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Solange Salussolia Vaini PDF
Solange Salussolia Vaini PDF
PUC/SP
SÃO PAULO
2008
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
SÃO PAULO
2008
Banca Examinadora
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Dedicatória
E amor a Umbanda!
À Maria Helena Vilas Boas Concone, minha orientadora, por ter aceito
novamente o desafio de falar sobre a Umbanda, numa época em que falar de
religião parecia estar “fora de moda”!
Aos meus pais Flavio e Iridia Vaini pelas longas conversas “aos pés da mesa”
tomando café, conversando, brigando e recordando os momentos vividos na
Umbanda!
A cada médium, filho(a) do terreiro, que de alguma forma contribuiu para que
esta pesquisa fosse concluída, como Ilia Ruiz, pelas fotos cedidas, Swamir
Salussolia pelas conversas no sítio, Nelza Fedalto que relembrou a trajetória
da família na Umbanda, ao Rene Ruiz pelos constantes questionamentos sobre
o grupo, ao Marcelo Oliveira pelas longas conversas sobre outras práticas da
Umbanda, a minha irmã Débora Vaini por ter se reencontrado com a Umbanda,
ao Vinicius Carneiro pela tradução do resumo e a todos e todas que
participaram da construção da memória do grupo e da Umbanda!
À toda minha família pelo esforço de tentar compreender o que é escrever uma
tese... e de aceitar meus longos distanciamentos!
Gosto de acreditar, como dizem os umbandistas, “que nenhuma folha cai por
acaso...”, creio então que durante estes cinco anos de pesquisa todas as
“folhinhas” que apareceram no meu caminho contribuíram para que eu pudesse
atravessar o caminho... se mais fácil ou mais difícil, não sei... mas foi o meu
caminho!!
Resumo
Based on the written books of this specific “terreiro”, we were able to rebuild the
processes. Some initial hypothesis were related with religion, which means that
in the same place. The reality that this group shares, is to create a criticism and
reflections.
1
Alguns termos em português, que são específicos sobre a Umbanda, não encontram
correspondência no inglês.
SUMÁRIO
SUMÁRIO ____________________________________________________ 1
INTRODUÇÃO _________________________________________________ 9
Motivação _________________________________________________________ 9
1
A estrutura física de um terreiro _____________________________________ 49
2
SOBRE O TERREIRO: Um Pouco da História _____________________ 126
A Tenda Espírita Caboclo Pena Branca e Joãozinho das Sete Encruzilhadas _______ 139
3
As Festas _______________________________________________________ 178
4
As Aulas e Reuniões ______________________________________________ 312
5
Índice de Fotografias
Fotografia 4 – TUCTPB 61
Fotografia 12 - Trabalho na Praia de Peruíbe 1988 Imagem cedida por Iridia Vaini e
6
Fotografia 16 - Festa de Oxossi na Varanda 1991 Imagem cedida por Ilia Ruiz 234
Fotografia 17 - Festa de Cosme e Damião na Varanda 1992 Foto de Solange Vaini 240
Fotografia 19 - Início da construção do Terreiro 1998 Filhos(as) tentando carpir o mato, com a
7
Índice de Figuras
Figura 10 Caderno de Registro de 11/02/2000 Relação das ervas colhidas para o Banho 311
8
INTRODUÇÃO
Motivação
as vezes que falo sobre ela, as recordações sobre as noites vividas nos
1
(LIGIÉRO, 2000, p. 78)
2
Tomei a liberdade de utilizar a primeira pessoa do singular para explicar um pouco o processo de
construção da memória, mas devemos pensar este processo de forma geral no indivíduo e na
sociedade da qual faz parte.
9
terreiros me acompanham. Antes mesmo da escola, acho que o terreiro foi à
Meus pais são umbandistas desde moços, embora a família venha de uma
Minha avó também era uma ótima benzedeira, procurada por muitos
Paulo.
Já a família de minha mãe, seguia a tradição católica, por parte de minha avó.
Meu avô dizia-se comunista e ateu. Um fato curioso é que quando os filhos
produziram uma história interessante: quando minha avó resolve batizar as três
primeiras filhas (escondida do marido, que não permitiu que as crianças fossem
3
Os nomes por ordem de nascimento: Ilia, Ilithya, Iridia, Swamir, Ileonisa.
10
batizadas) o padre da igreja local, recusa-se dizendo que os nomes eram
de santas da igreja católica. As meninas – hoje uma delas minha mãe – foram
Muitos anos mais tarde é que a família de minha mãe adota também o
para conversar, dar passes e fazer curas. Nesta época meu avô já havia
11
de pesquisa. Por isso, disse que é difícil falar sobre a Umbanda, sem falar
também da minha própria trajetória e das lembranças que tenho sobre ela.
cotidiano.
As lembranças que tenho sobre este cotidiano, me dizem que tanto fui
influenciada como influenciei este espaço e tempo únicos. Quando penso nas
experiências que tive ao conviver com as pessoas nos terreiros desde muito
cedo – aos oito anos dormia nos bancos do terreiro que meus pais
outros, ou seja, uma umbandista falando da própria religião, tendo como objeto
12
Mas, mais do que falar de um grupo específico ou da própria família, este
Para este percurso vou utilizar dois recursos Estes registros são feitos desde
1970, ou seja, três décadas de
básicos de obtenção de dados: registros registros à disposição para
consulta e análise.
escritos e eventualmente entrevistas com
pessoas que fazem parte do terreiro, tanto os que “vestem o branco”, como da
assistência.
lugar pela facilidade de acesso, afinal de contas faço parte do grupo, e não
análise sobre a prática da Umbanda, mesmo que estes registros tenham sido
feitos por minha mãe e durante muitos anos por mim mesma. Isto não significa
13
Complicação, pois os sujeitos, ao conhecerem a pesquisadora, podem se sentir
necessárias à pesquisa.
Posso ainda correr o risco de não ser imparcial nas reflexões e análises
elaboradas, por se tratar de um grupo o qual conheço muito bem, mas, acredito
jamais isenta desta pesquisa, pois até mesmo na escolha do tema estará lá à
pesquisador e ser este, o mais rigoroso possível com os dados colhidos, mas a
tarefa desafiadora, visto a familiaridade que tenho com ela. São décadas
certo estranhamento.
Mas, é justamente por esta familiaridade que venho, cada vez mais, afirmando
relações, sua história, que é a história de indivíduos que fazem parte desta
14
Embora acredite que minha experiência nos terreiros tenha sido minha primeira
cercava.
posição política, tomada a partir do olhar de quem está inserida no grupo social
15
e do olhar da pesquisadora (papéis como atora social), pois explicitam meu
Concordo com Geertz, (2006, pg. 10) que aponta as mudanças sociais
desapareceu, mas sim que as Ciências Sociais desviaram seus estudos para
vezes numa repetição exagerada do que já foi dito, com produção exacerbada
16
Arquitetando o itinerário
bibliográfica para que o pesquisador tenha uma idéia do que existe produzido e
sebos. Encontrar e/ou localizar o tema procurado tornou-se uma tarefa árdua,
livro que fale sobre a Umbanda. Com certeza você irá achar tudo ou quase
não é diferente.
títulos, as perguntas iam surgindo. Por que a consideram magia e não religião?
17
É um Culto? Uma Seita? Afinal de contas o que é a magia? O que é religião? E
publicações, receitas mágicas que vão desde curar uma diarréia até encontrar
maior número nas ultimas décadas, suprindo necessidades que surgem com a
4
Estou me referindo aqui, as publicações escritas por umbandistas e não produções acadêmicas
frutos de pesquisas sistematizadas nas universidades.
18
principalmente da conduta moral/espiritual dos umbandistas... Tenta de alguma
5
Encontrei este livro em um sebo no centro de São Paulo. Não traz a data de sua publicação. O autor
ou organizador como diz a Editora Cleópatra, ficou a cargo do “escritor M. A. Camacho (...) isto
porque, conhecendo a fundo os mais intricados problemas de Umbanda, Camacho era o mais
indicado para tal realização.” Segundo consta na contra capa esta edição, a 8ª, foram editadas 60 mil
cópias.
19
conhecimentos produzem uma práxis umbandista, capaz de criar e recriar não
empírica e a oralidade.
transmissão oral dos saberes e estes são independentes, quase não dialogam
Estas práticas, que acontecem dentro dos terreiros e que ensinam o sujeito a
Imagens do itinerário
20
próprios umbandistas estão longe de conciliar. Há uma série de ramificações
carismática...
nada encontrei. Hoje, quase cinco anos após estas primeiras investidas, ainda
21
uma das poucas de que tomei conhecimento.6 A autora fala das crianças e de
sua relação com candomblé, e da relação que estas têm com a escola.
religioso do Candomblé, não pode deixar de ser citada, já que seu tema se
Umbanda como movimento religioso que agrega indivíduos das mais diferentes
6
A autora faz referência à dificuldade de encontrar pesquisas e/ou trabalhos que tenham como
tema a questão da educação e das religiões afro-brasileiras; em sua pesquisa também encontrou
apenas um trabalho, na Bahia, que tem como tema a educação e o currículo na perspectiva da
educação pluricultural e foi realizada na comunidade Oba Biyi.
7
Stela Caputto entrevistou apenas professores da disciplina de Religião, que no Rio de Janeiro está
inserida no currículo escolar.
22
origens em um mesmo espaço, posiciona-se frente à realidade de forma crítica
re-construí-lo.
Objetivos
humanização do sujeito;
23
Construindo o roteiro
interação do sujeito com o mundo, implica pensar a Umbanda como face desta
como uma ação, uma prática social e cultural que constrói conhecimento/s –
24
Falar em currículo na área religiosa pode parecer estranho num primeiro
aprendizagem que ocorrem dentro do terreiro. Para esta reflexão tomarei como
uma das referências o educador espanhol J. Gimeno Sacristán que tem como
reflexão sobre a prática, coloca que o currículo “é uma práxis antes que um
oferece sobre o currículo e utilizá-la como uma construção social que facilita o
propriedade até, por autores como Maria Helena Vilas Boas Concone, no
primeiro caso, e de Lisias Negrão no segundo, entre outros, não serão temas
25
O caminho pretendido para refletir sobre as questões apontadas partirá da
do sujeito.
escolhas que terei que fazer, para chegar ao lugar desejado. As escolhas não
são fáceis! Neste processo sempre temos a impressão de que alguma coisa
questionamentos, nas conversas com minha orientadora, que com seu modo
26
No meu caso, a inquietação aparece quando percebo que dos vários itinerários
que percorri até aqui como pessoa: como articular dois mundos aparentemente
trazem a memória do grupo, foi uma delas. Os cadernos que durante décadas
caderno de 1975, quando o terreiro que meus pais freqüentavam na Mooca, foi
8
O caderno citado é de 1975, quando meus pais freqüentavam a Tenda de Umbanda Caboclo Pena
Branca e Joãozinho das 7 Encruzilhadas, na Mooca.
27
ao sítio para as obrigações, com todos os filhos.
“Foi dado o banho de sacudimento que é jogado no filho pelas costas, feito isso o
filho cobre a cabeça deita esteira, colocando ao lado uma vela de 7 dias, que já esta
acesa, fica deitado pelo menos 3 horas. A toalha da cabeça não pode ser tirada mais,
só é tirada no fim da engira pelo Pai de Santo. O banho é para afastar todos os maus
Ervas para o banho, colhidas em 15.04.1995. saia branca (flor), saia branca (folha),
manjericão, alecrim, folha de amora, confrei, balsamo folha larga, melicia, assa peixe,
hortelã, folha gengibre, samambaia, picão preto, sapé, folha de maracujá, novalgina,
balsamo, carobinha, folha de goiaba, louro, erva de bicho, são Gonçalo, eucalipto,
carqueja, gervão, balsamo, tansagem, hortelã, dente de leão, erva de santa maria,
folha de laranja, folha de zeduaria, balsamo folha pequena, espada de são Jorge, chá
Este ritual embora ressignificado, ainda existe. É feito uma vez por ano, e já
passou por algumas modificações, como ficar menos tempo deitado na esteira
estrume e as vísceras.
28
Para o banho de sacudimento vai as seguintes ervas que é posta em fusão dias antes
mulata, carrapichinho, urtiga, cipó abre corpo, cipó abre caminho, cipó de trabalho,
carobinha, esterco de vaca, esterco de cavalo, vísceras de galinha com pena, espada
ato dos acontecimentos tudo o que ocorria ou pela seleção do que registrar.
29
Meu Olhar
Para a Educação
social em que vive e transforma a si mesmo. Este duplo processo é que Marx
chama de práxis.
9
Álvaro Vieira Pinto, em Ciência e Existência define o conhecimento como “um processo de extrema
amplitude e complexidade pelo qual o homem realiza sua suprema possibilidade existencial, aquela
que dá conteúdo á sua essência de animal que conquistou a racionalidade: a possibilidade de
dominar a natureza, transformá-la, adaptá-la ás suas necessidades.”
10
Cultura: conjunto de práticas, de representações, de comportamentos, relacionado a um grupo
humano.
30
Charlot (2001) ao falar sobre educação, e a relação desta com a cultura,
“(...)três sentidos que não devem ser dissociados. Ela é cultura porque é
Neste sentido, minha relação com outros indivíduos e outras culturas, a partir
31
Meu olhar para a educação, e para a educação dentro do terreiro, será a não
Almerindo Janela Afonso faz uma distinção entre educação formal, informal e
não-formal, dizendo:
os conteúdos.
esta preveja uma organização e uma estrutura, se dá pelo fato de acreditar que
11
No sentido escolar.
12
Conjunto de conhecimentos socialmente acumulados, mas selecionados, pré-determinados e
sistematizados que são transmitidos ao grupo social geralmente através da escola formal.
32
Para a Humanização e a Emancipação
partir de seu livro Pedagogia do Oprimido. Este texto que já completou trinta
anos de existência, a cada dia torna-se mais atual. Sua leitura deve ser feita
relações.
como as pessoas estão mudando, os jovens principalmente, que não têm mais
sua descartabilidade.
O que gosto em Freire é como vai descrevendo nossa sociedade a partir das
33
mostra as possibilidades de rompimento com estas práticas. E a maior
escolarizada, mas quando faz a análise destas relações não é da escola que
este conceito prevê duas formas de pensar sobre ele: em primeiro lugar
apenas como a coisa prática, a ação em si mesma, uma ação concreta, que
política.
34
A maior dificuldade quando pensamos em mudança, em mudança social e/ou
qualquer tipo de reflexão, da reflexão sobre seu ato, seja ele construir uma
no mundo.
como um simples dado que não exige explicação. Com tal atitude, este acredita
estar numa relação direta e imediata com o mundo dos atos e objetos práticos.
Suas conexões com esse mundo e consigo mesmo aparecem diante dele num
(VAZQUEZ, 1977)
A definição trabalhada aqui é aquela que tem por concepção o Homem como
13
Vazquez define este indivíduo como possuidor de uma “consciência comum”.
35
E A UMBANDA É ISSO...
reações das pessoas quando se deparam com estas práticas. Estas vão desde
das próprias religiões. Uma matéria publicada no Jornal Folha de São Paulo,
36
Embora os motivos apresentados não fiquem claros, o aspecto mais
bastante matizado pelos setores pentecostais, que coloca estas religiões como
comuns
preconceito sofrido14.
14
Já em fase de conclusão desta pesquisa, recebi por e-mail a notícia de que a Federação
Nacional do Culto Afro-Brasileiro, a partir de encontros nacionais, elaborou o CÓDIGO
NACIONAL DE ÉTICA E DISCIPLINA LITÚRGICA DA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA, na
tentativa de garantir a confiança da sociedade e diminuir a intolerância religiosa. Embora o
documento faça maiores referências ao Candomblé, a Umbanda é citada. Para maiores
detalhes, pode-se consultar este documento no site da instituição citada.
37
Encontramos na história do Brasil, perseguições a Umbanda desde o começo
desconfiança e medo, o umbandista acaba por pagar um preço social, pelo fato
de ter poderes às vezes tão perigosos. Esse preço é como sabem todos os
direitos políticos, que eram negados aos adeptos das religiões não christãs; houve,
porém, quem, com espírito intolerante, “pugnasse pela exclusão também dos
christãos não católicos de entre os brasileiros com direitos políticos” (...) e o longo
debate terminou pela concessão de direitos políticos apenas aos cathólicos (...)”
38
Além disso, o Código Penal de 1831 previa na parte IV, que tratava dos “crimes
costumes”, e que
dispositivos – isto não impediu, nem impede, que alhures, como aqui mesmo,
cárcere homens e mulheres – de regra, sem qualquer motivo plausível, por mínimo
que seja e que , ainda de longe pudesse justificar violência tão grande.
