Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
NºUSP: 9394751
Curso: Filosofia
Disciplina: Estética I – noturno
Prof. Dr. Marco Aurélio Werle
1
de 1793 pelos revolucionários da época) e a destruição do mundo governado pela
religião para impor a liberdade político do governo dos cidadãos exigiram que Schiller
escrevesse tal obra, a fim de responder sobre o verdadeiro significado de liberdade. A
revolução francesa, que pretendia realizar a liberdade civil dos homens, terminou caindo
na sua negação, ou seja, a servidão de um estado de “guerra de todos contra todos”
enquanto constituinte do próprio modo de operação da revolução. De fato, a revolução
francesa teve seu mérito em defender as liberdades civis, mas falhou profundamente
quando atuou impositivamente à barbárie, como diz Schiller em Educação estética e
liberdade:
2
Na filosofia kantiana, a razão é dividida em uma parte teórica pura e uma parte
prática. Nesse sentido, o mundo se encontra na oposição entre o reino da natureza
submetido à determinação causal e mecânica das leis da razão (teórica) e o reino moral,
onde predomina as leis morais da liberdade da vontade do homem; se encontra numa
oposição entre o mundo dos fenômenos e o mundo inteligível. O homem pertence a esse
mundo enquanto ser físico, sensível, submetido à causalidade necessária do reino da
natureza, e simultaneamente enquanto ser espiritual do mundo inteligível, do supra-
sensível, submetido ao imperativo moral do reino da liberdade. Ambos os reinos, o da
natureza e o da liberdade, se excluem mutuamente da mesma forma como as duas
jurisdições da razão, a teoria e a prática. Isto é, por um lado, o homem no mundo
sensível é condicionado pelas leis da natureza e, portanto, não tem liberdade; por outro
lado, o homem é incondicionado no mundo supra-sensível e determina as leis da
liberdade pelo imperativo moral. Mas Kant admite uma mediação entre esses opostos: o
gosto estético, que não pode ser reduzido nem pelo conhecimento da determinação do
ser da razão teórica nem pelo pensamento do dever ser da razão prática. No pensamento
estético, o prazer estético regulará a imaginação e a sensibilidade e o gosto julgar o
objeto. O objeto desse agrado estético se chamará belo.
Fascinado com a filosofia kantiana, Schiller considera Kant como aquele que
estabeleceu definitivamente as bases para toda filosofia do futuro se situar nos limites
próprios da razão, preparando inclusive, com a Crítica da faculdade do juízo: “os
fundamentos para uma nova teoria da arte onde não estava dado” (Schiller, 2009, p. 56).
Ao mesmo tempo, porém, Kant limitou as possibilidades de um princípio objetivo do
belo e do gosto, pois (ao contrário do uso teórico e prático da razão), não seguem as
determinações do conceito do objeto, mas do sentimento do sujeito.1
1
Como diz Kant no §17 na Crítica da faculdade do juízo: “não pode haver nenhuma regra de gosto
objetiva, que determine através de conceitos o que seja belo. Pois todo juízo proveniente desta fonte é
estético; isto é, o sentimento do sujeito, e não o conceito de um objeto, é seu fundamento
determinante. Procurar um princípio do gosto, que forneça o critério universal do belo através de
conceitos determinados, é um esforço infrutífero, porque o que é procurado é impossível e em si
mesmo contraditório”.
3
que determinem a beleza dos objetos. Mas Schiller não deixará de ter claro para si a
consciência da dificuldade desse grande empreendimento, pois:
Por um lado, Schiller admitia que as leis universais e eternas da razão não
poderiam estar à base apenas do regime da verdade teórica e da correção
normativa prática, que também a legislação do gosto tinha de estar radicada na
razão. Por outro lado, como a beleza é da ordem do sentimento e não do
conhecimento, a possibilidade de um princípio objetivo universalmente válido
do belo parece insustentável, já que ele não se deixa derivar daquela fonte.
(Barbosa, 2004, p. 10).
4
Semelhante à divisão Kantiana da razão, Schiller também pensa a estrutura da
alma humana a partir de numa clivagem essencial: aquilo que permanece (pessoa) e
aquilo que se modifica sem cessar (estado). Existe, pois, no homem finito o que ele é
em si mesmo, de um lado, e suas determinações, de outro. A pessoa perdura
eternamente e, portanto, não pode começar no tempo; ao passo que toda existência
determinada existe no tempo. O homem recebe a matéria ou a realidade que nele
alterna, enquanto ele mesmo nunca alterna. O homem é a unidade livre que permanece a
mesma nas marés da modificação temporal. Contudo, o homem enquanto forma, solicita
a matéria para realizar seu conteúdo e, inversamente, a realidade solicita a personalidade
para se efetivar: materialização ou realização da forma, dando-lhe conteúdo concreto
pela variedade temporal, sensível; enformação da matéria ou realidade, mantendo o
permanente na mudança e dando unidade à variação.
