódios que se sucedem e
a consciência e recebe da Regina poli (chamada matrona (ides) um maravi- se repetem. Face a tantos mistérios, Fronésis passa mal mais uma vez. In- ~
lhoso espelho que, assim como as etapas intermediárias oferecidas na Re- tervém agora Pides, caridosa matrona diante da qual vemos Ratio se in-
pública de Platão aos prisioneiros libertados, deve proteger seus olhos do clinar (Ratio que, como Abraão, obedece às ordens primeiramente enten-
excesso de luz, de forma que ela possa progressivamente (apesar do falso didas como contrárias à moral natural e reconhecidas em seguida como
78 Maurice de GandiUac 79
Gêneses da Modernidade
VI. OS DOIS FUNDAMENTOS DA ORDEM ESCOTISTA
/1
Gêneses da Modernidade 81
ção e de submissão permite estabelecer, segundo os tempos e os locais, a o papel de causa subordinada em companhia da imaginação, mas em um nível
melhor (ou a menos ruim) divisão de bens e de autoridades, o limite ra- superior - encontramos, de maneira sem dúvida mais complexa, o mesmo
zoável dos ganhos e dos benefícios. tipo de cooperação. Certamente a vontade é "potência principal", pois a
Esse jogo de dois termos encontra-se igualmente operante, pro statu isto beatitude, fim último visado pelos atos humanos, diz respeito à posse e à
- aí onde se impõe de fato o recurso ao sensÍvel- na negocia tia por meio fruição mais do que ao puro saber, Mas se é verdade que Duns Escoto opõe
da qual o intelecto agente se apóia no fundamentum in re, tal como lhe é mais nitidamente do que os outros a livre escolha da vontade a essa espécie
oferecido pela experiência imediata, para encontrar as articulações do ser de necessidade que força o espírito a não mais abandonar o bem reconheci-
indeterminado, formas genéricas ou específicas, e mesmo essas diferenças do como tal, o Doutor sutil afirma a função "ostensiva" dessa própria ade-
singulares que, em nossa condição de viatares, não assimilamos senão em são 10 , a propósito da "sindérese"). E essa causalidade, subalterna mas efe-
nível da espécie, por não podermos alcançar a "razão própria" do indivíduoS. tiva, da razão se aplica mesmo com tanta insistência ao caso limite do actus
Se a recepção da imagem não é algo anterior à formação no intelecto humano fidei, a ponto de um tomista como Caetano ter podido se perguntar se Escoto
de um canceptus realis, no status iste (o qual poderia efetivamente estar li- aqui não atribuía um peso exagerado ao intelecto 11,
gado às conseqüências do pecado), deve-se frisar que a cooperação entre causas Que não se desconsidere, assim, no que concerne às relações da fé e
hierarquizadas pertence, como tal, à própria natureza do criado, da razão (e especialmente a delimitação das credibilia e scibilia), a dife-
Do mesmo modo, à questão de saber se o intelecto é "a causa total rença de perspectiva entre Escoto e Tomás. E também não se deve con-
que engendra um conhecimento atual, ou a razão desse engendramento" fundir com a verdadeira doutrina do doutor angélico interpretações como
(o que não constitui uma alternativa, mas os dois aspectos de uma mesma as que Dante tende a tecer, quando parece atribuir ao "filósofo" e ao im-
hipótese), Duns Escoto responde que um intelecto dotado de um tal poder perador, ao lado do domínio reservado ao papa (a beatitude no além), uma
não deixaria de conferir a si próprio presentemente um saber sem imperfeição, vasta esfera, teórica e prática, correspondente à felicidade que se pode al-
o que não é, evidentemente, o caso. É preciso, portanto, admitir um "con- cançar neste mundo graças às lições do maestro di calor chi sanno 12 • En-
curso" entre a "alma" e o "objeto presente,,6, mas sem entender com isso tre esses setores, o equilíbrio deve ser assegurado por meio da referência
que a causa ativa colocada como superior já contivesse em si, em um modo comum a um Deus único, porém muito paradoxalmente o poeta que pin-
"eminente", a virtude causal da causa ativa subordinada, contentando-se, ta com tal refinamento os sofrimentos infernais parece esquecer as conse-
por assim dizer, em delegar-lhe uma parte de seus próprios poderes, ou mesmo qüências do pecado (e mesmo os limites que sua finitude impõe a todas as
em usá-los como uma ferramenta, Quando se trata, como aqui, da coope- criaturas) quando descreve como possível um império terrestre que una
ração entre o espírito e a coisa, ou, em um plano completamente diferente, todos os homens sob a sábia direção de um chefe, atento às lições de Aris-
das respectivas participações do macho e da fêmea na obra procriadora, cada tóteles, acrescentando que, visto que "Deus e a natureza não fazem nada
virtus desempenha seu papel particular, de forma que o resultado que pro- em vão" 13, nessa comunidade ideal se atualizará plenamente, em todas as
duzem "a mais perfeita e a menos perfeita" pode ser "mais perfeito" do que épocas e locais, o que encerra "em potência" a "virtude intelectiva" da
seria, sozinha, a ação da "mais perfeita"?, Também o calor solar, ainda que humanidade 14 , Fórmulas que fazem pensar que a humanidade assim uni-
seja "menos nobre" que o do animal, pode cooperar com este para engen- ficada poderia alcançar esse "último fim" que lhe conferia o "quase divi-
drar um ser vivos, e vemos aqui como esse procedimento permite conciliar no" Aristóteles, "digno de fé e de obediência"lS,
com a cosmologia judaico-cristã (que atribui mais dignidade às criaturas Certamente a posição de Santo Tomás é inteiramente diferente, O
vivas do que aos corpos celestes inanimados) um princípio da biologia aris- autor do Convivia parece acusá-lo exatamente por ter feito da filosofia uma
totélica no qual se discernem traços de teologia astral. "serva" da teologia, ao passo que, para ele, esta merece, como qualquer
Mecanismos análogos permitem que o intelecto, único capaz de con- autêntico saber (aqui a donna gentile, consoladora de Boécio, encontra-se
ceber o princípio da indução, se apóie na própria experiência para ultrapassar com essa teologia que é raciocínio sobre a fé mais do que verdadeira "ciência
a simples expectativa daquilo que Ockham denominará os hábitos da natureza divina"), a posição de "rainha" em uma espécie de harém que comporta
e, assim, constituir um saber autêntico acerca das causalidades naturais (por
mais contingentes que sejam em relação à liberdade primeira da onipotên-
várias delas (como as concubinas e as criadas), todas subordinadas à "pom-
ba sem mácula" da pura contemplação 16 . Confirmada pela própria estru-
.•
cia criadora 9 , Em um campo totalmente diferente - no qual a posição es- tura do Paraíso descrita por Dante, seus céus superpostos e por fim esses
cotista é freqüentemente distorcida, desempenhando a inteligência, dessa vez, degraus escalonados a tal ponto que mesmo Beatriz deve ceder o lugar ao
•
.. Comunicação apresentada no Congresso Escotista Internacional, em Oxford e
em Edimburgo em setembro de 1966 (posteriormente publicada em Studia schoLastico-
scotistica, Roma 1968).
em virtude de uma situação de "presidência" concedida ao soberano e que Dito isso - que tende sobretudo a salvaguardar o pleno valor do
é, como sabemos, de origem eletivéo. Esse requisito teórico não acarreta estado religioso contra uma concepção (cada vez mais difundida em fins
certamente nenhuma conseqüência revolucionária, pois parece apenas con- do século XJII) segundo a qual o uso normal dos órgãos genitais, tal como
cernir à fonte constitutiva do poder político em geral. Mas, para Duns foram criados por Deus e confiados providencialmente à Dama Nature-
Escoto, o mais importante é ter definido em todo rigor as únicas bases le- za, corresponderia a uma espécie de obrigação universal 67 - o Doutor sutil
gítimas do principatus de tal maneira que, por outro lado, ele destaca mais julga muito severamente o senhor que se utiliza de seu direito e proíbe
os direitos do soberan0 61 , sem dúvida não por servilidade a respeito dos efetivamente que o servus se case. E ele afirma explicitamente que se o
poderosos, mas por reverência à regra de justiça. dominus, como assim o convida a Igreja em nome da caridade, renuncia
ao exercício dessa prerrogativa, encontra-se desde então obrigado (sob pena
Seria surpreendente, contudo, que, assim concebida, semelhante au- de pecado mortal) a autorizar o pleno exercício d~s debita que implica para
toridade pudesse realmente legitimar a servidão 62 . Eis aí um problema que os cônjuges de condição servil - entre eles e em relação a seus filhos -
merece atenção, pois, sem acusá-lo, como outros, de favorecer a escravatu- seu enlace matrimonial. Nesse ponto Duns Escoto não é menos exigente
ra 6 3, Lagarde julga Duns Escoto mais indulgente do que Santo Tomás em do que Santo Tomás, ainda que ambos indiquem efetivamente as dificul-
relação às formas arcaicas de dominação do homem pelo homem. A bem dades com as quais o servus depara para preencher sem falhas seus deve-
dizer, o único texto invocado concerne ao matrimonium servi, e é verdade res conjugais 68 . O Doutor sutil especifica que o senhor deve "abrandar"
que, por razões de princípio que são para ele de grande importância, o doutor as obrigações do escravo casado no que concerne a seu próprio serviço e
franciscano critica aqui a tese tomista, defendida por Ricardo de Middlerown, que ele pecaria ainda mais gravemente se separasse o casal cuja união
segundo a qual todo homem, em qualquer situação de dependência que se anteriormente autorizou. Não obstante, seu direito de veto não é, por si
encontre, pode exercer seu" direito natural" ao casament0 64 . A objeção de mesmo, de uma natureza tal que o servus seja obrigado a se submeter a
Duns Escoto deve-se à sua concepção do ius naturae, mas visa ao mesmo ele em qualquer circunstância; com efeito, se o escravo julga racionalmente
tempo a defender contra certos ataques os votos de religião. Se alguém, com que sua condição servil lhe permitirá conciliar tudo o que deve ao dominus
efeito, não pudesse alienar sua liberdade "natural" para se submeter a uma e tudo o que pode exigir dele seu uxor, não parece cometer nenhuma falta
superior, isso seria o fim do estado monástico, que se tornaria propriamente grave em transgredir um impedimento que só é ele mesmo justificado pelo
ilícito 6S . Ainda que o texto aqui não faça nenhuma menção explícita a isso, direito do senhor em se beneficiar plenamente de todos os serviços que lhe
são devidos 69 .
pode-se acrescentar, acreditam, que o respeito incondicional das liberda-
Essa casuística se esforça por conciliar, como vemos, bem ou mal,
r
des baseadas no ius naturae seria incompatível com o próprio pacto social,
o qual substitui (ou pelo menos superpõe) à autoridade natural do pai o poder as exigências espirituais de uma sociedade que se dizia cristã com estrutu- l:'
convencional de um soberano eleit0 66 . Mas a argumentação do Doutor sutil ras em grande parte herdadas do paganismo. Na verdade, não é certo que
remete sobretudo aos vota religionis. Se a liberdade individual fosse inalie- a condição trabalhadora, tal como a descobriram os primeiros "cristãos
nável, ninguém teria o direito de se vincular por votos perpétuos - e é isso, sociais" ou o estatuto colonial do trabalho forçado, tenha provocado fre-
com efeito, o que pretenderão os "filósofos" do século XVIII e os partidá- qüentemente crises de consciência igualmente tão inoportunas a homens
rios de um certo "laicismo". Raciocinando aqui a fortiori, Duns Escoto muito mais próximos de nós 70 . Mas, a não ser por alguns casos de confli-
pretende esclarecer algumas possíveis implicações de uma teoria que ab- to manifesto, os posicionamentos concretos aos quais chegaram pratica-
solutiza perigosamente a idéia de direito natural. Visto que se admite a le- mente os doutores de diversas escolas (e que com muita freqüência pouco
gitimidade do voto de obediência - o qual, entretanto, se opõe indubita- influíram na realidade dos costumes) diferem menos, em geral, do que seus
velmente a um ius naturae - como invocar esse mesmo ius para impedir pontos de partida teóricos. Ora, precisamente no que concerne à origem e
que o senhor faça valer suas prerrogativas, e isso em benefício, não de uma à legitimidade da escravatura, a posição de Duns Escoto parece menos li-
obrigação, mas de uma simples permissão concedida em vistas a um mal gada do que a de Santo Tomás aos princípios definidos na Política aris-
totélica. Pode-se mesmo pensar que, tomadas ao pé da letra, suas defini- ~
menor? O peso do argumento, como se vê, ultrapassa o caso particular do •
connubium servi, mas através de seu alvo essencial (que é o voto de religião), ções e suas distinções deveriam tornar bastante excepcionais os casos aos
ele pode justificar que, sem ofender os direitos da pessoa humana, certas quais se aplicaria com todo rigor uma legislação que parece menos severa
funções sociais acarretam a obrigação ou a necessidade do celibato. se examinado de perto o contexto no qual ela se apresenta.
cedor. Longe de imaginar um tipo de transação pela qual o vencido, em las concernentes à expropriação um lamentável desconhecimento da "ver-
troca da vida salva, renuncia a ser "reconhecido" como consciência e se dadeira autoridade social"91. Pode-se naturalmente preferir outras doutri-
S2
aliena inteiramente , Duns Escoto encara o problema sob um ângulo da nas a essa de Duns Escoto; mas deve-se ainda notar que ele nunca conside-
misericórdia e não faz mesmo nenhuma alusão explícita ao uso do "res- rou a transferência incondicional à autoridade pública de um direito indi-
gate". Se ocorre, entretanto, que o prisioneiro libertado se volte contra seu vidual de propriedade, que exatamente só pertence para ele ao "cidadão",
benfeitor, estamos novamente diante do caso do criminoso, e é então no e nos limites fixados por um legislador, cujo poder repousa antes de tudo
interesse comum, não pelo direito de posse, que o vencedor priva mais urna na eleição e no consentimento. Uma vez "revogada" a indistinção primiti-
vez o vencido de uma liberdade que usou mals3. va dos dominia (que era apenas de direito natural), qualquer apropriação
Em favor dos homens de boa-fé que, desde uma certa época, têm em (singular ou coletiva) resulta da prudência desse legislador. É normal, pois,
seu poder prisioneiros, adquiridos por herança ou por compra, invocar- que a degradação eventual de tal possuidor "negligente" seja proferida em
se-á um direito de prescrição, cuja validade Duns Escoto absolutamente nome da comunidade inteira e ela supõe, assim, de um certo modo, o con-
não reconhece? A resposta do doutor é prudente e constitui mais um ape- sensus prévio da própria vítima. Visto, com efeito, que não se trata mais de
lo à consciência generosa do que uma obrigação jurídica. Ela Se refere, urna simples partilha familiar, dependendo da autoridade natural do pater-
contudo, ao ius naturae para destacar a diferença essencial entre um pro- familias, a divisão toma sua legitimidade de um assentimento unânime de
prietário de ouro e um detentor de escravos 84 e para concluir que seria homens que instituíram a civitas; ora, a translatio dominii deriva da mes-
"difícil" justificar por essa via as seqüelas de um costume bárbaro, que ma fonte de autoridade que a divisio dominiorum 92 .
remonta sem dúvida a Ninrode (Gên. 10,8). É em todo caso uma "gran- Como todo ato humano in statu peccati, essa transferência pode dar
de crueldade" reduzir ao estado de "brutos"85 seres dotados de livre-ar- lugar a múltiplos abusos em sua aplicação concreta. Dizer que se efetua em
bítrio, e impedi-los de agir virtuosamentes6. favor de quilibet não implica, no pensamento de nosso autor, nenhuma jus-
Quanto ao versículo da Carta aos Efésios que prescreve ao escravo tificação do arbitrário, mas significa somente que cada membro da comu-
que se mostre obediente em relação a seu senhor, este cria menos proble- nidade está habilitado a se beneficiar dela, uma vez que a decisão do legis-
ma para Duns Escoto, visto que, para ele, é a própria "justiça"87 que im- lador assegure ao melhor a pacifica conversatio civium. O fato de a expro-
põe o respeito escrupuloso de qualquer obrigação, nascida de um contra- priação supor, da parte do possuidor negligente, uma renúncia implícita a
to livre ou imposta por uma autoridade legítima, qualquer restrição feita, seu direito de propriedade não implica absolutamente que esse direito fosse
por outro lado, quanto ao valor ético dos contrata'ntes ou do legislador88. incondicional. Trata-se, aliás, apenas de uma ficção jurídica e a lei o "pune" í.:,'
Efetivamente, na perspectiva pastoral em que São Paulo se situa, ele não antes de tudo por ter sido o mau "ministro" de seu bem, qualquer que te-
pretende aprovar ou criticar a instituição da escravatura; o texto da Es- nha sido, no plano da consciência, sua intenção "real,,93. Esses princípios, ~:'
critura significa que, não importa a situação na qual se esteja, deve-se res- como vemos, justificam transferências que vão muito além do uso feudal. No
peitar, através dos homens, o único Senhor autêntico, que "está nos Céus espírito de um verdadeiro "direito social", permitirão pronunciar a degra-
e não tem nenhuma preferência de pessoas" (Epif 6, 9). Os medievais, dação de proprietários que cultivam mal suas terras ou que açambarcam os
todavia, tinham uma forma diferente da nossa de ler a Escritura, e Duns produtos em detrimento dos trabalhadores; eles poderão mesmo, em um grau
Escoto pensa encontrar em outro lugar - na primeira Carta aos Coríntios ulterior de evolução econômica, autorizar a transformação em serviços pú-
- uma desaprovação formal da vilis servitus; parece-lhe, com efeito, que blicos de empresas privadas cujo monopólio seria contrário ao bem comum.
São Paulo convida o escravo a desejar, se é que é possível, sua ascensão Duns Escoto de fato mal podia prever os campos de aplicação considerados
ao estado mais louvável de homem Iivre89. em recentes encíclicas; ele limita seu exame às hipóteses clássicas concernentes
Esses breves desenvolvimentos não formam um sistema; indicam uma aos direitos de prescrição e de usucapião, mas, seguindo a esse respeito a
evidente desconfiança quanto aos princípios herdados do paganismo e a opinião comum dos juristas, observaremos que subordina inequivocamen-
preocupação moral neles existente corrige o rigor jurídico. É verdade que te o direito de propriedade à regra suprema da pax reipublicae 94 •
não há uma análise precisa das formas concretas da servidão e da nova Quaisquer que sejam os poderes reconhecidos aos detentores da au-
condição do assalariad0 9o . Outros textos, que iremos agora analisar rapi-
•
torictas politica no que COncerne à repartição e à transferência dos do-
damente, parecem dar atenção mais específica à evolução da sociedade me- mimá, o proprietário "imediato" desfruta certos direitos sobre eles. Pode
dieval. Lagarde pensa detectar aí uma "regressão" e denuncia nas fórmu- dá-los a outros, vendê-los ou alugá-los, mas com a condição de que te-
110
Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 111
nha uma autorização que pode ser, de acordo com o caso, do pai de fa- É possível que Santo Tomás permaneça, no campo econômico, mais
mília, do suserano ou (para os clérigos) do superior hierárquico. Em ne- ou menos tributário das idéias "arcaicas" da pequena nobreza proprietá-
nhum dos casos a doação feita a um religioso mendicante pode transgre- ria 103 . De qualquer modo, é certo que a esse respeito o Estagirita é para
dir seu voto de pobreza e fazer dele um dominus 9S • As transações onero- ele uma autoridade decisiva. E, entretanto, vê-ma-lo, como quase todos
sas só são legítimas com a condição de que se exclua toda forma de en- os seus contemporâneos, adaptando-se a estruturas novas. Não apenas ele
godo e de que se refira à regra tradicional da aequalitas valoris. As fór- se afasta do texto de Aristóteles quando concede o caráter "honroso" de
mulas de Duns Escoto nada têm de original, seja porque ele define o pa- um ofício que pode fornecer à comunidade bens necessários, como admi-
pel da moeda, seja porque enfatize a oposição entre o valor de uso (o único te que o vendedor assegure para si um ganho razoável uma vez que visa
que intervém aqui) e o valor "intrínseco" de uma coisa, isto é, seu lugar assim a satisfazer necessidades de sua família e até mesmo ter seu lugar na
na hierarquia dos seres 96 . O Doutor sutil se afasta, contudo, de certos sociedade, e que exerce a beneficência em favor dos pobres I 04 Fórmulas
mestreS seculares recentes quanto à fixação do preço justo, pois admite, bastante amplas para autorizarem efetivamente formas de comércio (que
entre duas avaliações extremas, uma muito forte, a outra muito fraca, uma não tinham, aliás, esperado o papel assinado em branco pelos moralistas
magna latitudo 97 cujos limites podem ser determinados pelo costume ou para que pudessem se instituir e se desenvolver).
pela lei. Porém, ao passo que à latitude fixada por um legislador mais Parece que Duns Escoto, meio século mais tarde, está sensivelmente
preocupado com a ordem pública do que com rigor moral (e que só decla- mais atento ao papel dos grandes comerciantes. Se é "útil ao Estado ter
ra inválida uma transação operada a um preço inferior a medietas iusti objetos dos conservadores para vender, que possam rapidamente encon-
pretii) Santo Tomás opunha uma exigência mais severa do foro íntimo e trar aqueles que deles necessitam" 105, é mais útil ainda possuir negocian-
tolerava apenas uma modica additio vel deminutio 98 , Duns Escoto con- tes que forneçam à pátria produtos raros e que transportem as mercado-
sidera como provavelmente lícitos desvios maiores, com a condição de que rias "das regiões nas quais elas abundam para aquelas que delas care- ,.