(BITTENCOURT, 1937)
Neste mesmo item, também era considerado como ofensa o “celebrar em casa
(BITTENCOURT, 1937)
e livremente seu culto (...). Mas, ao mesmo tempo foi necessário um capítulo
ou seja, “dos crimes contra o Livre exercício dos cultos”, como descreve Silva:
explicações para os modos de vida e para a cultura das religiões afro-brasileiras que
39
eram denominadas de primitivas e atrasadas. Inicialmente estas explicações,
classe dominante, que via em suas orientações uma maneira mais “civilizada”
formação, através dos rituais xamanicos, dos cultos bantus, dos candomblés e
espíritos.
40
Algumas décadas mais tarde, outro fato curioso se dá. Pesquisadores,
várias pesquisas sobre o tema, livros são publicados, descrevendo parte dos
rituais que até então somente os iniciados tinham acesso. Romances são
escritos, orixás são cantados fora dos terreiros, em festivais, rádios e televisão,
cultuada e outra vinda da Europa, que legitima a crença no espírito – mas não
a ser, portanto, uma prática civilizada que leva ao progresso moral e espiritual.
15
Entre estas publicações as de Pierre Verger são as mais conhecidas, como Notas sobre o culto aos
Orixás e Voduns; nas artes plásticas temos Carybé com seus desenhos representando o cotidiano do
candomblé; na música Mario Bethania, Caetano entre outros, na literatura nacional, Jorge Amado.
41
caracterize o praticante como um sujeito culto, pois respeita suas tradições e
ignorantes.
42
aspectos relativos aos fundamentos do Ritual de Umbanda Sagrada“
(SARACENI, 1998).
professores umbandistas.
Muitos umbandistas vêem este processo como natural e dizem fazer parte da
legítimos acabam por negar uma parte essencial da história da Umbanda, uma
vez que vão deixando de lado características e rituais que deram origem a ela.
Organização da Umbanda
uma religião! E tão rápido quanto minha resposta aparecem perguntas que
43
de famílias, que praticavam o que se chamava na época, de espiritismo de
mesa, mais conhecido como Mesa Branca, mas que incorporavam espíritos de
algumas escolhas. Para uma parte dos umbandistas a religião inicia-se com
Caboclo Sete Encruzilhadas, dizendo que sua missão seria fundar uma nova
religião: a Umbanda.
A partir das décadas de 30 fundam mais sete tendas, todas com a designação
em seu Congá o sincretismo dos orixás com os santos católicos, com exceção
de Jesus Cristo/Oxalá16.
16
Ligiéro, por exemplo, caracteriza este movimento de Umbanda católica, pois
“profundamente influenciadas pela moral cristã e pelo espiritismo kardecista”. (LIGIÉRO, 2000)
44
embora repousando nos cultos bantos, pela sua base comum espiritual”. (BANDEIRA,
1970)
fechada.
versões. Uma das mais comuns, explica: “uma” de unidade, Uno (Deus) e
17
Embora estes aspectos sejam citados não me aprofundarei no primeiro aspecto – etimologia da
palavra para explicar o nascimento da Umbanda. O segundo aspecto – os rituais e as características
da Umbanda serão oportunamente analisados e descritos quando analisar os Cadernos de Registro,
fonte desta pesquisa.
45
Site Umbanda Racional (2006): Esse vocábulo, Umbanda, tem sua origem no
Banto, e quer dizer lugar, cidade; o vocábulo (Umbanda) nasceu do nosso linguajar,
Livro “Umbanda do Brasil (W.W. da, 1996): o vocábulo Umbanda (que dá margem a
uma série de controvérsias) somente pôde ser identificado – até o presente – dentro
das qualificadas línguas mortas, assim no sânscrito, no pelevi, nos sinais védicos e,
Kia kusada ou Kia dihamba – que significa sacerdote, feiticeiro, o que cura doenças,
46
Estes exemplos, embora apresentem certa divergência, convergem para um
liberdades, a orientação dos antropólogos brasileiros, que alias citam. Traçam a origem
africana da Umbanda, dão ênfase aos ritos de „iniciação‟ tradicionais (...) a segunda
18
Para maiores informações e esclarecimentos de como elaboraram este estudo, procurar em W.W.
da Mata e Silva, especialmente em Umbanda do Brasil, a partir da página 71. Embora citado neste
trabalho, as informações contidas na obra citada, não expressam a opinião da autora ou da maioria
dos umbandistas, que geralmente optam por uma explicação mais simplificada do termo, como “Luz
Divina”, “Luz Irradiante”, etc.
47
defende a tese da origem remotíssima da Umbanda, „ muito mais antiga do que o
localidade.
„1º - Umbanda “espírita”, “de mesa”, constitui-se numa fase intermediária entre, as
Umbandas e o espiritismo de Kardec. (...);
19
Atualmente encontramos a utilização deste termo em vários espaços, inclusive acadêmicos, como
nas pesquisas sobre as religiões afro-brasileiras e geralmente sua utilização vincula-se a uma
concepção banalizadora da Umbanda. Mas, o termo foi proposto primeiramente por Cavalcanti
48
Como podemos perceber a variedade de rituais na Umbanda não é uma
ritual.
A estrutura física dos terreiros via de regra é muito simples, constando de duas
Bandeira, para identificar – na sistematização elaborada por ele – os vínculos desta com o
Candomblé.
49
Assistência: espaço destinado a acomodar as pessoas que visitam o terreiro
ao público.
lados opostos.
Atualmente pode ser visto sem esta divisão e homens e mulheres sentam-se
50
(camarinha), mas estes dependem, muitas vezes, da disponibilidade de espaço
uma das paredes fica o Congá (altar) com as imagens, flores, guias e demais
contidos assentamentos (ou firmezas) dos orixás como também das entidades
51
que lá trabalham. Em muitos casos identificam a proveniência do(a) chefe da
objetos representativos das linhas com as quais o(a) chefe do terreiro trabalha,
52
Acostumado com a organização dos terreiros de Candomblé, vê na estrutura
Mas não se trata aqui de “pobreza cultural”. Não podemos esquecer que as
20
O movimento de reafirmação da identidade negra, iniciada por volta da década de 50 em
diferentes frentes, como já citado, criou no imaginário das comunidades religiosas e na sociedade
nacional a idéia de que a etnia iorubá é a legitima detentora das raízes das religiões afro-brasileiras,
em especial do Candomblé, quando outras etnias participaram ativamente deste processo, como a
bantu. A construção da idéia de etnia para o povo africano, como mostra Lopes, foi uma criação do
europeu, sendo essencializadas e naturalizadas, tanto no discurso acadêmico como no popular.
Antes desse período enxergavam-se apenas como “seres humanos” e as trocas aconteciam (tanto
tecnológica como cultural) entre todas as tribos, sem esta preocupação de etnia, que acaba por
territorializar os espaços e as relações, ocasionando uma super valorização da cultura iorubá em
detrimento das outras. Ao falar da cultura acústica, em várias passagens mostra a cultura bantu, em
especial a acústica, como sendo muito rica, possuindo a faculdade de classificação, e que este
sistema é muito mais racional que o sistema indo-germânico (...) a faculdade de coordenação de que
dá provas a língua bantu é muito desenvolvida e dá-lhes notável clareza. (pag. 206) Mais a frente,
cita Henri Junod, estudioso da cultura africana que assim descreve a cultura bantu: “o espírito bantu
é extremamente sensível a todas as expressões vindas do exterior e encontra meio de exprimir essas
impressões em palavras pitorescas que dão à língua interesse e cor extraordinários. A este respeito,
os bantus são-nos muito superiores e essa é a razão pela qual tão poucos europeus podem, em boa
verdade, aprender e empregar convenientemente esses advérbios descritivos (sem falar daqueles que
os desprezam!). (pag. 213/214) Esta fala, a meu ver, reforça a idéia de que a cultura bantu, longe de
ser “pobre” foi desqualificada e desconsiderada e hoje percebemos nos grupos religiosos
umbandistas o desconhecimento desta nossa matriz, introduzindo aspectos do candomblé acima
citado, como único referencial para a cultura umbandista.
53
cultuavam os mortos) e européias (espiritismo de Kardec) que não tinham
da casa.
autores como o citado acima, possui uma estrutura peculiar, própria a qualquer
fator bem mais significativo, diz respeito à forma de se cultuar estes Orixás na
(caboclos, pretos velhos, crianças, marinheiros e etc.) fazem parte, como por
21
No item 2 deste capítulo apresentarei as linhas de Umbanda e seus desdobramentos.
54
deste tipo de organização na estrutura física dos terreiros na Umbanda não
22
Hoje existem várias instituições com a pretensão de organizar as religiões afro-brasileiras, em
todos os estados da federação, em São Paulo temos: Federação de Umbanda e Candomblé do Estado de
São Paulo, Federação Brasileira de Umbanda, Conselho Nacional da Umbanda do Brasil, entre outras. No site
Giras de Umbanda e a cultura afro-brasileira estão listadas 15 federações no estado de São Paulo e o SOUESP -
Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo, como entidade que tem por objetivo agregar
todas elas. A lista com nome e endereço encontra-se em anexo nesta pesquisa
55
de abertura dos terreiros, concessão para dias de festa, como a de Yemanjá,
na Praia Grande/SP.
Por outro lado, alguns terreiros possuem estatuto e regimento, mas não estão
exemplo, ter maior liberdade de suas práticas rituais, não terem que pagar
A estrutura espiritual
56
samba, médium de trabalho, médium em treinamento (em desenvolvimento),
Desenvolvimento da Gira
No geral a gira tem início por volta das 20h, iniciando com os médiuns
23
Esta organização também não é um consenso entre os terreiros de Umbanda. A hierarquia ou a
nomenclatura utilizada para organizar o corpo mediúnico varia de casa para casa. Conhecendo este
aspecto, solicitei para os integrantes da lista de discussão (virtual) sobre a umbanda da qual
participo, que os membros dissessem de que forma suas casas se organizavam, qual a nomenclatura
utilizada. Embora a lista seja composta por aproximadamente 500 internautas umbandistas, não
obtive nenhuma resposta. Este silêncio pode ser interpretado como o não entendimento da
solicitação ou que este é mais um tema controverso entre os umbandistas, ou seja, todos têm uma
maneira de se organizar, mas colocar isso publicamente, numa lista de discussão poderia gerar novos
confrontos.
57
Exus e Pomba Gira, que podem variar de acordo com a casa.
comanda a gira.
Na gira descem espíritos, genericamente chamados de guias (...) nem todos descem
para trabalhar, para atender os aflitos que vem procurar lenitivo para seus males (...)
Em terreiros mais antigos, como o que meus pais freqüentaram, esta forma de
58
podia ser designado para ficar na porteira (local por onde entram as pessoas
quem é sócio24, aos demais é permitido somente o passe. Esta condição foi
24
Indivíduo que contribui mensalmente com uma quantia em dinheiro – mensalidade – e que lhe
confere status de sócio e acesso a determinadas situações dentro do terreiro.
59
Em um dos terreiros visitados na zona sul de São Paulo25, esta não é a prática
Umbanda.
25
O terreiro mencionado localiza-se no bairro de Campo Limpo, periferia de São Paulo. Não está
identificado, pois não houve por parte da pesquisadora oportunidade de conversar com o dirigente
da casa solicitando a permissão para serem citados na pesquisa. O terreiro foi inaugurado
recentemente, em um amplo espaço (galpão), mas que se torna pequeno em dias de gira pela
quantidade de pessoas e médiuns existentes. Todos são atendidos independente de serem sócios.
60
A variedade é grande e podemos encontrar trajes tão diferentes quanto à forma
de se organizar os terreiros.
Na maioria das vezes a roupa utilizada pelos médiuns nos terreiros é branca,
mas a forma como são compostos os trajes se diferencia, tanto pela natureza
Fotografia 4 – TUCTPB
Para as mulheres, saia comprida, que pode ser de renda, chita ou outro tecido
como por exemplo, encontramos terreiros que utilizam roupas coloridas, como
específica, podem utilizar algum aparato, como uma faixa colorida na cintura ou
61
Mais um aspecto a ser mencionado diz respeito às giras da linha de esquerda –
Da mesma forma que não existe uma organização doutrinaria fixa, as roupas
utilizadas pelos terreiros difere muito de casa para casa, cabendo ao pai/mãe
sendo que para as mulheres este deve ser abaixo do joelho e toalha de
maquiagem.
Os dias da Gira
Uma situação que vem mudando ao longo do tempo refere-se aos dias em que
62
terreiro eram segunda, quarta e sexta-feira, onde aconteciam giras específicas
(exus e pomba giras). Segundo Negrão, estes dias tem perdido terreno para o
sábado, com trinta e um dos oitenta terreiros que realizam giras, ou em 38,7%
deles, as faz neste dia, sendo que vinte e seis dos mesmos as realizam
sábado, deve-se ao ritmo de vida na metrópole que exige cada vez mais do
indivíduo seu tempo. Dois fatores contribuem de forma significativa para esta
fazendo com que desta forma o médium tenha que ir muitas vezes de um
domingo para os dias das giras, pois a locomoção acontece com maior
A cidade moderna – e no caso São Paulo – exige de seus moradores cada vez
mais tempo para realizar as tarefas cotidianas. Somente quem mora em São
63
trabalho ao terreiro tomando de 4 a 6 conduções diárias, voltando no final da
noite para casa, muitas vezes após uma jornada de 9/10h de trabalho. Ir ao
terreiro após esta jornada diária tem se tornado uma tarefa árdua para a
trabalhadores afinados com a rotina da empresa26, em que ano após ano raras
vezes esta rotina era modificada, criva um tempo linear. Sabia-se hoje o que
como alguns autores denominam, este tempo passa a ser uma série de
26
Para maiores detalhes sobre esta discussão, consultar Richard Semnett (2007).
64
de tempo27 (e até de espaço, com postos de trabalho em que o funcionário
freqüentar as giras.
em dois terreiros na zona sul de São Paulo que conheci; terreiros que realizam
as giras somente uma vez por semana – geralmente aos sábados; e terreiros
que funcionam somente aos sábados a cada quinze dias, como é o caso do
27
Voltarei a este tema no Item 7, quando discutirei a formação do terreiro.
65
Esta modificação nos dias de trabalho também acarreta mudanças na
que verificamos hoje é que os terreiros mesclam estas giras, para atender a
Penas Brancas, que realiza suas giras cada quinze dias, atualmente trabalha
basicamente com a linha de caboclo, mas no decorrer das giras notamos que
66
e a responsabilidade de governar o mundo, como também ficaram
Stela Caputo, em sua pesquisa, cita três dimensões diferentes sobre orixá,
como forças da natureza, uma energia encontrada nestes pontos, como trovão,
raio, mar, rio, pedreiras, matas, cachoeiras e associadas a eles. Por serem
entidades. Por exemplo, uma entidade denominada Caboclo pode ser da linha
67
acordo com os orixás, como Cavalcanti Bandeira que organizou este panteão
da seguinte forma:
Pretos Velho0s – ligados aos diversos orixás; Almas – ligadas a S. Miguel, Omulu e
Pretos Velhos;
28
Segundo este autor, o sistema de “divisão de trabalho dentro das “falanges” permite o acesso de
todos ao contacto espiritual; dezenas de milhares de médiuns atendem semanalmente seus aflitos
clientes. É a democracia na religião.(gf meu)”
68
Outras linhas aparecem e são trabalhadas nos terreiros, mas como linhas
conversadeiras.
sereno, acolhedor29.
Velho; Yori, conhecida como linha de Criança e a linha dos Baianos, que não
29
Para maiores informações a respeito da correspondência entre orixás e os santos católicos, bem
como suas características, pode-se consultar vários livros escritos por umbandistas e por
pesquisadores das áreas das Ciências Sociais, História e Ciências da Religião entre outras, como
também pesquisas realizadas que descrevem mais detalhadamente este assunto. Podem-se
consultar também sites na internet, produzidos por umbandistas, que descrevem seus fundamentos,
linhas e outros aspectos sobre a umbanda.
69
Embora nem todos os terreiros admitam, os trabalhos com a linha de esquerda
– Exu e Pomba Gira – são muito apreciados e acontecem pelo menos uma vez
por mês nos terreiros. Uma das entidades mais conhecidas na Umbanda,
Esta é a mais polêmica das linhas, pois está associada no senso comum ao
pontos de saudação para esta linha e para a entidade guardiã do terreiro, pois
30
Em 1972, quando Maria Helena V. B. Concone realiza suas primeiras pesquisas sobre a Umbanda,
descreve esta mesma forma de se homenagear à Exus e Pombas Giras, dizendo: “Essa homenagem
tem um duplo caráter: além da homenagem em si, ao dono das encruzilhadas e das ruas, pede-se-lhe
70
A linha de esquerda, como é conhecida, está articulada as demais linhas,
acredito que esta concepção esta muito mais ligada a uma concepção cristã
que dê segurança aos trabalhos do terreiro, afastando as más influências, além de manter os
próprios Exus longe dos trabalhos.”