São dois impulsos opostos enquanto forças opostas que cumprem tal tarefa de
dar realidade ao necessário em nós e submeter a realidade fora de nós à lei da
necessidade. “O primeiro destes impulsos, que chamarei sensível, parte da existência
física do homem ou de sua natureza sensível, ocupando-se em submetê-lo às limitações
do tempo e em torná-lo matéria”. (Schiller, 2002, p. 63), ou seja, realidade para
preencher o tempo. “O segundo impulso, que pode ser chamado de impulso formal,
parte da existência absoluta do homem ou de sua natureza racional, e está empenhado
em pô-lo em liberdade, levar harmonia à multiplicidade dos fenômenos e afirmar sua
pessoa em detrimento de toda alternância do estado”. (Schiller, 2002, p. 64). No
domínio do impulso formal, impõem-se os juízos universais da ciência, as normas
universais da moralidade; no domina o impulso sensível (material), reina a inclinação
subjetiva e variável, o sentimento particular e passageiro. Pode-se dizer que o próprio
Schiller não solicita ao leitor tamanho rigor sobre a clareza na delimitação do
significado de cada termo desses pares conceituais.2
5
será carente de uma das duas tendências necessárias; ao contrário, os dois impulsos se
tornarão contingentes, de modo que tal atuação conjunta deverá suprimir a necessidade
de ambas, levando forma à matéria e realidade à forma: “quando as duas qualidades se
unificam, o homem conjuga a máxima plenitude de existência à máxima independência
e liberdade, abarcando o mundo em lugar de nele perder-se e submetendo a infinita
multiplicidade dos fenômenos à unidade de sua razão” (Schiller, 2002, p. 69). Essa
unidade é resultante do processo do impulso lúdico, o impulso em que os dois atuam
juntos, de modo a permitir ao homem ter a experiência de sua própria humanidade.
6
estado estético, pois, para aquele, é solicitado para desenvolver-se somente as leis da
liberdade.
Assim, vimos que a maneira pela qual Schiller se indignou diante dos horrores
procedidos durante a revolução francesa o levou a pensar uma liberdade humana para
além da liberdade meramente civil. Pois, em verdade, para realizar a liberdade política e
civil, toda cultura deverá edificar um caráter humano capaz de criar cidadãos para a
constituição política, antes de uma constituição aos cidadãos. Para tanto, Schiller
desloca a concepção filosófica para o campo da estética, para pensar um fundamento
rigoroso da liberdade a partir do princípio do belo, e mostra convencido de que a
autonomia deve se mostrar no campo da necessidade do mundo sensível. Por isso
concluirá, em 1793 para Körner, que a beleza é a liberdade no fenômeno. Sem
abandonar tal conclusão, porém, somente em 1794 ele lançará a concepção de impulso
lúdico para definir a beleza que contempla o objeto belo projetando simbolicamente a
liberdade do homem neste: “no impulso lúdico, o homem não desfruta da liberdade
moral stricto sensu, mas de uma liberdade em meio ao mundo sensível. Isso acarreta
uma conseqüência importante: para Schiller, sempre que contempla um objeto belo, o
homem está ao mesmo tempo projetando simbolicamente sua própria liberdade nesse
7
objeto. No juízo estético, a razão empresta a sua autonomia ao mundo sensível e é por
isso que se pode afirmar que o belo é „liberdade no fenômeno‟”. (Suzuki, 2002, p. 13).
A tensão entre os dois impulsos fundamentais do homem não cessa, mas uma solicita a
outra.
Com a identificação do belo ao impulso lúdico, Schiller abre espaço para o reino
do estado estético, em que suas tendências opostas (sensibilidade, de um lado,
liberdade, de outro) não carecem de necessidade, mas se suprimem e se harmonizam,
estabelecendo a liberdade efetiva que a cultura cultiva.
Bibliografia
Barbosa, R. Schiller & a cultura estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
Suzuki, M. O belo como imperativo. In: A educação estética do homem: numa série de
cartas. Sâo Paulo: Iluminuras, 2002.