OI
seja com o acordo das partes e para tornar menos" duras" as cláusulas cem"106. Seguramente, elas são mais caras lá onde faltam, e os historia-
de um contrato que deve sempre permitir uma certa liberalidade. O pa- dores assinalam a vantagem que o comércio ocidental pôde tirar de uma
radoxo é aqui o de que a máxima "Não faze a outrem o que não deseja certa estabilidade dos preços orientais. O comerciante se beneficia de uma
que façam a ti" (Hoc facias alii quod tibi vis fieri)(Mat. 7, 12) é invocada diferença de valor que não corresponde, por sua vez, a nenhum trabalho,
pelo Aquinate com sua referência evangélica, mas para exigir uma estrita mas sua industria consiste justamente em descobrir conjuntamente as ne-
igualdade de prestações fornecidas pelas duas partes, ao passo que o dou- cessidades de um país e os recursos de um outro. Um legislador avisado f
tor franciscano, que a apresenta como um aspecto da lex naturae, a dire- pagaria muito caro os serviços do ministro capaz dessa análise sócio-eco-
j:
ciona mais à generosidade e à caridade do que a uma troca de serviços.99 nômica e cuja tarefa apropriada seria a prospecção dos mercados. Quan-
Essa consideração da indulgência mútua remete a um tipo de trocas do o importador assume por si mesmo essa tarefa tão útil e corre esponta-
que, segundo o Filósofo, se justificam pela satisfação de uma necessidade neamente os riscos que esta comporta, é normal que, ao invés de poder
imediata, em um quadro restrito, propter necessitatem vitae 100 . O caso do "alugá-los" ao príncipe, "venda" aos particulares uma habilidade e um
"negócio" propriamente dito é bem diferente, pois ele visa apenas ao "lu- talento muito caros, o que não o priva, aliás, em nada, de legítimas inde-
cro" e Aristóteles qualificava a crematística de "indecorosa". Tornou-se nizações que deve receber da república no caso em que, sem ter cometido
difícil defender essa posição extrema - sem casuísticas sutis - em uma nenhuma falta, tenha seus entrepostos queimados ou seus navios afunda-
Europa na qual, após uma regressão e uma estagnação que parcialmente dos. Em um texto freqüentemente alusivo e condensado, quase nos sur-
se devem, sem dúvida, à instalação do Islã em uma vasta porção dos lito- preende ver a insistência com a qual o mestre franciscano enfatiza o valor
rais mediterrâneos 101 , o grande comércio está em vias de readquirir uma de uma forma de atividade que, após a recessão econômica do século XIV,
importância análoga àquela que pôde ter na antiga Grécia (e que os filó- iria se tornar tão decisiva para a Europa ocidental, e propiciar tamanho
sofos contudo se recusaram a admitir, vítimas talvez de tradições indo- enriquecimento à Grã-Bretanha 107.
européias muito antigas)102 e é em uma escala bastante extensa, visto que Os únicos negotiatiores que Duns Escoto vilipendia sem reserva pa- •
os sucessores dos vikings, que possuem entrepostos em Novgorod e ligam recem se situar no nível do pequeno comércio, o que não implica certamente
agora a Escandinávia a Bizâncio, atravessam por outro lado o Mar do Norte que toda especulação em vasta escala seja para ele legítima, pois o benefí-
e mesmo o Atlântico até os confins das costas americanas. cio do grande mercador é medido, afinal, na escala do bem comum. Mas
os lucros sejam igualmente partilhados, sem nenhum privilégio de segu- Tudo o que Duns Escoto afirma acerca da lei natural e de seus limites,
rança para qualquer um dos participantes: aquele que traz os "capitais" do consentimento e da eleição, da propriedade e de sua transferência, da
(bens de equipamento ou meios financeiros para adquiri-los) e aquele que condição servil, do papel reservado às trocas comerciais, da necessidade da
coloca em jogo sua habilidade e sua audácia 116. É nesse sentido que al- industria e do risco compartilhado, esboça a imagem de uma antropologia
guns, mais tarde, quererão interessar os trabalhadores pelos lucros de uma que seria perigoso modernizar demais, e absurdo separar de suas fontes teo-
empresa à qual seria injusto pedir, ao contrário, que assegure sem risco e lógicas, mas que é parte integrante da mais autêntica herança franciscana.
sem trabalho uma renda aos financiadores. Essas antecipações e essas extra-
polações serão talvez desculpadas se se pensar que, desde a aurora dos
tempos industriais, os discípulos de Duns Escoto puderam encontrar, nas
notas sucintas de seu venerado doutor, alguns princípios reguladores ca- NOTAS
pazes de moralizar as instituições econômicas, nascidas no final da Idade
Média na Itália, nos Países Baixos, nas cidades da Liga Hanseática, e logo 1 G. de Lagarde, La Naissance de l'esprtt lai'que au déclin du Moyen Âge, 11: Secteur
difundidas por toda a Europa ocidental. social de la scolastique, Louvain-Paris, 1958, p. 214-261. Essa segunda edição traz
algumas correções a uma exposição anterior que havíamos levemente criticado em nOSsa
No quadro de que dispomos aqui - e que já abordamos amplamente contribuição à Histoire de l'Eglise de Fliche-Martin-Jarry, tomo 13, 2a ed. Paris, 1956,
- não se trataria de buscar as origens de cada doutrina escotista nem de 367-370. O autor sustenta, quanto ao essencial, suas posições; quando nos censura por
julgarmos "pagã" a idéia de que o homem seja um animal político (p.253, n.l13), te-
confrontá-las exatamente com as opiniões de outros doutores. Nosso pro-
mos a impressão de uma leitura um tanto rápida da frase na qual dizemos apenas que
jeto foi sobretudo o de mostrar que, ainda que a regra moral não seja quase Duns Escoto ultrapassa a fórmula por demais "naturalista" do "pagão" Aristóteles; a
nunca inferida diretamente da lex naturae entendida no sentido mais ri- mesma expressão pode assumir sem dúvida outros significados em Santo Tomás. Nos-
goroso, longe de reduzi-la a um conjunto de disposições arbitrárias im- sas divergências quanto a detalhes valorizam ainda mais o texto que citamos aqui, pois
postas de fora, Duns Escoto confia inteiramente na iniciativa e na enge- as preferências tomistas de M. de Lagarde não o impedem de defender às vezes Duns
nhosidade do homem. Foi o que nos pareceu, especialmente quando se Escoto contra a absurda diatribe sumária de Landry, tão justamente refutada em sua
época pelo P. Longpré.
tratava de fundar - sob o controle deveras flexível da recta ratio - uma 2 Ord. lI! d.22 q. uno n. 18 (ed Vivés XIV 772 bl.
verdadeira autorictas politica, e de determinar melhores maneiras de re- 3 Platão, Político (ed. Bekker, 269 b); República VI, 501 b.
partir e de trocar os dominia primitivamente indistintos. Por mais decisi- 4 Aristóteles, Politica VII (ed. Bekker, 1325 b sq.).
,~.
va que seja a autoridade da Escritura, e por mais respeitável a dos filóso- 5 Santo Tomás (S. teoi. I q. 96 a. 4) não hesita em invocar a autoridade do Estagirita
fos, o mestre franciscano, nos domínios que poderiam lhe parecer secun- para definir no estatuto de inocência necessidades de hierarquia e de desigualdade cujos t
dários, se adapta com muito cuidado à variedade concreta das conjuntu- traços quase não encontramos na Escritura. Duns Escoto é, nesse sentido, mais reser-
vado; é, entretanto, a essa mesma tradição que remete, ao menos em parte, sua conviccão
ras. Longe de abandonar às forças do mal esse status iste abalado pela falta
de uma superioridade natural do homem sobre a mulher (que certamente não impediu
de Adão, e de ver para a cidade terrestre apenas a pura submissão a uma Maria de receber um privilégio que nenhum outro homem conheceu, mas que explica
autoridade despótica, encarregada de fazer reinar um mínimo de discipli- todavia que a Imaculada não tenha recebido da Igreja nenhuma forma de ordem sacer-
na e de virtude 1l7 , foi possível constatar qual o lugar que ele atribui aos dotal; cf. Ord. IV d. 25 n. 4 [ed. Vives XIX 140 ab]: "Nec matrem suam posuit [Christus]
recursos engenhosos de uma natureza que continua capaz, em grande parte, in aliquo gradu Ordinis in Ecclesia, cui nulla alia potuit vel non poterit in sanctitate
aequiparari. Ratio autem naturalis huic dieto consOnat. O argumento extraído do pe-
de prudência e de retidão.
cado de Eva não vale evidentemente para Maria; trata-se, pois, de uma distinção de
Sem que seja necessário opor aqui as exigências incondicionais da natureza entre os sexos, que não vale no plano da graça nem no da glória, mas que
razão às certezas da fé, os "peregrinos" deste mundo têm vocação para permanece decisiva para a divisão das funções na Igreja militante).
reger sua contingente comunidade, por mais provisória que seja, segundo 6 Cf. Agostinho, De civitate Dei XIX c. 13 (PL 41, 640). Sobre a communitas
a ordem menos injusta e mais eficaz. No respeito às pessoas e segundo a aggregationis como definição da cidade (Ord. IV d. 46 q. 1 n. 11 [ed. Vives xx 427
regra da estrita eqüidade, os próprios homens devem se mostrar dignos das a]), deve-se observar que Duns Escoro só destaca seu caráter inferior em relação a uma
communitas eminentis continentiae, que é de ordem sobrenatural. O emprego do ter- •
responsabilidades que implica para eles uma voluntas concebida, como
mo communitas acrescenta um elemento essencial à definição da ordo aggregationis como
sabemos, como a "causa total" de qualquer volitio 118 • Esse "humanismo" unitas minima (Ord. I d. 2 n. 403 [lI 356]).
não é apenas "teológico"119. 7 Ord. lI! d. 1 q. 1 n. 17 (ed. Vivés XIV 45 ai.
~
pode lhe dar a parte "módica" de poder que ele mesmo conserva sobre seu corpo (Ord. como disse o Filósofo, pollens mente debet praesidere, pollens viribus debet servire, mas
IV d. 36 q. 1 n. 8 fedo Vives XIX 452 b]). É por isso que todos os doutores reconhecem esse princípio só vale de servitude politica, qua inferior disponitur a superiore, non tamen
como inválida uma união entre pessoas que esconderam sua condição servil uma da outra. sicut inanimatum, sed sicut minus vigens mente ordi114tur per il/um qui magis pol/et mente
A única nuance de expressão entre Santo Tomás e Duns Escoto (no caso do casamento (Ord. IV d. 36 q. 1 n. 3 fedo Vives XIX 447a]). Duns Escoto não ignora entretanto as
autorizado pelo senhor) é que um se dirige diretamente ao escravo e declara que este deve passagens nas quais Aristóteles comparava o escravo a um animal de carga, pelo me-
praetermittere servitium domini imperantis et reddere debitum uxori, pois a autorização nos no uso que dele faz seu senhor, ainda que o Estagirira reconheça uma certa superio-
dada implica por si mesma "a concessão de tudo o que o casamento implica" (Santo Tomás, ridade daquele que usa ferramentas em relação àquele que é, ele mesmo, apenas uma
Sento IV d. 36 q. uno a. 1 ad 3), ao passo que o segundo apela mais à consciência do se- ferramenta. O doutor franciscano estende essa diferença até o nível do "livre-arbítrio,
nhor, pois não é senão "implícito" que, por sua autorização, dominus relaxat iIla servitia ainda mais nitidamente definido em sua obra do que na do autor da Política I c. 4 (ed.
consueta. t. desejável que o bom senhor vá o mais longe possível nesse caminho, mas o Bekker, 1253s) (o qual falava apenas de uma forma sensitiva da razão, não inteiramen-
casal de escravos só tem direito de desfrutar seu casamento tanto quanto o que lhe per- te passiva), e ele conclui (Ord. IV d. 36 q. 1 n. 9 fedo Vives XIX 453a]): Quod Philosophus
mitem os servitia consueta (Ord. IV d. 36 q. 1 n. 8 fedo Vives XIX 452 bJ). dicit de servitude dia maledicta, qua servus est sicut pecus, potest intelligi quod est domini
69 A única restrição é que a esposa deve saber de todos os perigos que corre uma sui sicut possessio vel pecunia, non tamen quod in actibus suis ducatur tantum et non
união realizada sem a autorização do senhor e que, conseqüentemente, não cria para ducat, quia quantumcumque sit servus, est tamen homo, et ita /iberi arbitrii.
ele nenhuma obrigação, mesmo restrita. Se decide enviar o marido para a África e a 75 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 6 (ed. Vives XVIII 265b): {Lex naturaeJ determinavit in
mulher para a França, o senhor dá provas de evidente crueldade, mas não ultrapassa natura humana hoc, quod omnia essent communia. .1,
seus direitos. Como observa A. Hiquaeus em seu comentário (ed. Vives XIX 457a), muitos 76 No início do século XIV, na Europa ocidental, ainda que a atrelagem racional
doutores julgaram "dura" uma sententia que só se justifica na ordem do ius civile et dos animais de tração, a multiplicação dos moinhos, o progresso das técnicas agrícolas
politicum (e que devia surpreender um leitor do século XVII porque não correspondia tenham aproximado um pouco a humanidade do tempo do qual Aristóteles falava (sem
mais à situação efetiva de sua época). acreditar nisso), em que "as lançadeiras teciam por si mesmas", a participação da força
70 Sem evocar certos conflitos mais recentes, que concernem, por exemplo, à física continua preponderante no trabalho produtivo, mas o assalariado está em vias
oposição entre o dever militar de obediência imediata e o caráter desumano de certas de substituir, à servitus antiga, uma outra forma de exploração do homem pelo homem,
ordens (genocídios, massacres de civis, uso da tortura). que não depende menos de regras morais definidas por Duns Escoto.
71 Cf. Duby, op. cit, I, capo 1. Esse autor observa que o destino desses escravos 77 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 2 (ed. Vives XIX 446b): Ista vilis servitus non potest esse
tinha sido bastante abrandado desde a época carolíngia, mas eles podiam ainda ser ven- iuste inducta, nisi dupliciter. Uno modo, quia aliquis vo/untarie se subiecit tali servituti,
didos e comprados. Na época de Duns Escoto as diferenças de estatuto jurídico conta- licet talis subiectio esset (atua, immo forte contra legem naturae quod homo libertatem
vam menos do que a oposição dos níveis de vida entre os trabalhadores, proprietários suam a se abdicet. Bem entendido, esse argumento não vale, como vimos, contra os vo-
de um cavalo e de uma carroça, e os trabalhadores braçais que possuíam apenas sua tos de religião e tampouco contra a subiectio civilis. Aplica-se, antes de tudo, ao caso
força de trabalho para vender. de uma escravatura que privaria o indivíduo de sua autonomia moral (Rep. IV d. 36 q.
72 É verdade que a servitus, que por si mesma pertence aos fugienda (ao passo 2 n. 6 fedo Vivós XXIV 459aJl.
que o casamento é um per se expetendum), não responde à "primeira intenção da natu- 78 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 2 (ed. Vives XIX 446b): Postquam tamen facta est, necesse
reza" e é por isso, como já vimos, que o Paraíso excluía a poena subiectorum, ligada à est servare, quia hoc est iustum.
condição servil (S. Tomás, s. teol. I q. 96 a. 4), mas ela corresponde à secunda intentio 79 Ibid. - Duns Escoto espera do príncipe cristão que este use castigos severos
naturae, visto que foi introduzida in poenam peccati (como a submissão da mulher ao contra a blasfêmia e a idolatria, que contradizem a "honra de Deus", mais do que san-
homem, cf. Gên. 3, 16, e a aproximação nada tem de impertinente, visto que a nature- cionem com excessivo rigor as faltas que não dependem senão do commodum temporale
za visa antes de tudo a fazer homens e só produz como segunda intenção (eminam quae (Ord. IV d. 15 q. 3 n. 5 fedo Vives XVIII 366ab]). Se a [ex de vita pro vita reddenda
est mas occasionatus [5. Tomás, Sento IV d. 36 q. 1 ad 2]). parece conforme à natureza, ela só é contudo legítima potque foi confirmada por Deus
(admitindo-se, bem entendido, como fazem os escolásticos, que o versículo de Mateus
•
73 Cf. Santo Tomás, S. teol. 11-11 q. 57 a. 2 e 3.
74 Apoiando-se em uma diferença biológica entre os corpos de escravos, vigoro- 26,52, sobre o destino prometido àqueles que usam a espada, justifique uma punição
sos para o trabalho pesado, mas excluídos da verdadeira "posição ereta" que caracteri- legal). Deus ama tão pouco o sangue que ele afastou da honra de construir o Templo
migos (cf. II Reg. 7, 13; III Reg. 5, 19; 8 16-20, implicitamente evocados em Ord. IV d. ex parte illorum quibus fiunt, et tamen, postquam factae fuerint, servandae sunt. A di-
15 q. 3 o. 6 fedo Vives XVIII 367a]). Cf. ibid. n. 7 (p. 374b): Nulla {ex positiva cons- ficuldade aqui é a de comparar a servitus a um verdadeiro contrato (fora do caso da
tituens hominem occidendum, iusta est, si in illis casibus statuat quod Deus non excipit. submissão voluntária). A escravatura nascida do direito de punir se associa sem dúvida
Essas próprias "exceções" foram restringidas pelo Novo Testamento, pelo menos no ao próprio pacto social (visto que este é instituído por uma lei positiva cujo autor está
que concerne ao adultério (lo. 8, 11). A fortiori, a misericórdia valeria no caso, muito investido de uma legítima auctoritas). Aquele que se prende ao direito de guerra baseia-
menos grave, do simples roubo, se Moisés já não tivesse previsto uma simples multa (cf. se em leis que Duns Escoto julga cruéis, mas contra as quais ele não dispõe de outro
Êx. 22, 3; Provo 6, 30-31, ao qual remete aqui Duns Escoto, ibid. n. 8 [p. 375ab] para meio de luta a não ser o apelo à misercórdia.
lembrar a maneira pela qual Salomão parece desculpar o furto do homem faminto, até 89 Na perspectiva de conjunto na qual se situa, o texto de São Paulo: Servus vocatus
~
mesmo o comércio da prostituta em busca de pão [Provo 6,26] em relação ao crime do es? Non sit tibi curae, sed et si potes fieri liber, magis utere (I Cor. 7,21) significa pro-
adultério, perdoado entretanto por Jesus). vavelmente que, em vez de desejar sua libertação, o escravo deve permanecer no lugar
80 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 2 (ed. Vives XIX 446b): Alio modo, si aliquis tuste domi- em que a Providência o situou e fazer um uso melhor de sua condição. Duns Esçoto se
nans communitati, videns aliquos ita vitiosos quod libertas eorum nocet eis et reipublicae, aproveita de um determinado equívoco para atribuir ao apóstolo um juízo de valor
potest iuste punire eos poena servitutis (continuação do texto citado na nota 77). quanto a uma instituição que, sem o aprovar em si mesma, ele considerava aqui apenas
81 Aristóteles observa, com efeito, que a guerra é freqüentemente injusta e que os de um ponto de vista pastoral (Ord., IV, dist.36, quo 1, o. 4 [Éd. Vivés, XIX, 447b]:
prisioneiros podem ser de raça nobre; admite-se, em geral, que não é preciso submeter Unde Apostolus ostendens servitutem secundum se non esse laudabilem, nec multo magis
à escravidão gregos de condição livre, mas será que se pode considerar seriamente que detentionem alicuius in servitude, ait: Si servus vocatus es [... ]).
todos os bárbaros sejam sub-homens? Por outro lado, serão os filhos de escravos ne- 90 Nos grandes domínios da Alta Idade Média, os trabalhadores imediatamente
cessariamente dotados de almas servis? É o caso em geral, mas não sempre. O Estagirita à disposição pessoal do senhor tinham uma posição bem próxima daquela dos servi
(Política I c. 6 fedo Bekker, 1255a slJ conclui essa enumeração de aporias distinguindo antigos e conservavam o nome de mancipia. Os donos das propriedades rurais (manses),
a servidão "natural" (que corresponde ao duplo interesse do senhor e do escravo e pode ligados hereditariamente ao solo, presos ao trabalho gratuito e ao trabalho em presta-
vir acompanhada por uma certa amizade) da servidão "contra natureza" (que exclui ções, dependiam da justiça senhorial, mas seu destino se tornou cada vez mais parecido
qualquer verdadeira relação humana). Diz-se que, em seu testamento, o Estagirita pres- com o dos pequenos proprietários "livres" (ver H. Pirenne, Histoire économique de
creveu ele mesmo que seus próprios escravos fossem libertados. /'Occident médieval, s.l., 1951, p.213 s.). Em contrapartida, os "artesãos" dos primei-
82 Cf Hegel, Fenomenologia do Espírito, B, IV, A, 3. Sabe-se que para o filósofo ros ateliês de tipo industrial, verdadeiros proletários, foram chamados em alemão Kne-
alemão o escravo em seguida encontra pelo trabalho a consciência de si (mas basica- chten e em inglês servingmen, termos que evocam uma forma nova de servidão (a dia-
mente "infeliz"). lética hegeliana do senhor e do escravo é a do Herr e do Knecht) [ver Pirenne, p.326].
83 Rep. IV d. 36 q. 2 n. 6 (ed. Vives XXIV 459b). Qualquer outra forma de tor- 91 Lagarde, op. cit., p.255: Na primeira edição de sua obra, o autor qualifica-
nar o prisioneiro escravo de guerra é propriamente "despótica". va como "deplorável" a interpretação de Duns Escoto; O adjetivo (que nos surpre-
84A propósito da prescrição (da qual tratou extensamente na disto 15), Duns Escoto endera) desapareceu da redação mais recente, mas a nota 104 evoca ainda um "ar-
(Ord. IV d. 36 q. 1 n. 4 fedo Vives XIX 447a]) pensa que esta se aplica mal aos descen- gumento inverossímil", que o autor se felicita (equivocadamente, parece) por não
dentes dos prisioneiros: Sed i/lud extendit se ad possessiones, non autem ad servitutem, encontrar na passagem correspondente da Reportatio. (O texto citado, que concer-
quia non est eadem ratio in possidendo aurum et servum, quantum ad legem naturae. Et ne à punição de uma negligência, tem seu exato equivalente na Ordinatio e só diz
ideo esset difficile salvare per praescriptionem iustitiam esse detinere tales servos". respeito aos motivos imediatos da expropriação, e de modo algum ao direito origi-
85 O comentarista precisa que o senhor só tem poder sobre as "obras" do escra- nário do príncipe ou da comunidade.)
vo, não sobre seu corpo, que pertence apenas a Deus, menos ainda sobre sua alma e 92 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 9 (ed. Vives XVIII 271b-272a): Haecergo translatiodominii
sua liberdade (A. Hiquaeus, Commentarius ad Ord. IV d. 36 q. 1 fedo Vives XIX 455b]). potest fieri, vel auctoritate publica, ve{ principis, vel auctoritate legis, vel auctoritate privata
Vemos que a definição da servitus tende cada vez mais a se confundir com a da condi- ipsius domini immediate possidentis. De prima translatione sit haec conc/usio prima in
ção proletária, no sentido moderno do termo. isto articulo: translatio dominii auctoritate legis iustae iusta est. Probatur, quia si lex iusta
86 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 9 (ed. Vives XIX 453a): Ex quo patet magna crudelitas potuit iuste determinare prima dominia, et non minor est auctoritas legis vel principis (quos
fuisse in prima inductione servitutis, quia hominem arbitrio liberum et dominum habeo hic pro eodem) post divisionem dominiorum quam ante, - ergo propter eamdem
suorum actuum ad virtuosse agendum, facit quasi brutum et /ibero arbitrio non uten- causam et eumdem finem potest iuste transferri dominium, postquam fuerat alicui appro-
tem, nec potentem agere virtuose. Duns Escoto exclui aqui a idéia estóica de uma priatum. Esse apelo à "justa lei" e essa referência à "justa determinação" originária dos
liberdade moral puramente interior, independenre da condição servil no sentido mais dominia parecem indicar que Duns Escoto visa aqui a algo diferente do costume feudal
cruel do termo. de dividir os bens conquistados e de punir eventualmente os vassalos mais inquietos to-
87 Não importa o que M. de Lagarde diga (op. cito p. 257), Duns Escoro não pede mando-lhes os feudos (como fez, por exemplo, em grande escala, Guilherme de Normandia
ao escravo que "sofra pacientemente a injustiça" por pura virtude cristã; ele o submete após a conquista da Inglaterra). Não se nega com isso que o regime antigo dos feudos,
a uma obrigação de "justiça" (suum cuique reddere), que deve ser respeitada não im- comparável a um usufruto mais do que a uma propriedade nua (cf. Le Goff, La Civilisation
porta o que se pense a respeito de seu fundamento original (cf. a nota seguinte). de /'Occident médiéval, p. 126), tenha podido inspirar em parte reflexões cujo alcance
capiendi causa. O cronista enfatiza o conhecimento que esse homem havia adquirido deberet esse, et vilius vendenti, et sic damnificant utramque partem. O uso de um ter-
dos itinerários, dos países, de suas instituições, de seus costumes e de suas línguas (Liber mo francês não é surpreendente na Grã-Bretanha da época de Duns Escoto. Regrattier
miraculorum Sanctae Fidis, ed. Bouillet, p. 63, citado em Pirenne, Hist. économique, - um pouco antiquado - é ainda usado, em um sentido pejorativo, para designar um
28). Duns Escoto insiste na utilidade desse negócio, menos no valor de descoberta geo- revendedor de segunda mão, que impede a venda direta do produtor ao consumidor,
gráfica, e passa em silêncio sobre seu papel "pacificador". Mas sabemos a importância isto é, o ideal "econômico" da transação admitida por Arsitóteles, que alguns redes-
de uma viagem como a de Marco Pólo. É possível que, ao provocar litígios e conflitos, cobriram hoje em dia como uma novidade. Mas esse ideal só vale no quadro restrito da
as trocas comerciais entre o Islã e a cristandade tenham por vezes permitido um melhor sociedade de trocas que o Filósofo descrevia ao evocar o caso do sapateiro, do fabri-
conhecimento mútuo e favorecido outros tipos de comunicação. cante de camas e do construtor de casas (Úica a l\1.·ic. V c. 8 [ed. Bekker, 1133a]). Pare-
107 Às regras gerais'concernentes ao comércio, Duns Escoto (Ord. IV. d. 15 q. 2 ce que Duns Escoto percebeu a importância de uma outra economia, muito mais vasta,
n. 22-23 fedo Vives XVIII 317a-318a]) acrescenta duas que se aplicam à negotiativa que supõe profissionais da importação-exportação e do armazenamento.