31
Termo encontrado em site da internet para diferenciar a Umbanda Alta, aquela que não trabalha com
a linha de esquerda e não utiliza elementos ou objetos considerados de baixo nível, como charutos,
aguardente, atabaque, etc.
71
(cristianismo) do que propriamente das religiões afro-brasileiras, já que nestas
“os orixás mais cultuados na Umbanda, cujos nomes são de origem dos cultos afros,
como Santo, seja como Orixá, sem estabelecer diferenciações, no que se distanciam
trabalhos, isto quer dizer, por exemplo, que um determinado Caboclo, que é da
com oxalá. Este emaranhado de situações é aceito por seus adeptos, pois
estes vêem que as linhas são apenas uma forma energética das entidades se
apresentarem.
contato com a Umbanda pela primeira vez, mas não devemos deixar de
72
lembrar que a Umbanda agrega elementos de outras religiões, produzindo
este seja um dos primeiros passos para aquele que deseja entender e chegar
até a Umbanda.
pretendida. Mas, uma coisa deu para perceber: muitos participantes da lista
são indivíduos que chegam a Umbanda pela primeira vez, após vários anos
que aprender.
73
Os conhecimentos que o novo adepto terá que aprender compreende desde a
toda uma nova forma de se relacionar com as pessoas, com a religião e com o
próprio mundo.
74
o umbandista e principalmente o dirigente, se faz na prática ou através de
Longe de uma solução o que podemos perceber é que nestes casos, mesmo
dia, acabamos por imaginar e às vezes reivindicar formas mais rápidas e ágeis
75
Neste contexto duas formas de aprendizagem32 aparecem: uma a partir da
Não obstante este último venha conquistando cada vez mais espaço, o que
32
Finalizando esta pesquisa, já na fase de revisão do texto, recebo por e-mail de uma das listas de
discussão sobre a Umbanda da qual participo (pelo menos como leitora!), um e-mail que coloca em
discussão justamente este tema, o da formação do sujeito umbandista. A questão levantada dizia
respeito à formação de nível superior em uma Faculdade de Teologia Umbandista (que existe desde
2004), mas que não trazia em seus quadros de profissionais nenhum mestre em teologia ou
professor com esta formação. Segundo este internauta, o que lhe chamou a atenção no debate
presenciado, eram os dois debatedores (de grupos opostos), cada um defendendo sua posição, o
que é natural neste tipo de contenda, mas que a posição do defensor da faculdade foi duvidosa, já
que a própria faculdade “só tem mães e pais de santo em seu quadro docente e nenhum deles com
formação em teologia”. Como podemos perceber, este é um assunto polêmico e que ainda rendará
boas discussões, pois o que irão considerar como legítimo? Aquele que aprendeu na prática, na
vivência dentro dos terreiros ou aquele que foi para uma faculdade “tirar diploma de teólogo
umbandista”? E quem determinará o currículo desta instituição ou o que é legitimo ou não de ser
ensinado? Vamos, nós umbandistas, confiar em nossa memória religiosa ou vamos re-construir uma
história oficial da umbanda?
76
se apresente como uma sociedade letrada enfatizando a escrita como modelo
tela. No calor da discussão, a “internet cai!” e cada um, continua com seu ponto
mundo.
77
Pontos cantados
São cânticos do ritual que ao longo da gira vão sendo cantados. É a música
momento da gira.
33
Encontrei diferentes definições para o termo curimba. Em livros mais antigos, escritos por autores
umbandistas quase não encontramos esta nomenclatura, geralmente quando se referem às músicas
entoadas nos terreiro mencionam somente que os médiuns devem fazê-lo de forma cadenciada,
ritmada e perfeita (OLIVEIRA, 1953, p. 179). Em Catecismo de Umbanda (8ª edição da Editora Cleópatra,
sem data) organizado em perguntas e respostas, o autor apena (THUAN, 2002)s menciona “pontos
puxados” dizendo que servem para facilitar a descida até o plano material das Linhas e Falange(pg.
39)s. Não fala em curimba. Em seu glossário aparece o termo, mas segundo este autor curimba refere-se
à dança e curimá a canto (pg. 93). Cavalcanti Bandeira em O que é a Umbanda?, faz referência a
curimba quando analisa as diferenças de rituais e menciona curimba como cantos: “(...)preces
constantes, raras ‘curimbas’, quando são cantadas (...) ou “sempre acompanhadas de palmas e
curimbas”. Candido Procópio Ferreira em Kardecismo e Umbanda (1961) ao descrever a prática da
Umbanda não faz uma menção sequer ao termo curimba. Quando faz referência á música fala somente
em atabaques e “pontos cantados (cânticos típicos da entidade)”. Em autores mais recentes, como
Paulo N. Almeida, Umbanda: a caminho da Luz, define curimba como pontos cantados e complementa
como sendo “vibrações”. Podemos encontrar nos terreiros a definição de curimba como sendo os
atabaques (encontrada também em Silva, 1994). No site do Centro Espírita Urubatan
(http://ceurubatan.hpg.com.br acesso em Nov/2007) definem a curimba como: “A curimba geralmente
é composta de: Ogans Curimbeiros (somente canto), Ogans Atabaqueiros (somente percussão) e Ogans
Curimbeiros e Atabaqueiros (canta e toca percussão).” Esta é a definição mais próxima da que se utiliza
no TUCTP, significando o grupo de médiuns que auxilia a puxada dos pontos, definição trazida da Tenda
Espírita Caboclo Pena Branca e Joãozinho das Sete Encruzilhadas. É esta a definição que utilizo nesta
pesquisa, por isso a distinção entre Ogã e Curimba.
78
Na Umbanda são cantados pontos para diferentes situações como os de
Iansã
que são entoados e podem ser auxiliados
Iansã tem um leque de penas,
pelo bater das palmas, outra forma muita Pra abanar dia de calor,
Iansã mora na pedreira,
utilizada nos terreiros para ajudar nos Eu quero ver meu Pai Xangô
A função dos cânticos e dos atabaques é atrair vibrações especificas para cada
Ogã cantará então um ponto que pode ser específico para aquela entidade ou
79
Pontos riscados
dentro de um círculo que delimita o espaço mágico. Embora este seja outro
em público. Uma entidade pode ter vários pontos riscados, um para cada
magia e/ou trabalho realizado e que são utilizados nas diferentes situações
Nos pontos riscados encontramos uma série de símbolos como flecha, estrela,
lua, coração, raio, sol, cruz, machadinha, lança, rosário, flor, etc.
80
Abaixo vemos algumas destas combinações retiradas do site Povo de Aruanda,
como exemplo:
Podemos encontrar entidades com nomes iguais, mas que riscam seus pontos
terreiros, o que a identificará como um espírito único será o seu ponto riscado,
81
As Obrigações na Umbanda
Dos livros sobre Umbanda que pesquisei sobre o assunto o único que fala em
quais são.
casa. Pode ser também realizada pelo médium, mas sempre dos parâmetros
lembrança que o adepto tem para com seus mentores, tem um sentido carinhoso; de
favorecimento ou graça para si ou para outrem ou o caminho para a solução dos seus
problemas; de obtenção de força vibratória, feitas pelo crente quando sente essa
necessidade ou tem algum trabalho a realizar; e podem ainda ser de descarrego pra
82
aliviar as imantações do astral inferior ou retirar fluídos nocivos absorvidos no decorrer
para homenagear ou agradecer uma graça não são utilizados como forma de
religiões africanas e na Umbanda não se faz necessário, já que esta está mais
embora não seja uma regra fixa, a utilizam, principalmente para as linhas de
esquerda.
dos orixás ou das entidades o que obriga o médium muitas vezes a procurar
83
locais para a realização do ritual, como matas, rios, cachoeiras, encruzilhadas,
cemitério, linhas de trem etc. Mais uma vez a cidade grande força o adepto a
buscar novos locais para a realização dos seus rituais, já que a com o
possam realizar suas giras, próximas a natureza, como também “arriar suas
obrigações”.
terreiro se interessar pode alugar um espaço fixo para a realização das giras.
34
Estrada do Montanhão, 700 - Pq. do Pedroso - Cep. 09791-250 - Sto. André - SP8.0261
84
No local há imagens representando os pontos de força dos orixás, com espaço
do orixá Omulu, senhor da cura. Este espaço é utilizado para oferendas a este
orixá. Como existe muito preconceito em relação a esta prática pelos usuários
85
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES
TEÓRICAS
Sobre a Memória
Logo a convicção de que a atividade era banal caiu por terra. Como colocar no
papel uma vida inteira? O que relembrar? Quais episódios eram os mais
importantes e/ou mais significativos para dizer em voz alta, compartilhar com
colegas de classe que mal conhecíamos? E ainda por cima sem parecer
piegas! Coisa de colegial! Pelo semblante dos colegas percebia-se que os fatos
Relembrando isso hoje, quatro anos após o episódio, lendo meus cadernos de
anotação, lembro que quase todos os colegas iniciaram suas trajetórias a partir
do momento do nascimento: nasci dia tal, minha infância foi... Logo após as
86
primeiras leituras – daqueles que se prontificaram a ser voluntários de suas
que uma atividade fosse ser tão difícil, pois tivemos que relembrar fatos e
selecionar os mais significativos, mas que fizessem sentido não só para nós,
“Relembrar é uma reconstrução orientada pela vida atual, pelo lugar social e pela
recriação do passado que não diga respeito a uma necessidade presente daquele que
Depois das discussões percebemos que estas etapas seriam aquelas que
pesquisa.
tem a força de iluminar e reunir outros conteúdos conexos, fingindo abarcar toda uma
Este foi o caminho escolhido por mim. Utilizar a memória como o fio condutor
87
umbandistas, resgatando a partir das lembranças dos indivíduos do grupo,
Este processo de relembrar fatos passados e experiências vividas que lhe são
WILLIANS, 1987)
35
Izquierdo também aponta os diferentes tipos de memória, como a de curta duração, que dura de
uma a seis horas e a memória de longa duração, que dura muitas horas, dias ou anos; memória de
trabalho ou memória imediata, aquela que tem a duração exata para se realizar uma tarefa, como
ler uma frase (que não deixa arquivos permanentes), memórias de procedimentos ou procedurais
(hábitos). Para maiores informações a respeito da obra do autor, ver Questões sobre memória.
Editora Unisinos.
88
Nesta perspectiva a memória está ligada a idéia de aprendizagem, ou seja, o
Para Lopes (2004) em culturas de tradição oral, que não tem na escrita a
89
riscados e as rezas utilizadas dentro do terreiro para chamar as entidades,
memória, utiliza-se também das definições da psicologia, mas vai além delas,
social para dar sentido a elas. Sua memória encontra-se ancorada em suas
etc.
coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este
lugar muda segundo as relações que mantenho com outros meios. (...) Todavia
A memória é uma produção social e como tal está sujeita a produzir memórias
90
não só a memória oficial, mas a estratégia do esquecimento como uma forma
utilizada como forma de dominação, cujo objetivo é marcar o que deve ser lembrado e
Lopes enfatiza este aspecto sobre a memória quando analisa o que a cultura
narrativa “a mais presente e funcional das artes verbais nas culturas orais, pois
podemos dizer que a Umbanda atualmente tem enfrentado uma crise em sua
vem à pergunta: qual a cultura que será preservada através da escrita? Além
91
A cidade de São Paulo, para me remeter apenas a um espaço próximo, é
escrita: “uma de rejeição total, ou a aceitação total e acrítica do que está escrito
familiaridade com a escrita, mas não conquistou uma relação crítica com ela,
tende a considerar que tudo o que está escrito e impresso é verdade. Neste
Qual será a memória identificada como a “correta” para ser guardada? Quem
de história?
92
Sobre a Aprendizagem e o Terreiro
apreendido.
aumentando o grau de complexidade dos mesmos. Embora esta seja uma idéia
comum, hoje várias pesquisas apontam que aprender envolve as relações que
Outra idéia corrente quando se fala em aprendizagem, é que esta deve ser
significativa, que para ocorrer, deve-se levar em conta um processo que torne a
93
Ainda que este trabalho não trate da aprendizagem escolar, alguns conceitos e
visão de mundo, nossa opção política para o tema abordado, além de facilitar a
terreiro.
valorizando a adição de conhecimentos, que por sua vez são fragmentados nas
áreas.
realidade como verdadeira, estática, linear e ideal. Por este motivo tem
recebido ao longo dos anos diferentes críticas, por não possibilitar aos sujeitos
pedagogia crítica, mas com uma prática tradicional. Esta salada conceitual na
outros conceitos, como por exemplo, cidadania e democracia, que acabam por
94
produzir no contexto social ações equivocadas e dentro da escola posturas
conservadoras e reacionárias.
nas escolas, nas salas de aula ainda é a educação tradicional, com seus
como no nosso caso, no terreiro. Esta aprendizagem tem início logo que o
individuo entra em contato com a Umbanda pela primeira vez e descobre que
do que é aprender.
95
Este modelo expressa o modo como os indivíduos enxergam a realidade e o
contexto social, sempre de forma linear, com muitas certezas e pouco espaço
imutável. Para eles o homem ocidental deveria rever sua forma de pensar e de
parte dos médiuns, que acreditam ser necessário modelos rígidos passados
corresponde com a realidade, ou melhor, que o que vemos é apenas uma das
O que penso ser importante é que os autores demonstram que não podemos
nos fechar numa única visão ou percepção do objeto, pois existem diferentes
96
pensamento sempre a partir das dúvidas, ou seja, nada está pronto, acabado,
“É perceber tudo o que implica essa coincidência continua de nosso ser, nosso fazer
e nosso conhecer, deixando de lado nossa atitude cotidiana de pôr sobre nossa
implicam outro, o de refletir. Mas o que vem a ser a reflexão? Para eles
humano, realizado por nós em determinado lugar. Tudo o que é dito é dito por
36
Para maiores informações a respeito das idéias dos autores, consultar a obra “A Árvore do
Conhecimento”.
97
justamente fazer surgir um mundo, esta é a dimensão palpitante do saber, que
Tendo a pensar, que estas reflexões são muito parecidas com as de Paulo
Freire, quando ele coloca que o mundo não é, está sendo, isto é, que o mundo
Varela e Maturana definem o conhecer, como ação efetiva, ação que permite a
“resultar em seres vivos como nós próprios, capazes de produzir descrições e refletir
sobre elas, como conseqüência de sua realização como seres vivos, ao funcionar
social.
98
para lidar com as situações cotidianas. Queremos um modelo de companheiro,
emancipe.
A idéia de modelos não é ruim, pois necessitamos deles para nossa reflexão do
com o que está previsto. Partir da realidade, do nosso cotidiano para utilizar
pode ser o caminho, para que a idéia não se transforme em um modelo único,
estático, previsível,
“ (...), pois nós estamos imersos numa cotidianeidade, refletir sobre essa ação
cotidiana e, então, ir criando idéias para compreendê-la. E essas idéias já não serão
mais idéias-modelo, serão idéias que irão se fazendo com a realidade.” (FREIRE &
FAUNDEZ, 1985)
99
da escola os referenciais de aprendizagem, de professor, de maneiras
própria vida e a sociedade em que vivem. Mais que isso, expressa a maneira
maioria de indivíduos.
“Para eles o diálogo é sinal da fraqueza do professor, para eles a modéstia no saber é
fraqueza está naquele que julga deter a verdade e, por isso mesmo, é intolerante(...).”
100
Para um indivíduo que vai pela primeira vez a um terreiro, tudo lhe parecerá
diferente e exótico. O espaço da gira com suas imagens, os cantos, o som dos
surgem a cada instante. É interessante notar que mesmo para quem já está há
algum tempo na Umbanda, como para aquele inicia sua caminhada, este
Este processo pode ocorrer de maneiras diferentes nos terreiros. Alguns optam
aplicada uma “prova” para verificar se o novo filho(a) está apto(a) às novas
101
expressar o seu desejo de participar da corrente ou ao ser convidado a fazê-lo,
determinada.
apropriando. Esta visão tem suas vantagens, como por exemplo, o médium
Em sua nova tarefa dentro do terreiro o novo filho(a) irá se deparar com uma
termo.
102
Voltaremos a discutir estas formas de conceber a aprendizagem nos itens
referentes a aulas no TUCTPB. Por ora, acredito que a breve exposição sobre
nada!”.
