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Em 1991, Robert Kurz publica “O colapso da modernização”, uma releitura da obra de Marx
que questiona, entre outras coisas, se a emancipação do capitalismo poderá mesmo ser
efetuada pela classe trabalhadora, como sujeito histórico da revolução. Kurz argumenta que o
trabalho (e o trabalhador) é uma categoria estritamente capitalista, assim como o capital, o
valor e a mercadoria.
Por isso não seria possível uma revolução socialista/comunista POR MEIO do trabalho, como
se quis fazer na antiga URSS, pois a emancipação do capitalismo só se efetivaria CONTRA o
trabalho, ou seja, abolindo-o como categoria social e, em consequência, abolindo também a
figura do trabalhador/operário.
Para Kurz, numa sociedade emancipada não haveria trabalho, nem valor (ou sua expressão, o
dinheiro) ou mercadoria, como categorias sociais. Haveria certamente atividades humanas e
riqueza material na forma de bens úteis, mas sem se conformar às categorias do capital.
Mas se os trabalhadores não são o sujeito histórico da emancipação e a luta de classes não
conduz à revolução, mas somente a uma relativa democratização do capital, ao melhorar a
distribuição de renda em momentos de crescimento econômico, como seria a passagem de
capitalismo para outro sistema social? Ou melhor, o que poderia causar o fim do capitalismo?
Para Robert Kurz, a crise final do capitalismo se iniciou em meados da década de 1970 e nada
tinha a ver com a luta de classes. A crise, que atingia em cheio os países centrais do
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capitalismo, com baixo crescimento e inflação; e que iria resultar no neoliberalismo, não fora
causada pelo choque do petróleo nem por decisões equivocadas dos governos.
Mas não tardaria, outros capitais se lançariam ferozmente na disputa por inovação e
produtividade, implementando também as novas tecnologias na linha de produção,
provocando uma queda generalizada no lucro por unidade de mercadoria. Ou então, se a
sociedade o permitisse, as empresas aumentam a exploração da mão de obra, pagando-a
menos e fazendo-a trabalhar mais horas por dia e de forma mais intensa, como no caso da
China.
Só que estes valores adiantados não poderão ser pagos pela economia real, justamente
porque ela não gera valor suficiente para saldá-los, o que leva a um capitalismo altamente
instável de dívidas crescentes e bolhas financeiras, que explodem sucessivamente nos
mercados ao redor do globo.
Em 1993 Luiz Carlos Bresser Pereira escreve um artigo contestando o tom catastrofista do
livro de Kurz. Para Bresser, onde Kurz via o colapso do capitalismo, haveria somente mais
uma grave e longa crise cíclica do capital, que logo seria superada por uma nova fase
expansiva, baseada na produção real e numa maior intervenção estatal, ou seja, na
superação dos dogmas neoliberais financistas e de estado mínimo.
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Bresser se aventura até mesmo em fixar um prazo para o término da crise, baseado nos ciclos
de Kondratieff, cujas fases durariam em torno de 25 anos. Se a crise começa efetivamente em
1975, ela findaria por volta da virada do milênio, dando início a um novo ciclo expansivo de
crescimento econômico e pleno emprego.
Robert Kurz escreve seu livro em 1991 e Bresser o critica em 1993. A realidade, ora parece
dar razão ao alemão, ora ao brasileiro, dependendo do ângulo que a observamos. A longa
crise iniciada com a crise do petróleo em 1973 não seguiu os prognósticos de Bresser-Pereira,
que previra o seu fim na virada do milênio. As crises cíclicas das bolhas financeiras
continuaram até explodir na maior de todas, a do mercado imobiliário norte-americano em
2008. A partir daí, a crise se agravou, passando a ser também política e social, com a revolta
irracional dos povos levando ao crescimento explosivo da extrema direita de caráter fascista
em todo o mundo, chegando a assumir o poder político em vários países, como EUA, Brasil e
Itália.
Por outro lado, se pensarmos no imenso e inesperado sucesso econômico da China a partir
dos anos 2000, parece que os neokeynesianos têm razão. A China jogou fora a cartilha
neoliberal, interviu e regulou fortemente a economia, controlando o câmbio e os fluxos de
capitais, investiu em educação, ciência e tecnologia próprios e se tornou a maior nação
industrial do planeta. Sem dúvida, é um caso de vitória da economia real sobre o financismo
neoliberal.