commutatio: Primum est quod talis commutatio sit utilis reipublicae. Secundum est quod \09 A regra clássica é que se deve vender sem benefício da coisa que permaneceu
talis iuxta diligentiam suam et prudentiam et sollicitudinem et perícula accipiat in com- integra et immutata entre as mãos do intermediário. Se Santo Tomás admite a indeniza-
mutatione pretium correspondens. Prima condicio exponitur, quia reipublicae est utde ção correspondente a riscos corridos e mesmo um certo ganho lícito correspondente às
habere conservatores rerum venalium, ut prompte possint inveniri ab indigentibus, necessidades do comerciante, mal parece dar lugar ao pagamento da industria como tal
volentibus illas emere. In ulteriore etiam gradu utile est reipublicae habere afferentes nem à idéia de um "valor" acrescido à mercadoria pelo transporte e armazenamento.
res necessarias, quibus illa patria non abundat ... Sequitur secunda {condicio}, quia unum- 110 Sobre esse ponto, Duns Escoto (Ord. IV d. 15 q. 2 n. 16 led. Vives XVIII 289])
quemque in opere honesto reipublicae servientem oportet de suo labore vivere ... Nec defende uma doutrina tradicional: In istis .. contractibus !icet pcrmutantem vel vendentem
hoc solum, sed unusquisque potest industriam suam et sollicitudinem iuste vendere: pensare damnum suum, non autem commodum ipsius ementis, sive cum quo permutat ...
industria illius transferentis res de patria ad patriam requiritur magna, ut consideret Et inteIligo sic: si quis multum indigct re sua, et per magnam instantiam inducatur ab
quibus patria abundet et indigeat; ergo potest iuste ultra sustentationem necessariam alio ut vendat ve/ permutet pro re alia, cum possit se praeservare indemnem, et ex ven-
pro se et familia sua ad istam necessitatem deputata recipere pretium correspondens ditione ve/ permutatione ista multum damnificatur. potest carius vendere... Sed si emens
industriae suae, et ultra hoc tertio aliquid correspondens periculis suis ... Propter huius- magnum commodum consequatur ex iUa sihi vendita ve/ permutata, non potest carius
modi periculum potest secure aliquid accipere correspondens et maxime si quandoque vendi vel permutari. A rigor esse princípio excluiria qualquer economia de mercado, pois
sine culpa sua in tali servitio communitatis damnificatus est uptote mercator transferens a regra moral que me impede de beneficiar da necessidade do outro falseia desde o iní-
quandoque amisit navem onustam maximis bonis, et a/ius quandoque ex incendio causali cio o jogo "natural" da oferta e da procura. Mas vimos que Duns Escoto reconhece como
amittit pretiosissima, quae custodit pro republica ... Haec omnia confirmantur, quia trabalho legítimo o estudo das necessidades e dos mercados; o hábil calculador pode
quantum deberet a/icui ministro reipublicae legislator iustus et bonus retribuere, tantum assim ter lucro - de forma lícita mas indireta - da penúria que determina em seu pró-
potest ipse, si non adsit legislator, de republica, non extorquendo, recipere. Sed si esset prio país "justos preços" mais elevados do que no estrangeiro.
bonus legislator in patria indigente, deberet locare pro pretio magno huiusmodi mer- 111 Seguindo Santo Tomás (S. teol. lI-lI q. 78 a. 1), Ricardo de Middletown ar-
catores, qui res necessarias afferent et qui eas allatas servarent, et non tantum eis et gumentava contra a usura mostrando que não se pode vender ao mesmo tempo a coisa
familiae sustentationem invenire, sed etiam industriam, et perícula omnia locare; ergo que se consome (dinheiro ou vinho) e o uso dessa coisa. Se Duns Escoto critica o racio-
etiam hoc possunt ipsi in vendendo. Esses meios de enriquecimento são os que Aristó- cínio, é porque o dominum é às vezes separado do usus; é melhor dizer, pois, que tendo
teles considera como particularmente caros a qualquer um que estima a crematística; transferido a quem emprestou a posse plena e total do dinheiro emprestado, eu não
um filósofo hábil como Tales não hesitou em mostrar o valor prático de seu saber pre- poderia me beneficiar ou pagar pelo uso vantajoso ou danoso que ele fez dele. Seu úni-
vendo, por meios astronômicos, uma abundante colheita de azeitonas; tendo alugado a co dever é o de me fornecer na data fixada o equivalente exato daquilo que eu mesmo
baixo preço todos os lagares de Mileto e de Quios, ele os subloca por um preço ainda lhe dei, na medida em que o pode fazer sem se privar ele mesmo do estrito necessário
mais alto, provando que um sábio pode enriquecer se desejar, mas que esse não é abso- (Ord. IV d. 5 q. 2 n. I 71d. Vivés XVIII 292b·293aJl.
lutamente o objeto de seu zelo. Dionísio de Siracusa, tendo apreciado a inteligência de 112 Essa criação, à qual os franciscanos darão um apoio bastante ativo, está des-
um homem que havia astuciosamente comprado todo o ferro das forjas, deixou-lhe com tinada a permitir, por acúmulo de doaçôes gratuitas, a outorga aos pobres de emprésti-
seu ganho, mas o baniu de seu reino. Outros príncipes deram grande valor ao enrique- mos sobre penhores. Concebida para limitar a atividades dos banchieri judeus, ela con-
cimento de seu tesouro público por tais métodos (cf. Aristóteles, Política I c. 11 fedo tribuirá, de fato, para o desenvolvimento de novos bancos. Noonan J. T., The Scholastic
Bekker, 1259a]). Nem o Estagirita nem Santo Tomás, em seu comentário, dão a essa Analysis ofUsury, Cambridge, Mass., 1957, p. 121ss, mostrou em um exemplo preci-
aplicação da sabedoria crematÍstica ao bem comum um julgamento categórico. É pos- so (o empréstimo municipal de Florença no século XIV) o quanto os Frades Menores
sível que Duns Escoto, ao evocar o bom legislador que louva os serviços de um hábil eram atentos a esses novos mecanismos financeiros. Note-se que a exposição escotista
intendente, pense primeiramente no Faraó e em José, pois trata-se menos de enriquecer não traz aqui nenhum traço de anti-semitismo (sobre o problema da usura judaica e cristã,
o Estado do que fornecer aos cidadãos reservas necessárias em caso de penúria. cf. L. Poliakov, Les banchieri juifs et le Saint-5iege, Paris, 1965).
108 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 23 (ed. Vives XVIII 318a): Vocantur tales gallice 're- 113 Menos indiferente do que se disse às vezes às instituições econômicas exigi-
grattiers', quia prohibent immediatam communitationem volentium emere vel commutare das pela evolução da sociedade, Santo Tomás (5. teol. lI-lI q. 78 a. 2 ad 5) expõe clara-
oeconomice, et per consequens faciunt quodlibet venale ve/ usuale carius ementi quam mente as regras lícitas do contractus societatis pelo qual o arrendador de fundos conti-
Naquele, entretanto, trata-se menos de uma disjunção racional entre con- dos gêneros de ser e de determinações fundamentais de qualquer pensa-
ceitos que se excluem mutuamente e muito mais, na esfera superior da
l
mento: identidade-alteridade, movimento-repouso, etc.), através de toda
unia mystica, desse "despojamento" pelo qual a alma deificada se libera uma especulação teológica sobre a vida interior de um Deus trinitário, devia
de tudo o que, nela, é da ordem do criado (a Kreatürlichkeit). Apesar de sofrer, ela mesma, tantas transformações, até chegar ao "sistema" de Dom
toda a sua cultura de professor, Eckhart continua sendo sempre, mesmo Deschamps e à dialética hegeliana, antes do duplo contragolpe que iria
em suas obras latinas, o predicante de uma Abgeschiedenheil, que supõe conduzir, por um lado, ao mistério marxista da redenção proletária e, por
um radical e decisivo "corte", a afirmação, várias vezes repetida, de um outro, ao paradoxo existencial de um cristianismo simultaneamente ne-
Tudo ou Nada. Sem negligenciar as poucas passagens de seus tratados ou cessário e impossível, em Kierkegaard ou em Dostoiévsky.
de seus sermões nas quais ele atribui um lugar positivo a um progresso Dentre as fontes da dialética hegeliana, sabe-se toda a importância
espiritual, adquirido por uma luta de cada dia, é certo que esse tema pe- de certos temas teológicos e teosóficos. Em seu belo livro sobre Le malheur
dagógico tem menos lugar nele do que, por exemplo, em Tauler, e é cer- de la conscience dans la philosophie de Hegel (Paris, 1929), Jean Wahl
to que ele se situa, mais freqüentemente, em um nível onde nada conta insiste nesses textos de juventude no qual reaparecem tantas fórmulas ca-
mais do que a "abertura" total e definitiva, aquém da qual uma alma não ras à mística cristã: separação e retorno, desespero e beatitude, presença e
ainda plenamente "esvaziada" de sua "criaturidade" se mantém, não ausência - no qual aparece a dupla face do Mediador como Deus huma-
apenas na regia dissimilitudinis, mas, mais exatamente, no universo do natus, o duplo papel da morte que é vida, etc. Evocando essas influências,
puro "nada". Ora, essa posição, que se alimenta de experiências religio- das quais podemos pensar que permaneceram superficiais - e cuja colo-
ração romântica com que se revestem para o jovem Hegel deforma sensi- Como veremos logo adiante, esses três ou quatro problemas aqui se-
velmente seu sentido original - , não esqueçamos de forma alguma o ris- parados apenas por comodidade de exposição, configuram-se, na verda-
co de confrontações demasiadamente audaciosas que não levam absolu- de, como um só, e a única solução que Eckhart pode propor para eles re-
tamente em consideração o contexto histórico. É entretanto notável que pousa finalmente na justaposição dialética de dois princípios aparentemente
entre os papéis de Hegel tenham sido encontrados, copiados de seu pró- opostos: Tudo ou Nada, Sim e Não.
prio punho, muitos artigos condenados na bula In agro, tais como o filó-
sofo os teria lido na obra do historiador Mosheim (cf. Theologische Ju- Ao tratar do que Eckhart apresentou como "a espinhosa e célebre ques-
gendschriften, ed. Nohl, Tübingen, 1907, p.367). tão de saber se a distinção dos atributos está em Deus ou somente na apre-
Certamente não se pode reduzir a essas experiências juvenis (e, em ensão de nosso intelecto,,12, Santo Tomás ensinou que os diversos concei-
particular, a essa "hipocondria" de 1800 que Jean Wahl- op. cit., p. 33 tos que correspondem à potência, à sabedoria, à bondade, etc., ainda que não
- compara ao Erlebnis de um "Não eterno") o processo espiritual vivo constituam no entendimento divino senão uma única e perfeita realidade no-
da Fenomenologia nem, menos ainda, a dialética excessivamente rígida da cional, representam entretanto aspectos positivos, que pertencem efetivamente
Enciclopédia. Entre o modo de pensamento do velho mestre turíngio e o ao pensamento e ao ser divinos13. Sem ficar expressamente contra o Dou-
que Hegel quis edificar, resta entretanto um ponto comum: a dialética, para tor angélico e mesmo usando termos que, à primeira vista, pareceriam su-
eles, não importa o nome que lhe tenham dado, não é um "sistema de gerir uma resposta comum, Eckhartconc1ui, todavia, que tais atributos per-
malabarismo", um "raciocínio em vaivém, sem conteúdo real", uma "arte tencem "totalmente" ao intelecto que os "recebe" e "recolhe" o conhecimento
exterior" que "conduz ao ceticismo" e só "produz uma aparência de opo- "a partir das criaturas" e por seu "inrermédio"14. A fórmula parece nomina-
sições". Para ambos, pensadores tão especificamente alemães, trata-se de lista; mas não é senão, como bem mostrou Lossky15, uma inferência enga-
um método que pretende apreender "a natureza própria e verdadeira" do nosa, baseando-se precisamente em uma consideração insuficientemente dia-
espírito e das coisas, que, aqui pela via do desenvolvimento histórico, lá lética do pensamento eckhartiano. Na perspectiva tomista, Deus, "ato per-
pela do despojamento espiritual, se esforça em ultrapassar "o caráter uni- feito de ser", é ao mesmo tempo potência perfeita, sabedoria perfeita, bon- .'
lateral e limitado das determinações próprias ao entendimento" 11 • dade perfeita. Para Eckhart - que, em um vocabulário semelhante, por vezes
equivocado, professa na verdade uma ontologia completamente diferente-
Dentro do quadro limitado de nosso propósito, não podemos, é cla- , Deus, enquanto "unidade pura" (pura unitas), exclui necessariamente qual-
ro, investigar tudo o que a "dialética" eckhartiana conserva das tradições quer diversidade, pois esta - segundo o princípio neoplatônico que faz da
teológicas e filosóficas nem determinar em que medida ela prepara a coin- mu/titudo um casus ab uno - implica não apenas imperfeição, mas "falha"
cidentia oppositorum de tipo cusano. Contentar-nos-emos com algumas e "mácula" (defectus et macula). A Unidade do Criador situa-se, pois, para
indicações a partir de uma série de exemplos particularmente significati- além de qualquer conceito humano, e é isso que indica a recusa de situar fora
vos. Esses exemplos concernem primeiramente a Deus no mais íntimo de do intelecto criado a distinctio attributorum. Porém, em sua relação verda-
seu mistério, como pura unidade na qual toda oposição está ao mesmo deira com a criatura, essa unidade divina não está mais "separada" de sua
tempo integrada e ultrapassada. Eles concernem igualmente a Deus em obra do que o Uno neoplatônico está propriamente separado da variedade
sua relação ambígua com o universo criado e levantam, assim, o difícil através da qual ele se manifesta. Eckhart, no entanto, vai ainda mais longe;
problema do tempo e da eternidade. Concernem, enfim, à própria cria- afirma várias vezes, em alemão e em latim, que todas as perfeições divinas
tura, e mais particularmente à pessoa humana como imago Dei, mas tam- pertencem tão intimamente à criatura purificada, iluminada e perfeita que,
bém a toda a obra dos seis dias, na medida em que "extra-feita" a partir segundo os termos surpreendentes do Livro da divina consolação:
do puro nada, ela pode ou permanecer nesse nihil que é seu verdadeiro
estofo, ou voltar - por meio de uma imagem (que aparece ao mesmo A Bondade é sempre engendrada, e tudo o que ela é no
tempo como imanente e transcendente à alma intelectiva), através do bom ... e isso é igualmente verdadeiro quanto ao justo e à Justi-
mistério de graça (e de natureza) de uma "abertura" instantânea (e sem ça, quanto ao sábio e à Sabedoria 16 .
dúvida irreversível), - até à pura Deidade na qual se mantêm indivi- •
sivelmente todas as coisas, no Silêncio eterno que está além de qualquer Aos inquisidores que achavam a fórmula inquietante, Eckhart res-
"processão" . pondeu que esta era simpliciter et abso/ute vera 17 • O comentário do Evan-
gelho segundo São João determina que o "justo" que se identifica assim à atento, em certas circunstâncias, a um desses aspectos, Eckhart entretanto
"Justiça" é o "justo enquanto tal" (justus ut sic)18. Dele pode-se apenas jamais o separou dos outros a ponto de negligenciar totalmente um ou outro
dizer que a Justiça o engendra como o Pai (in divinis) engendra o Filho. dos "momentos" constitutivos no mais fundamental de seu pensamento.
Não pensemos, entretanto, que essas fórmulas sejam válidas apenas para Como já sabemos, esses momentos são, por um lado, a separação entre
o mistério da Justificação, entendido stricto sensu; aplicam-se da mesma o Criador e o criado; por outro, a imanência de Deus em toda criatura dei-
maneira ao "bom", ao "sábio", etc., e implicam uma,total imanência, no ficada. Quando o Mestre define Deus como pura intelligere (referindo-se
interior da criatura deificada, de cada uma das "perfeições gerais" de Deus. ao naus amiges, ao intellectus impermixtus que, para Aristóteles, não pode
Essas perfeições poderiam parecer simples denominações humanas, ser ele próprio nada daquilo que ele conhece)20, fica bem claro que seu ob-
extraídas por abstração e generalização de uma observação empírica refe- jetivo é o de opor com todo rigor ao "ente criado" (ens creatum) -aquele
rente a puras criaturas. Recolocadas no conjunto do ensinamento eckhar- que não é senão "ex-existente", extrastans, em outros termos, o indivíduo
tiarro, as fórmulas nominalistas só adquirem seu pleno sentido quando concreto, a prote ousia das Categorias, o tode ti do Estagirita - esse "ente
justapostas às fórmulas de um ousado realismo. As perfectiones generales, incriado" (ens increatum), que melhor seria chamar de "Ser intelectivo" (esse
assim, longe de serem excluídas de Deus tal como ele é em si mesmo, en- intellectivum), porque é uma subsistência eterna no Pensamento divino, fora
contram-se tão profundamente enraizadas na Deidade (para além mesmo de qualquer "processão", de qualquer "extrafacção". Nessa perspectiva, o
do Deus nominável e descritível da teologia e da filosofia) que, em nenhu- melhor nome de Deus é intelligere e não esse. Esse, contudo, não é rejeita-
ma criatura tornada "perfeita" (homem ou anjo), elas podem possuir ou- do de maneira absoluta. Mas não se deve falar de Ser divino a não ser que
tra realidade que não aquela que lhes pertence enquanto perfeições divi- este seja entendido como uma puritas essendi que é exclusão de qualquer
nas. Conseqüentemente, o Uno é totalmente separado de qualquer diver- "ente", no sentido em que o ens implica queda e privação em relação à eterna
sidade. Mas, ao mesmo tempo, e na medida em que o diverso se une ao perfeição do intellectum como ta1 21 . E temos ainda apenas um dos dois
Uno, que é sua origem e seu substrato, ele vive no Uno e o Uno nele exa- extremos da cadeia. Outros textos - que talvez tenhamos erroneamente
tamente como o Pai no Filho e o Espírito, e o Filho e o Espírito no Pai. considerado contraditórios com as Questões parisienses - atribuem, com .l"
Esse exemplo único, que esperamos não ter deformado seriamente ao efeito, a Deus, a plenitudo essendi, isto é, eSse modo de ser que, no pensa-
expô-lo aqui de forma esquemática, mostra bem como estaríamos equivo- mento incriado, pertence simultaneamente ao Criador e a qualquer criatu-
cados se separássemos de seu contexto os diversos enunciados eckhartianos. ra na perfeição de seu ser-pensamento em Deus22 •
O paradoxo é, entretanto, como já observamos, que cada uma das fórmu- Mas é preciso acrescentar - de modo igualmente importante - que, ,
las, por mais surpreendente que seja, se defende melhor talvez em seu iso- se a perfeição divina só se expressa "puramente" pelo viés de termos negativos, •
lamento; e a audácia do mestre parece antes se dever à aproximação dialé-
tica de afirmações opostas do que ao próprio conteúdo dessas afirmações.
essa pura necedade está longe, todavia, de satisfazer às exigências de um ver-
dadeiro pensamento dialético. Nesse ponto, parece que Mestre Eckhart man-
x
Resta, é verdade, pelo menos em alguns casos, o recurso tão caro aos his- tém-se mais "tomista" do que se poderia supor. Para ele, a negação "supri-
toriadores, isto é, a hipótese de uma evolução doutrinaI. É assim que, no me" tudo o que encontra e, por si mesma, não "coloca nada"23. No contexto
que concerne ao valor e à hierarquia dos nomes atribuídos a Deus, a maio- em que surge aqui o verbo tollere, parece difícil tentar, quanto a ele, o jogo
ria dos eckhartianos supõe que o pensamento do mestre dominicano tenha verbal que sugere por vezes seu equivalente alemão úfheben24 . Toda nega-
evoluído sensivelmente. E é notável que, exatamente para evitar atribuir a ção remete entretanto a uma afirmação. Só existe "ausência", com efeito,
Eckhart uma espécie de dialética anacronicamente hegelializante, um dos em relação a uma "posse". Assim, a cada vez que excluímos de Deus um
melhores especialistas no assunto, Raymond Klibansky, tenha finalmente atributo inconveniente, supomos, nele, a existência positiva de "alguma coisa,
admitido, com a maioria dos críticos, que as Questões parisienses acerca qualquer que ela possa ser", cuja única presença remove dele o que não é senão
do ser e da inteligência em Deus indicam (por volta de 1302-1303) a ade- negativo, "como a luz exclui as trevas e como o bem exclui o mal"25.
são de nosso teólogo a uma terminologia pouco compatível com aquela que Eckhart se refere aqui ao Pseudo-Dionísio, para quem essa "Treva"
predomina no resto de sua obra 19 . Sem "hegelianizar" Eckhart, Lossky de que fala a Escritura e "na qual estava Deus" (Ex., XX, 21) é uma "Luz
sugere, contudo, que, de acordo com a ocasião, o mestre pôde esclarecer super-excelente" que permite conhecer "o que ultrapassa qualquer cog- •
aspectos aparentemente contraditórios, mas realmente complementares, da noscível" 26. Porém, como bem mostrou Lossky no primeiro capítulo de seu
relação entre os diversos nomes divinos. Se assim for, admitir-se-á que, mais livro, Eckhart não pode se contentar, como faz o autor dos Nomes divinos 27 ,
em celebrar "sucessivamente" o Deus "anônimo" e o Deus "polinônimo". E, conseqüentemente, é preciso que haja {na alma] algo
Se é verdade que existe um Deus aliquid - quodcumque sit illud - , um de mais íntimo e de mais nobre, e de incriado, sem medida e
ser positivo que significa a real exclusão de tudo o que é imperfeito e limi- sem modo, onde o Pai celeste possa inteiramente se represen-
tado, seria necessário dizer que Deus possui em "próprio" um "nome ma- tar em imagem e se expandir e se manifestar: estes são o Filho
ravilhoso" e "inominável"28, aquele que, sem se "nomear", o próprio Deus e o Espírito Santo 35 .
entretanto revelou quando disse: Ego sum qui sum, isto é, seguramente: Eu
sou "isso" ou "aquele" que existe29 , o ser "puro" e "nu" no qual jamais se E quando se trata, no sermão alemão Intravit Jesus, dessa mesma
separam o quid e o an 30 , mas primeiramente-e melhor ainda - o Nome "potência" da alma, na qual "Deus floresce e verdeja com toda sua Dei-
indizível que apenas eu conheç031. Da mesma forma que às crianças curio- dade", pode-se admitir que o Geist do qual "emana" e no qual "se man-
sas por saberem muito cedo o que não podem ainda compreender, respon- tém" essa "potência", ainda que designe aqui o espírito criado enquanto
demos simplesmente: Isso é isso, aquilo é aquilo, à criatura preocupada em ultrapassa sua condição de criatura, remete, ao mesmo tempo que ao Pai,
nomeá-lo, Deus pode apenas dizer: Eu sou quem eu sou. Para conhecer esse ao Espírito Santo que, nessa Kraft,
nome que profere eternamente uma "Fala sem palavra ou, antes, para além
de qualquer fala", no "silêncio do Intelecto paterno,,32, é preciso sem dú- engendra o mesmo Filho único e se engendra como o mesmo
vida que Mestre Eckhart siga a via agostiniana e "entre em si mesmo", mas Filho e é o mesmo Filho nessa Luz e é a Verdade 36
menos, contudo, como o bispo de Hipona - para escapar assim de uma vã
"querela de palavras" e para remontar "psicologicamente" até a origem de Nesse nível de unidade, um verdadeiro dialético - no sentido que ten-
toda verdade 33- , do que para unir ao Uno-Pai essa ponta incriada da alma tamos precisar - não renuncia, por isso, a definir uma "estruturação" do
(esse aliquid tão inominável quanto Deus) que sozinha, ao final de uma Deus trinitário, que continua fundamental ainda que não se reduza propria-
ascensão dialético-mística, tornada una com a Fala sem palavra, pode di- mente aos ternários psicológicos ou lógicos transmitidos pela tradição agos-
zer em Deus e com Deus o nome indizível de Deus. tiniana (Mens-Notitia-Amor ou Unitas-Aequalitas-Concordia) nem às apro-
priações mais estritamente teológicas que implicam os nomes pessoais de Pai,
Em Mestre Eckhart, assim como em muitos teólogos ocidentais, a
fórmula latina da processão do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho, a
de Filho e de Espírito. Desses três nomes, o primeiro desfruta sem dúvida, -
em Eckhart, um estatuto privilegiado, com a condição, contudo, de que jamais
processio ab utroque, permite atribuir ao Espírito Santo o papel de um se separem fecundidade e unidade. É ao Pai, com efeito, que convém mais o '("
terceiro "momento" (amor e nexus) que é menos o ponto de chegada de
um processo descendente e o ponto de partida de uma ascensão do que a
primeiro transcendental, o "uno" que, mais do que o "verdadeiro" ou do
que o "bem", "se relaciona da forma mais-imediata" com esse "ser" no qual
."