Antes de iniciar uma reflexão a respeito das linguagens oral e escrita, gostaria
diários? Minha dúvida inicial era se um diário teria a validade necessária para
103
A prática de se registrar fatos cotidianos é bem antiga e os primeiros registros
No Brasil, nos anos 60, um diário ficou muito conhecido entre os estudantes de
37
Segundo Cintia Gannett, a história dos diários, ou diarismo, sempre esteve ligada aos homens, que
relatavam aspectos da vida pública em seus escritos, como a guerra e que o atual desinteresse dos
homens não faz jus à tradição. A idéia dos relatos em âmbito privado, como sendo um fenômeno
feminino, é uma postura ideológica, na medida em que assume um caráter marginal. Segundo ela, o
estudo sobre o diarismo denota que é um gênero: elitizado, europeu, branco, heterossexual e
masculino e queixa-se de que até recentemente o discurso sobre diários e jornais tem sido
conduzido por homens sobre homens (...) e que geralmente tem sido considerados mais importantes
e mais preservados. In. Centro de Estudos e Pesquisa em Cibercultura.
WWW.facom.ufba.br/ciberpesquisa.
104
noção da vida privada, portanto esperavam-se textos escritos que narrassem
vezes a hora (pgs. 119/120). É escrito “em tempo real”, o autor não espera um
acontecimentos.
de diferentes critérios, como por exemplo, a partir da posição dos autores que
38
Para melhores detalhes sobre as observações e detalhamento do estudo realizado pela autora, ver
Uma abordagem diacrônico-comparativa da abreviação em diferentes gêneros, suportes e tecnologias/
Fabiana de Souza Silva Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Programa de
Pós-Graduação e Letras e Lingüística, 2006.
105
classificação de Fothergill, que os qualifica como: diários públicos, de viagem,
apresentadas: aquela que aponta um tipo de diário que tem o diarista como
como foram sendo elaborados, alguns pressupostos, neste caso, podem ser
portanto social; segundo que o diário é um gênero textual que pode ocorrer nos
diário público. Embora esta opção do ponto de vista de uma pesquisa mais
apurada na área da lingüística possa deixar a desejar, acredito que para nossa
dúvida por certo apropriada, gira em torno da pertinência dos registros escritos,
106
geralmente pelo fato do autor se colocar em posição de destaque e se julgar
39
Frase de Medeiros de Albuquerque, justificando a elaboração de suas memórias, que tem como
título, Quando eu era vivo: memórias de 1867 a 1934 – Edição Póstuma e Definitiva. Segundo ele,
quando se escreve um livro contando suas memórias, geralmente justifica-se dizendo que foi a
pedido de alguém e que no caso dele realmente isso é verdadeiro, e que não se “escrevem as
memórias só por vaidade. Escrevem-se, às vezes, porque os autores têm alguma cousa de que se
justificar.” Argumenta também que o gênero desperta suspeitas, exatamente pelo fato do autor se
julgar muito importante e que ele tenta fugir disso, narrando fatos e acontecimentos em que ele não
aparece como personalidade central das histórias. Seu intuito é despertar no leitor a curiosidade
pelos outros, pelas personagens que aparecem na sua narrativa.
107
são as lembranças que provocam a leitura de suas páginas. Muitas memórias
atividades extras gira, quero dizer, atividades como camarinha e entregas, que
eram realizadas em dias diferentes das giras. Estes registros eram uma forma
nem mesmo o Pai (Sr. Julio) tinha acesso ou sabia de sua existência. Somente
40
O termo escrevente foi tomado de empréstimo de Marina Maluf, em Ruídos da Memória. Segundo
ela, o termo é definido por Roland Barthes como “aquele que utiliza a linguagem com uma finalidade
– ‘testemunhar, explicar, ensinar’ “. Nesta pesquisa utilizarei o termo escreventes, pois os cadernos
foram escritos por diferentes pessoas ao longo destes anos: inicialmente por minha mãe, que
durante muitos anos realizou esta tarefa, depois por diferentes mulheres (não há praticamente
registros feitos pelos homens), como a cambona do Pai, a esposa de um dos médiuns do terreiro e
por mim mesma.
108
Ao longo do caminho este material tornou-se mais que simples registro. Não só
pelo fato de que nos cadernos estão registrados aspectos relativos à história do
fato curioso tem se dado. Cada vez mais encontramos registros escritos, sobre
para esta pesquisa, mas temos percebido por parte dos umbandistas uma
ou virtual. Acredito que este aspecto deva ser abordado se não neste item,
religião42.
41
A idéia de divulgar a Umbanda através de livros não é uma idéia nova. Já nos anos 30 encontramos
publicações sobre o assunto, como cartilhas ou textos que pretendiam codificar a Umbanda, mas o
que chama a atenção hoje é a diversidade da abordagem (cartilhas, divulgação, jornalístico, artigos)
109
Se esta é uma religião de tradição oral, porque a necessidade de registro
A oralidade e a escrita
Acredito que a primeira idéia sobre as duas linguagens é que estas são
e dos meios (livros, internet, cursos presenciais ou não, etc) aliados à quantidade de publicações,
como os livros citados de Ruben Saraceni.
42
Podemos utilizar estes dados, mesmo que empiricamente, para confrontar a idéia, ainda hoje
encontrada, de que a Umbanda seria uma religião praticada por indivíduos pobres e “ignorantes”,
portanto “analfabetos”, pergunto. Como uma religião, que é atribuída a esta parcela da população,
pode ter uma produção rica e constante de “coisas escritas”? Seriam pagos (os autores) para fazê-lo?
110
ou aprendemos a utilizar as duas linguagens e como as compreensões desta
Para o campo desta discussão pode-se dizer que as primeiras formas que
primeiros anos de vida do indivíduo no seu grupo social e depois nos primeiros
anos de escola bastará para sua comunicação com o outro. Com o passar do
quase tão antiga quanto o ser humano e está presente ainda hoje em todas as
43
Devemos considerar que fala e escrita são modalidades da língua, que é dinâmica. Como a língua é
uma atividade social, pode estar sempre em mudança de acordo com o grupo social que a utiliza e
da realidade em que vivem.
111
práticas sociais e que a fala e a escrita são modalidades de uso da língua
44
(g.autor) . Portanto, a oralidade seria uma prática social interativa para fins
fundados na realidade sonora; ela vai desde uma realização mais informal á
Pode ir desde uma apropriação mínima da escrita, tal como o individuo que é
ônibus que deve tomar, consegue fazer cálculos complexos, sabe distinguir as
mercadorias pela marca etc., mas não escreve cartas nem lê jornal regularmente...
não apenas aquele que faz um uso formal da escrita. (MARCUSCHI, 2003)
44
Neste subitem precisarei os termos no que concerne a esta tese. Não é minha intenção discutir a
gênese da palavra. Este assunto levaria longe do tema. Para isso ver, entre outros, Marcuschi,
Soares, Ferreiro, Chomsky, etc.
112
produziu um quadro crítico na escola e na sociedade: indivíduos escolarizados,
escrita, que para ele são modalidades de uso da língua. A fala inscreve-se na
(MARCUSCHI, 2003)
social, o grupo ou grupos que detiverem o domínio sobre sua aquisição terão
113
se apropriar do conhecimento veiculado por este código, mas o dominam
que a escrita não é um bem natural que nasce com o indivíduo, e sim um fato
Marcuschi.
uso (escrita e fala) devem ser analisados sob a perspectiva do uso e não do
Lopes (2004) demonstra esta idéia em sua pesquisa sobre a “Cultura Acústica
permissões, de seus tabus, seus juízos, sua ética e sua estética. Para ele, a
escrita
114
“não é a única simbologia que permite guardar a memória dos fatos, as genealogias, as
grupo guarda que orienta a forma de agir, determina as diferenças entre gerações,
hierarquias, épocas, o que pode ser feito e o que deve ser evitado”. (LOPES, 2004)
letramento
facetas”. Para ela, estes dois conceitos não devem ser tratados de forma
115
como se estes dois mundos tivessem que ser conhecidos separadamente. Mas
sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua
que tanto a escrita como a oralidade são práticas sociais e seu uso dependerá
breve retorno a questão das linguagens oral e escrita, mas sob outra
116
Sobre a práxis mediúnica: a aprendizagem na Umbanda
O caso mais famoso no Brasil foi o do médium Chico Xavier, com centenas de
Brasil, se difundiu a partir das obras de Kardec, por isso também é conhecida
como kardecismo. Os dois termos aqui são utilizados como sinônimos, embora
45
A Psicografia não é nova e não aconteceu somente no Brasil. Na Rússia também há vários médiuns
que se dedicam a este tipo de espiritismo como Wera Krijanowskaia, que psicografou 51 romances
do espírito J. W. Rochester, entre 1885 a 1917. Suas obras tornaram-se famosas aqui, inclusive com a
criação de grupos de estudos via internet. Outro exemplo, agora na Umbanda, é do escritor e
umbandista Rubem Sarraceni, que tem publicado uma série de romances e livros psicografados sobe
a doutrina umbandista.
117
Cavalcante Bandeira valendo-se de algumas definições esclarece que “todo
umbandista é espírita, mas nem todo espírita é umbandista”, o que nos dá uma
118
Diferentemente de outros grupos sociais que vêem a mediunidade ou o transe
caráter místico.” Sendo que este caráter místico é uma das formas de se olhar
pode afirmar que é falso ou que não aconteça ou não exista. A verdade, é que,
119
possuído por eles. Numa definição literal médium é exatamente isso, o meio
terreiro, tanto para fazer o bem como para fazer o mal, utilizando-se de um
adepto e o sobrenatural (“Deus”) para levar seus pedidos e/ou suas preces ao
divino, como no caso do Candomblé, onde o Pai ou Mãe de Santo faz esta
entidade vista por estas pessoas como o realizador de seus pedidos. A certeza
46
No Candomblé utiliza-se muito a nomenclatura cavalo de santo, mas na Umbanda o mais comum é
cavalo, sem a qualificação de santo. Isto devido ao fato de que na Umbanda não se trabalha com
esta noção, mas sim de entidades.
120
intervirá em seus problemas, faz estas pessoas se sentirem mais próximas do
mundo sobrenatural.
seguinte:
“Rubrica: religião.
“trabalho”, muitas vezes utilizadas com o mesmo significado, mas seu emprego
121
Embora esta noção seja amplamente utilizada não encontrei entre autores
trabalho terapêutico a partir de práticas e saberes rituais e para isso faz uma
Sonia Maluf ao discutir a noção de trabalho define dois sentidos para sua
47
O termo trabalho é utilizado em diferentes áreas, como na pedagógica (projeto de trabalho,
trabalho pedagógico, trabalhar a gramática, os numerais, etc); psicologia (trabalhar o eu, trabalhar
as carências); fisioterapia; educação física e etc. O termo acaba por adquirir um sentido quase
genérico ao ser empregado de diferentes formas e em diferentes ocasiões. Mas, a idéia geral na
utilização do conceito de trabalho ainda está vinculada à noção de trabalho como tarefa manual,
portanto penosa, pesada, tarefa que necessita de muito esforço e persistência. Geralmente esta
122
“Trabalho refere-se a dois momentos de experiência, a dois campos de significação
é a terapia propriamente dita, assim como a forma nativa para designar o ritual. No
trabalho utilizada pela Umbanda, pois trabalho pode significar o ritual praticado,
dentro dela. Tanto médiuns como consulentes, têm uma visão muito próxima
sobre o trabalho.
123
de transformação pessoal. De outro lado, trabalho, significa produção e criação de si: o
2005)
incorporado é um tempo que ele (médium) deixa de viver sua vida”, neste
pelo sofrimento, pelo sacrifício, muito embora esta idéia não seja propriamente
adéqua-se melhor a idéia inicial proposta por esta pesquisa, a de que o sujeito
124
Ao discutir a constituição do terreiro e conseqüentemente do sujeito
emancipação e humanização.
125
SOBRE O TERREIRO: Um Pouco
da História
Considerações preliminares
de vários anos. Foi esta peculiaridade que nos fez optar por uma pesquisa
memória e aprendizagem.
126
Os cadernos de registro (diários) perfazem um total de 20 cadernos ao longo
destes anos. São páginas e páginas de registro das giras, contando, algumas
(gira) de casa em casa, num sistema de rodízio, com a coordenação dos Pais.
para o sítio do casal, mas ainda sem o espaço definitivo do terreiro, que irá
esta data como a terceira fase do terreiro. Portanto, o terreiro passa por três
registro, da história da Umbanda. Mas devemos ter em mente que esta divisão
127
Localização do Terreiro
Socorro, Zona Sul de São Paulo. A cidade, hoje faz parte de uma área de
Em menos de 15 anos estes bairros, antes considerados zonas rurais, hoje são
128
causou na região uma série de problemas, tanto para seus moradores, como
áreas de mananciais, o que deveria reduzir sua urbanização, mas isto está
de ensino. Ainda hoje, próximo do local do terreiro, existe somente uma escola
da fiação.
uma linha de ônibus (micro-ônibus) que faz ponto final, a uma distância de 2
129
km e meio do terreiro, mas os horários são incertos e aos finais de semana a
lhes o tempo.
rios e matas ainda intocadas, mas que tem recebido um grande número de
gerando uma série de demandas que podem fazer desaparecer o que resta
Imigrantes e Benzedeiras
48
Em 1994 início uma pesquisa sobre a origem da família na Umbanda, concretizando em 1995,
quando cursava Educação Artística na UNESP. A monografia foi realizada como avaliação final na
disciplina de Folclore sob a supervisão do Prof. Alberto Ikeda, com o nome de “Umbanda: um ensaio
sobre a religiosidade Afro-Brasileira.”
130
Intrigava-me como a família, no caso direto meus pais, tinham optado pela
A recordação mais viva era de minha avó paterna recebendo em sua casa
crianças e adultos para que ela benzesse – quebranto, erisipela, bucho virado,
memória, como, ser levada a uma benzedeira 49, no bairro onde cresci, por
minha mãe ou ir com minha avó a um centro de mesa branca, para tomar
passes. Estas práticas pareciam contradizer a fala, de que eram católicos, pois
49
As benzedeiras, pois geralmente são as mulheres que exercem esta atividade, utilizam as
rezas/orações para afastar algum tipo de mal ou doença da pessoa que a procura reclama. Embora se
possa acreditar que na zona urbana esta atividade não exista mais, sendo uma prática em extinção,
percebemos que ainda existem muitas mulheres praticando a benzedura, como por exemplo, para a
cura de doenças para uma população que não tem acesso ao sistema de saúde, seja particular o público.
(QUINTANA, 1999) É através da benzedeira que o indivíduo tem um encontro com o sagrado . Ela faz a
ponte entre seus problemas cotidianos, como uma doença ou um mau-olhado, pois a partir da sua
intermediação com o sagrado este obtém a cura. A benzedeira tem a legitimidade do seu grupo social
para fazer esta intermediação – a do mundo sagrado com o mundo cotidiano, o profano.
131
significativamente por meus pais, que hoje dirigem o Terreiro de Umbanda
Tanto a família de meu pai como de minha mãe são de origem italianas, filhos
dessa leva. Embora tenha encontrado três nomes com o mesmo sobrenome
paterno, vindos por volta de 1887, nenhum deles foi reconhecido pelo membro
De fato, nas entrevistas realizadas com a integrante mais velha esta diz que
seus primeiros parentes – avós – chegaram por esta época, mas que seu avô
50
Rua Visconde de Parnaíba, 1316 – Mooca (Próximo à estação Bresser do metrô - linha Leste-
Oeste)
132
“tinha uma profissão, era ourives e trabalhava com ouro e prata”, e que por
esta razão seu nome não consta dos registros no Memorial. Inicialmente vão
para Serra Negra, interior paulista, mas terminam por fixar-se no bairro da Vila
Algumas destas práticas foram transmitidas a filha mais nova, no caso minha
avó paterna, que aprende a benzer com seu pai. Torna-se mais tarde uma
Vasconcelos e Domingos de Moraes. Dos três filhos e três sobrinhos que criou
somente o filho mais novo optou pela Umbanda e um dos sobrinhos pelo
51
A partir destas pesquisas são escritos cinco livros: O Livro dos Espíritos (1857), O Livro dos Médiuns
(1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno ou a Justiça Divina segundo o
Espiritismo (1865), A Gênese, os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo (1868), considerados
o “Pentateuco espírita”. Para maiores informações a respeito do tema, há uma dissertação de
mestrado pela USP com o titulo de “Geografia do (in)visível: o espaço do kardecismo em São Paulo”,
de Alberto Pereira dos Santos, professor e geógrafo.
133
kardecismo, realizando obras assistenciais ligados ao grupo de Chico Xavier,
em Minas Gerais.
entre os dois países, já que não foi encontrado nenhum indivíduo com o
mesmo sobrenome.
Iniciam suas atividades na Tenda de Oxalá, Amor e Caridade, na Vila Ema, por
fundação52.
52
Em entrevista com um dos membros da família que participou ativamente deste período no terreiro,
contou que para poder terminar a construção do terreiro o grupo tinha inventado um sistema de venda
de tijolinhos, como se fosse uma rifa e o dinheiro arrecadado era revertido para o término da
construção.