Enquanto isso, o Ocidente persistiu no erro neoliberal e perdeu suas fábricas (e empregos)
para o gigante asiático. A narrativa que os economistas progressistas costumam desenvolver
para explicar o fenômeno chinês é que, diante do erro continuado do Ocidente, incapaz de
reformular sua economia em bases industriais, a China o fez e, agora, está destinada a se
tornar a locomotiva que irá puxar a máquina capitalista mundial.
O que assistimos, então, seria um colapso, não do capitalismo como sistema, mas do ciclo
capitalista ocidental capitaneado pelos EUA e secundado pela Europa e Japão, iniciado no pós-
guerra. Quando o ciclo terminar, provavelmente com uma grande crise mundial, o dólar
deixará de ser a moeda de referência mundial e a China se tornará a potência que vai
comandar o sistema capitalista, baseado novamente na economia real e numa forte presença
estatal. Da mesma maneira que o eixo capitalista se moveu, em 1945, da Inglaterra para os
EUA, agora se moverá deste último para China.
Robert Kurz faleceu em 2012. Teve, então, tempo suficiente para testemunhar o milagre
chinês e a crise de 2008. A China, do seu ponto de vista, longe de representar uma vitória da
economia real sobre o financismo, é apenas uma consequência da desvalorização do valor que
torna a produção insustentável no centro do capitalismo.
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Por outro lado, a maior parte da produção industrial da China não é consumida internamente,
com capital próprio, mas com o capital fictício do ocidente desenvolvido. Trata-se de uma
produção de mercadorias reais, mas “lastreada” em capital fictício. Como no dito popular, a
China seria um santo com pés de barro e seu enorme desenvolvimento industrial estaria
lastreado nas bolhas de consumo ocidentais e não na produção real de valor. E não parece
haver indicações de que o gigante asiático esteja em vias de desenvolver um mercado interno
autossustentável, uma vez que a alta exploração do trabalho impede um consumo vigoroso.
Se em função de lutas trabalhistas, a exploração do trabalho diminuir e o salário real
aumentar, haverá sempre a opção de automatizar a produção (ainda mais com os custos dos
robôs baixando), repetindo o ciclo vicioso europeu e norte-americano de perda dos empregos
industriais para a automação.
No entanto, há sérias evidências, descobertas não raro por pesquisas de orientação liberal,
portanto insuspeitas “torcerem” contra o sistema, de que desta vez a automação se estenderá
da indústria para o setor terciário e, nesse processo, os bons empregos perdidos ou não serão
substituídos, ou abrirão espaço para vagas piores, normalmente preenchidas na condição de
subemprego.
Se estes prognósticos se confirmarem e a maior parte das pessoas se tornarem inúteis como
trabalhadoras, então estaremos, em breve, diante de um impasse sistêmico até então inédito
e que provavelmente irá agravar a tensão social em quase todos os países até a situação
extrema da ingovernabilidade. Nunca é demais lembrar que, no capitalismo, a única forma de
sustento pessoal da imensa maioria da população é a venda de seu trabalho. E mesmo que o
estado socorra as pessoas com redes de proteção social, o sujeito moderno é constituído
fundamentalmente como “sujeito trabalhador”. No capitalismo, negar às pessoas o “direito”
ao trabalho, mesmo que elas sejam mantidas com ajuda do estado, é como que negar-lhes a
realização como ser humano pleno.
Isto porque, diferente de outras culturas, a ideologia capitalista diz que, ao trabalho o sujeito
moderno deve sua liberdade e sua honradez e respeito perante a sociedade. O cumprimento
dos deveres do trabalho permite ao sujeito se manter a si e aos seus e a reclamar seus
direitos como cidadão e consumidor. Nestas condições de formação da subjetividade
capitalista, o desemprego provoca, além da miséria material do trabalhador e sua família, a
sua degradação moral e psíquica, perante a si mesmo e aos outros. Quando o desemprego e o
subemprego passam a ser estruturais e massivos, esta condição de crise subjetiva se
transforma em crise social de condições imprevisíveis.