,li
ligação interna imanente a todo o processo trinitário: a Deidade, admitindo-se que se possa separá-la de suas operações, estaria como
que "escondida" e "adormecida d7. Assim, uma dupla característica que só
o amor do Pai pelo Filho e do Filho pelo Pai... é o vín- pode ser apreendida "dialeticamente" em sua aparente ambigüidade. É do
culo entre os dois, e o Espírito, aspirado por um e pelo outro, Pai, como tal, que procede toda expressão ou manifestação (intra ou extra-
procede dos dois a fim de que os dois sejam um 34 • divina), mas é a ele que se une - ou que se "identifica" - a alma deificada,
uma vez esvaziada de toda wíse "maneira"e de toda Eigenschaft "proprie-
Do mesmo modo, se o engendramento misterioso do Verbo (como dade", lá onde o Deus que podemos humanamente nomear e definir
"verdadeira Imagem de Deus") na alma inteiramente esvaziada de sua
característica criada desempenha um papel essencial na mística eckhartiana, nunca olha por um só instante nem nunca olhou, visto que ele
o mestre turíngio não desconsiderou, por isso, - ainda que a mencione se comporta segundo os modos e apropriações pessoais ... Se
menos freqüentemente - a coabitação do Espírito Santo em qualquer alma Deus nunca deve olhar para aí, é necessariamente à custa de
deificada. Mas o papel de "ligação" atribuído à terceira Pessoa é tão de- todos seus nomes divinos e suas apropriações pessoais 38 .
terminante que leva às vezes o predicante a fundir, por assim dizer, a fun-
ção própria ao Espírito na única Geração da Imagem. É assim, por exem- Diferentemente do Filho e do Espírito, o "Pai" é transcendente a
plo, no Livro da consolação: qualquer "imagem" que se situe no nível da igualdade ou da semelhança.
Usando essas comparações físicas que têm, para ele, sobretudo um senti- fases: bullitio e ebullitio - , ele situa em Deus uma dupla "ebulição" -
do simbólico - pois a natureza "criada", por receber todo seu ser empres- interior e exterior - que aparece, em certos textos, exatamente como a
tado ao Deus que ilumina seu nada, mesmo não podendo pretender ao' condição exterior de sua perfeição, até mesmo de sua mais-que-perfeição:
estatuto ontológico que lhe confere, em Santo Tomás, uma ontologia aris-
totélica, está apta, em contrapartida, a expressar simbolicamente um cer- É preciso que alguma coisa borbulhe e termine por der-
to caráter teofânico de tipo boa-venturiano - , o autor do Livro da divi- ramar-se a fim de ser em si completamente perfeita e, em seu
na consolação observa que o fogo, quando atiça, por "assimilação", o ignes- transbordamento, mais-que-perfeita41 .
cente até à perfeição do ígneo, se comporta como se ele "odiasse" tudo o
que, nesse processo progressivo, comporta ainda, em qualquer grau que o difícil é, evidentemente, determinar o que deve ser entendido aqui
seja, "diferença e dualidade" (Underscheit und Zweiung): por "mais-que-perfeita". Se é verdade que plenitudo essendi é, como Lossky
aponta, mais "inclusiva" do que "exclusiva", a exuberantia (ou transbor-
E é por isso que eu disse que a alma odeia a igualdade e damento), que é aqui um outro nome para a ebulitio (ou fervura), não pode
não ama a igualdade em si e por si, mas que ama pela unidade designar, de modo algum, a criação das coisas enquanto estas são "extra-
que é latente nela e que é verdadeiramente "Pai", princípio sem feitas" , pois seria necessário admitir então que Deus, pela gratuidade de
princípio de tudo o que está "no céu e sobre a terra,,39. um dom supérfluo, acrescenta o que quer que seja à sua própria substân-
cia, o que não é defensável em nenhuma teologia e menos ainda na teolo-
Mas justamente porque o verdadeiro "Pai" é simultaneamente ima- gia eckhartiana. Parece que a ebullitio - que corresponde à irradiação da
nente a qualquer semelhança - enquanto produtor de uma imagem na qual Luz divina - dá lugar aqui a esse "movimento de retorno" que Dionísio
se expressa perfeitamente sua própria essência - e transcendente a qual- apontava expressamente, desde as primeiras linhas da Hierarquia celeste.
quer imagem - visto que a imagem se distingue ainda do modelo - , não As coisas criadas só têm valor real quando "retornadas" a Deus, ou em
se poderia alcançá-lo apenas pelas vias da apófase e, como já sabemos, por seu movimento de retorno. O transbordamento inclui, pois, toda a "vi-
detrás de todas as denominações negativas está dissimulado um "nome sitação "42, como processão e como anagogia, mas também - e muito mais
próprio", um Etwas positivo que traduz, ou que pretende traduzir, a dia- explicitamente do que no Corpus aeropagiticum - a constante imanência
.
lética do Uno-Pai. Ainda aqui não se pode dissociar - sem graves contra- da Unitrindade na "segunda emanação". Assim se explica sem dúvida o
sensos - os dois aspectos complementares de uma única "teologia", a que fato de Eckhart ter afirmado a "simultaneidade" entre o Engendramento
apreende conjuntamente a Unidade originária e o processo interior da
,•.
·f,r
coincide com tudo (cf. Mahnke, Unendliehe Sphiire und Al/mittelpunkt, no diálogo irênico e semi-utópico inspirado ao cardeal pela queda de
Halle/Saale, 1937). Ele está "completo em cada criatura, em cada uma Constantinopla, o De pace (idei, permitirá apenas a reconciliação terres-
como em todas" (In Eecli., n.19-20, LW lI, p.247-248), e entretanto, tre dos irmãos inimigos, o apaziguamento das lutas e o fim das persegui-
devido à sua transcendência, "exterior" a todo o criado. Mas deve-se ções, esse programa de reformas políticas e eclesiásticas que já prefigura
observar que se Eckhart, como destaca Mahnke, amplia um pouco o sen- a Concordance catholique, esse desenvolvimento progressivo das artes e
tido original da fórmula pseudo-hermetista, não é nunca o mundo, a das técnicas em que a quarta parte do Idiota afirma o muito ousado pro-
machina mundi, que ele compara, como o farão o Cusano e, depois dele, grama, na linha do sermão pela Epifania de 1456, inseparavelmente cris-
Pasca1 46 , a uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e a circun- tológico e humanista (Ubi est, ed. Koch, Sitzungsberiehte der Heidelberger
ferência em lugar nenhum. Sua cosmologia continua medieval e, parece, Akademie, 1936, n.U sq., p. 94 sq.).
de tipo nitidamente arcaico. Faltam, entretanto, a seu universo - por Eckhart jamais negou, bem entendido, a Providência, e até mesmo
razões que derivam de sua ontologia, não de sua física - essa subsistên- insistiu nas virtudes de Marta, que sabe contemplar tudo dedicando-se aos
cia e essa eficácia que a escolástica aristotélica atribuía às causas segun- cuidados da casa 47 . Mas a "presença" do eterno no temporal aparece na
das. E é por isso que o mundo criado não poderia quase aparecer, em maioria das vezes, em sua pregação, em relação aos "instantes" da união
Eckhart, como esse "infinito reduzido" (maximum eontraetum) que Ni- mística - ou do "verdadeiro arrependimento" que dá sentido ao pecado
colau de Cusa situaria, na Douta ignorância, diante do "infinito absolu- antecedente 48 . Quando ele fala de um enraizamenro que é o produto de
to" (maximum absolutum), na qualidade de imagem que "se aproxima uma "busca,,4<;l, só se pode tratar de uma busca "total" que encontra no
tanto quanto pode" de seu modelo perfeito, na qualidade também de uni- instante mesmo em que procura, pois, enquanto permanecer no nível do
dade mediadora pela qual o próprio Deus se torna presente à totalidade "mais" e do "menos", ela não pode ser "divina"so. A alma que "escolheu
das coisas (cf. Doeta ignorantia, lI, 4). Na perspectiva eckhartiana, a re- a melhor parte" (Lucas, X, 42) só pode progredir continuamente se rece-
lação entre Deus e o mundo não pode de forma alguma se assemelhar beu de uma só vez (cf. o ezaíphnes do Pseudo-Dionísio, Ep. m, 1069 b)
àquela concebida pelos matemáticos entre um limite e a progressão as- "o todo na parte, o fruto na flor", isto é, precisamente essa forma de ima-
sintótica que daí se aproxima sob a forma do indefinido. As imagens ge- nência intemporal que significam o "tudo em tudo" de Anaxágoras e a
ométricas, que serão caras ao cusano (o ângulo infinito que se anularia "esfera infinita" do Pseudo-Hermes, aquela que simboliza igualmente o
como ângulo, a porção de circunferência, que, quando o raio fosse infi- maná no deserto 5 ]. Porém, assim como o Uno-Pai é dialeticamente inse-
nito, se tornaria linha reta etc.), quase não interessam a Eckhart, que ra- parável da "ebulição" unitrinitária, essa graça instantânea, que se apre-
ramente fala a linguagem matemática e prefere ilustrar seu pensamen- senta com as características da Glória, não exclui de forma alguma a lin- .'"
to, em um modo poético ou usual, com imagens físicas tratadas em um guagem pauliniana da coroa reservada ao atleta que lutou bem (lI Tim., ",
,I.,
estilo qualitativo e antropomórfico (a taça inteiramente vazia que se ele- lI, 5). Interpretando à sua maneira o Vade in pace de Lucas, VI, 50, Eckhart
varia para além do mundo sublunar, a pequena centelha que voltaria ao mostra que "se deve correr rumo à paz, não iniciar na paz,,52. A substi-
empíreo se o ar úmido não a sufocasse etc.). tuição de um acusativo (questão quo) pelo ablativo latino (questão ubi)
Mas é claro, sobretudo, que nenhuma formulação desse tipo escla- não deve, contudo, nos enganar. É ao mesmo tempo "rumo" à paz e "na"
rece efetivamente a verdadeira relação entre o Deus criador e a criatura paz que se deve "correr". E, se é "bom" e "louvável" ir de paz em paz,
extraída do nada. O Verbo eterno, que contém eternamente os arquéti- esta é ainda uma atitude "insuficiente"53. Eckhart pensa menos na "epec-
pos de todas as coisas, na forma de pensamentos divinos, e que só se en- tase" de um Gregório de Nissa do que em um movimento bem próximo
gendra, nas almas purificadas, tornadas virgens e fecundas, pela via de do repouso, cujo melhor símbolo continua sendo, para ele, a regular phora
uma "abertura" instantânea, parece longe e como que estranho em rela- do primeiro "céu" aristotélico, aquele de todas as mudanças que, pela
ção a uma "história" cósmica ou humana que só se desdobraria nessa apa- imaterialidade de seu substrato, é o menos propriamente metaphore:
rência de ser tão freqüentemente qualificada de nada. A esse respeito ele
parece muito pouco com o que será - pelo menos em um de seus aspec- o homem que está correndo, e em uma corrida contínua
tos, mas que nos parece essencial- o Mediador cusaniano, esse Deus hu- e de tal modo que esteja em pazS4 , este é um homem celeste. O
manatus, conexão necessária entre o infinito reduzido e o infinito abso- céu volta-se sobre si mesmo em uma corrida contínua, e nessa
luto, aparição histórica que liga o tempo humano à presença divina e que, corrida, procura a paz55 .
°
Se essas fórmulas de "coincidência" deviam inspirar Cusano, pare- como que sendo um com ela, então não lhe é necessário falar
ce-nos que uma tal imagem está, entretanto, bastante longe daquela que o como fez essa mulher: Senhor, mostre-me onde devo orar e o
cardeal utilizará quando evocar esse pião que parece" dormir" porque é que devo fazer para ser a mais cara de todos na verdade; e Je-
movido por uma velocidade que se aproxima do infinito 56 . Em sua carta sus responde que ele se revela verdadeira e plenamente em tudo
ao jovem noviço Nicolau Albergati, obra de circunstância na qual Mme. o que ele é, e preenche o homem tão superabundantemente que
Gerda von Bredow, que em outra ocasião a editou (Cusanus-Texte, Brief- ele jorra e flui da mais-do-que-plena6 2 plenitude de Deus, como
wechsel In, Heidelberg, 1955), vê um verdadeiro "testamento espiritual" fez essa mulher em pouco tempo perto da fonte, ela que não
do cardeal, parece-nos que as expressões do parágrafo 7 (loc. cit, p.38) são estava de forma alguma antecipadamente preparada. E é por
diferentes de um "abrandamento" (ou de um "enfraquecimento") das te- isso que digo aquilo que já disse: que nenhum homem nesse
ses eckhartianas acerca da imagem de Deus na alma deificada. Para o Cusano, mundo é tão grosseiro nem tão desprovido de entendimento nem
como mais tarde para Leibniz, existe realmente - ou virtualmente - uma tão mal disposto a isso, desde que possa, com a graça de Deus,
espécie de "república dos espíritos", na qual cada "mônada" pode desem- unir sua vontade pura e totalmente à vontade de Deus, e tem
penhar um papel singular em uma verdadeira" história". É nessa perspec- apenas necessidade de dizer em seu desejo: Senhor! Mostre-me
tiva "progressista" - no duplo nível do indivíduo e da sociedade - que tua tão cara vontade e fortalece-me para cumpri-la! E Deus o
faz tão verdadeiramente que ele vive, e Deus lhe fez um dom
nossa natureza intelectual, compreendendo-se pela inteligên- perfeito em todos os aspectos em tão rica plenitude como o fez
cia como uma imagem viva de Deus, possui o poder de se tor- para com essa mulher. Vede, é isso que o mais grosseiro e infe-
nar continuamente mais luminosa e mais conforme a Deus, rior dentre vós pode receber de Deus antes que hoje mesmo ele
ainda que, visto que é imagem, não se torne nunca modelo ou saia dessa igreja, o que digo? Antes mesmo que hoje eu tenha
Criador'í7. terminado esse sermão, em toda a verdade e tão verdadeiramente
que Deus vive e que eu sou homem. E é por isso que digo: Não
Sabemos que o pensamento eckhartiano estaria deformado se se in- temeis, essa paz não está distante de vós, se vós a procurardes
sistisse unilateralmente no tema do Tudo ou Nada, negligenciando-se o de forma sábia63 •
valor dos textos nos quais o mestre dominicano (que se situa, quando es-
creve para a rainha da Hungria, em um plano mais "pedagógico") obser- Porém, se é verdade que o mestre fala aqui como guia espiritual -
~::.,
va que, "se não se instruírem as pessoas que não são instruídas, ninguém ainda que se dirija, como acabamos de ver, não a religiosos já formados
jamais será instruído,,58. Ou, mais meta fisicamente, em termos que M. mas ao mais grosseiro de seus ouvintes - , o paradoxo de sua posição só ~r'
,",
Quint aproxima de certas fórmulas kierkegaardianas: "Se não houvesse se esclarece, cremos, pela referência à sua ontologia. Nele, o problema da
nada de novo, não haveria nada de antigo,,59. Mas é no entanto claro que, santificação e o do arrependimento, que na verdade são apenas um, não
para Eckhart, na instantaneidade de um "dia de eternidade" é que a alma se separam realmente da questão mais geral que coloca a relação entre o
pode - "para além do tempo", e cada vez que se repete nela esse ato de Deus criador e o universo criado. Finalmente, a presença do Deus trinitário
abandono que a faz mãe de Deus - se identificar com o único Filho que no "pequeno posto" da alma (Pred. 2), no "templo" libertado de seus
engendra eternamente o único Pai 6o . Como o "verdadeiro arrependimen- "mercadores" (Pred. 1), ainda que ela seja um dom de graça que já está
to", tal como o descreviam os Discursos do discernimento, faz "desapa- descrito como um dom de gloriosa beatitude, mantém-se provavelmente
recer todos os pecados no abismo de Deus" em menos tempo do que ° do mesmo tipo que a imanência geral da Luz divina nas trevas do nada.
necessário para Eckhart "fechar o 0Iho,,61, essa conversão não exige ne- Para definir essa imanência, que se assemelha antes a uma teofania do que
nhuma prova preparatória, nenhuma ascese prolongada. Assim que a Sama- a uma doação de ser, Eckhart usa freqüentemente a palavra «analogia"
ritana ouve Jesus, ela se volta para ele e é nesse mesmo instante que en- que, apesar das referências aristotélicas e tomistas, é entendida aqui de
contra "seu verdadeiro marido"; forma bastante particular. Em seu artigo Mélanges Étienne Gilson, Koch
"
apresenta, a esse respeito, conclusões bem próximas daquelas a que havia
Se o homem é senhor de sua livre vontade, na graça, e de chegado, por sua vez, Vladimir Lossky64. Podemos apenas fazer um levan-
modo que possa uni-la à vontade de Deus de maneira total e tamento de seus elementos mais essenciais.
A analogia eckhartiana não se define absolutamente em termoS de sentido oriental). Sabe-se, por conseguinte, que não apenas a "estraneidade"
proporcionalidade matemática, e não encontramos nos textos do domi- da criatura não a impede em nada de manifestar a "honra" e a "glória"
nicano alemão fórmulas como as de Santo Tomás declarando que, se "ver- de Deus, mas que é precisamente pelo que nela é, de forma real e não ilu-
dade, bondade e outras perfeições do mesmo gênero são ditas analogi- sória, "bom" e "perfeito", que ela testemunha, simultaneamente, sua mi-
camente de Deus e das criaturas", importa que elas estejam presentes, tanto séria de "mendicante" e essa "riqueza" do Deus "misericordioso"69 que
em umas quanto em outras, "segundo seu ser", mas "em graus de maior e não cessa de "alimentá-la" sem nunca "saciá-Ia"7o. A esse respeito a ima-
menor perfeição"6S. O que Eckhart situa entre a equivocidade e a univo- gem da urina como sintoma da saúde é bastante indelicada, mas a ima-
cidade é muito menos uma relação a quatro termos como as que descre- gem da coroa de palha, como tabuleta de taberneiro, é mais insuficiente
via, por exemplo, Aristóteles no V Livro da Ética a Nicômaco (para de-
terminar as diversas espécies de justiça), do que essa forma de raciocínio
ainda visto que não remete senão a um "signo". Ora, enquanto ela é em
si "absolutamente nada", a criatura é menos do que um signo; enquanto
~
que concerne ao uso, pelo Estagirita, de "equívocos por referência" (ou criatura de Deus, ela o é mais, na medida em que recebe, em toda plenitu-
eras en)66 tais como os definiam vários textos da Metafísica (particular- de - sem a degradação progressiva que descrevia o Pseudo-Dionísio em
mente 2,1003 a, e K, 3,1061 a). Se o "ente" se diz "em vários sentidos", relação à existência de telas materiais cada vez mais opacas 7! - , uma luz
existesempre um sentido primeiro que, em relação aos sentidos derivados, que não se "enraíza" no ar que ela ilumina, que, em um sentido, não é senão
desempenha o mesmo papel que a saúde do ser vivo em relação àquilo que "emprestada" e entretanto a torna mais rica do que qualquer doador que
a conserva, a produz ou a revela, isto é, a dieta, o médico, a urina. Ora, não estivesse ele mesmo na plenitudo essendi. Graças a esse empréstimo
diferentemente de Aristóteles e de Santo Tomás, em vez de ver nessas es- de luz, a criatura pode assemelhar-se ao ar translúcido e, ao se reconhecer
pécies de "análogos" modi praedicandi e modi relationis, Eckhart os des- mendicante, tornar-se ela mesma teofania 72.
creve ousadamente como modi unius eiusdemque rei simpliciter6 7, de for- Assim se esclarecem os abundantes paradoxos da obra de Eckhart e
ma que se poderia considerá-lo, uma vez mais, bastante próximo de uma que resumem bastante bem as linhas tomadas ao comentário do Êxodo (a
teoria da pura univocidade. E isso exatamente no momento em que o lei- propósito de XX, 4):
tor desatento ao jogo de sua dialética poderia acusar o dominicano ale-
mão de sucumbir a tentações equivoquistas. É notável, com efeito, que, Nada é ao mesmo temlJO tão dessemelhante e tão seme-
remetendo aos célebres exemplos aristotélicos, Eckhart negligencie o pa- lhante a outra coisa ... do que Deus e a criatura. O que há, com
pel do médico como agente positivo da saúde, se interesse pouco pelo da efeito, de tão dessemelhante e semelhante a outra coisa do que
dieta como causa conservadora e acentue deliberadamente o caráter mais isso, cuja dessemelhança é a própria semelhança, cuia indistinção ",,,
"exterior" da urina, efeito fisiológico mas sobretudo sintoma médico, visto é a própria distinção? .. Sendo distinta por sua indistinção, quan- :1::
que ele a compara a uma tabuleta de taberneira, nem mesmo imagem de to mais é indistinta, mais é distinta; sendo semelhante por sua
barril, mas simples coroa de palha, ideograma em si perfeitamente estra- semelhança, quanto mais é dess.emelhante, mas é semelhante 73 .
nho à natureza do vinho cuja presença ele anuncia. Na mesma frase, na
qual descreve - como vimos - a dieta e a urina como os "modos de uma É o conjunctim que forma aqui o cerne mesmo do raciocínio. É ele
única e mesma coisa" - a saúde - e como "numericamente unas" com também que dá seu verdadeiro sentido às afirmações aparentemente con-
ela, Eckhart usa o "de modo que" (ita quod que lhe é cara) para precisar traditórias, as quais, mais ainda do que os comentários latinos, povoam
que nem uma nem outra contêm entretanto essa saúde mais do que a con- os tratados e os sermões alemães: a alma contém uma imagem que é ao
tém a pedra. Ora, é precisamente desse mesmo modo que mesmo tempo interior e exterior, não de dois pontos de vista diferentes,
mas porque "o interior é o exterior" e "o exterior, o interior,,7\ ela está
o ser e toda perfeição, sobretudo geral, como o ser, o verdadei- "presa no corpo" e, contudo, "o corpo está antes nela do que ela nele"75;
ro, o bom, a luz, a justiça, etc., se dizem? analogicamente de "o Anjo mais elevado não pode tocar no fundo nem na natureza da alma"76,
Deus e das criaturas 6S • e no entanto o Anjo é "uma imagem mais próxima de Deus,,77 e o mais
nobre dos espíritos puros participa de tal forma da Potência divina que
Mas já encontramos, no início dessa exposição, o caso significativo pode-se dizer que ele criou tud0 78 , mas a verdade é finalmente que "em
das "perfeições gerais" (transcendentais, atributos divinos, "energias" no Deus nenhuma criatura é mais nobre do que uma outra,,79; a alma que
procura Deus no fundo de si mesma é denominada "viril", ela deve ultra- Unidade que eu sou, que recolho, por minha presença interior e minha
passar o nível inferior no qual a qualificamos de "mulher"so, e no entan- imanência, no Seio e no Coração do Pai" 87. Estamos, então, para além de
to o fundo da alma deve ser, não apenas "virgem", mas "mulher", isto é, uma ascese, de um verdadeiro caminho da Cruz, de uma lenta e dolorosa
capacitado para conceber a imagem de Deus S1 ; a "centelha" da alma é imita tio Christi; e, se o que se considera em geral como um "preceito"
"incriada"S2 e entretanto foi Deus quem a "criou"S3; os amigos de Deus merece antes ser chamado "promessa" e "recompensa", o apelo do Cris-
renunciam a qualquer consolo mas, para eles, consolo e não-consolo são to é menos, entretanto, o anúncio de uma alegria a colher, após uma par-
igualmente consolo s4 etc. ticipação real em seus próprios sofrimentos, do que a certeza de que todo
Desses paradoxos, cuja lista seria interminável, mantenhamos ape- sofrimento desde já é abolido e que, na verdadeira via cristã, o trabalho
desapareceu em benefício de puros prazeres 8S . Ainda melhor do que um
nas, como conclusão, aquele que, do ponto de vista cristão, pode parecer
o mais escabroso, pois, com uma "ingenuidade" bem diferente da síntese "arroubo" místico, deve-se falar, a rigor, de uma graça beatificante que ~
dialética de tipo hegeliano, dá lugar a uma Aufhebung a qual se poderia une a alma, de forma total e imediata, ao próprio Verbo encarnado e subs-
temer que chegasse praticamente a "esvaziar" o mysterium crucis. Eckhart titui à sua "natureza" de ser criado e "extra-feito" uma outra "natureza",
acaba de descrever, simbolicamente, uma luta laboriosa entre o fogo e a "superior" e "celeste"89.