134
Fotografia 7 - Convite de Inauguração da Tenda de Oxalá, amor e Caridade - 1958
Imagem cedida por Ilia Ruiz Digitalizada em 04/07/2007 por Solange Vaini
É a partir deste momento que, meus pais iniciam sua história dentro da
Umbanda, ainda solteiros, ela com pouco mais de quatorze anos e ele com
vinte e três.
135
Após casarem-se, abandonam por alguns anos as práticas umbandistas, mas
Após alguns anos o casal decide procurar um terreiro aberto para freqüentar,
mas não são acompanhados pela família, que preferem cultos mais
terreiro aberto54.
53
Ivone Maggie em seu livro “Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito” encontra várias
utilizações para a palavra “trabalho”, como “trabalhar na macumba”, “trabalhar com santo
encostado”, “trabalhar para o mal”, “trabalho feito”, entre outras. A palavra pode ser utilizada de
acordo com a situação, portanto, pode adquirir variadas significações.
54
Décadas mais tarde este será um dos argumentos utilizados por alguns filhos(as) para o cisma
ocorrido no terreiro, como veremos.
136
Optam pela “Casa de Caridade Caboclo Guarantã”, localizado na Av. Santa
Grande – Boqueirão.
Arranca Toco”, localizado no Brás, numa zona comercial de São Paulo. Este
137
terreiro é comandado por duas mulheres negras, irmãs biológicas e difere dos
que podiam ser tocados noite adentro; faziam oferendas para entidades e
orixás, nos seus pontos de força, como praia, cachoeira, mata, pedreira;
O terreiro utilizava o sistema de “sócio”, pagando-se uma taxa pelas fichas que
preferência.
Embora tenham feito várias obrigações, principalmente meu pai, o que dava-
138
terreiro por descobrirem que os trabalhos externos eram cobrados. Quem
necessitasse de trabalho particular, tinha que pagar por ele. Como o grupo não
concordava com esta prática, saem do terreiro, iniciando nova busca por um
É neste momento que este grupo se desfaz, pois cada casal opta por uma casa
com propostas de atuação distintas. Dois casais optam por um terreiro com
Candomblé; o outro casal opta por trabalhar sozinho em casa e meus pais
iniciam os primeiros registros escritos, por volta de 1974. Como este período
Encruzilhadas
Ficava na Mooca, na Rua dos Trilhos, hoje uma das principais vias de acesso
139
necessidades do terreiro. A parte da frente possuía dois espaços, um da
assistência e outro das giras; nos fundos havia dois quartos para se vestir (um
que morava um senhor que tomava conta do terreiro durante o dia e um quarto
mais cedo para auxiliar na preparação da gira como, limpar o espaço, o congá,
verificar se não faltava nada para as entidades, colocar as flores no congá, etc.
exu/pomba gira, que consistia em acender uma vela no local destinado para
geral.
140
As giras no terreiro eram organizadas conforme o dia da semana: a segunda
para as aulas proferidas pelo pai, o Sr. Julio, ou para as operações espirituais,
boiadeiro e uma vez por mês gira de exu/pomba gira, que eram abertas ao
público.
aconteciam nos dias em que não ocorriam as giras para atendimento público,
taxa mensal, para auxiliar nas despesas diárias como a compra de velas,
terreiro estava sempre com suas despesas no vermelho e o Sr. Julio (Pai
Espiritual) é que arcava com elas, transferindo o problema para sua vida
pessoal.
141
O terreiro possuía estatuto e regimento, era regularizado em cartório, mas não
ou seja, segunda, quarta e sexta. Cada dia da semana era destinado a uma
linha diferente, como caboclo ou preto velho. Começavam sempre por volta da
20h, mas sempre acontecia de iniciarem às 20:30h para que todos os médiuns
pudessem chegar.
142
As Giras Públicas e Particulares
sido liberados, pelo chefe espiritual da casa, para isso. Quando a pessoa que
As giras particulares, ou seja, aquelas que eram realizadas nas casas das
pessoas, aconteciam nos dias em que o terreiro não funcionava. Nestas giras
não havia atabaques e cantos, apenas uma prece era proferida e os pontos
(cantados por uma única pessoa) de chamada das entidades que iriam
tinham que levar todos os objetos que seriam utilizados ou que presumissem
que poderiam ser utilizados no dia. Voltava-se a casa da pessoa tantas vezes
As Aulas
geralmente uma vez por mês, ás quartas feiras. O Pai é que escolhia o tema a
143
ser proferido no dia e pelos registros podemos notar que basicamente
“O bom médio é aquele que demora para dar incorporação. É normal o médio ter
Em outro registro de aula temos como tema a Origem da Umbanda. Ainda que
tempo em que existe um apelo ao passado este mesmo passado é visto com
Outro ponto a ser lembrado em relação ao “texto” é que ele busca registrar de
modo mais fiel possível a palavra falada. Não é demais lembrar a diferença
diretamente um no outro.
144
Que se seguia mais a rigor e faziam tudo com mais reito (respeito?) em tudo desde
as obrigações.
Quando vem para o Brasil que era seguido mais pelos escravos e foi daí que
começou a ser mais sem respeito. Agora está falando do grau de espíritos que vem
(...).”
continuo55.
espírito o Pai fala sobre a camarinha, dizendo que é nela que o filho aprende o
que é uma hierarquia e a ser humilde. Esta lição ele retira do Candomblé, que
inclusive cita como um exemplo a ser seguido. Como podemos perceber sua
Umbanda, dizendo que é menosprezada por ter estas origens, cita como um
As Obrigações
No tempo em que ficaram neste terreiro algumas obrigações foram feitas, mas
55
Mesmo para o indivíduo letrado, acostumado com os usos da escrita, registrar a fala do outro, que
é ágil, é continua, é rápida, exigirá uma capacidade de abstração, de reflexão e de certa intimidade
com estes usos, registrando (na forma escrita formal) aquilo que o falante expôs.
145
presença de todos os(as) filhos(as) do terreiro num final de semana de janeiro
de 1975.
pois os(as) filhos(as) não poderiam mais comer até o termino do ritual.
A descrição é rica em detalhes, mas irei destacar apenas dois pontos que ao
“No quarto das filhas o congá era com Mamãe Oxum e dos filhos com nosso pai
Oxossi.
Depois foram colocadas as esteiras e a vela de sete dias e o lençol branco que foi
arrumado por cada filho deixando a vela já acesa do lado direito da esteira.”
Todo este ritual do almoço foi feito depois do banho de sacudimento. Os filhos depois
do banho trocaram de roupa e deitaram (na) esteira durante 3 horas, depois que
volta do banho o filho já vem com a cabeça coberta com uma toalha que só é tirada
Para o banho de sacudimento são precisos 3 dias no máximo. Os filhos têm que levar
uma esteira, uma vela de sete dias, branca, 2 toalhas de cabeça branca, 2 trocas de
146
As Festas
única foto.
No terreiro vai ser feita uma Festa em Homenagem para Ogum e todos os filhos vão
O terreiro essa noite ficou muito bonito, foi enfeitado só com rosas vermelhas e com
Foi feita simples, mas mesmo assim o nosso pai Cacique Pena Branca disse que
única foto, sem data, mas que provavelmente date de 1975, que mostra um
pouco do terreiro e da decoração (feita por minha mãe), como a flor pendurada
Podemos ver também um dos ogãs da casa e uma das filhas do terreiro, que
não vestia o branco, mas que auxiliava na curimba. Ao fundo está o congá com
147
na parte de abaixo, havia três nichos, destinados a outros Orixás, como
lado direito, Ogum e do lado esquerdo Cosme e Damião. Atrás das cortinas
As Funções no TUCTPB
148
seguir, pois ao analisar o terreiro nos períodos apontados, voltarei novamente a
esta questão.
Os Médiuns
chamada de mediunidade.
com eles(as).
mas não ficam muito tempo neste estado e há aqueles que já incorporam, mas
apenas para dar passes – mas não para “dar consultas” – por último, há
aqueles “mais desenvolvidos” que estão liberados para dar consultas. Neste
pode solicitar coisas como: acender uma vela na igreja, tomar banho de ervas,
149
Os Cambonos
em várias atividades.
auxilia quando a Entidade necessita de alguma coisa, como vela, flor, água,
De forma indireta é responsável pelas pessoas que vão falar com as Entidades,
pois serve de interprete, explicando o que foi dito ou solicitado, não deixando
150
com as diferentes ocorrências na gira, a compreender a entidade que
mais um(a) filho(a) exerce a função de cambono mais irá aprender sobre a
terreiro, de forma geral é pouco compreendida pelos médiuns, que não querem
exercê-la por muito tempo, pois acreditam que a parte mais importante do ritual
é a incorporação.
Ogãs e Curimba
Umbanda.
momentos pode levantar uma gira, ou seja, ele é capaz de atuar, através dos
Da mesma forma que um ogã pode auxiliar a disciplinar a gira, pode também
específico para esta função, todos os médiuns auxiliam nos cantos quando
151
necessário, não havendo também a obrigatoriedade de cantar, dançar e bater
A preocupação com este aspecto no TUCTPB é sempre muito grande, pois não
atabaque, mas sim de uma sensibilidade, quase mediúnica, para o que está
consecutivamente.
professores, Pai Élcio de Oxalá, hoje com sua própria escola, continua
ensinando cantos a novas turmas é uma das figuras mais conhecidas no meio
umbandista, não só por sua voz, mas por ter ensinado dezenas de médiuns a
152
Neste período participam do V estival de Música Umbandista, evento que
1999.
O primeiro bazar foi o mais esperado por todos do terreiro, que ansiavam em
153
Num primeiro momento a idéia era realizar o bazar no próprio local do terreiro,
ou seja, no sitio. Mas como o acesso não é tão fácil, optou-se em realizá-lo na
acesso para quem vem de outros sítios e estradas e por onde passa duas
Embora o terreiro esteja há muito tempo na região, a maioria dos médiuns que
56
A EEPG João Domingues de Oliveira (antigo morador do bairro) é conhecida na região como
Escolinha. Possuía apenas duas salas de aula, um pátio externo, dois banheiros e uma cozinha
pequena, onde a merenda era preparada pela própria professora. No primeiro bazar realizado as
condições da escola impressionaram o grupo pela má conservação do prédio, a ponto de não
acreditarem que a escola realmente funcionasse. É o primeiro confronto das duas realidades.
57
D. Umbelina, hoje falecida, recebia muito bem a idéia da realização dos bazares na escola, pois
dizia ser importante para a comunidade como forma de ajudar os moradores da região.
154
estes serviços estão a nove quilômetros de distância no mínimo, de onde
moram.
Outro fator a ser considerado diz respeito as suas atividades profissionais dos
culturais, e poderíamos dizer que quase todos faziam ou fazem parte do que se
multinacionais, professores.
58
Antigamente a propriedade era uma fazenda com plantação de chá mate; desativada durante
muitos anos, foi loteada em pequenas chácaras e transformada em um condomínio.
155
O desconhecimento do contexto da região, fez do primeiro bazar um grande
aprendizado para todos que participaram, pois muitos não imaginavam que não
percebeu-se que o valor dos objetos oferecidos, que para o grupo do terreiro
156
Foram realizados mais quatro bazares, com intervalos de aproximadamente
então era colocado um preço mais alto e em local de destaque. O sucesso foi
absoluto. No terceiro bazar já havia fila de espera na porta. Quem não podia
A avaliação geral sobre os bazares, ainda que positiva, foi cancelado nos anos
157
Legalidade ou Clandestinidade
Este tema ainda é polêmico para os terreiros. Muitos defendem sua legalidade,
não legalização dos terreiros são as altas taxas cobradas para a elaboração da
No TUCTPB, o Pai nunca se preocupou com esta questão, além disso, nunca
quis que nenhum dos(as) filhos(as) fizesse nenhum movimento neste sentido,
rituais o que não é aceito por grande parte dos terreiros, inclusive este.
158
Acredito que este fator, o da uniformização e interferência nos rituais59, é o fato
possível ligação política e o uso que fazem dos terreiros neste sentido.
suas casas, mas acredito, que por motivos totalmente diferentes daqueles
59
Em texto produzido sobre o sincretismo na Umbanda, Maria Helena V. B. Concone discute os
aspectos pertinentes a formação da Umbanda; entre outros fatores indica a “formulação do novo a
partir das interinfluências dos diversos modos culturais, diversas crenças, valores, representações de
mundo desses grupos em presença”. Considerando que cada terreiro de Umbanda é uma Umbanda,
no sentido de único, pelos motivos apresentados pela autora, não é difícil imaginar o porque da
resistência dos chefes espirituais umbandistas filiarem-se a qualquer uma das federações ou
associações afro-brasileiras. Atualmente, alguns grupos acreditam ser necessário a organização dos
cultos através destas federações, inclusive para protegerem-se juridicamente, mas acredito que
grande parte dos umbandistas ainda vêem esta questão com muita restrição, basta verificarmos que
ainda hoje para conhecermos algum terreiro ainda se faz necessário conhecermos algum adepto que
nos leve até ele, pois dificilmente encontramos placas ou alguma identificação em sua fachada que
nos permita localizá-lo.
159
uma série de possibilidades de atuação nas comunidades locais e fora dela,
desconfiança.
60
Finalizando esta pesquisa recebo a notícia que na Bahia um terreiro de Candomblé a décadas na
cidade é destruído pela prefeitura com a justificativa de estarem ocupando o espaço ilegalmente. A
Mãe de Santo, Mãe Rosa mesmo apresentando a documentação e argumentando que não tinham o
direito de destruírem seu templo, foi desconsiderada e o terreiro colocado no chão. Para maiores
detalhes da ocorrência verificar o endereço http://patriafc. blogspot. com/ . como vemos, a
legalização dos templos não é uma garantia aos adeptos destas religiões de poderem praticá-las sem
o risco do preconceito e da intolerância. Tanto um como o outro só irão desaparecer, se é que
podemos considerar tal pretensão, numa ação concreta da sociedade, em que a educação tem um
papel fundamental, pois pode levar para a escola uma visão mais abrangente das diversidades
culturais, sociais e religiosas, construindo mentalidades abertas às diversidades.
160
O SAGRADO DE CASA EM CASA
realizados (casas, varanda, terreiro) sendo que a primeira fase (casa) será a
década de 80, período mais intenso de trabalhos realizados nas casas das
vemos:
161
“Fomos à cachoeira para pedir proteção e firmeza a Xangô e Inhasã.
Pedi para que todos que foram juntos para acenderem 1 vela roxa, uma branca e
uma marrom, para pedir proteção e firmeza para os orixás.
trabalho e faz menção “às meninas”, que presumo ser suas filhas carnais,
portanto, ao nomear, no final do registro, “nossos filhos”, posso dizer que este é
O período que vai de 1976 á 1979 embora conte com registros de trabalhos
anotações e muito espaçadas. Estes registros não são tão constantes e temos
pouca coisa registrada, o que pode significar que realizavam poucos trabalhos
61
Rodízio de casas: revezamento das casas das pessoas para a realização dos trabalhos.
162
de espaçadas trazem apenas datas de trabalhos realizados para algum filho(a),
62
Foram feitos 3 trabalhos (iniciais ) e no quarto (07.08.1977) um banho de pinga com
7 garrafas.
7º. Trabalho em casa. Exu dos Rios e Exu do Lodo trabalharam juntos,
8º. 25.10.1977 – trabalho em casa com Veludo. Trabalho com 2 velas: 1 preta e
uma vermelha.
62
As anotações entre parênteses são da autora da tese para facilitar a leitura.
163
13º. 10.01.1978 – trabalho com Veludo e Lalu
16º. 11.03.1978 – trabalho no sítio com Veludo, que fez trabalho com um casal
(?) ponteiro, 2 velas brancas e foto e uma vermelha e fez descarga com fundanga
17º. 28.03.1978 – trabalho em casa com Veludo, com uma vela vermelha e fita.
13. 06.1978 – trabalho em casa com o Veludo. Veio dos exus, o primeiro Exu Sete
Catacumbas e o segundo Exu Sete Encruzilhada. Ela tem que voltar 27.06.1978 .”
Como se vê, estas anotações não trazem informações mais detalhadas dos
quatro anos de registros. Para a análise deste período serão utilizados aqueles
que apresentam uma regularidade tanto no registro (mais detalhado), como nos
realizados63. Até esta época o que havia sido acordado no trabalho anterior era
63
Como a gira era realizada na sala produzia certa desordem na casa. Geralmente quem a cedia
eram os donos, causando discussões com os filhos adolescentes, que muitas vezes não aceitavam o
empréstimo.