A emergência da extrema direita de caráter fascista pode estar, em boa medida, ligada a esta
crise psíquica coletiva do sujeito trabalhador, que se sente impotente diante da máquina
capitalista que o transforma numa peça supérflua. O(neo)fascismo seria uma reação violenta
e irracional para compensar a degradação moral do “homem trabalhador” que não mais
encontra emprego ou cujo trabalho é insuficiente para seu sustento pessoal e familiar.
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trabalhador”. Esta contradição entre uma realidade econômica que não mais necessitaria do
trabalho humano, com uma psique estruturada sobre o trabalho e que não consegue sequer
imaginar uma vida honrada sem ele, é um caminho certo para reações irracionais, como o
fundamentalismo religioso, o fascismo e o reacionarismo de extrema direita.
Olhando em retrospectiva, com mais de uma década de distância da crise de 2008, podemos
estabelecer uma periodicização mais precisa que nos ajude a compreender o que se passa. O
período que Kurz chamava de “colapso” talvez seja melhor definido como decadência. A fase
de colapso ocorreria, de fato, somente a partir da crise de 2008.
Em primeiro lugar, parece claro que, como dizia Bresser-Pereira, estávamos, já em 1993
numa longa crise que representava o fim do ciclo capitalista que se iniciou no pós-guerra em
1945 e que tinha como grande potência, os EUA. As fases deste ciclo são melhor
compreendidas se as dividirmos em três.
A primeira fase é a dos “Trinta anos dourados” (1945-1975), período de explosão simultânea
da produtividade e do emprego, com altas taxas de crescimento do PIB, que permitiu a
implementação do Estado do Bem Estar Social no Primeiro Mundo e melhoria das condições
de vida nos países do chamado Terceiro Mundo, como o Brasil. Neste período de abundância,
as elites e os trabalhadores prosperaram, aliados sob as bênçãos da social democracia
Esta segunda fase não se trata ainda de colapso do sistema, mas de decadência. Esta
pressupõe:
– a continuidade das instituições, mesmo que tendam à disfuncionalidade;
– o descenso lento e ainda administrável das esferas econômica, política e social;
– a relativa previsibilidade dos eventos e uma leitura (interpretação) aceitável deles;
– uma relativa capacidade de ação, principalmente da esfera governamental.
A terceira fase do cilclo que se inicia em 1945 é a do “Colapso” propriamente dito (2008 até
os dias atuais), que se caracteriza pela disfuncionalidade das instituições, quedas bruscas de
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Não resta dúvida que o mundo capitalista entrou numa fase de colapso a partir de 2008. O
estado de exceção e o neofascismo de extrema direita ronda as democracias antes
consideradas sólidas, como EUA, França e Inglaterra. No Brasil, ele já se instalou
“oficialmente” a partir do impedimento de Dilma e a prisão política de Lula.
Sem dúvida, este colapso é a fase final do ciclo de desenvolvimento que se inicia no pós-
guerra. Se for apenas o colapso de uma ciclo capitalista, os (neo)keynesianos estarão certos e
provavelmente vamos assistir mais uma grande crise mundial. Depois dela, começaria um
novo ciclo capitalista, provavelmente euroasiático, cuja potência principal seria a China,
secundada pelo seu entorno geográfico, pela Rússia e talvez Índia, Irã e Truquia. Neste
cenário, como ficaria a financeirização da economia? Acabaria ou seria impossível um retorno
à economia real, que continuaria com dificuldades em produzir valor?
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No caso de Robert Kurz estar certo, o colapso do ciclo de 1945 seria também o colapso final
do capitalismo, derrotado não pela revolução da classe trabalhadora, mas por suas próprias
contradições. O capitalismo sucumbiria a seu limite interno, paradoxalmente vítima de seu
sucesso produtivo, que leva à substituição massiva de trabalho humano por máquinas,
provocando uma desvalorização global de valor (diminuição do lucro) e tornando a maior
parte das pessoas supérfluas para o sistema. Ou sucumbiria a seu limite externo, a natureza,
cujo equilíbrio ecológico se romperia com a agressão provocada pela produção descontrolada
de mercadorias, necessária para a manutenção da lucratividade. Ou talvez sucumba, ao
mesmo tempo, a ambos os limites, internos e externo.
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