madeira que aparece como um verdadeiro "momento" negativo, cujo papel É aqui que intervém o duplo sentido do verbo tollere (em alemão
é efetivo no apaziguamento final: ufheben), que significa antes de tudo -literalmente - "elevar", "tomar
sobre os ombros", "assumir", mas, para Eckhart, mais ainda: "suprimir",
Não se apaziguam nem se calam nem se satisfazem jamais até mesmo "depor", de forma que, quando o dominicano alemão, em vez
nem fogo nem madeira em nenhum grau de calor, de ardor, nem de compreender o versículo evangélico segundo sua significação mais evi-
de semelhança, até que o fogo se engendre ele mesmo na ma- dente, joga aqui - de passagem - com um termo que Hegel colocará bem
deira e lhe dê sua própria natureza, até mesmo sua própria es- mais tarde no centro de sua dialética, ele não pensa em atribuir ainda o
sência, de modo que tudo se torne um único fogo, em uma igual terceiro sentido de uma "síntese" que, "conservando", "ultrapassaria" ou
apropriação, sem diferenças, nem menos nem mais. É por isso "superaria" o momento da negatividade:
que, antes que s,eja assim, há sempre uma fumaça, uma resis-
tência, um estalido, um trabalho e um combate entre fogo e Nosso Senhor diz: "Quem quer vir a mim deve sair de si,
madeira. Porém, assim que toda dessemelhança é rejeitada e renunciar a si e carregar90 sua cruz" - isto é, deve depor e su-
suprimida, então se apaga o fogo e a madeira silencia S5 . primir tudo o que é cruz e sofrimento. Pois é certo que aquele
que renunciasse a si mesmo e saísse inteiramente de si, para esse ""
,rlll
Mas o primado do conjunctim exige que, se o sofrimento e o traba- não poderia haver nem cruz nem sofrimento nem pena; tudo
lho são mais do que epifenômenos, situados por assim dizer em um nível seria para ele um prazer, uma alegria, uma adoração 91 .
infra-ontológico, eles constituam, finalmente, com a paz e o silêncio uma
só e única realidade. Esse é o caso, sem dúvida, da Paixão de Cristo e de Efetivamente,Eckhart, em sua pregação, dá muito menos lugar do que
qualquer participação humana nesse evento "temporal" que, por ser "di- Tauler e sobretudo do que Seuse aos "acontecimentos" (históricos e meta-
vino", deve apresentar os traços de um Nunc intemporal. Seguramente, históricos) da Crucificação e da Ressurreição. O essencial é sempre, para
se os "amigos de Deus" sofrem de bom grado "incomodidade e dano", é ele, a vida gloriosa no interior da eterna Deidade. Ele não seria contudo
porque sabem que Deus enviará, àqueles que sofreram em uma "honesta um verdadeiro "dialético" se abstraísse completamente a negatividade: erro,
disposição", um certo "consolo" capaz de "ajudá-Ios"s6. Mas essa não é reparação, sofrimento e morte. Mas sua tendência é a de querer pensar em
ainda senão uma maneira exterior de falar e a exegese do texto evangéli- sua inseparável- e insondável- unidade apenas sob o rosto da beatitude,
co Tolle crucem nos introduz em uma perspectiva da qual parece excluÍ- os dois "momentos" da processão e do retorno, e - o que é mais grave
da qualquer temporalidade. As três prescrições de Mateus, XVI, 24 ("Se - os dois "eventos" do erro e do arrependimento. Pode-se duvidar que
alguém quer vir atrás de mim, que renuncie a si mesmo, que se encarregue essa visão eternista da felix culpa seja estritamente compatível com os fun-
de sua cruz e me siga") formam na verdade uma só, e esta significa, para damentos da fé de uma "história" sagrada e de uma "Paixão" redentora.
Eckhart: "Torne-se Filho como eu sou Filho, Deus engendrado e a mesma Notaremos igualmente que, na passagem que acabamos de citar - como
.. ,~, .. ...,.. ~,
Gêneses da Modernidade
\..;r·'R38 155
154 Maurice de Gandillac
~~- G I.~~
no texto dos Discursos de discernimento aos quais remetemos anterior- dia para ser o horizonte comum do tempo e da eternidade, essa imagem
mente 92 - Eckhart desliza, ele mesmo, em um uso bastante significativo de Deus que carrega em si toda a aspiração do "infinito reduzido" rumo
do condicional. Se jamais fosse possível a um homem chegar efetivamente ao "infinito absoluto". Ele exaltará, na própria história, a "cooperação"
a um total desprendimento (Abgeschiedenheit), então o paradoxo do "im- na obra divina desse microcosmo criado que tem vocação para ser "canto
possível necessário" se tornaria para a criatura uma realidade; de fato, ele vivo" e "cítara intelectual,,10o. O "segundo deus" do Pseudo-Hermes 101
é apenas um ideal, um limite inacessível. Só que o Cristo que apareceu para será menos, para ele, a "máquina do mundo", por mais infinita que seja,
o fariseu perseguidor no caminho de Damasco não é a idéia reguladora do que a mens foecunda do próprio homem no paciente trabalho de suas
de uma "tarefa infinita" nem o brâmane indiferenciado da tradição vedân- sucessivas "aproximações". Ele dará lugar, assim, por mais de uma vez, a
tica. Na medida em que o Verbo se "fez carne", em que "entrou na histó- essas "utopias militantes" que um revolucionário romântico como Ernst
ria", em que realmente carregou sua Cruz nas encostas do monte Calvário, Bloch opõe hoje em dia ao rasteiro racionalismo do marxismo vulgar 102.
na medida em que realmente agonizou no Jardim das Oliveiras e nos bos- Resta que Mestre Eckhart, pela dialética do totum intra e do totum deforis,
ques ignominiosos dos supliciados, não se pode negar que a fórmula eck- é o arauto de uma outra elevação prometida ao homem. Pois a efusão de
hartiana de um elevar-se que será, ao mesmo tempo, uma "deposição" e luz que se espalha sobre ele por pura graça 103 o revela em sua natureza
uma "abolição", uma gloriosa descida da Cruz identificada a uma ascen- divina, para além do nível natural no qual o calor se dá ao ar e o fogo à
são, uma metamorfose imediata da dor reparadora em eterna fruição, madeira. Basta que a criatura reconheça seu nada para que ela seja imedia-
corresponda também, no plano antropológico, a uma exigência sobre-hu- tamente elevada para onde a própria graça não é mais graça.
mana e, no plano teológico, a uma tentação docetista. Diferentemente da dialética cusaniana, a dialética eckhartiana dei-
xa na sombra o doloroso momento da ruptura, assim como o laborioso
O Eros platônico - não o encantador e inútil "pequeno deus" que momento da aproximação. Diferentemente da dialética hegeliana, ela evita
inspira a Sócrates uma "palinódia expiatória "93, mas o "grande demônio" deificar a história como se recusa a confiar à luta entre a natureza e a cul-
intermediário entre o divino e o human0 94, aquele que Diotima associa à tura a finalização de um livro morto que seria o fim da história mas igual-
concepção quase ignominiosa, no jardim de Zeus, por ocasião do banquete mente o fim do homem. A diferença da dialética kierkegaardiana, ela não
que acompanhava a chegada ao mundo da Afrodite popular 95 - nasceu reduz absolutamente a dimensão humana ao trágico confronto entre a
do encontro entre a mendicante Pênia e o hábil Poros, filho de Métis, que pura subjetividade e a transcendência absoluta de uma pura alteridade.
é tanto astúcia quanto sabedoria. Maltrapilho, sem casa, ele reúne em si É no instante eterno, mas aqui e agora, que ela exige do homem vivo esse
mesmo os traços complementares da indigência, que é uma necessidade vazio interior que o transmuta no mesmo instante em plenitude supera- 1.,
estimulante e da engenhosidade produtiva. Quando escapar às vulgariza- bundante, nesse nível em que, deificado sem ser Deus, ele só pode signi-
ficar sua condição paradoxal por acúmulo dos oxymora: o distinto que I"
ções do mito, é ele que irá aspirar, com todas as suas forças de necessita- "
do, a essa plenitude ontológica que só move o universo por ser, ela mes- é indistinto e o indistinto distinto, o outro que é não-outro, o ente que é
ma, o objetivo final de seu amor 96 . Em certos textos Eckhart, subestima não-ente e o não-ente, ente.
às vezes o misterioso valor da temporalidade; exalta tanto a criatura glori-
ficada e totalmente iluminada que a unidade primeira parece absorver, em
si, para sempre, as fases necessariamente sucessivas da "separação" e da
"reconciliação", de modo que quase não sobra lugar, nessa perspectiva, NOTAS
para a humilhação - usque ad mortem Crucis 97 - da vítima inocente
imolada pela salvação de todos. Mas, ao mesmo tempo, ele insiste bastante 1 Prologus generalis in Op. tripart., LW I, n.7, p.152. Citamos as obras publica-
'no absoluto desenlace de "todas as coisas,,98 para que o ens passivum- das por Kohlhammer em Strugart pelas abreviações LW (Lateinische Wcrke) e DW
(Deutsche Werke).
que recebe de fora o empréstimo mais precário - apareça freqüentemen-
2 Resposta aos artigos incriminados in "Edition critique des pieces relatives au
te mais como "nada" do que como "pobreza". proces", Arehives d'hist.litt. etdoetr. du Moyen Age, I, Paris, 1926 (ed. Théry), p. 186.
O Cusano, ao contrário, enfatizará - segundo uma tradição que vem 3 DWV, p. 60.
de Poseidônio, de Cícero, mas também de São Gregório de Nissa 99- o 4 Prol. in Op. trip., loe cit ..
caráter positivamente "industrioso" do homem que foi criado no último 5 Arehives d'hist. lit. et doet. du Moyen Age, 1928, IV, p.345, n.3.
44 Cf. Pred. 32 (Beati pauperes), Pfeiffer, p. 280 (trad. Quint, in Deutsche coincidência com sua função paterna. Porém, quando cle admite que, pela dupla via da
Predigten und Traktate, Munique, 1955, p. 308, trad. Aubier-Molitor, p. 259): "Um falta e do arrependimento, o zelo do homem c seu amor por Deus podem "crescer" (ibid.,
grande mestre diz que sua penetração é mais nobre do que sua emanação. Quando p. 234), Eckhart considera, evidentemente, apenas uma fase preparatória, pois a plena
emanei de Deus, então todas as coisas disseram: Há um Deus. Ora, isso não pode Absgeschiedenheit exclui - como veremos - o "mais" e o "menos".
me tornar bem-aventurado (selig), pois aí não me conheço senão como criatura, mas 49 Pred. 10, DW 1, p.171.
n3 penetração, onde quero me encontrar na vontade de Deus, e me encontrar vazio 50 In Ex., n. 91, LW II, p. 94: "Videns, quaerens et amans plus et minus non est
(ledig) da vontade de Deus e de todas as suas obras e do próprio Deus, então estou divinus. "
acima de todas as criaturas e não sou Deus nem criatura, mas sou o que fui e o que 51In Ecdi., n. 20, LW lI, p.248: "In divinis quodlibet est in quolibet et maximum
devo permanecer agora e sempre. Aí recebo uma pressão que deve me conduzir para in minimo [fórmula que o Cusano destaca no manuscrito em seu poder, e que lhe inspirará
além de todos os anjos. Nessa pressão recebo uma riqueza tão grande que nada pode longos desenvolvimentos], et sic fructus in flore [segundo Eccli., 24, 23: Flores mei fructus].
me impedir de ser Deus segundo tudo aquilo pelo qual ele é Deus [entendamos: se-
gundo seus modos e suas apropriações], segundo todas as suas obras divinas, pois
Ratio quia deus, ut ait sapiens, est sphoera intellectua/is ro acréscimo vem de Alain de
Lille e de São Boaventura J infinita cuius centrum est ubique cum circumferentia et cuius ~
recebo nessa abertura isso: que Deus e eu somos um. Então, sou o que fui e não di- tot sunt circumferentiae quam puncta ut in eodem fibra [prop. XVIII] seribitur.In cuius
minuo nem aumento, pois sou então uma causa imóvel que move todas as coisas". É figura Exodi 16 dicitur de manna divino: Nec qui minus paraveraI repperit minus, e Lucas
daro que para além do "motor imóvel" da Física e mesmo da Metafísica aristotélica, 10: Marie optimam partem elegit, quia optímum et totum est in parte, fructus in {lore."
Eckhart evoca aqui o Uno-Pai de sua teologia trinitária. 52 Pred. 7 (Populi eius) DW I, p.117.
45 Liber XXIV Philosophorum, ed. Baumker, Beitrage, XXV, p. 207 sq., prop. 53 Ibid.
2: "Deus est sphoera infinita, cujus centrum est ubique, circumferentia nusquam.". Cf. 54 Reencontramos aqui o sic quod que assinalamos no início desse estudo, a pro-
Alain de Lille, Regulae theologicae, VII, PL 210, cal. 627. pósito de um texto em In Sapientía.
46 Cf, nossos dois estudos acerca da esfera infinita de Pascal, Revue d'histoire de 55 Ibid., p. 118.
la philosophie et d'histoire génerale de la civilisation, Lille, janeiro-março 1934, fasc. 56 Cf. Possest (ed. de Basiléia, p. 253. No sermão Ubi est (ed. Koch, Sitzungs~
33, p. 32 sq.; c "Pascal et Ic silence du monde", in Blaise Pascal, Cahiers de Royaumont, berichte, n.5-6, p. 90), no qual o nunc aeternitatis é denominado "essência estável do
I, Paris, 1956, p.342 sq. movimento" pois que "todo móvel se move do ser do repouso ao ser do repouso" (de
47 Ed. Pfeiffer, Pred.IX, p. 47 (ed. Quint, Deutsche Pred. und Trakt., Pred. 28, esse quietis ad esse quietís), a dialética motusquies separa, de início, os dois termos para
p.280). uni-los apenas no infinito. Ela nos parece bastante diferente daquela que, em Eckhart,
4S Cf. Rede der underscheidunge, IX, XII, XIII. Se é verdade, contudo, que - para além de qualquer "passagem" (mesmo instantânea) de "ser" a "ser", implica, de
segundo Il Cor., XII, 9 - a virtude se realiza na fraqueza e, por conseguinte, "procede saída, uma verdadeira coincidência entre o "decurso" e a "paz".
do combate" (ibid, IX, DW V, p. 213), esse não é absolutamente um traço da perfeição 57" Nostra intellectualis natura, cum se Dei vivam imaginem intelliget, potestatem
como tal, mas apenas uma seqüência da presença do criado na regia dissimilitudinis. habet continue darior et Deo conformatiar fieri, /icet, cum sit imago, nunquam fiat
Veremos mais adiante que o fogo, antes de ser assimilado, luta contra a madeira. Mas, exemplar aut ereator".
assim que o dessemelhante se torna, nem sequer semelhante - o que, como sabemos, é 58 Gotl. troest., DW V, p.60.
ainda "detestável" - mas idêntico, o passado está, de algum modo, abolido (como o 59 Ibid., p. 61: "Enwaere niht niuwes, sô enwurde niht altes" (cf. a nota 224 do
,-,
,.,
futuro, que só tem sentido por um projeto e que desaparece, conseqüentemente, na to- editor, ibid., p. 105).
tal renúncia a qualquer vontade própria). Para quem realmente se arrepende, "o peca- 60 Pred. 10 DWI, p. 167: Fórmula tida como suspeita pelos inquisidorcs do pro-
do não é pecado" e nem mesmo há mais lugar para qualquer penitência (no sentido de cesso (Théry, "Pieces relatives au proces", Archives, I, 1926-1927,11, art. 57, p. 264;
um castigo reparador): "Sim, aquele que estivesse verdadeiramente instalado na vonta- "Quotquot autem sunt filii, quas anima parit in eternitate, tunc tamen non est plus quam
de de Deus não deveria querer que o pecado ao qual sucumbiu não tivesse se produzido unus filius, eo quod accidat supra tempus in die eternitatis".) A resposta de Eckhart atenua
[fórmula condenada em Avignon, bula In agro, prop. XIV] ... Se o homem se recupera sensivelmente a doutrina e parece deixar lugar a um tempo próprio do homo viatorque
completamente de seus pecados e deles se afasta inteiramente, então o Deus fiel faz como não seria "imagem" mas apenas "à imagem": O Cristo é "o primogênito nascido den-
se o homem jamais tivesse sucumbido ao pecado, e não exige reparação, nem por um tre vários irmãos. Ele é herdeiro, nós somos co-herdeiros, enquanto seus filhos e seus
só instante, de todos os seus pecados ... Visto que ele o encontra no instante presente membros, de tal modo que ele é o único salvador" (ibid., p.165).
bem disposto não considera absolutamente o que foi previamente. Deus é um Deus do 61 XII!. DVI V, p. 238.
presente -lbid., XII, DW V, p. 233-234. O tema teológico do Deus redentor, do ino- 62 Cf. a fórmula anteriormente observada do Deus se tornando "mais do que
cente que expia os pecados do mundo, desempenha um papel secundário na pregação perfeito" no movimento da "extra-ebulição".
do dominicano. Se às vezes dá lugar ao tema da fe/ix culpa, é na perspectiva geral que 63 Pred. 27 {Euge, serve bone}, Pfeiffer, p. 187 (trad. Quint, p. 277-278).
o faz declarar que o Durchbruch é mais nobre do que o Ausfluss, o que implica menos
uma valorizado do próprio tempo - o tempo da história sagrada - do que o reco-
64 A única diferença notável é o fato de Lossky insistir na preferência de Santo
Tomás - tal como ele a expressava, por exemplo, em seu Comentário da Ética, lect. 7
,
nhecimento, como observamos, de uma superioridade ontológica do processo total - por uma analogia de proporcionalidade, que alcança uma "bondade inerente às coi-
(bullitio e ebullitio) sobre a Unidade adormecida considerada fora de sua necessária sas", ao passo que os modos aristotélicos de pregação ab uno principio e ad unam fi-
nem - que apenas os escolásticos posteriores denominarão "analógicos" -concernem ex se nec ut inhaerens in se, sed mendicasse et accepisse mutuo et continuo accipere quasi
apenas a uma "bondade separada", cuja denominação se mantém extrínseca (Théologie in transitu ... et sic non esse suum sed esse ab altero et in altero, cui est omnis honor et gloria,
négative et connaissance de Dieu chez Maitre Eckhart, Paris, 1960, p. 312, n. 276); Koch quia il/ius est.". Os termos empregados (mutuo, in transitu) sugerem um tipo de relação
privilegia, ao contrário, e com razão, o papel da analogia chamada de "atribuição" (Zur "real" que, apesar da inventiva sugestão de M. Gilson (History of Christian Philosophy,
Analogielehre Meister Eckharts, p. 336). Mas os dois historiadores concordam em si- New York, 1955, p.441), é bem mais do que uma "imputação" no sentido luterano (Koch,
tuar Eckhart em uma tradição neoplatonizante que corremos o risco de deformar sub- p.337). O in altero remete, aliás, claramente ao in ipso sunt omnia de Rom., XI, 36.
metendo-a à alternativa entre a univocidade escotista e a analogia tomista. Lossky, que 70 Para Eckhart, a fórmula.do Eclesiates: "Aqueles que me comem ainda têm fome."
se recusa a atribuir a Eckhart uma confusão grosseira entre o Ipsum Esse e o ens commu- (XXIV, 29), significa, se bem compreendida, "a verdade da analogia de todas as coisas
ne, escreve, a propósito da interpretação proposta por M. Galvano delta Volpe, essas ao próprio Deus ... Elas comem porque são, têm fome porque recebem seu ser de um outro"
linhas, que cremos esclarecedoras quanto à "dialética" eckhartiana: "Simplificado ao (In Eccli., n. 53 LW lI, p.282).
extremo, o pensamento de Mestre Eckhart perde, nessa interpretação, a antinomia do 7I Cf. Cel. hier., VIII, 2, 240 c, IX, 3, 260 d, e sobretudo XIII, 3, 301 a-c.
transcendente e do imanente que vimos enunciada nas proposições dialéticas acerca do 72 Eckhart volta freqüentemente a uma imagem tradicional, mas que esclarece
distinto e do indistinto, do dessemelhante e do semelhante. Ora, a dialética desse teólo- bastante sua exegese do Edunt, non esuriunt. Cf. In. Jo, n. 70, LW m, p. 58; In Eccli.,
go, encantada com o mistério da Vida que jorra de seu próprio fundo, borbulha em si n. 46 LW 11, p. 274; Got. troest., DW V, p.36; Prcd. 46 (Beati qui esuriunt), Pfeif., p.
mesma e se expande assim na ação criadora, não tem nenhum outro objetivo senão o 148, trad. Quint, p. 373, etc. É de Santo Tomás que ele toma a comparação do ar ilu-
de mostrar, através de uma série de antíteses, a relação de analogia das criaturas a Deus, minado oposta à do ar aquecido. O Doutor Angélico distingue, com efeito, o calor que
relação dinâmica de dependência na qual o que não é acede ao ser, sem se tornar o Ser é "recebido aqui nesse mundo sob o modo em que está no fogo" da luz que "não se
que é por Ele-mesmo" (loc. cit., p. 307-308). Lossky remete ao estudo de M. Hans Hof enraíza no ar" e não pode ser recebida, no mundo sublunar, "no modo em que está no
(Scinti/la animae, Eine Studie zu einem Grundbegriff in Meister Eckharts Philosophie, Sol" (Suma teol., 1\ 104, 1). O De veritate (XXI, 4, 2) aproxima esse último caso da-
Lund-Bonn, 1952) que rejeita, com razão, as interpretações panteístas de H. Ebeling, quele da urina em relação à saúde; em ambos os casos, só pode se tratar, de fato, de
mas sem marcar suficientemente determinados aspectos "essencialistas" da ontologia uma "denominação por referência a outra coisa". A diferença, portanto, é que a urina
eckhartiana. Ainda que ele não professe uma univocidade de tipo escotista, Eckhart usa, é apenas um signo, ao passo que o Sol intervém propriamente como causa, visto que
com efeito, para "se elevar" rumo ao Ens não cogn·oscível, um conceito geral de ens, "~i:1
ilumina o ar terrestre; é, pois, apenas no caso da urina que Santo Tomás destaca a au-
que não se reduz a um ser lógico e desrealizado e que, entretanto, "se deixa determinar sência de "forma inerente" e, ainda que não o precise diretamente, parece admitir a pre- .:.
pelos gêneros e pelas diferenças" (ibid., p. 311-312). sença transitória, no ar iluminado, de uma espécie de "forma" que não é a do Sol (cf. ..•1
65 ln Sent., I, 19, 5, 2: "Dico quod veritas et bonitas et huiusmodi dicuntur ana- Koch, loco cito p. 340, n. 31). É o que Mestre Eckhart parece, ao contrário, recusar, já ~-.
logice de Deo et creaturis. Unde oportet quod secundum suum esse omnia haec in Deo
sint et in creaturis, secundum rationem majoris perfectionis et minoris."
que o "passivo" para ele não tem nada de inherens in se (11, ln Gên., n. 25). Para me-
lhor marcar essa "não-inerência", para opô-Ia ao "dom" total que faz o Pai ao Filho e
::.