164
respeitado, pois até 1980 os Pais não tinham telefone e transferir os trabalhos
nunca tinham que se preocupar em oferecer algo para as visitas, pois o grupo
levava tudo, café, refrigerante, pão, bolo, etc. Também eram auxiliados na
Muitas vezes após o lanche ter sido servido, um grupo ficava na cozinha
trabalhos, as entidades, o que havia sido feito, o que o Caboclo Três Penas
havia orientado. Estes diálogos giravam em torno dos aspectos espirituais dos
Umbanda e seus processos, não foram registradas e a única coisa que ficou
165
O resgate destas reuniões, a partir de entrevistas com os filhos(s) mais velhos
momentos, que segundo ela, não eram vistos como uma “continuidade da gira”
Neste período o grupo que acompanhava o casal era fixo, embora pequeno, e
Geralmente os trabalhos iniciavam por volta das 20:30h ou até mais tarde, pois
166
Exu consistia em riscar o ponto da entidade, acender uma vela branca e
que o grupo fazia a firmeza na parte de trás da casa, para não ser visível da
rua.
Outro aspecto, que podemos considerar como sendo uma característica própria
vizinhos.
64
A Umbanda se aproxima do espiritismo para tentar uma legitimação social, já que é comparada,
ou melhor, confundida com o Candomblé. Ambas, Umbanda e Candomblé, ainda hoje são vistas
como cultos de indivíduos ignorantes ou do “mal” como dizem algumas vertentes religiosas. Vários
trabalhos foram produzidos analisando estes aspectos, entre eles o de Maria Helena já citado e de
Josildeth Gomes Consorte.
167
Os(as) filhos(as) batiam cabeça em primeiro lugar e depois os Pais. Faziam a
das entidades.
pessoas que estavam presentes, não havendo uma definição rígida quanto às
e Caboclo Pena Azul (entidade incorporada pela Mãe), mas era comum a
com o Caboclo Três Penas que coordenava a gira. Era comum também que a
168
Como não havia sistema de fichas ou lista para controlar a ordem de chamada,
(incorporado pelo Pai) e Lalu (incorporado pela Mãe). Embora houvesse outros
seus pedidos, insistiam em passar com as entidades acima. Como não havia
169
As giras por fim se tornavam uma sucessão de acontecimentos, mas que não
65
A partir deste período as anotações são revezadas entre algumas filhas do terreiro e a própria
autora desta tese, a pedido da Mãe. Percebemos, pela imagem apresentada, a preocupação em
anotar em detalhes tudo o que ocorre na gira, como o ponto riscado pelo Caboclo Três Penas. A
preocupação não era somente com os acontecimentos, mas também com aquilo que as entidades
faziam como os pontos riscados, as velas que acendiam e como as utilizavam. Este cuidado era
freqüentemente relembrado pela Mãe, que dizia as escreventes para anotarem “tudo”.
170
Como não havia uma delimitação de espaços – espaço sagrado e espaço
hora do ritual.
próprios médiuns durantes os rituais. Como o Pai e a Mãe não tinham uma
os(as) filhos(as).66
66
Estas reuniões serão analisadas no item referente ás Reuniões.
171
O Caboclo Três Penas, chefe espiritual, também não exigia esta rigorosidade,
médiuns a reflexão sobre suas ações e esperava que mudassem sua postura.
diz respeito ao início dos trabalhos. Nos terreiros a primeira entidade a ser
os(as) filhos(as) é que vão até o Pai para cumprimentá-lo. Este aspecto é
mantido no ritual, mas com uma diferença que irá se manter ao longo dos anos:
tanto o Caboclo Três Penas como o Caboclo Pena Azul é que ao chegarem e
172
Este ato, de ir cumprimentar, imprime um estilo mais próximo, de mais
pessoas sentirem-se lembradas, amparadas, pois o Caboclo é que foi até elas
Esta atitude rompe com a postura de poder do chefe da casa, tanto material
como espiritual, embora não o destitua de sua força e de sua autoridade. Esta
é outra marca que distingue este terreiro. No TUCTPB não se bate cabeça67
para o Pai ou a Mãe nem para suas Entidades, bate-se apenas para o congá.
67
Bater cabeça: ação em que o médium deita-se no chão, com a barriga para baixo, com a toalha de
cabeça estendida a sua frente e posiciona a cabeça na toalha em sinal de reverência. Este ritual é
feito quando se inicia a gira, ao cumprimentar o congá ou quando outra situação se apresente.
173
As giras particulares, a exemplo do que acorria no terreiro do Sr. Julio, também
poderiam ser trabalhadas nas giras públicas, como por exemplo, uma
O ritual acontecia de forma bem mais simples que o público, com uma prece de
pois ela é que resolvia casos mais difíceis e que exigiam a presença dos exus
para negociar.
Os trabalhos poderiam ser realizados uma única vez como poderiam durar
alguns meses. Alguns trabalhos poderiam ser ainda mais longos, como por
174
Maria68 e sua mãe foram trazidas por um filho preocupado com a condição da
suicídio69.
deixaram de freqüentar uma casa, que segundo elas era de Candomblé, onde
vários trabalhos, cada um deles com uma solicitação diferente (como banhos
A compulsão por comer doces (bolos, doces caseiros e chocolates o que a fez
68
Os nomes das pessoas foram trocados para garantir sua privacidade, principalmente quando se
referirem a trabalhos de giras particulares. Os nomes que foram mantidos referem-se àqueles que
deram autorização para serem mencionados.
69
A adolescente morava em apartamento, num condomínio no bairro das Perdizes, e sua mãe, em
várias situações, pegou-a na janela do seu apartamento tentando se jogar.
70
Este depoimento esta anotado no Caderno de Registro e aconteceu em uma das conversas que
teve com o Caboclo Três Penas sobre a adolescente.
175
perderam o contato com a família e as informações que obtiveram sobre a
e por que. Estas incorporações não eram realizadas por qualquer médium,
pois muitos deles não se sentiam a vontade ou tinham medo de fazê-lo, pois
nunca se sabia como estas entidades iriam chegar. Na maioria das vezes
e poucos são os terreiros que admitem trabalhar com esta linha, pelo menos
de “exus batizados”.
solicitações (desde que não fosse prejudicar ninguém ou que o pedido fosse
176
A incorporação destas entidades era realizada quantas vezes fossem
assim dizer, possuem uma vibração diferente, mais pesada, que influi no
por exemplo. Os registros são muitos, para se dizer que não sejam reais.
71
Cura de acordo com o dicionário Houaiss significa restabelecimento da saúde. Estarei utilizando
aqui o termo com o significado estabelecido por Deepak Chopra, médico endocrinologista que
combinou as concepções da ciência moderna á antiga sabedoria oriental, elaborando uma teoria de
equilíbrio dinâmico entre corpo, mente e espírito. Para ele a conquista da saúde perfeita ”envolve
uma mudança de perspectiva, tornando a doença e a debilidade inaceitáveis”. Embora esta
concepção de saúde esteja vinculada a uma proposta de medicina alternativa, pelo menos entre os
ocidentais, suas idéias sobre a saúde do corpo e da mente são muito parecidas com a concepção
utilizada na Umbanda. Sabemos que ao procurar um centro ou terreiro de umbanda para curar-se, o
indivíduo, principalmente se vai a Umbanda pela primeira vez, já esgotou todas suas possibilidades.
Para o umbandista as desordens do corpo são provenientes em grande parte das desordens
provocadas pela mente, pelo espírito (se quiserem podem chamar de inconsciente), mais do que por
“trabalhos feitos” ou magia. Antes de “arriar trabalhos” o que as entidades fazem é tentar modificar
a faixa vibratória destas pessoas, já que apenas uma pequena parcela destes indivíduos sofre algum
mal proveniente de “despachos”, “magias” ou “trabalhos feitos”. No caso mencionado, as duas
situações apresentaram-se verdadeiras: a adolescente tinha dificuldades em controlar-se e havia as
cobranças espirituais. Já existem algumas pesquisas científicas na área da saúde mental que
comprovam as influências vibracionais nos indivíduos, embora ainda sejam muito contestadas. O Dr.
Chopra apresenta alguns casos em seu livro Saúde Perfeita: um roteiro para integrar corpo e mente,
com o poder da cura quântica, em que o poder da mente no indivíduo provocou sua cura deixando
em perplexidade médicos da medicina tradicional.
177
Portanto estes trabalhos eram momentos de aprendizagem para todos os
a distinguir uma entidade sofredora (espírito que não reconhece sua condição),
tinham que ficar atentos para o que a entidade fazia, não permitindo que
que iam contra sua ética; para o filhos(a) para quem se estava trabalhando,
As Festas
72
Esta classificação do ponto de vista da doutrina umbandista é bem simplista, pois existe uma gama
variada de possibilidades de classificação destas entidades, que depende da concepção adotada
pela casa. No geral trabalha-se com a idéia de exus e pomba giras “de luz” e “sem luz”, significando
que trabalham para o bem ou para o mal. Alguns terreiros ou mesmo livros sobre o assunto,
trabalham com a noção de “exus batizados” e “exus pagãos”, significando na primeira, exus que já
deram o nome e ponto, por isso consciente de sua condição e o inverso, exus que não deram o nome
e por isso estão “soltos” podendo realizar qualquer espécie de pedido ou trabalho. No TUCTPB
trabalha-se com a primeira noção, embora também acredite que esta classificação é uma forma
didática de explicar um assunto complexo.
178
No período que estamos apresentando, eram poucas as datas que se
mas somente com pontos cantados e a incorporação da”, entidades das linhas
turistas.
As datas para a realização das giras na praia eram marcadas após o período
de férias escolares, que de modo geral ficavam vazias ou pelo menos com uma
73
Na Umbanda a data oficial de Yemanjá é 8 de dezembro e as maiores festividades para
homenageá-la acontecem nas duas primeiras semanas de dezembro, datas organizadas pelas
federações para controlar o acesso de umbandistas às praias do litoral sul do Estado de São Paulo,
principalmente na Praia Grande.
179
dos trabalhos era distante (Peruíbe), basicamente contavam apenas com os
ritual, como velas, imagens, atabaques, como também objetos para auxiliar no
preparo do local, como enxada, cordas, lonas, arames, lampião a gás, etc.,
Nesta época o Pai e a Mãe tinham uma Kombi que transportava a maioria das
coisas, além dos(as) filhos(as), indo sempre carregada. Aqueles que tinham
sido autorizados pelo Caboclo Três Penas, que então passava as orientações
180
para a ida, como não brincar, não fazer muita confusão e ter sempre a “cabeça
realizados74.
Os trabalhos na praia eram uma homenagem a Yemanjá, uma festa e por isso,
entidades, a não ser para a linha de esquerda que deveria vir na hora
74
É comum encontrarmos nestas festividades, terreiros com médiuns alcoolizados. Como este dia é
especial, visto que muitos terreiros deslocam-se centenas de quilômetros para chegar à praia, nem
sempre os conseguem controlar o comportamento dos seus adeptos, que exageram no consumo de
álcool, antes e depois das giras, provocando situações constrangedoras aos seus dirigentes. Uma das
maneiras encontradas pelas federações de controlar estes procedimentos é a obtenção da
autorização para entrar na praia (Praia Grande) nestes dias, não significando, no entanto que estes
comportamentos (muitas vezes individuais) possam ser contidos. Embora o grupo do TUCTPB não
tenha esta característica, o uso de bebidas alcoólicas é proibido, antes ou depois da gira e mesmo
durante os trabalhos a bebida alcoólica é controlada pelos cambonos.
181
A assistência presente, na maioria das vezes, tomava somente um passe e
oferendas:
“3 Penas abriu os trabalhos – veio o caboclo da M..., L..., A..., V... que receberam
irradiação de preto velho – L... também e a V... de caboclo, L... recebeu Iemanjá, a M...
também, vieram os baianos e baianas, 3 Penas pediu para cada filho escrever em um
papel um pedido, depois ele trabalhou em todos e colocou em uma rosa presa por
pingos de vela, fomos todos a água, para lavar a cabeça pelo caboclo Pena Azul, só
não fizeram as meninas e Irma, Hursula, Arnaldo, Cássio, depois o 3 Penas pois sobre
uma toalha branca as rosas com os pedidos e todas as demais flores e com o caboclo
Pena Branca entraram na‟gua e depositaram no mar com água até altura do tórax,
antes de lavar a cabeça os filhos depositaram flores, com um pedido já tinha nascido o
182
Recado _ Flavio deixar o nó por no mar – levar 7 velas 1 de cada cor – flores sem
espinho.
brancas para oferendar a orixá, não havia perfumes, espelhos, barquinhas com
umbanda.
somente com a água até os joelhos (não era permitido ir mais fundo), contavam
las.
auxiliada por outro filho(a) ou médium. As entidades desta linha podiam ser
75
Incorporar. Momento de incorporação.
183
Iniciavam os trabalhos assim que o grupo arrumava o local escolhido e
O ritual praticamente era igual ao que ocorria nas casas: faziam a firmeza para
cantavam pontos de abertura da gira (neste caso não havia defumação), a Mãe
Os trabalhos não tinham hora para terminar, e todos que estavam presentes
eram atendidos. Aqui também não havia uma regra para o atendimento da
184
assistência, as pessoas eram chamadas de acordo com a necessidade ou o
Estes trabalhos eram mais “comportados” do que aqueles que ocorriam nas
casas, embora fossem considerados pelos médiuns como uma festa. Estes
uma pela natureza do espaço em que realizavam o ritual. O mar, muito mais do
que a praia, é por excelência um local sagrado para o umbandista. Local onde
limitar onde podem ou não podem ir, as ações dos médiuns ficavam menos
visíveis.
185
A Festa de Aniversário era simples, sem ostentação. Os(as) filhos(as) levavam
Depois pediu mais flores – deu uma flor para cada um da assistência.
Quando as pétalas estiverem secas fazer um banho com as pétalas (ferver a água
76
Este é o único momento em que os médiuns realizam este ritual.
77
Os registros eram feitos por qualquer pessoa que estivesse disponível, não havia a preocupação
em identificar-se, ou seja, colocar o nome. A identificação das pessoas que faziam o registro muitas
vezes se fez através do reconhecimento da letra, pela convivência de muitos anos com as pessoas.
186
Em 1986 o Caboclo recebeu como homenagem pelo seu aniversário uma
dado” (ponto cantado para cumprimentar quem faz aniversário); terminado este
“Três Penas chegou, recebeu as flores e a abobora dos filhos. Depois disse que cada
um fizesse um pedido para os seus ou para parentes que estivessem doentes. Foi
cantado um abraço dado e todos os filhos bateram cabeça para o Caboclo Três
nomes de pessoas que todos conhecessem e que estivessem com alguma doença.
ponteiro atrás da bandeja com abobora que estava debaixo, no pé do congá. Todos
tomaram vinho com abacaxi. Depois 3 Penas perguntou se alguém queria falar com
ele.”
As Obrigações
agradecimento do médium aos orixás e/ou entidades por terem atendido aos
seus pedidos (seja qual for a sua natureza) através de oferendas de diferentes
Quando não houver identificação do escrevente significa que não foi possível reconhecer o autor do
registro.
187
tipos; outra como uma forma de entrar em contato mais profundo com seus
alguma necessidade, isto é, eram feitas de acordo com os pedidos das próprias
entidades.
solicitava.
próximo com Ela. As oferendas neste caso não eram obrigatórias, ou seja,
188
Para a linha da direita as oferendas eram compostas de frutas, flores e velas
solicitado não era encontrado no sítio, como um jardim cheio de flores ou uma
plantação de eucaliptos.
os(as) filhos(as), que era a entrega para a linha de esquerda, aos Exus e
Pombas Giras. A entrega era realizada uma vez por ano, na Quinta-feira Santa.
era chamada para solicitar das entidades o que queriam na mesa. Exus e
para o médium esta lista era confirmada pelo Exu Veludo e se houvesse
alguma coisa que não estivesse de acordo era retirada ou solicitada sua troca.
Nesta casa, a mesa para os Exus e Pombas Giras não eram permitidas a
matança. Esta é uma prática comum nos terreiros quando se fala em oferendas
entidades. Neste terreiro, a entidade poderia pedir alguma comida, como farofa
ou carne (crua), mas oferecer animais para corte nunca foi permitido.
189
preferência), mel, carne (que poderia ser de vaca ou porco 78), pimenta, como
adornos (como brinco, pulseira, colar, piteira), bebida de sua preferência, como
vemos:
78
Adquiridas no varejo.
190
7 velas vermelhas
Toalha branca
Fósforo- 1 caixa
realização, a não ser que a entidade solicitasse. A entidade que preferisse sua
chegavam mais cedo para auxiliar na limpeza do local, que ficava no meio da
trabalhos para limpar o local onde havia feito sua entrega. Retiravam o que
havia sobrado jogando tudo no lixo. Nesta época não havia a preocupação com
elas era muito variado. Geralmente a Mãe solicitava que cada médium levasse
191
embora o que havia trazido. Atualmente estas garrafas são trocadas por litros
Obrigações que os(as) filhos(as) têm para com o terreiro e suas entidades. Era
realização do banho não havia gira normal, ou seja, os trabalhos eram apenas
para trabalhos específicos (particulares), aproveitando que neste dia não havia
O banho de ervas (Abô) feito com ervas coletadas pela Mãe na Sexta feira
Santa. As ervas eram colhidas antes do sol nascer e colocadas em infusão por
banho frio, em temperatura ambiente o que significava que em dias muito frios
sofriam bastante.
Neste dia o congá era montado na varanda da casa e o chão coberto com lona
e esteiras – que cada médium deveria trazer. Era permitido aos(as) filhos(as)
192
já que naquela época o banho acontecia próximo ao inverno e na região as
Pinga o primeiro. Para isso o médium deveria levar três garrafas de pinga e seu
este banho serviria para dissipar toda a energia negativa do médium e auxiliar
O Banho de Abô era feito em seguida, também da cabeça aos pés e seguia o
dois banhos, era coberta com a sua “tolha de cabeça”, significando que a partir
79
Neste terreiro fazem a distinção entre duas esferas da vida: uma material – que diz respeito ao
mundo cotidiano do indivíduo, como trabalho, casa, saúde, etc.; vida espiritual – que diz respeito ao
mundo divino, ao mundo dos espíritos, das entidades.
193
Ao deitar na esteira o médium acendia uma vela de sete dias branca, do seu
lado direito e ficava deitado por uma hora ou até que o último filho que havia
banho e deitavam como os(as) filhos(as). Em 1981, vinte e sete pessoas, entre
TRABALHO NO SÍTIO, BANHO DE ABÔ, para os filhos presentes e aqueles que não
veste branco, Joãozinho e família estiveram presentes, ele tocou enquanto os filhos
Vera, Vanda, Dada, Sonia, Margarida, Leda, Solange, Mariza, Rose, Lílian, Ruth,
Iridia, Débora.
Flavio, Artur, Melvin, Swamir, Sebastião, Luiz, Edgar, Arnaldo, Sergio, Ricardo,
O tempo (uma hora) que o médium ficava deitado na esteira era considerado
partir daquele momento, fosse bom, com saúde e prosperidade. Julgam ser
194
Ao pegar as ervas para o banho a Mãe ia marcando o nome das mesmas e a
data em que tinham sido colhidas. O ritual para colher as ervas seguia os
das ervas e sua função, como ainda orientava que estes deveriam ter um
A lista com os nomes das ervas recolhidas era posta a disposição para que
conhecimentos, visto que, para a Mãe, estas informações mais adiante, quando
não estivessem mais neste terreiro, soubessem como e por que tinha sido feito.
As Reuniões
80
Esta preocupação persiste ainda hoje no terreiro, tendo como justificativa da Mãe, que o médium
em anos futuros terá registrado tudo o que foi feito e quando não estiver mais neste terreiro poderá
lembrar consultando o registro e lembrar o que fez ou o foi realizado.
195
materiais, ou seja, conflitos provocados pelas atitudes dos participantes, nas
giras e que não eram aceitas por um ou mais filhos(as). Muitas vezes estes
conversas paralelas durante a gira, cuidar dos objetos das entidades para que
O maior problema ou dificuldade e que irá perdurar por mais alguns anos no
196
médiuns constantemente e na maioria das vezes entravam em choque com a
suas coisas; fazer um trabalho na sexta e outro no sábado; determinar um dia para
aulas.”
alguns medos, como por exemplo, de Ruth que “não gostava quando a
197
entidade de esquerda dizia que iria quebrar garrafa (na gira) ou tirar menga
próximo”.
reunião.
198
uma quantia mensal que cada médium deveria dar para a compra de material
“ajuda ao próximo”, bem como nos registros posteriores. Podemos deduzir que
Uma semana depois dessa reunião um trabalho estava marcado, que foi
cancelado na hora, para que o grupo resolvesse um conflito que havia surgido
apontamento da fala dos participantes, ou melhor, dos médiuns que tinham ido
para a gira.
sábado) e do local onde se realizariam (casa das pessoas e sítio), que haviam
sítio seja um local fixo para as giras, é visto com resistência. O argumento
principal dos médiuns presentes é a distância que teriam que percorrer toda
199
Decide-se por fim, que todos os trabalhos serão realizados às sextas-feiras em
inclusive um calendário:
Casas:
Sábado no sítio - 06/07/85
1. Swamir – trabalho normal
2. Flavio – doutrinação
3. S. Arnaldo – trabalho normal
4. Sítio – desenvolvimento
5. Margarida – trabalho normal
6. Luiza
Sexta – São Paulo
Sábado – sítio
Horário: 20:30hs
estabelecido.
Mãe, Exu Lalu, avisa que iria falar com todos os(as) filhos(as). O recado era
que a partir daquele dia os trabalhos seriam realizados somente no sítio e não
dos presentes a respeito da nova ordem, que acatam; mas, como veremos
200
mais adiante, novas divergências aparecerão. Há trabalhos registrados em
outros locais, como São Caetano do Sul, mas estes se referem a trabalhos
podemos observar é que quando um conflito surgia este era resolvido durante
a gira, na presença do Caboclo e com sua intervenção, mesmo que este não
pudemos observar.
em poucos minutos, num ambiente sagrado, com outras regras regidas por
princípios estranhos às pessoas que não faziam parte do grupo “de branco”.
Mesmo para os que “vestiam o branco”, era difícil entender ou assimilar onde
então entrar na “gira”. Por isso, vemos nos itens das reuniões regras como: não
sair (da gira) para fumar, não sair (da gira) para comer, evitar conversa antes
201
dos trabalhos, assistência fazer silêncio, não deixar que a pessoa da
assistência converse com todas as entidades, entre outras. Aqui o “ponto fixo”
aparece e desaparece
que se formar.
como veremos.
81
Eliade apresenta a noção de espaço sagrado e espaço profano e o “ponto fixo”seria a
manifestação do sagrado, que funda um centro (fundação do mundo), uma orientação, num espaço
(profano) sem nenhuma referência; a experiência profana mantém a homogeneidade e portanto a
relatividade do espaço, o “ponto fixo” permite uma orientação no caos,num mundo não-religioso.
202
das famílias ou casais que os acompanhavam vinha do catolicismo e se
dias ou uma vez por mês, um grupo que modificava o espaço, cantava, fumava
aceitavam a nova prática religiosa dos pais e avós (isto sem falar dos vizinhos).
“ Chegamos na casa da Ruth, a L... falou que não ia mais participar, que não dá mais
para continuar, que os trabalhos estão atrapalhando a vida particular dela e que se os
trabalhos vão ser de sexta-feira ela não vai mais participar e outras infinidades de
coisas.”
Neste registro podemos notar o drama de uma das filhas do terreiro. Sua casa
era uma das que se dispunha a receber o grupo para o rodízio, mas com filhos
e dos avós, e que provocava constantes atritos quando sabia que o grupo iria a
sua casa. Muito mais que uma reação de adolescente, era a reação contra o
ocorre neste período e nem por esse motivo. Isso só irá acontecer bem mais
203
tarde, na década de noventa, com o falecimento de seu pai e a falta de
As aulas
“dia de aula” determinado pelo grupo, nunca aconteceu como previsto por eles.
pois ensinam aos(as) filhos(as) aspectos da vida religiosa, seja do ritual ou das
concepções da Umbanda.
Como não havia uma rigidez no ritual, as aulas aconteciam também no início
204
Foi feita a firmeza para os exus.
Feito também a Cruz das Almas pelo falecimento do avô do Carlos.
Incorporou o Caboclo T. Penas.
T. Penas pediu para cantar o ponto de chamada de caboclos apenas para saudação.
(...)
Perguntas:
205
P – Bebidas oferecidas durante os trabalhos podem ser recusadas pelos filhos?
R - Pode. Se quiser, o filho poderá pedir orientação para chefe do terreiro ou para as
entidades mais conhecidas se pode ser tomado ou não.
P – Os filhos podem visitar outro terreiro?
R – Sim, porém o cavalo deve se cuidar e saber se trabalham na mesma linha para
não ter conseqüências mais tarde.
(Caderno de Registro de 11/05/1984 – Escrevente Vanda Roberto)
mas estes momentos não se davam de “modo formal”. Como o Caboclo abria
dúvidas, o que ocorria era uma discussão coletiva sobre os temas abordados,
aprendizagem, de aula.
206
Outro fator de conflito era a própria formação religiosa anterior diferenciada
daquilo que conhecia, não só do mundo em que vivia, mas das noções que
esquecer que grande parte dos integrantes do grupo – tanto de médiuns como
207
O SAGRADO NA VARANDA
acontecimentos, que serão decisivos para o grupo. Para a análise desta fase,
os trabalhos registrados nesse ano estavam todos voltados para uma única
208
Fotografia 14 - Festa de Oxossi na Varanda 1989
Foto cedida por Iridia Vaini
Digitalizada em 08/01/08 por Solange Vaini
Não havia uma delimitação visível entre o espaço sagrado (terreiro) e o espaço
profano (assistência), esta divisão era feita através de cadeiras que eram
para as giras, que agora podem contar com os atabaques, fato que até então,
não acontecia, pois não eram utilizados freqüentemente devido aos locais de
209
Este período, que compreende aproximadamente 10 anos, foi muito intenso
corrente.
entidades. A previsão de início era ás 20:00h, mas como o Pai não gostava de
iniciar a gira sem que todos estivessem presentes, muitas vezes iniciavam bem
mais tarde.
Depois que o congá estava montado e as coisas no lugar, os(as) filhos(as) iam
O ritual de bater cabeça continua da mesma forma que nos anos anteriores, os
Pais são os últimos e não há o ritual de cumprimentar os Pais, por ordem dos
próprios Pais, que não aceitam um tratamento diferente por serem os chefes
espirituais.
210
Nos primeiros anos de trabalho na
mostrando ser necessário, ter Ogã. Quando nos anos anteriores utilizava-se os
atabaques, os toques ficavam a cargo de uma das filhas (que vinha do terreiro
do Sr. Julio) ou de um dos filhos, que por ter freqüentado outro terreiro e nele
elas eu).
211
Aprendiam canto, com os professores Élcio de Oxalá (que atualmente tem sua
eram cinco, além da Denise, cada um deles responsável por uma turma, de
manhã.
212
toques e pontos da umbanda, tinham vontade de ensinar o que sabiam e
havia uma prova prática, onde o aluno deveria tocar e cantar conforme a
opinião deles, o que achavam e após ouvi-los expunha sua visão sobre o que
ocorrera e de que forma isso influenciava seus trabalhos. Este era outro
213
Os trabalhos nessa época, como dissemos transcoram de forma muito
significativamente o grupo.
longo dos anos: as pessoas vão conversar com as entidades, contam seus
coisa, como acender uma vela, tomar um chá, fazer alguma obrigação. Muitas
pessoas que passaram pela gira, pois são muitas as que passam pelas giras
no decorrer do ano.
difíceis, que exigiram dos médiuns grande dedicação e união. Este período foi
membros do terreiro.
214
São comuns as visitas de terreiros a outros terreiros de umbanda. Geralmente
Caboclo Pena Azul, para o visitante, num ato de humildade e respeito. O Pai de
Santo visitante recebe então suas entidades, comanda a gira durante alguns
Candomblé, em 1990, trazido por uma filha, que já não freqüentava mais a
casa82. O candomblecista foi recebido pelo Caboclo Três Penas com todas as
junto com os demais das giras realizadas. Este vaivém durou mais ou menos 3
anos. Em uma dessas visitas, durante a gira ele fez uma oferenda, solicitando
82
Esta filha era conhecida dos pais desde a época do terreiro do Sr. Julio. Os Pais eram padrinhos de
sua filha na umbanda e as relações entre eles sempre foram muito próximas, por isso não
estranharam a visita, pois era comum, embora não freqüente, sua vinda ao terreiro.
215
colocadas junto com outros objetos oferecidos83. Como suas entidades
suas intenções naquele momento, já que era uma de suas primeiras visitas.
Quando o Pai e Mãe percebem seu intuito, meses mais tarde, começam a
83
Esta oferenda é muito comum de ser realizada no Candomblé, onde utilizam alguidar, cará, mel,
búzios e moedas para a obtenção de bens materiais, geralmente emprego ou dinheiro, mas pode ser
utilizada também para “roubar” o Axé (energia, vibração) do outro. Para os filhos do TUCTPB esta foi,
uma entre outras, entregas que o Pai visitante utilizou para desorganizar o terreiro ou como os
filhos(as) dizem, fechar o terreiro, demandando contra eles.
216
que irritava os(as) filhos(as), pois na avaliação deles, o sujeito estava
Segundo os médiuns, meses mais tarde descobrem que havia uma demanda
filhos confirma a natureza do conflito. Este fato provocou nos médiuns uma
humilde do Caboclo Três Penas”, que dizia que se aquele Pai de Santo
terreiro.
84
Lísias N. Negrão aponta como comum esta postura entre pais de santo. Segundo o autor “é regra
este sentimento de superioridade sobre os colegas-rivais, os quais são habitualmente
desqualificados de forma genérica.” (1996)
85
Estes acontecimentos diziam respeito à vida material dos médiuns, principalmente dos Pais, que
passam a enfrentar uma série de dificuldades, que foram atribuídas a esta demanda.
86
Matança, no caso, aves.
217
A aceitação de tais trabalhos pelos médiuns ocorreu somente depois de
uma prática comum nos terreiros, como também o trabalho com a linha de
esquerda.
Seja por conta das demandas ou pelo espaço que agora permitia avançar noite
adentro, neste período (da varanda) outra mudança ocorre: as constantes giras
trabalhar.
218
Para alguns umbandistas a linha de esquerda é aquela com a qual os médiuns
doutrinação.
219
A doutrinação pode ser entendida como uma forma de educação por que
terreiro, pois acredita-se que não adianta apenas “tirar o espírito obsessor,
220
e modificação do seu comportamento, bem como encaminhá-lo para
assistência, mas isso não era uma regra fixa. Em novembro de 1995 podemos
“(o Caboclo Três Penas) Pediu para o Caboclo Pena Azul desenvolver os filhos,
pode cantar qualquer ponto (linha), sempre 3 pontos, para depois mudar. O Caboclo
Três Penas disse que não é para cantar ponto de Yemanjá. Quem estava no centro
da gira era o Salvador. Foi cantado vários pontos, mas o de Preto Velho foi mais
repetido.
Depois foi a Maria para o centro. Foi cantado ponto de Caboclo e da Cabocla Yara
(Yara Deusa dos Rios), depois que a entidade foi embora o Caboclo Pena Azul
chamou a Marta. O Mario começou com ponto de criança; Preto Velho, criança, ponto
de caboclo e cabocla (Yara Deusa dos Rios), depois o Caboclo Três Penas pediu
87
Esta idéia de “tratamento espiritual” também é bem conhecida no meio kardecista. Segundo esta
concepção, o espírito (encarnado ou não) que não compreende o que seja e como funciona a vida
espiritual, estaria sujeito a ficar “vagando” entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Aquele
que não está mais encarnado pode vir a perturbar um indivíduo encarnado, através, por exemplo, da
invasão do campo energético de seu desafeto. Segundo esta mesma concepção, estes casos são mais
comuns do que imaginamos e o grau máximo a que pode chegar esta invasão, em alguns casos
transformada em simbiose, é a loucura do espírito encarnado.
221
para cantar um ponto de cabocla do oriente, como não tinha ninguém que conhecia,
Depois o Caboclo Pena Azul chamou a Eliane. Cantou ponto de caboclo mas a E...
recebeu uma entidade sofredora, depois que acendeu a vela e o Caboclo Pena
Azul falou com ele (grifo meu), foi embora. Foi cantado ponto de Preto Velho, que
ela recebeu.”
ansiosamente por ele. No TUCTPB também não era diferente. Todos queriam
incorporados.
222
Esta impaciência levou os médiuns do TUCTPB a novo acordo: realizar os
acordo acaba por não dar certo, pois as pessoas da assistência começam a
Quando isso acontece outro ritual se intensifica, que são as operações. Muito
Caboclo Três Penas pedia que os médiuns dessem passagem para os Pretos
Velhos e estes vinham para cuidar da pessoa. O Pai Tico (Preto Velho do Pai)
Três Penas mandava parar qualquer outro que estivesse sendo feito e a
223
a maioria dos médiuns ainda não tinha sua incorporação estável. Podemos
Três Penas pediu para a vovó levantar-se e começou a examiná-la. Três Penas pediu
para ela deitar, todos os caboclos ficaram em volta. Três Penas deu passagem para
Pai Tico e todos os Pretos Velhos operaram a vovó. Três Penas explicou que é
perigoso operá-la, por causa da idade, os intestinos dela estão gastos e podem dar
complicação.