66 Cf. J. Owen, The Doctrine of Being in the Aristotelician Metaphysics, Toron- ao Espírito, sobretudo nos textos de "consolo", nos quais o vocabulário é freqüente-
to, 1951, p. 59 sq. mente estóico, ele fala, como Epicteto, de um "empréstimo" sempre revogável (Consol., .~ll
67 In Eccli., n. 52 sq. LW 11, p. 280 sq. Cf. Koch, loco cito p. 330-332. p. 36) mas que, como graça, tem mais valor do que um "dom" natural. Deve-se obser-
68 In Eccli., n. 52, LW 11, p. 280-282 [as palavras sublinhadas foram tiradas lite- var que em Santo Agostinho (De Gen. ad !it., VIII, 12), a imagem do ar que não "se .~.
ralmente do texto de Santo Tomás - In Sento I, 23, 3, 2 - que o acusado da Inquisição torna" realmente luminoso, visto que recai na obscuridade assim que o sol desaparece,
oporá a seus censores]: "Rursus nono advertendum est quod distinguuntur haec tria não se aplica, como sugere Santo Tomás (Suma teol., Ioc. cit.), ao caso de qualquer cria-
univocum, aequivocum et analogum. Nam aequivoca dividuntur per diversas res signi- tura em sua relação a Deus, mas apenas ao caso do homem justificado por graça e que
ficatas, univoca vero per diversas rei differentias, analoga vero non distinguuntur per rerum continua livre, entretanto, para se desviar dessa graça justificante para voltar às trevas
differentias, sed per modos unius eiusdemque rei simpliciter. Verbi gratia: sanitas una sem nada conservar da luz divina. Eckhart toma de Santo Tomás a extensão "ontológi-
eademque, quae est in animali, ipsa est, non alia, in djaeta et urina, ita quod sanitatis, ut ca" da fórmula agostiniana, mas conserva, ao mesmo tempo, o sentido religioso que
sanitas, nihil prorsus est in diaeta et urina, non plus quam in lapide, sed hoc solo dicitur lhe conferia originariamente a doutrina da "iluminação".
urina sana quia signidicat illam sanitatem eandem numero quae est in anima/i, sicut circulus 73 In Ex., n.117, LW 11, p.112: "Rursus etiam nihil tam dissimile et simile con-
vinum, qui nihil vini in se habet. Ens autem sive esse et omnis perfectio, maxime generalis, junctim alterL .. quam deus et creatura. Quid enim tam dissimile et simile alteri quam
puta esse, verum, bonum, lux, iustitia et huiusmodi, dicuntur de deo et creatuns analogice. ". id, cuius dissimilitudo est ipsa similitudo, cuius indistinctio est ipsa distinctio? .. Quia
Cf. Sermo lat., XLIV, 3, n.446, LW IV, p.372: "Rursus notandum quod omnia parata indistinctione distinguitur, dissimilitudine similatur, quanto dissimilius, tanto similius."
[Mat., XXII, 4) sunt servire deo, quia res una est in causa et effectu analogis, differens Cf. In Sap., Théry, Archives, IV, p. 253 a 256: "Nimic tam distictum a numero sive
so/um modo ... Sicut ergo circulus vino servit ipsum indicando et urina sanitati animalis, numerabili, creato seilicet, sicut Deus et nichil tamen tam indistinctum ... Omne quod
nihil in se penitus sanitatis habens, sic omnis creatura pari modo servit deo. " indistinctione distinguitur, quanto est indistictius, tanto est distinctius: distinguitur enim
69 In Gen., n. 25 (in Koch, loc.laud., p. 341): "Passivum ... clamat et testatur in omni ipsa indistinctione. Et e converso, quanto distinctius, tanto distinctius, ut prius ... "
sui perfeaione et bono suimet egestatem et miseriam [grifo nosso], activi vero sui superioris 74 Pred. 16 a (Quasi vas), DW I, p. 259. (Cf. a tradução latina em "Edition criti-
praedicat divitjas et misericordiam. Docet enim naturaliter se id quod habet habere non que des pieces", Théry, p. 180: "Unde subditur de hoc imagine quod... illud quod ibi
76 Pred. 17 (Quid adit), DW I, p. 289; Pred. 21 (Unus deus), p. 360. No Pred. 22 101 De Beryllo, VI. Cf. Asc/ep., l, 8.
(Ave Maria), p. 375, Eckhart afirma que o Anjo da Anunciação sente-se excessivamente 102 E. Bloch, Prinzip Hoffnung, l.eipzig, 1954.
"pequeno" para "nomear" a Mãe de Deus, porém, é a um "grande rebanho" que se dirige 103 Cf. In]o .. n. 185, LW m, p.159; Serm.lat. XXV, 2, LW IV, p. 240 etc.
quando fala a Maria: o rebanho de "todas as almas boas que desejam Deus."
77 Pred. 3 (Nunc seio vere), p. 54. É por isso que o Anjo é enviado à alma para
conduzi-la à Imagem original segundo a qual ele mesmo foi formado (cf. Pred. 20 b,
Homo quidam, p. 348).
iH Pred. 18 (Adolescens, tibi dica), p. 300-301.
79 Pred. 3, p. 55.
!lO Pred. 20 a (Homo quidam), p. 337.
!lI Pred. 2 (Intravit Jesus), p. 27.
R2 Pred. 22, p. 380-381. Cf. bula In agro, art. XXVII.
83 Ibid., p. 380. Pred. 20 b, p. 348. Na Pred 20 a, p. 332, tendo lembrado que o
servidor que preparou a refeição da qual fala Lucas (XIV, 16) pode simbolizar o pre-
dicante ou o Anjo, Eckhart acrescenta que ele significa também "a centelha criada na
alma" e que "é uma luz".
S4 Rede der underscheidunge, X, DW V, p. 223-224: "Der mensche sol williclichen
:1:
beraubet sín aller dinge durch got und in der minne sich verwegen und getroesten alles
trôstes von minne ... Du 50ft aber wizzen, das die vriunde gotes niemer áne trôst sin, wan
swaz got wil, das ist ir aller hoehster trôst, ez si trôst oder untrôst."
S5 Gotl. troest., DW V, p. 33-34. (Cf. Pred. 11, Impletum est, p. 180, na qual o
papel do "tempo" é determinado:" Ais das viur das holz in sich ziehen wil und sich wider
in das ho/z, sô vindet ez im das holz unglich. Des hoeret dá zit zuo."
K6 Consol., p. 15.
87 Ibid., p. 46.
S8 Ibid., p. 45. ,,,",,
89 Essa ação da "natureza superior" vai contra todas as leis da natureza inferior. ,,"li
Usando aqui uma imagem puramente simbólica cujo sentido "físico" talvez não deves-
se ser buscado com tanto afinco, Eckhart a compara à influência da Lua que força a
água do rio para montante de seu curso, através de um movimento "contra natureza",
porém mais fácil e mais alegre do que sua queda natural rio abaixo (ibid., p. 45). Ob-
servaremos que aqui Ausfluss (contrariamente ao que sugere a tradução de Mme Ancelet-
Hustache, Maftre Eckhart et la mystique rhénane, Paris, 1956, p. 95) não significa
emanação, mas, antes, "ascensão rio acima".
90 "Aufheben".
91 ConsoI., p. 45.
92 Discernement, XII, DW V, p.233.
93 Pedro, 242 e.
94 Banquete, 202 d-e.
9S Ibid., 203 a sq. Cf. Plotino, Enéadas, 11, 3.
96 Ainda que transpostas em uma perspectiva completamente diferente, as céle-
bres fórmulas de Aristóteles (Met. ", 7, 1072 b) só adquirem seu sentido pleno quando
ligadas ao tema platônico do Eros.
97 Philip., 11, 8.
za que ignora qualquer operação vã24 (e, em uma outra passagem que dá pleno dena para um fim supremo. E nada seria mais simples se esse próprio fim
valor às precedentes), no "'supremo desejo de toda coisa, e primeiro dom da fosse completamente celeste ou deliberadamente terrestre. O paradoxo é
natureza" (samma desiderio de ciascuna cosa, e primo de la natura doto), que Dante, como veremos, imagina duas beatitudes e postula sua harmo-
entendamos: «o retorno à sua origem" (lo ritornare a lo suo principia)25- nia mais do que a demonstra.
é por si mesma de um rigor que Dante considera bastante convincente26 . Ele menciona elogiosamente os sábios que desprezam os cuidados do
Quando ele destaca, aliás, que para nós as substâncias separadas, em geral corpo e fazem passar ao segundo plano as exigências da cidade humana 35 ,
só são cognoscíveis neste mundo por seus efeitos27, conforma-se ao ensina- mas atribui um valor muito grande à comunidade política - estando ela
mento tomista 28 . O culto que consagrou à donna gentile e o papel maravilhoso ampliada, em seu quadro imperial, às dimensões da Terra inteira - para
que esta desempenha em sua vida não implicam de forma alguma que a seus não preferir uma moral de outro tipo. Mas quando quer universalizar essa II
olhos a inteligência humana possa chegar, por suas próprias forças, a um saber respublica que o preceptor de Alexandre havia concebido ainda em um
total. Se evita, contudo, definir a filosofia como ancilla theologiae, é, sem dú- quadro limitado, é então de Aristóteles que toma sua definição do homem
vida, devido à sua dignidade real, mas também porque a teologia, tal como (e da sociedade). Se todos os membros da "família filosófica" não cessam,
a concebe, não tem praticamente necessidade de servidores. Seria difícil en- nos Limbos, de "admirar" e de "honrar" o "mestre daqueles que sabem"36,
contrar, no Convivio, um lugar explicitamente reservado à doctrina sacra se daí para frente, em virtude de uma "opinião quase católica", o Estagirita
no sentido em que a Suma Teológica a compreendia, ciência subalterna em é efetivamente dignissimo di fede e d'obedienza, na mesma medida em que
relação à visão dos bem-aventurados mas especulando, neste mundo, por - em seu próprio terreno, o da moral-, completando as lições daqueles
meios humanos, acerca do fundamento da fé 29 . Pelo menos em Dante esse que o precederam e mesmo, antecipadamente, aquelas de seus sucesso-
tipo de saber quase não se distingue dos outros usos do entendimento em seu res 37 , ele definiu claramente o fim ao quall'uomo à ordinato in quanti elle
estatuto terrestre. É no mesmo "céu" do Paradiso que - sem desconsiderar à uomo 38 . Em outros domínios, Ptolomeu, Donato, Graciano (dentre tantos ~
as diferenças de função, mas tampouco sem supervalorizá-las 3o - ele colo- outros) são certamente guias mais seguros e autoridades incontestáveis; aqui
ca lado a lado Santo Tomás e Siger de Brabante, em companhia de Gracia- o "Filósofo" continua sem rival e, nesse ponto, do Convivia à Commedia,
no, de Dionísio, de Isidoro, de Beda e do vitorino Ricardo 3 !, deixando para Dante não mudará de opinião; por toda parte, tanto em prosa quanto em
São Bernardo o privilégio de fazer ascender o viajante, muito mais tarde, ao verso, ele exporá, com a mesma preocupação de precisão e com a mesma
domínio da pura contemplaçã0 32 • Comparados ao luogo quieto e pacifico, reverência, a teoria do hábito e das virtudes 39 .
no qual vivem os spiriti beati33 , os debates dos filosofanti - como se fos- É possível que, terminado o Convivia, tenha ele mesmo comentado,
sem professores na Sorbonne - continuam envolvidos em muitas polêmicas livro após livro, todas as virtudes definidas na Ética a Nicômaco, e a exegese
para que uma querela de precedência universitária entre "cultores da arte" proposta em uma carta (cuja autenticidade na verdade é discutível) suge-
e «teólogos" possa parecer derrisória. re que a Commedia, ainda que vise a uma "felicidade (felicitas) superior",
Entretanto, é a "pomba da paz" que, do alto e de longe, orienta todo situa-se, também ela, em uma ordem de ação moral (marale negotium)4o.
o trabalho do intelecto, e eis o que justifica o papel eminente reservado à De qualquer modo, o próprio plano do Inferno se afina muito bem com o
ética. A donna gentile tem por tarefa essencial mostrar aos homens a arte esquema do Convivio e, apesar da complexidade de seus gironi e de seus
de uma vida honesta. Não certamente o contemptus mundi - a esse res- bolge, os nove círculos infernais correspondem - aproximadamente -
peito Dante é bem menos "platonizante" do que será Petrarca. Sem ne- aos vinte e dois vícios, "inimigos colaterais" das onze virtudes enumera-
gligenciar os saberes teóricos - mas na medida em que estes levam a esse das por Aristóteles41 • A luxúria e a gula são certamente os únicos "extre-
fim prático - , a filosofia conduz antes de tudo à "beatitude", e sua fun- mos" aos quais um poeta cristão pode opor a temperança, e a "insensibi-
ção primeira é a de ensinar como se hierarquizam os objetos sucessivos que lidade" quase não tem lugar aqui, mas a liberalidade, a magnificência e a
a criança, o adolescente, o homem maduro e o velho desejam; Dante os grandeza de alma mantêm seu valor de "meio" entre a avareza e a prodi-
compara aos planos superpostos de uma pirâmide, na qual cada um es- galidade, punidas no mesmo círcul042 , e a mansidão permanece como uma
conde a visão do seguinte, até à última base, realmente divina 34 • Trata-se justa medida entre a cólera e a acedia43 . Quanto aos violentos do sétimo
menos de um corte abrupto entre aparência e verdade do que de um esca- círculo, seu erro comum é uma ofensa à justiça 4 4, assim como uma altera-
lonamento de bens, cujo valor os mais humildes, em determinadas época ção da natureza 45 . A propósito da usura, Dante remete expressamente à
da vida ou em determinada condição social, conservam; mas tudo se or- Física, precisando assim o sentido de "Filosofia"46 como sabedoria práti-
Apesar de certas fórmulas incisivas, cujo tom deriva do gênero polê- loca em termos classicamente tomistas, fica-se condenado, parece, a osci-
mico, Dante não imagina uma ordem da natureza que fosse de algum modo lar entre respostas contraditórias. Pelo menos, ao lado de temas aristotélicos
separada da ordem da graça. Certamente nada é mais "natural" do que o (mas transformando-os de dentro), deve-se reconhecer a presença contÍ-
movimento que leva os homens a se agregarem; esse processo, entretanto, nua de uma outra visão, de inspiração escrituraI, com ressonâncias neo-
só é possível e eficaz na medida em que se harmoniza com a "intenção do platônicas. Nessa perspectiva, uma luz vinda do além é transmitida até o
Primeiro Agente, que é Deus" (intentio primiagentis, qui Deus esiJ8). Quando nível terrestre, passando primeiramente de esfera em esfera; dentre as In-
eles vivem virtuosamente, na tranqüilidade de uma paz que um imperador teligências separadas, nenhuma preenche uma função que sugira interpretar
coroado pelo papa assegura, a obra própria dos cidadãos da respublica é em um sentido muito menos metafórico do que poderíamos imaginar a
chamada "quase divina"69. Em um ambiente de cristandade, e para um ho- princípio o discurso do spiritel d'amor gentile no poema Voi ch'entendendo.
mem como Dante, a autoridade da Ética a Nicômaco não acarreta a des- Conhecendo de fato como o mostra o Livre des Causes 74, "essa forma
sacralização, nem do ofício monárquico nem da função docente. Antes de humana tal como foi intencionamente organizada no pensamento divino"
tudo foi, efetivamente, nas "escolas de religiosos" que o poeta recolheu as e
(Ia forma umana, in quanto ella per intenzione regolata ne la divina men-
migalhas do banquete que oferece a leitores leigos. Certas proposições con- te), os "pensamentos angélicos que produzem tais coisas em colaboração
denadas, alguns decênios antes, pelo bispo de Paris sugerem que alguns já com o céu" (menti angeliche che fabbricana col cielo queste cose di qua
tinham podido conceber uma felicidade puramente terrestre que escaparia guisa), têm como missão engendrá-la neste mundo, tanto quanto o per-
a qualquer regulação religiosa; em todo caso, não é certamente sem algu- mitam as imperfeições da "matéria" cujo papel, segundo Santo Tomás, é
ma razão que um século mais tarde Gerson acusará de naturalismo o Roman "individualizar" (de la materia la quale individuaiS). Nessa perspectiva,
de la Rose. Mesmo para criticá-las, o autor do Convivia parece ignorar tais que mescla diversos vocabulários76 ,a própria filosofia assemelha-se à alma,
tentações. Toda a Commedia exclui, aliás, a interpretação literalista de fór- que é simultaneamente "ato" e "causa" do corpo, e lhe transmite uma parte ".
,I."
mulas que, para melhor combater as usurpações políticas do papa, expõem
em termos separatistas a divisão das competências entre os responsáveis pela
da "bondade que ela recebe de sua própria causa", quer dizer do próprio
Deus. Esse dom transcende bastante o "dom de nossa natureza" (lo debi-
:)
,I
dupla felicidade humana; aliás, mesmo quando insiste mais na autonomia to de la natura nostra) para que se possa falar de uma espécie de "graça"
do temporal, Dante reconhece expressamente que "a felicidade mortal está que prepara o homem para a ultrapassagem de si mesmo, por intermédio ':',
de alguma maneira subordinada à felicidade imortal" e, apesar da restri- dessa donna da Dia beneficiata et fatta nobile cosa 77 ,
ção do quodammodo (que indica apenas que a ordem propriamente humana Testemunho oferecido graciosamente"a todos os que vivem nos dias 'li
' . ,!I
guarda sua autonomia em relação a outros pontos de vista), Dante leva a de hoje"78, a nobre Dama apresenta o maravilhoso espetáculo de uma har- .. :1
sério, não duvidemos, a "reverência filial que César deve a Pedro"7o. Se não monia entre as virtudes cardeais que apenas o verdadeiro amor permite 79 ; "'~
fosse assim, a aversão do poeta florentino pelos reis capetianos não seria mas esse próprio amor é inseparável do conhecimento e é por isso que Fi- .'~
suficiente para explicar sua indignação contra o atentado de Agnanj71 , ainda losofia se chama donna de lo 'ntelett0 80 . Pitágoras, que foi o primeiro a
mais característico visto que Dante denunciou com vigor os erros pessoais nomeá-la, quis muito justamente que seu próprio nome remetesse simul-
de Bonifácio 72 e todas as conseqüências de uma suposta doação constantina taneamente ao amor que engendra o desejo de saber, e ao saber nascido
que fez do papa um ricco padre73 . Quando um soberano temporal se arro- em cada um desse desej os1. Sapienza procedendo daquela que, desde a
ga o poder de atacar não apenas o homem privado, mas o pontífice como origem, proclama: "eu amo quem me ama"S2, a "primeira e verdadeira
tal, então a distinção entre o Cristo e seu vicário se atenua. Um Marsilio de filosofia"83, mostra assim por uma via "natural" e contudo supra-huma-
Pádua será menos respeitoso, mas isso porque Dante tem provavelmente na, a (vera felicitate che per contemplazione de la veritade s'acquista)84.
uma outra idéia da filosofia. Irradiação de um Sol inteligível que ilumina o mundo inteir0 85 , ela se ofe-
Consideradas fora de seu contexto, as fórmulas que enfatizam a in- rece a Deus como o mais belo produto de sua própria reflexã0 86 ; os ho-
dependência da ética falseariam mais gravemente a imagem da donna genti- mens participam dessa visão apenas de longe e por alguns instantes; a maio-
le do que as asserções que, na mesma obra, descrevem a filosofia em ter- ria se contenta em "suspirar" ao evocá-lo como amantes indignos que so-
mos "teológicos". Mas nenhuma delas deve ser compreendida de manei- nham com sua dama" longínqua" 87.
ra isolada. Quer Dante tenha tido ou não consciência disso, elas são para O deslizamento da sabedoria propriamente filosófica à contempla-
ele mais complementares do que exclusivas. Desde que o problema se co- ção trinitária que tentará descrever os últimos cantos do Paradiso é aqui
sagem na qual Beatriz desenvolve a imagem dos círculos cada vez menos 5 Ibid., p. 94.
6 Os primeiros cantos do Inferno são contemporâneos ao Convivia (e anterio-
rápidos que, nascidos do "ponto" divino, se ampliariam em torno dele.
res à Monarchia). Cf. P. Renucci, Dante disciple et juge du monde gréco-fatin, Paris,
Ao poeta surpreso, que não reconhece em tal visão o universo de Aristó-
1954, p.64.
teles, ela declara então que os espíritos mais próximos do centro irradiante 7 Conv., 11, XIV, 20 (d. Cant., VI, 9).
devem mover justamente as esferas mais volumosas e mais distanciadas da 8 Mas permanece exatamente assim nos textos posteriores ao famoso "circuito".
Terra 89. Nessa perspectiva sincretista, a Commedia será, de certo modo, 9 Conv., 11, XII, 9 e XV, 12.
o poema que canta o retorno a Deus, senão de todas as criaturas disper- 10 Ninguém admite mais, com Mandonnet (Dante le Théologien, Paris 1934), que
sas 90 , pelo menos daquelas que não se recusam deliberadamente ao apelo Beatriz simbolize a teologia e mesmo a visão beatífica, e que seu reencontro (alegórico) tenha
significado para o jovem Dante um noviciato edesi,istico. Cf. E. Gilson, loco cit., p. 3-51.
de seus anjos protetores. Entre a primeira aparição da donna gentile e a
11 lo vidi code che mi fecere proporre di non dire piu di questa benedetta infino
última epifania de Beatriz no décimo céu, quase não é possível ver onde se a tanto che io potesse piit degnamente trattare di lei (Vita Nova, XLII, 1).
situaria exatamente o corte entre filosofia e teologia. 12 Conv., I, 1,4-7 e 11, XII, 7.
Assim, longe de se opor, mas também sem se confundir, as duas "bea- 13 Inf., I, 2. ,'"
,I."
titudes" se unem harmoniosamente em um movimento comum, e esse "de- 14 Par., X, 28-30,97-99,136-138.
15 Inf., IV, 131-144. Transposição da Atenas celeste evocada em Conv., m, XIV,
:'?J
sejo elevado" (alto disio), acerca do qual o poeta nos diz que ele o infiamme ,~il
15, onde lo Stoici e Peripatetici e Epicurii, per la Iuce de la veritade etterna, in uno volere
e o urge a conhecer tudo aquilo que se oferece à sua visão 91, procede sem concordevolemente concorrono. Em um poema teológico, Dante não podia situar no
nenhuma dúvida da mesma fonte fecunda que, no início do terceiro livro céu senão "batizados", mas aos pagãos e aos muçulmanos ele reserva o destino que foi :"~I
do Convivia, no poema Amor che ne la mente, fazia descer uma virtude o dos patriarcas antes da vinda de Cristo.
divina na graciosa imagem de uma donna gentile 92 . Do mesmo modo, di- 16 Inf., 11, 61-69 e Purg., XXX, 109 sq. - E. Gilson (op. cit., p. 99, n.l) invoca,
ríamos nós, com um dantólogo tão considerado quanto Renucci, que Dante contra a interpretação de Miche!e Barbi, os versos 85-90, nos quais Beatriz fala da scuola .. :1
jamais "dirige uma tradição contra a outra" e que finalmente "tudo é aco- que o poeta havia seguitata e de uma via mais distante da "divina" do que da terra il
lhido e conflui em seu poema para uma representação" na qual, não ape-
cieI che piu alto festina. Trata-se aqui menos da filosofia como tal do que de uma etapa :.:1
ultrapassada, a do sensível em geral; seria necessário beber a água do Lete (e a do Êmeno)
nas, como o enfatiza nosso colega, "o passado e o futuro" mas, acrescen- para se elevar ao nível das mais altas contemplações.
taríamos, a natureza e a graça, a razão e a fé "são agenciados segundo uma 17 Conv., I, 1,16-17.
ordem simultaneamente providencial e, quase no último mistério, inteli- I::; Ibid., 11, XII, 9.
gível"93, que é o signo específico da presença revelada de Deus"94. 19 "Che que//e be//a donna che tu senti
Ha transmutata in tanto la tua vita
Che n 'hai paura, si sé fatta vile!
Mira quant' eU' e pietosa e umile,
Saggia e cortese ne Ia sua Rrandezza,
NOTAS E pensa di chiamaria donna, amai!
Che se tu non t'inganni, tu vedrai
1 Vita nova, XXXV, 1-2. Di si alti miracoli adornezza,
2 Cf., por exemplo, Gregório de Nissa, Vita Moysi, I; 19, 30Sc,- lI, 200, 392c, Che tu dirai: Amor, segnor verace,
11,305, 425a, - Pseudo Dionísio Aeropagita, fcd. Hier., VI, III, 2, 533d, - Ep. Ecco l'ancelIa tua; fa che ti piace." (Rime, LXXXIX, V. 43-53)
VII, 2, 10S0b. A justificativa do feminino (e da evidente alusão à Anunciação) é a de que o dis-
-' "Si tosto in su la soglia fui curso do spiritei d'amor gentil é dirigido à anima do poeta.
Di mia seconda etade et mutai vita, 20 Conv., 11, XV, 3.21. E. Gilson, op. cit., p. 123.
diência" em relação a Aristóteles e, por outro lado, a exigência religiosa que ilustra toda S9 Conv., 11, IV, lO.
..=:
J.
becke), e seus exemplares continham anotações marginais que revelam uma
leitura atenta, mas as citações explícitas nos tratados do cardeal surgem so-
bretudo depois de l459; com o Pseudo-Dionísio (que ele lê e relê na nova
,.-'""
, versão de Traversari, composta, parece, a pedido seu), Prodo é uma de suas
fontes essenciais quanto ao conjunto um pouco compósito de doutrinas e
,•• de tendências que ele atribui aos platonici (não se deve, todavia, negligen-
ciar o que vem de Santo Agostinho e dos padres gregos). Nos seus últimos
-xx anos, utilizará Diógenes Laércio (igualmente traduzido por Traversari). Seu
conhecimento de Aristóteles é mais direto, sobretudo após 1450, quando
pôde utilizar a versão organizada por Bessarião (o bizantino que se tornou
cardeal), mas suas citações são em geral imprecisas, por vezes equivocadas,
e ele não teme exegeses conciliatórias. Ainda que seus modos de exposição
sejam pouco escolásticos, seu vocabulário depende em grande parte da Escola
e se adensa mais com muitos neologismos.
por outro lado, que análises geométricas da transmutatio o auxiliam a quire uma forma claramente federativa, sem privilégios para Roma. Pa-
~::I;
sugerir a "coincidência dos opostos", fazendo sobressair a identidade do triarca do Ocidente, o papa, a despeito de sua primazia, não possui para
máximo e do mínimo quando a circunferência se torna, por hipótese, a de ele poder direto no Oriente; deveria dirigir a Igreja latina com um conse-
um círculo de raio infinito, ou quando o polígono cujo número de lados lho de cardeais eleitos pelas comunidades episcopais. A ênfase é coloca-
aumenta tende a se confundir com o círculo circunscrito. Tudo isto é bas- da no acordo entre as partes e o todo por imanência global do "espíri-
tante estranho ao aristotelismo e se relaciona, antes, à reflexão eudoxiana to", por estabelecimento dos indivíduos e dos grupos em um corpo se-
acerca dos limites. guramente hierarquizado, mas no qual a autoridade vinda do alto se exer-
Contra uma certa visão hierárquica do mundo, o Cusano evoca às ce segundo o consenso dos fiéis, através de todo um sistema de "repre-
vezes os logoi spermatikoi do estoicismo e, ainda que o faça em termos sentações". Quer se trate da Igreja ou do Império, esse plano de reformas
aristotélicos, mas utilizados de uma maneira que coloca paradoxalmente é, em grande parte, "utópico" (característica que será reencontrada, de
a simultaneidade do ato e da potência (unde aiebant veteres stoici formas outras maneiras, no Idiota de staticis experimentis, de 1450, e no De pace
omnes in possibilitate actu esse, Doct. ign., li, 8), essa audácia relativa (po- fidei, de 1453), mas de forma alguma no sentido de Morus ou de Cam-
dendo as razões seminais de Agostinho lhe servirem de garantia) será con- panella e sem referência à República platônica. Mais tarde o autor insis-
firmada pelos textos posteriores que reabilitam Epicuro. Certamente Ni- tirá mais na noção de "bem comum" no sentido de Aristóteles e de San-
colau de Cusa é aqui enganado pelo texto incorreto da Carta a Heródoto to Tomás. É essa noção, finalmente, que irá determinar que o Cusano se
na tradução latina da qual dispõe, pois imagina que uma ordem providen- agregue ao partido pontificaI e defenda, na Alemanha, a causa de Eugê-
nio IV. No Natal de 1448, Nicolau V o nomeará cardeal e, para o jubi- po e dos meios de que dispõem, os sábios tentam aproximar de forma
leu de 1450, fará dele seu legado itinerante através das terras germâni- conjetural o mistério vivo de um Deus escondido e infinito, unidade pura
cas, dos Países Baixos à Boêmia. que entretanto se diz ela mesma e volta a si mesma, a imanência universal
Desde 1437, fazendo voltar de Constantinopla os delegados orien- de um movimento ternário do uno, do igual e do conexo, o papel do ho-
tais ao concílio de união, o Cusano estabeleceu relações estreitas com muitos mem que, pela potência da mens, mede e cria - o idiota do De mente,
deles. Amigo fiel de Bessarião, desejava a conciliação entre os platônicos que, fazendo colheres de madeira, dá forma à matéria, está mais próximo
puros e os sectários de Aristóteles. Além disso, ele tem seu próprio cami- da arte divina do que o pintor que simplesmente copia o real-, a relação
nho, que deve, segundo diz, a uma inspiração do alto. Da De doeta igno- do infinito absoluto ao infinito "contraído" ou cósmico, que exige a me-
rantia ao tratado do Berilo, ele apresenta esse método como um meio de diação como a de Cristo do homo maximus simultaneamente "micro-
ultrapassar as oposições doutrinais retendo, de cada filosofia, aquilo que cosmo", aequalitas essendi e Verbo encarnado (Doet. ign., lII, 3-4).
representa, a seus olhos, uma abordagem positiva da única verdade que é, Nessa perspectiva, e ainda que as oposições entre Platão e Aristóte-
aliás, em 'si, inacessível. Como quase todos os homens de seu tempo, ado- les sejam por vezes reduzidas a questões de vocabulário, o platonismo
ra entretanto se despojar de seus precursores. Desde seus sermões de ju- corresponde certamente, tal como o Cusano o considera, a uma melhor
ventude, vemo-lo invocar as mais heteróclitas auctoritates. As que man- aproximação, a uma mais autêntica intuição da verdade. Desde a Douta
tém em suas obras posteriores são certamente melhor selecionadas, mas ignorância, ele qualifica Platão de divino, e a fórmula é retomada na Apo-
seu uso depende freqüentemente da pia interpreta tio. logia, mas o contexto revela que se trata aí de algo bem diferente do ver-
Sem seguir aqui o cardeal em sua vida difícil de bispo (lutando em Brixen dadeiro platonismo dos Diálogos. Tendo Com efeito louvado Avicena por
com seu clero assim como com o duque de Tirol) , nem em seu trabalho dos sua teologia negativa, o autor acrescenta: sed acutius ante ipsum diuinus
últimos anos na Cúria romana, e sem nos deter nos textos de caráter sobre- Plato in Parmenide tali modo in Deum conatus est viam pandere, quem
tudo científico ou nos de predominância religiosa, reteremos - desde o De adeo divinus Dionysius imitatus est ut saepius Platonis verba seriatim 'lO,
,.,.'
docta ignorantia, de 1440, até o De venatione sapientiae, de 1463 - algu- posuisse reperiatur (ed. de Basiléia, 1565, p.66). Essa literalidade é a de .,11
mas das referências mais significativas ao platonismo e ao aristotelismo. Proclo, não de Platão. Acreditando ainda que "Dionísio" é o Aeropagita
Veremos que, se Platão parece freqüentemente privilegiado, se Aristóteles de São Paulo (e essa atitude surpreende em um homem que foi mais lúci- ",
é às vezes criticado em termos bastante severos, o Cus ano recusa em geral do diante das falsas decretais e que criticou a autenticidade da "doação"
(como o idiota de seus diálogos) qualquer sujeição a qualquer tipo de seita. atribuída a Constantino), o Cusano acha normal ler nele fórmulas que
Diferentemente de Ficino, só raramente se refere a uma antiga tradi- pertencem ao neoplatonismo tardio e que atribui ao autor do Parmênides, ::I
ção de caráter mais ou menos misterioso, vinda do Egito, do Irã e da Cal- menos preocupado do que será Lefêvre d'Étaples em considerar as afirma- ' 'lO,
""fi
déia. Se louva Platão por ter imitado Pitágoras, é por aquele ter utilizado ções de Dionísio em sua pureza pauliniana para opô-las às elucubrações
- no nível da ratia - um método numérico capaz de ligar o uno e o múl- pagãs de Porfirio e de Prado. Nessa mesma Apologia - na qual ele de-
tiplo (neque arbitrar quemquam rationabiliorem philosophandi modum fende sua própria ortodoxia, mas amalgamando aí judeus, gregos e cristãos,
asseeutum, quem quia Plato imitatus est, merito magnus habetur, De ludo e sem hesitar em incluir entre seus mestres autores suspeitos e mesmo con-
globi, lI). O tema do progresso (desenvolvido no Sermão Ubi est, de 1456) denados - , ele qualifica de sapientissimus Fílon de Alexandria (a quem
exclui, aliás, a idéia de uma verdade original, mais ou menos obscurecida atribui o inspirado livro da Sabedoria) e invoca a seu favor uma linhagem
na seqüência dos tempos, e que conservaria uma descendência mais ou que, de João Escoto dito o Erigena, por Hugo de São Vitor e Robert Gras-
menos esotérica. Sem dúvida, o desenvolvimento das artes (consolo ofe- seteste, conduz a Mestre Eckhart (p.?O-?1). "Platão" é aqui menos o au-
recido ao homem que, como qualquer outro animal, nasce nu e desarma- tor dos Diálogos do que o suposto inspirador de uma longa tradição. Seu
do) não é rigorosamente unilinear, e tampouco se trata de uma sucessão privilégio se mantém, no entanto, relativo; tudo o que ele disse não mere-
de ciclos, mas antes, parece, de um devir histórico deveras complexo, no ce uma confiança cega, e outros filósofos são freqüentemente evocados.
qual Maomé, por exemplo, ainda que vindo após Jesus, tem por função Como "pai" de Zênon e "avô" de Sócrates - segundo o esquema
positiva adaptar a verdade mosaica para os rudes árabes, preparando-os transmitido por ProeIo - , é verdade que Parmênides, assim como Pitágoras,
assim para uma fase de desenvolvimento que permite compreender melhor é efetivamente o àntepassado do diuinus Piato, mas é sem referência a
o sentido universal da Trindade e da Encarnação. Na medida de seu tem- qualquer parentesco que o Cusano facilmente enaltece Anáxagoras e Em-
pédocles, defende mesmo Epicuro e, por sua doutrina do homem-medida, o Estagirita teria sido seu "imitador"? Mais adiante, referindo-se a um outro
reabilita Protágoras. Isso no mesmo texto (De beryllo, capo 36) no qual texto do mesmo De anima que concerne à identificação órfica da alma a
os dois grandes adversários da sofística, Platão e Aristóteles - todos dois, um sopro (A 5, 411 a), o cardeal estende visivelmente para sua própria
entretanto, "princípes da filosofia", eles que atacam Anaxágoras, - são filosofia a argumentação segundo a qual, visto que nem as plantas nem
acusados da mesma deficiência que ele, por não compreenderem (pelo mesmo os peixes respiram, a animação não pode ser definida por uma
menos com suficiente clareza) que Deus é conjuntamente ato e potência. característica que só vale para alguns seres vivos. Logo, quando escrevia: r
Não existe, aliás, nenhuma filosofia que 'não permaneça aquém da perfei- "É pelo reto que conhecemos o próprio reto e também o curvo, pois a regra
ta precisão, e o primeiro mérito dos "sábios" é justamente o de reconhe- é juiz tanto de um quanto de outro", Aristóteles não pensava certamente
cer esses limites. Platão por vezes é louvado como o "único" que, ultra- na infinitesimal "transmutação" da curva na reta, e, aliás, o Cusano o
passando "um pouco" os outros, admirou-se com o fato de que se pudes- censurará expressamente por ter considerado curvum e rectum como ver-
se "encontrar" Deus e, mais do que isso, revelá-lo (Solus Plato aliquid plus dadeiros contrários (De beryllo, capo 26). E,contudo, após ter reconheci"
aliis philosophis videns dicebat se mirari si Deus inveniri, et plus mirari si do como justificada, no nível do "mundo", a divisão de todas as coisas
inventus posset propalari, Ven. sap., capo 12), mas Aristóteles, que já o em "substância" e "acidente", é ao Estagirita que o autor da Douta igno-
Douta ignorância chamava profundissimus (no capítulo 8 da Venatio ele rância se refere para apoiar uma reflexão bastante estranha, parece, ao
é denominado apenas Peripetaticorum acutissimus), tem o mérito, como aristotelismo: uma vez restabelecida como uma reta finita, a curvitas mini-
veremos, de apresentar como "sempre buscada" a "qüididade de todas as ma remete indiretamente à simplicior participatio da reta infinita, de forma
coisas enquanto cognoscível" (Non aliud, capo 18). Certamente, tivesse ele que illa diversa participatione non obstante, adhuc, ut ai Aristoteles, "rec-
apreend{do como terceiro princípio, ao lado da forma e da materia, não tum est sui et obliqui mensuraj e do caso da linha infinita (ao qual Aristó-
uma suposta privatia, mas o nexus ativo como inchoatio farmarum, teria teles não fez nenhuma menção) o Cusano conclui então ao próprio Infini-
sem dúvida ido mais longe nessa "busca" (De beryllo, capo 29). Ao me- to como medida de tudo o que diversamente participa dele (sicuti infinita
nos pressentiu os limites dessa filosofia primeira à qual remotos sucesso- linea rectae et curvae, ita maximum omnium qualitercumque diversimode
,,oU
res darão apenas as qualificações de metafísica ou de ontologia. Da parte participantium, capo 18). A seqüência irá, entretanto, precisar que a adae-
de um impositar nominum peritissimus (que Lefevre d'Étaples definirá quatissima mensura, sem dúvida mais substancial do que acidental, trans- --"1]1
como "teólogo da fala" , tendo sobretudo o mérito de preparar o caminho cende uma distinção ainda intramundana, de forma que dois adjetivos
para os "teólogos do silêncio"), essa modéstia e esse acanhamento teste- dionisianos supersubstantialis et nonsubstantialis, remetem respectivamente
munham, como que apesar dele, que o infinito escapa a qualquer apreen- ao superlativo e ao ablativo, sendo o segundo o menos inadequado.
são por signos sensíveis e por conceitos (De venatione, capo 33). Ainda que Da mesma forma, em lI, 8, ao louvar Aristóteles por situar as formas
em potência na matéria, o Cusano desconfia que ele subestima o papel verda- :::::;
Platão pareça no geral mais facilmente "recuperável", é mais de uma vez
no filósofo da linguagem e da razão que o Cus ano encontra intuições que deiramente "formal" da causa produtora, mas pensa que, de seu lado, os
não apenas retomam a dos platônicos, mas, que se forem bem compreen- "platônicos" valorizaram demasiadamente o caráter privativo daquilo que
didas, parecem mais perspicazes do que estas. ele nomeia, por sua vez, uma possibilitas absoluta, e que ele coloca - inse-
Assim, desde o começo do De docta ignorantia (I, 1), após ter lem- paravelmente - enquanto aptitudo e carentia. Se parece aprovar, em lI, 12,
brado que Sócrates dizia não saber nada a não ser que nada sabia (necedade o qualificativo de animal aplicado ao mundo no Timeu, ele só julga a fór-
bastante próxima daquela do Eclesiastes I, 8), Nicolau de Cusa evoca a mula esclarecedora com a condição de que se conceba absque immersione
frase de Metafísica (993 b) acerca do olhar humano que uma verdade por como uma anima mundi mais ou menos identificável ao Infinito divino.
demais luminosa cega, assim como o brilho do Sol ofusca o pássaro no- Assim, nesse duplo jogo de assimilações e de retificações, o Cusano
turno. Mais curiosamente, em I, 11, louva Aristóteles por ter traduzido sua parece manter uma espécie de equilíbrio entre Platão e Aristóteles. Mas logo,
doutrina em figuras matemáticas; o único exemplo citado é o da imagem, vivamente atacado por um mestre de Heidelberg que invoca contra ele o
pouco significativa, da alma inferior inclusa na superior como o é o triân- Estagirita, vemo-lo em 1449, em sua Apologia (tomada ficcionalmente de
gulo no quadrilátero (De anima B 3, 414 b). Será que esse apoio é sufi- empréstimo, é verdade, a um "discípulo" indignado), bem mais severo do
que nos textos anteriores e futuros, contra essa aristotelica secta que colo-
"
ciente para insinuar que, apesar do gosto pela singularização que o torna
injusto para seus predecessores (singularis videri voluit priores confutendo), ca em dogmas religiosos os limites de sua própria abordagem, tornando quase
topos noetos e que, contudo, quando entalha a madeira, faz "resplande- ro" e, aplicando a fórmula a todo motus (não apenas à cicloforia celeste),
cer" nesta uma inventiva participação na ars divina. Entre os dois "prín- pensa aí descobrir o sinal de uma fecundidade do espírito, capaz de de-
cipes da filosofia", o capítulo 13 percebe uma comunidade de intenção sob senvolver infinitamente seu poder criador.
diferenças verbais; um fala, com efeito, da "alma do mundo"; o outro, de Parece sobretudo que em suas obras posteriores, sem renunciar a
"natureza". E certamente podemos compreender as duas expressões como qualquer exegese acomodadora, o Cusano enfatiza firmemente a insuficiên-
já remetendo a esse "Espírito universal", operação de Deus fazendo "tudo cia comum a seus predecessores (e não apenas aos adeptos da "seita aris-
em tudo" e que ilumina a reflexão cusana acerca da Unitrindade: Puto quod totélica "). No mesmo capítulo 25 do De beryllo, no qual recusa a privatio
animam mundi vocavit P/ato id quod Aristoteles naturam. Ego autem nec como terceiro princípio unido à forma e à materia (pois apenas pode ser
animam illam nec naturam aliud esse coniicio quam Deum omnia im om- "privado de contrariedade" o nexus ativo que liga os contrários), para além
nibus operantem, quem dicimus spiritum uniuersorum. O fato é que o erro do Estagirita, e juntamente com ele, Nicolau de Cusa parece visar a "to-
comum às duas escolas rivais é o de ter acreditado ser necessária uma es- dos os filósofos": arbitror ipsum, quamuis super omnes diligentissimus
pécie ou outra de "intermediário" entre a arte divina e sua manifestação atque acutissimus habeatur discursor, atque omnes in uno maxime deficisse. "
cósmica, por terem ignorado que, "na onipotência, velle coincide com Pois é de acordo com todos que, omnes philosophos concordando (sem
exequi, visto que ars em Deus é artifex e magisterium magister. A crítica, exceção reconhecida aqui em favor dos platônicos), na base do "primeiro
princípio, o qual nega que os contraditórios sejam simultaneamente ver- geia" (VI, 7, 17), O Uno é, de algum modo, "potência de tudo" (pantôn
dadeiros", Aristóteles quer demonstrar "semelhantemente, que os contrá- dynamis, V, 3, 15) e contém mesmo em si, segundo uma fórmula difícil
rios não podem ser ao mesmo tempo", desconhecendo, assim, que os opos- de traduzir, "o ser do infinito e da multiplicidade" (to einai apeiron kai
tos coincidem efetivamente in principio connexivo ante dualitatem, "an- plethos, VI, 5, 9). Em parte, sem dúvida, sob influências judaico-cristãs,
tes que haja dois contraditórios", assim como se compreende ao conceber essa "reabilitação", pelo menos parcial, do apeiron é discernível em um
o ponto-limite no qual se confundem o minimum do frio e do calor, o len- vasto setor do platonismo tardio; porém, bastante curiosamente, em 1461,
to e o rápido, a passagem do arco à corda, e mais simplesmente ainda o quando ele compõe sua Directio speculantis (ou De non aliud), é no pró-
angulus rectus, minime acutus et minime obtusus. Certamente, acrescen- prio Estagirita que o cardeal pensa descobrir uma virtus infinita imanente
ta o cardeal, os "platônicos" tiveram alguma noção, como diz Santo Agos- ao Primeiro Motor e de algum modo compartilhada pelo universo intei-
tinho, do Pai e do Filho (que correspondem à unitas e à aequalitas), mas, ro. Aristóteles, com efeito, dizia com razão que uma série infinita não po-
não tendo conhecido o Espírito, verdadeiro principium connexionis, não deria ser percorrida (recte dicebat Aristoteles in infinitum mon posse per-
puderam apreender em operação, no devir intramundano, o princípio ati- transiri), mas essa fórmula concerne somente à "quantidade como o espí-
vo da inchoatio formarum in materia rito a concebe" e, mesmo para seu autor, não podia então "excluir" o
Um dos textos nos quais Nicolau de Cusa acompanha mais de perto verdadeiro infinito "tal como é, antes da quantidade e tudo aquilo que é
o comentário procliano do Parmênides, desenvolvendo em particular a nota outro, e tudo em todas as coisas". A prova é que, "vendo" ele mesmo, in
marginal que se lê em seu exemplar (num et multitudo non in intellectu omnibus participata, essa "potência" (que Nicolau de Cusa chama, aqui,
sunt, sed est intellectus; hic omnia unum et multitudo, cod. cus. 186, foI. o non aliud), Aristóteles a ela referiu todas as coisas ut de primo matore,
33, rect.), é o tratado De principio (tomado por Lefevre como um sermão quem virtutis reperit infinitae (cap. 10).
e publicado por ele sob o título de Tu quis es). Nessa exposicão muito Exegese assimilativa e concordante, que surpreende ainda mais quando
metafísica, escrita um ano após o De beryllo, retomando, através de Proclo, se a descobre em um "tetrálogo" no qual dois capítulos inteiros irão conter "',
o Platão do Parmênides, mas também do Filebo e do Sofista, aquele que novamente uma crítica severa ao aristotelismo. Lefevre d'Étaples tinha bus-
destaca a mútua participação das formas, o autor evoca a universal co- cado em vão a Directio speculantis, que só foi publicada (por Uebinger) em
niunctio da unitas e da multitudo, e essa díade fecunda da qual pode-se 1888. Parece que o cardeal não a conservou no conjunto dos manuscritos ".
"
dizer que seja "nem unidade nem multiplicidade" (no De coniecturis, de que, apenas às vésperas de sua morte, destinou à impressão. Trata-se, no
1440, ele já observaria que a unidade só é alcançada mediante alteritate, entanto, de um texto bastante importante, não apenas pelo papel que atri-
e a alteridade mediante unitate, 11, cap.16). Ora, se concorda aqui com o bui à negação, definindo aqui a Trindade como non aliud que é non aliud
comentarista de Platão para criticar um Primeiro Motor separado, que só do non aliud - isto é, por uma afirmação feita de três apófases e que, ao
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se moveria na qualidade de fim, recusa igualmente a imagem de um de- mesmo tempo, coloca três vezes a própria alteridade que ela nega - , mas
miurgo que, contemplando um mundo todo feito de formas inteligíveis, também porque se vêem aí, conversando com o autor, três de seus amigos:
produziria, através de hierarquias descendentes, uma rede de idéias capa- o humanista Pedro Balbo, o médico português Ferdinando Matim (advo-
zes de "finalizar" a matéria indeterminada e "confusa" (De principio, ed. gado das teses peripatéticas, deferente entretanto e bastante atento às ob-
de Basiléia, p.355). É essa mesma deficiência, ainda que com outra formu- jeções e a explicações cusanas), e o secretário de Nicolau, esse João André
lação, que impedia aos filósofos (mesmo na descendência menos inapta à de Bussi que, na epístola dedicatória a Paulo II da edição de Apuleio (1469)
ultrapassagem da ratio) uma autêntica apreensão da connexio. O que lhes - aí mesmo onde declarara que seu mestre reverenciava as historiae, não
escapou foi que, "tudo considerado, não se encontra senão o infinito". apenas priscae mas mesmo mediae tempestatis - , irá defini-lo como refu-
Apesar de sua teoria dos mistos, Platão admite sempre a superioridade do tador de Aristóteles e mais curioso do que qualquer um acerca da tradição
peras sobre o apeiron; assim, não vê que a díade autêntica é aquela de duas pitagórico-platônica: philosophiae aristotelicae acerrimus disputator fuit;
infinitates, a finibilis (que é post omne ens), mas também a finiens (isto é, {... I at Platonis nostri et Pythagoreorum dogmatum ita cupidus atque stu-
Deus ante omne ens). Tivesse o Cusano podido ler as Enéadas, teria en- diosus, ut nemo magis illi scientiae putaretur intendisse (texto citado por <
contrado aí, em termos por vezes confusos, algumas intuições acerca do Wilpert em sua tradução do Non aliud, Hamburgo 1952, p.191-102).
Ato-Potência (que ele mesmo denominará, em 1460, o Possest), por exem- Ora, no início do capítulo 18, Ferdinando insiste para que o cardeal
plo, onde Plotino sugere que, situado por assim dizer, "para além da ener- diga, se tiver vontade, aquilo que, em sua opinião, "o muito sutil Aristó-
194
Maurice de Gandillac 1 Gêneses da Modernidade 195
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:1
É bem isso o que sugeririam as últimas páginas da Directio. Parece texto no qual ele retoma (com numerosas referências a outros filósofos) o
que Prodo alcançou essa ascensão até a intellectibilitas (que, segundo o paralelo entre Platão e Aristóteles. No "prólogo", o autor, que se sente en-
idiota do De mente o próprio Aristóteles tinha "talvez" visualizado); pelo velhecer, remete significativamente a duas de suas obras antigas, o De quae-
menos, passando do sensível à alma e da alma ao intelecto, ele compreen- rendo Deum e o De coniecturis (um redigido e o outro retomado e corri-
deu que era necessário remontar até um princípio que foi verdadeiramen- gido em 1445, logo, dezoito anos antes); a simples aproximação dos títu-
te "primeiro" (o Cusano, naturalmente, ignora as fontes plotinianas do los resume todo o projeto cusano. Contudo, enquanto o Compendium
esquema, cf. En., V, 1, 3 e 6, VI, 7). A luz que irradia desse princípio asse- (também de 1463) não contém basicamente nenhuma referência histórica,
melha-se à "revelacão" de Deus em suas obras, tal como a evoca São Pau- a De venatione sapientiae é inspirada em uma leitura de Diógenes Laér-
lo em Rom., 1, 19 (cap.20). E, sem duvidar que a "Teologia de Platão" cio, e, em um tom menos vibrante do que no De beryllo (no qual ele apre- •
mereça verdadeiramente esse título, é ao mestre da Academia que Nicolau sentava seu "berilo" como um meio seguro de "dirigir o fraco intelecto
atribui, revelationis via, a "percepção" in mente do autêntico rerum subs- de cada um" para que ele "se aproxime mais da verdade", capo 1), é aqui
tantia (cap. 21). Verdade no entanto secreta, que Platão não comunicou de forma "tímida e reservada" que Nicolau associa, diz, suas próprias
jamais a não ser por palavras encobertas, pois ela permanece em si ina~ venationes àquelas dos" diversos filósofos" .
cessível "a todos os modos de visão", até mesmo (dirá o Cusano no capí- Tendo lembrado, como nos primeiros diálogos do Idiota, que a sa-
tulo 22) através da pessoa e do ensinamento de Cristo. O termo "revela- bedoria é o alimento do intelecto (comparada ao sopro vital dos pitagóri-
ção" não remete então aqui ao "depósito de fé" no sentido em que os te- cos, ao pneuma do Pórtico, e até mesmo às exalações do Oceano com o
ólogos o entendem comumente, mas a uma descoberta "supra-intelectual" qual a mitologia alimentava os astros divinizados), o Cusano enfatiza que
cujo método de coincidência fornece a chave. Apesar das diferenças bas- o instinto natural dos vivos os orienta rumo à alimentação que lhes con-
tante evidentes, essas fórmulas já fazem pensar na geoffenbarte Religion vém, o que Platão atribui à preexistência das idéias. Mas seria necessário,
de Hegel. Em todo caso, os textos "revelados" de São Paulo demonstram, para tanto, fazer dessas idéias "exemplares exteriores às coisas individuais"? ":1
na Directio, o mesmo tratamento exegético que os de Prodo, e são tradu- Sabe-se a esse respeito qual é a posição constante do autor. O que lhe in-
zidos semelhantemente no vocabulário do non aliud. teressa, em sua presente perspectiva, é sobretudo a informação transmiti-
O que significa dizer que, por eles mesmos, permanecem "inadequa- da por Diógenes (Vidas dos filósofos, m, 64), segundo a qual a idea pla-
dos"; de forma que os capítulos finais do tetrálogo, em qualquer nível que tônica é simultaneamente unum e multa, quies e motus e a exegese dessa
situem o divinus Piato, não contradizem de forma alguma as reservas já doutrina (vinda naturalmente do Sofista), que permitiu que Proclo escre-
freqüentemente expressas pelo cardeal, e retomadas de maneira explícita vesse (Teol. Piat., IV, 34) que, em virtude de sua conexão com o mundo
no capítulo 10 da Directio. Qualquer que tenha sido sua intuição primei- das Idéias, as realidades singulares deste mundo encontram-se em ligação ''I
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ra, Platão, no Timeu, equivocou-se ao situar, entre Deus e as coisas, um direta com o divino. Sem dúvida, "maldosos" intérpretes (pensamos, cer-
mundo de modelos puros. Pode-se mesmo pensar, como sabemos, que ao tamente, em Wenck) vêem em tudo isso grandes perigos para a fé, mas o
fazer depender todo o cosmo de um único motor, de "potência infinita", Cusano afirma que tais fórmulas, se são "bem compreendidas" (si bene
Aristóteles, nesse ponto, se aproximava mais da verdade. Interrogado, no intelliguntur), se "aproximam" bastante da verdade (cap. 1).
capítulo 17, acerca de David de Dinant - que chamava Deus Hyle, Nous Elas não possuem, contudo, um valor exclusivo e, no momento, não
e Physis, e definia o próprio mundo como "Deus visível" - , Nicolau re- se trata mais de excluir de uma visão cada vez mais abrangente a aristotelica
conhece o valor positivo de todas essas fórmulas, sendo o seu erro apenas secta. Se o Estagirita apresenta a lógica como "o instrumento mais exato
o de se prenderem ainda ao plano do quid e do aliud. Assim, pode-se pen- para a busca tanto do verdadeiro quanto do verossímil", esta é uma asserção
sar que, se os místicos platônicos pressentiram melhor do que os outros duplamente justificada, e porque a sabedoria, nós o sabemos, "brilha em
"especulativos" a unidade secreta do principium connexionis, nenhum variadas razões, as quais participam de forma variada da própria ratio",
entretanto, como dizia expressamente o Cusano no capítulo 25 do De be- e, do mesmo modo, porque essa razão deve procurar primeiramente no
ryUo, compreendeu plenamente o papel do spiritus, nem em nível da Uni- sensível o "alimento" que em seguida ela poderá oferecer ao intelecto. ,<
trindade nem no próprio mundo como vínculo ativo do mesmo e do outro. Assim, portanto, é efetivamente à luz de uma logica (em si inata) que cada
Perspectiva confirmada pelo De venatione sapientiae, um dos qua- um procura, mas com "grandes diferenças", a mesma verdade. E é signi-
tro tratados escritos pelo cardeal um ano antes de sua morte, e o último ficativo que, em um tratado que dá tanto lugar à dialética do posse facere,
do posse fieri e do posse factum (ternário de inspiração certamente lulliana), potentia in actum et omne actu exsistens non caret boni participatione. [... J
o Cusano remeta antes de tudo à frase do Estagirita dizendo que "nada Omne enim eligibile sub ratione boni est eligibile,etc.
ocorre que seja impossível" (Fís., H 9, 241 b), e do que se deve inferir que Sem dúvida Platão discerniu melhor, não apenas que Deus governa
o "poder ser feito", antecedente a tudo o que "é feito", remete ao ato puro, todo o universo e não exclusivamente os coe/estia (cap. 8), mas que esse
como "causa absoluta", mas contém ele mesmo, enquanto aeuum creatum universo é "engendrado" e que o tempo nasce com ele (cap. 9). Aristóte-
e, entretanto, perpetuum, em estado de "complicação", a "natureza" de les, entretanto, possui seus méritos próprios: além de sua justa crítica das
todos os singulares que se "desdobram ',' no tempo segundo a Providência idéias separadas, e de sua descrição do intelecto como produtor de con-
divina (caps. 2 e 3). Certamente essa transposição agostiniana do plotinismo ceitos, ao mostrar o caráter mutável dos transcendentais, ele reconheceu
nos afasta bastante de Aristóteles. E, na continuação do tratado, os exem~ de forma implícita o princípio superior que é ao mesmo tempo causa unius
pIos geométricos, primordiais no De doeta ignorantia, reencontrarão seu e entis et bani (cap. 8). É verdade que Moisés, falando "antes dos filóso-
papel (notadamente no capítulo 5). Contudo, no capítulo 4, é a própria fos" - e para quem sabe decifrar as figuras enigmáticas do "céu", da "ter-
criação da "arte silogística" que o cardeal toma como exemplo da fecun- ra" e da "luz" - percebeu melhor do que ninguém a relação inicial entre
didade intelectual, tal como se exprime na ligação de duas proposições no os três posse: e que, sem ter lido o Gênesis, "platônicos e estóicos" (se-
interior de uma terceira, e ele enfatiza que um raciocínio desse tipo con- guindo Anaxágoras) souberam denominar Iogas, mens e opifex esse "Verbo
tém necessariamente três termos, e os associa apenas segundo três figuras. de Deus que a natureza considera para tudo que seja feito" (Verbum Dei
É essa mesma "triplicidade" que ele pensa encontrar "analogicamente" em ad quod natura respieit ut fiant omnia), e que é ele mesmo Deus (cap. 9).
uma ars creativa constituindo a harmonia do mundo a partir de três ter- E, entretanto, é ainda ao actus purissimus do Estagirita que remete esse
mos inseparáveis: ser, vida, inteligência. mesmo texto para designar o posse facere da omnipotentia.
No capítulo 8 (Quomodo P/ato et Aristoteles venationem fecerunt), Conseqüentemente, não é de surpreender que no capítulo 29 (ou
o Cusano coloca em relevo (e no mesmo plano) os dois "príncipes da filo- Epilogatio), reunindo uma vez mais "os dizeres dos platônicos e dos peri-
sofia". Se o primeiro é chamado "maravilhosamente circunspecto" (miro patéticos", o cardeal repita que só se encontrará a intuição do possest,
modo circumspectus), por ter visto que as coisas superiores estão nas in- unidade primordial do ser e do poder, com a única condição de "bem
feriores "no modo da participação", estas naquelas "no modo da excelên- compreendê-los quanto ao princípio e à causa". Mas não é igualmente
cia" (segundo Diógenes, III, 13), o segundo é qualificado de acutissimus de surpreender - pois praticamente não cessa a oscilação entre as duas
porque discerniu em cada processo físico a necessidade de um recurso úl- atitudes - , que ele enfatize com um particular cuidado o quadro de caça
timo à causa primeira, contendo eminenter tudo o que age em seus efeitos dos "platônicos", lembrando que para eles (Segundo Prado, Teo/. plat.,
(aqui, ainda, a fonte é Diógenes, V, 32). E o projeto conciliador se impõe m, 9) "tudo é feito de finito e de infinito", mas também qual o lugar que
bastante para que o autor, esquecendo-se do que havia dito em uma ou- deram à imagem do Sol, que é a melhor "semelhança da sabedoria". De
tra passagem quanto à recusa aristotélica de um principii principium, atribui modo que em companhia do magnus Dionysu, bem próximo do theologus
pela mesma razão aos dois filósofos o fato de terem aberto o caminho à Gregorius (Gregório de Nazianzo, não Gregório de Nissa como acredita
ultrapassagem simultânea do ser, da vida e da inteligência, por referência, Wilpert) e mesmo do divinus Paulus, nosso magnus Plato reencontra Sua
pelo menos implícita, a uma causa causarum que seja conjuntamente "ser primazia; alcançando com ele seu apex, a filosofia "especulativa" junta-
entre os seus, vida dos vivos e entelecto dos inteligentes" (ens entium, uita se então à sabedoria teológica. Mas, como bem sabemos (e o Campen-
uiuentium e intellectus intelligentium). Trata-se aí, bem entendido, de um dium, contemporâneo do De uenatione, o repete), mesmo nos textos sa-
Estagirita fortemente "platonizado" e, inversamente, a exposição do plato- grados e em seus comentadores mais autorizados, os signos permanecem
nismo é aqui rica em termos aristotélicos, como facilmente demonstram inadequados e intrinsecamente conjecturais. Ao apresentar a "Douta Ig-
as seguintes frases: "Platão considerava que todos os entes, inclusive os que norância", o Cusano falava de seus "ineptiae, isto é, formulações "inap-
não estavam ainda em ato, mas somente em potência, são considerados tas" para dizer o indizível. Ele termina agora seu discurso com uma nova
bons pela participação no único Bem. Só há, com efeito, passagem da confissão de humildade e com um apelo àqueles que, lendo-o, irão mais
potência ao ato, e existência em ato pela participação no Bem". (Plato do que ele (e que seus próprios mestres) em um caminho realmente sem
autem [... ] considerabat omnia entia atque etiam nondum actu entia, sed fim: "Penso, assim, ter explicado de minhas caçadas o conceito bruto e
tantum potentia, participatione unius boni bona dici. Processus enim de não tê-lo plenamente depurado tanto quanto me seria possível, subme-
tendo tudo isso a quem irá lançar um melhor olhar sobre essas elevadas x. O"RENASCIMENTO" PLATÔNICO
realidades." (Per haec arbitror mearum uenationum rudem et non plene SEGUNDO MARSILIO FICINO*
depuratum conceptum quantum mihi possibile fuit, explicasse, omnia
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202
,1;-:·"-
Maurice de Gandillac Gêneses da Modernidade 203
~,
tecessor Marsilio, atento às continuidades históricas. Sempre preocupado dância entre Moisés e Platão, e uma Confirmação do cristianismo pelo
em relacionar o que chama a "dignidade do homem" à defesa do livre- socratismo, tanto mais preocupado em difundir a boa palavra quanto mais
arbítrio (o que o conduz a uma crítica da astrologia), ele saberá apreciar inquietante se fazia o ruído das bombardas no momento em que os turcos
o estilo "parisiense" dos escolásticos, e conciliará o aristotelismo ao plato- continuavam a avançar em direção ao norte e ao oeste, enquanto o ban-
nismo, considerando fútil a discussão acerca dos respectivos primados do queiro Lourenço defende pelas armas, contra o papa Sixto IV, o privilé-
Ser e do Uno (que com o Verdadeiro e o Bem, transcendental mente enten- gio de exploração das minas de alúmen.
didos segundo a regra da analogia, não constituem, como as quatro cau- O que significa, nessa perspectiva, a própria idéia de "Renascimen-
salidades do Estagirita, a verdadeira chave do "Quaternário" pitagórico?). to"? Lutando contra um determinismo astrológico que ele imputa ao aris-
Ficino é muito mais hostil a tudo o que vem de Aristóteles e não tolera a totelismo árabe, Ficino parece associar, ainda e sempre, às conjunções de
aspereza lingüística da Idade Média - essa media tempestas que exata- estrelas e de planetas, para além dos episódios de sua própria vida, a reno-
mente o antigo secretário do Cusano, João André de Bussi, enaltecendo vatio veterum que deveria conduzir Florença e o mundo a uma nova idade
seu mestre morto há pouco, por ter lido todos os livros, os velhos e os de ouro. Às críticas de um bispo húngaro contra sua adesão ao platonis-
recentes, mas igualmente aqueles da época intermediária, delimita clara- mo, ele responde que seu propósito é o de encontrar, no interior do "gênero
mente, em 1469, distinguindo-a tanto do mundo dos Antigos (prisci) quanto comum da religião", o que ele denomina "a melhor espécie". Com efeito,
do dos moderni ("modernidade" que certamente não é mais nesse momen- jamais o brilho do Sol é totalmente ofuscado, mas a sabedoria fundamen-
to, e será mesmo cada vez menos, a via moderna dos ockmamistas). tai, da qual os textos de Platão são um testemunho incomparável, tem neces-
No momento em que Bussi define assim (e batiza) o período de obs- sidade de ser periodicamente "renovada". Será preciso pensar que essas
curidade do qual a Itália do século XV, mais nitidamente do que qualquer renovações sejam anunciadas pelos astros? Certos árabes ligaram o judaís-
outra parte da cristandade, tem o sentimento (ou a ilusão) de emergir, Ficino mo a Saturno, o cristianismo a Mercúrio e o Islã a Vênus (opinião que evo-
traduz hinos árficos e vários tratados do Corpus hermeticum, mas sobre- cava Nicolau de Cusa, sem endossá-la, em um de seus primeiros sermões).
tudo mais de dez Diálogos platônicos. No ano anterior, diante de Louren- Ao que Ficino objeta que "as mudanças de religião são bem mais raras do
ço o Magnífico, reconciliando-se com um uso religioso caído em desuso desde que os encontros entre os astros"; para ele, não mais do que o eclipse que
a morte de Porfírio, os hóspedes de Careggi celebraram muito solenemente acompanhou a Crucificação, a estrela que guiou os Magos para Belém não
o suposto aniversário de Platão. Marsilio comentou o Banquete e parece pertence ao curso "natural" dos corpos celestes (Opera I, p.818)2.
que ele desejava cada vez mais se identificar de algum modo ao mestre, que Mas isso significa admitir que a "alma astral" - avatar da anima
ele descreve, em sua Vita Platonis, com traços que se parecem com os seus. mundi platônica (a mesma que Abelardo quis identificar ao Espírito San-
Reafirmemos, contudo, que por mais fiel tradutor que ele deseje ser to) - se exprime, de tempos em tempos, como que por intermédio de fe-
(e que seja, realmente), lhe é tanto menos penoso conciliar o platonismo nômenos significativos, cujos únicos intérpretes são os raros hermeneutas
com seu cristianismo, pois, para ele, o autor do Fédon não é apenas o que participam, eles mesmos, do caráter "divino" das almas astrais. Atra-
herdeiro de Pitágoras e do Trimegisto, mas (sem o saber) o discípulo de vés da sucessão dessas espécies de teofanias mediatizadas, poder-se-ia fa-
Moisés. Quando apresentar ao Magnífico, em 1484 (dez anos após sua lar de um verdadeiro progresso no qual a roda do tempo não traz, sob a
ordenação), o conjunto enfim concluído de suas versões comentadas dos forma de "renascimento" ou de "despertar", senão o simples retorno do
Diálogos, enaltecendo Platão por ter sabido levar todas as partes da filo- mesmo? É preciso observar que, nesse ponto, os textos de ficinianos não
sofia, ética, lógica, matemática e física, "à contemplação e ao culto de são muito claros. Os mais antigos parecem a atribuir a Hermes, a Zoroastro,
Deus", ele anunciará que a Academia deve se tornar o lugar no qual, "de a Pitágoras o mesmo saber que encontrarão em seguida Platão e Plotino,
forma agradável e fácil", os jovens sejam iniciados à arte de dissertar à luz e que diz respeito às revelações de Moisés. A partir do De christiana reli-
dos preceitos morais, ao passo que os homens feitos aprenderão a disci- gione, Marsilio se afina mais com a abordagem bíblica. Inclinando-se a
plina "tanto dos assuntos privados quanto da coisa pública" e que os ido- acreditar que o antigo legislador iraniano foi filho de Cam (outras vezes
sos "esperarão a vida eterna" (Opera 11, p.1130). Mesmo o De Christiana discípulo de Abrãao), ele chega a sugerir, retomando um tema de Bruni,
religione (1474) invocava a verdade platônica, descrita, é verdade, como pouco compatível com sua própria depreciação de Aristóteles, que o Esta-
"reflexo lunar do verdadeiro Sol". Retomando o combate de Petrarca girita era judeu, assim corno o "bárbaro" que, segundo o Epinomis, "in-
contra os paduanos, Ficino escreve, de uma só vez, em 1481, seu Concor- ventou a filosofia" . Entretanto, ao término de urna discussão em Pico della
tará Zoroastro à sua lista, mas sem infletir para um dualismo qualquer a 2 Ver Nicolau de Cusa, Opera omnia, XVI, 1, éd. Haubsr, Hamburg, 1970, Ser-
mo 2, p. 21 sq.
"única religião, sempre semelhante a ela mesma" que ele quer discernir
por toda parte. Mitra, Ormuzd e Ahriman não são, para Marsilio, senão
"os três princípios que Platão denomina Deus, Espírito e Alma" (De amo-
re 11, 4). Assim, bem mais do que no De pace fidei do Cusano, parece aqui
excluída a própria noção de sucessivos "renascimentos", em que cada um
significaria um autêntico progresso. Se o cristianismo é apresentado aqui
ou lá como "fé nova", resta que seus dogmas próprios, julgamento dos
mortos, ressurreição, vida eterna, já sejam anunciados pelos antigos pro-
fetas, judeus ou gentios, e deve-se convir que a imagem que deles oferece
Ficino - na qual a narrativa bíblica da Criação é entendida como uma
simples multiplicação da Luz original em potências que movem as órbi-
tas celestes, comunicando sua força unitiva aos quatro elementos - per-
manece, quanto ao essencial, bastante próxima de uma koine plotino-
estóica, cujos temas fundamentais (panpsiquismo e simpatia universal) ca-
POST-SCRIPTUM
NOTAS
1 Inferno, XXVI, 90-142. No Ulisses de Dante, o que triunfa sobre o amor pater-
nal e filial, assim como sobre a ternura por Penélope, é o "ardor de conhecer o mundo".
2 De coe/o, 11, 14, 298a, 12
3 Meteor., 11, 5, 363b, 22-24.
4 P. Chaunu, L'Expansion européenne du XIlIe siecle, Paris, 1969, p. 172 s.
5 Ver acima "Thomas More ou l'utopie réaliste", p. 557s
6 A despeito de um relativo parentesco fonético, esses "homens de vida longa"
(em cuja terra encontram-se obeliscos e pirâmides ao lado de estelas gregas e de inscri-
ções árabes e eslavas) nada têm a ver com os "macarianos" (ou bem-aventurados) de
Morus; ou pelo menos Rabelais, mais uma vez, nada diz sobre seus costumes políticos.
Maio, 1992