Disse que operou-a junto com a Dra. Pina e que é para prestarmos atenção em
qualquer reação que ela possa ter. Esperar uma semana e fazer outro exame, pois
ele costurou a ulcera e quer saber se houve melhora. É para ela alimentar-se bem,
comer fígado mal passado e não operar no Hospital, por causa da idade. (Caderno de
A pessoa que passa pela operação é a D. Norma, mãe carnal da Mãe e que
trabalhava no terreiro até pouco antes de seu falecimento88, aos 84 anos, como
Três Penas pediu para a Vó Norma entrar, ela sentou na cadeira e emocionada
agradeceu aos caboclos por sua melhora. Nesse meio a vovó recebeu uma entidade
que parecia de esquerda e que já havia estado com ela. A entidade dizia que fazia
88
D. Norma falece no mês seguinte, em outubro de 1995. Tanto para os Pais como para a família
nunca houve a preocupação com a idade para incorporar. A mãe carnal do Pai, D. Inês também
incorporava suas entidades até os 84 anos, quando faleceu.
224
dias que queria pegá-la. Queria ter vindo para ajudá-la na sua saúde, mas que não
Todas estas ações aconteciam durante a gira, num mesmo dia. Como
desenvolvido pelo Caboclo Três Penas. Este fato é a utilização que faz da
89
Incorporação pelo médium de espíritos (obsessores, sofredores, exus) e/ou entidades que não as
suas, para “conversar”, ou seja, realizar um processo de doutrinação.
225
cima do congá havia sempre uma pequena Bíblia e que podemos ver ainda
hoje no terreiro.
que algum médium lesse uma passagem apontada por Ele. Também acontecia
a página aleatoriamente.
Num registro de 1994, um dos filhos (o mesmo que fará a leitura da bíblia) trás
para o Caboclo Três Penas o nome de uma pessoa que buscava ajuda. No
“Caboclo Três Penas pediu para o Mané abrir a Bíblia e ler um pedaço, depois
226
O Caboclo Três Penas perguntou sobre a mulher que está trabalhando, se ela confia
Dois anos mais tarde, após o episódio descrito envolvendo a leitura da Bíblia,
Caboclo Três Penas, em que esta dizia ter recebido, por três vezes, a intuição
de que não deveriam dar o banho de pinga nos(as) filhos(as) o que foi
orixá) ele ainda não tinha identificado a(s) linha(s). Resolvem suspender o
pegar sua guia e esta arrebenta. Após avisar que iria conversar com a
assistência, lemos:
O Caboclo Três Penas pediu para ler um pedaço da Bíblia e ver se fala sobre guerra. O
Bíblia.
227
O Caboclo Pena Azul pediu para confirmar na bíblia (g. meu) e o Caboclo Três
Penas disse que tudo bem; perguntou para que, é uma coisa que foi pedido, eu disse
(escrevente e cambona) que foi o pano vermelho. Ele abriu (a bíblia) e mandou o
Mané ler e para ver se fala em guerra e tambor e pano. (...) O que foi lido na bíblia foi
Três Penas pede para o M... ler a bíblia (trecho) e saber se fala de festa. O filho
responde
que não fala nada sobre festa, mas sobre guerra e o caboclo (Três Penas) falou em
demanda, ele (filho) disse que sim; o caboclo (Três Penas) perguntou sobre sacrifício
e ele (filho) falou que sim, a “cada três dias e no dizimo”; perguntou (o caboclo) sobre
prazo/quando; mas na bíblia não fala. O Caboclo disse que estão devendo
Figura 5 Caderno de
Registro14/06/1997
228
No final desse mesmo ano, 1997, há anotações no caderno de registro sobre a
marcado, somente com os Pais e mais três filhos(as). O Caboclo veio riscou
O Caboclo Três Penas pediu: a faca (nova) e os alguidares. Colocou um de cada lado
do ponto dele e a faca dentro, depois tirou a faca. O Caboclo Três Penas pediu para
abrir bíblia onde quer (M...) e ler o que está falando. (...)
Bíblia: restauração do templo, fala sobre uma pessoa que está indo onde tem o
templo, medindo o tempo, e este está olhando e chega a um lugar onde está a mesa
de sacrifícios e as adagas. Que através dos sacrifícios o templo irá se reerguer.
novamente a demanda.
Neste mesmo ano, 1997, alguns filhos do TUCTPB iniciam uma conversa, fora
realização dos trabalhos, o terreiro, que irá se concretizar dois anos depois, em
1999.
90
Matança.
229
Os trabalhos particulares realizados pelo TUCTPB nesse período, são poucos,
registrados fora do sítio, quero dizer, trabalhos que os médiuns tiveram que se
deslocar para outros locais. Dois destes trabalhos foram realizados na praia,
(litoral norte de São Paulo). O terceiro foi realizado em São Caetano do Sul/SP,
casa da D. Norma91.
91
A casa de D. Norma (mãe carnal da Mãe) sempre foi uma opção para a realização dos trabalhos
devido ao seu tamanho. Era uma casa antiga, que contava com uma ampla sala e uma varanda
grande que comportava todos os médiuns.
230
candomblé, utilizando “magias” pertinentes a esta prática religiosa, mas de
Mas um dos trabalhos, o realizado em São Caetano do Sul, fugiu a esta regra.
conhecida de um dos filhos do terreiro, ao contar seu caso foi convidada para
consulente como com o espírito que a obsidiava. Segundo seu relato, este
tempo.
92
Este é um assunto polêmico e controverso e um dos motivos para que as federações ou os
movimentos umbandistas defendam a homogeneização dos rituais e a identificação dos terreiros. A
crítica diz respeito a terreiros e chefes espirituais que não tem a experiência e prática necessárias
para o atendimento ao público e acabam por realizar magias equivocadamente. Dentro das religiões
afro-brasileiras é comum encontrarmos adeptos (filhos e pais/mães santo) que culpabilizam terreiros
por práticas contrárias às deles: o umbandista culpa o candomblecista e vice versa. Mas, mesmo
assim, ainda não há um consenso em como minimizar este conflito. Aliada a esta dificuldade, de
identificar o que é errado ou certo dentro da magia, temos também a necessidade do “indivíduo
moderno” de querer que seus problemas ou necessidades sejam resolvidas de imediato, o que leva
muitos adeptos a uma peregrinação à todos os terreiros (seja de umbanda ou candomblé) na
esperança da uma solução rápida. Do ponto de vista religioso esta atitude provocaria somente um
emaranhado de “magias” que reforçaria o problema ao invés de solucioná-lo.
231
Este espírito, segundo os registros das conversas, “tinha conhecimento de sua
condição, era consciente, sabia o que estava fazendo com ela e não aceitava
interferência e nem ajuda”. A “simbiose” entre os dois era tão grande que ela
deixava de fazer as coisas se ele não permitisse, pois tinha medo do que ele
Alguns trabalhos foram realizados para tentar conversar com aquele espírito e
que foi embora a moça disse que “ele tinha mandado outro no seu lugar, um
empregado”. Ela “viu, mas ficou quieta, com medo dele, pois todas as vezes
que tinha ido procurar ajuda, passava muito mal e tinha medo de desobedecê-
lo”. Ele, o obsessor93, dizia “que esperaria quanto tempo fosse necessário, mas
93
Segundo Allan Kardec, decodificador da doutrina espírita, a obsessão pode ser assim entendida:
“A obsessão é a ação persistente de um Espírito mau sobre uma pessoa. Apresenta características
muito diversas, desde a simples influência de ordem moral, sem sinais exteriores perceptíveis, até a
completa perturbação do organismo e das faculdades mentais" – (O Evangelho Segundo o
Espiritismo, capítulo 28:81).
"Trata-se do domínio que alguns Espíritos podem adquirir sobre certas pessoas. São sempre os
Espíritos inferiores que procuram dominar, pois os bons não exercem nenhum constrangimento. Os
maus, pelo contrário, agarram-se aos que conseguem prender. Se chegam a dominar alguém identifica-
se com o Espírito da vítima e a conduz como se faz com uma criança" – (O Livro dos Médiuns, capítulo
28:237).
232
que ela era dele”. Os registros apontam que mesmo depois de várias
A moça acabou se afastando e cortou o contato com o filho que a levou até o
próximos meses que possa nos dar uma pista do que aconteceu.
conhecer estas práticas, ou pelo menos a música, pois estas eram solicitadas
233
Esta circunstância acabou provocando um “reboliço” entre alguns filhos do
As Festas
234
A Festa para Cosme e Damião continua sendo a mais importante para o
folhas e flores.
A Mãe fazia a oferenda94, com moranga cozida, mel, milho e para beber vinho
oferenda era levada e arreada aos pés da árvore de Oxossi 95. Os(as) filhos(as)
ajudavam trazendo flores, frutas e comida que suas entidades gostavam que
94
Para fazer comida do orixá, existe todo um ritual que era respeitado pela Mãe. Quando cozinha-se
para o Orixá, o(a) filho(a) acende uma vela branca pedindo permissão para a feitura do prato; é
proibido conversar, como também, comer qualquer iguaria que esteja sendo preparada. A feitura
dos pratos (comida) oferendados aos Orixás a Mãe aprendeu no terreiro do Sr. Julio.
95
Na época em que freqüentaram o Terreiro do Sr. Julio e fizeram a camarinha no sítio, várias
árvores foram consagradas aos Orixás. Estas árvores existem até hoje no meio da mata.
235
Neste dia dava-se a preferência para a incorporação dos caboclos e caboclas,
Durante a gira o Caboclo Três Penas pedia para os(as) filhos(as) tanto da
colocados por ele dentro da moranga, que era fechada novamente e no dia
seguinte levavada aos pés da árvore de Oxossi, com o restante das coisas que
com jiló e couve, preparados com óleo de dendê. A bebida era a cerveja, como
podemos verificar neste registro feito por ela em abril de 1993, quando a festa
Trabalho de Ogum fiz a polenta, couve, jiló, couve e jiló feito com azeite de dendê,
cebola, alho. Filhos vão tomar banho com 3 garrafas de pinga. (Escrevente Iridia
Vaini)
236
Podemos observar novamente a riqueza de detalhes, como o nomes das
Preto Velho, Pai Benedito, incorporado pela Mãe. Neste registro podemos notar
pelo Pai, que não o Caboclo Três Penas. Neste dia ele recebe seu Ogum, o
médiuns que trouxessem para a gira bebida e comida que sua entidade
gostasse, para montar uma mesa coletiva para as entidades. A mesa era
arrumada com café, rapadura, bolo de fubá, pão e vinho tinto. No congá além
das flores, geralmente brancas, havia um vaso com alecrim e arruda, duas
237
plantas que as entidades desta linha gostam muito para realizar suas
“mirongas”.
Durante alguns anos seguidos não há registro de homenagens para esta linha,
pois a data coincidia com a data do ritual do banho. Um dos únicos registros
data de 1991, em São Caetano do Sul (os trabalhos durante alguns meses
tinham sido transferidos para São Paulo, pois a casa estava em reforma):
238
Cosme Damião, com exceção de 1991, que devido a uma demanda, não foi
permitida.
Suas paredes eram forradas, com pano, papel ou outro material dependendo
de como iria ser a decoração; o teto era coberto com bandeirinhas e enfeites
muitas flores.
geralmente a irmã carnal da Mãe – que faziam desde os enfeites do congá, das
paredes, como as sacolinhas, que durante alguns anos foram feitas de pano e
pessoas conhecidas.
239
Nesse dia todos traziam bolos, balas, doces, brigadeiros, sanduíches, guaraná
e mais uma vez a mesa coletiva era montada. Nunca houve a tradição que
distribuição externa.
As festas praticamente não são registradas, pois não havia tempo e pessoas
240
Cada uma das Crianças tinha suas peculiaridades, como a Mariazinha (criança
da Mãe) que só come pão com banana, que segundo ela é o que existia para
de uma das filhas) que come laranja, pois em sua época de menino morava em
uma fazenda de laranjas e tinha que roubá-las para matar a fome. Depois que
O Pai ficava incorporado com o Caboclo Três Penas durante toda a festa, para
241
Em outubro, outra ocasião importante para o terreiro acontece, que é o
festa de Cosme e Damião, para este momento. A gira era aberta normalmente
mas a Mãe insistia que os(as) filhos(as) fizessem este ritual como uma forma
Em 1996 este ritual foi um pouco diferente daquilo que os médiuns estavam
baterem cabeça para o Caboclo, pede para um dos filhos abrir a Bíblia e ler
uma passagem.
O Caboclo Três Penas deu a bíblia ara o Mané abrir onde queria e ler um trecho.
Fala sobre uma reunião (exortação) sobre a elevação espiritual; ai ele (caboclo) abriu
e pediu para o Mané ler um trecho (versículo) que ele mostrou; fala a mesma coisa,
agrupamento de pessoas que buscam uma elevação espiritual; quem falava: primeiro
O Caboclo Três Penas é que colocou a toalha de cabeça dos filhos no chão;
O Caboclo Três Penas chamou o Rubem, colocou-o em frente ao congá com a toalha
de cabeça no chão, mas ele em pé. Pediu para que firmasse em Oxalá e ver se via
alguma coisa, se não ver é para deixar vir a entidade que quiser. Ele recebeu o seu
Caboclo que riscou o ponto: o ponto é diferente do que ele havia riscado.
242
Depois foi a vez da Marisa, igual, colocou a toalha e pediu para firmar em Oxalá. Ela
O Caboclo Três Penas disse que os filhos não estão respeitando direito a toalha, que
O Caboclo faz o mesmo processo com todos os filhos e quando encerra o ritual
do Caboclo, dizendo que o que ele fez, “foi para que cada filho conheça o seu
ponto; orientação quanto aos cuidados que o médium deveria ter com sua
243
Esta não deve ter sido uma incorporação fácil, já que não estavam habituados
As Obrigações
Santa, e os(as) filhos(as) iam para o sítio somente para isso, pois neste dia não
modificando.
mata, que é organizado (limpo) alguns dias ou horas antes da entrega anual.
244
tinham sido confirmadas e autorizadas pelo Caboclo Três Penas ou pelo Exu
Veludo. O médium que não tinha ido à gira, estava autorizado a entregar a
fosse autorizado pelas entidades chefes, o médium poderia dar. Neste dia
(brincos, moedas) bem como velas pretas e/ou vermelhas. A utilização destes
dependendo do que era solicitado a entidade não tinha autorização para usar.
ano, em janeiro. Esta solicitação vem por parte do Exu Veludo que explica ser
alterar novamente.
1992, quando percebem que as demandas estão cada vez mais constantes.
obrigação.
245
Nos anos anteriores o banho não era
A preocupação com o tipo de ervas
obrigatório e quem não comparecia, colocadas no banho surgiu de algumas
situações inusitadas e engraçadas, mas
não sofria nenhuma sanção e preocupantes. Um dos casos
constantemente lembrado pela Mãe é o de
participava normalmente da gira. um senhor que levou como tarefa, fazer um
banho de defesa de “chapéu de couro”
Quando passa a ser obrigatório, cria- (erva), mas como desconhecia a existência
de tal erva e não foi esclarecido pelo
se uma atmosfera de insatisfação, cambono como proceder, este foi a uma
casa do norte comprou um chapéu de
pois ao mesmo tempo que exigiam couro, fez o banho e tomou (engoliu)! Em
outra situação uma pessoa foi instruída a
normas, quando estas eram fazer o banho de defesa e tomar após o seu
banho de asseio. Ao terminar, pegou um
colocadas, os médiuns queixavam-se. copo com o banho de ervas e tomou
(engoliu)! Com estas experiências a Mãe
decide retirar da lista, ervas consideradas
Geralmente o banho ocorria após a perigosas, tóxicas. Constantemente orienta
os cambonos para que estes expliquem
Semana Santa. A Mãe recolhia as detalhadamente às pessoas como devem
fazer o que as entidades pedem para não
ervas na Sexta-feira Santa e estas saírem com dúvidas, fazendo errado o que
foi solicitado.
ficavam em infusão por um período de
246
ervas, há todo um ritual obedecido rigorosamente pela Mãe, como acender
uma vela pedindo licença para a coleta e recolher as ervas antes do sol nascer
ou depois do sol se pôr. Neste período as ervas colhidas para o banho eram
tóxicas, como a Comigo Ninguém Pode, não eram utilizadas (ver quadro
acima).
esquerda do Pai e da Mãe vinham para dar o banho nos filhos. Primeiro às
não tocavam96.
96
Quando fazem esta obrigação na época em que estavam no terreiro do Sr. Julio, os atabaques
ficavam tocando a noite toda, da abertura da gira ao final dela. Os Ogãs não paravam de tocar para
deitar, cumpriam com sua obrigação no atabaque. Paravam somente para o banho e depois
retornavam a ele. Neste terreiro isso não acontece, mesmo porque as pessoas que tocavam o
atabaque não eram consideradas Ogãs de cabeça.
247
deles terminar, para levantarem97; uma das filhas da assistência, é que
controlava o horário.
pelos caboclos dos médiuns. Os caboclos vinham, riscavam o seu ponto e logo
registro, de 1998:
revolta);esquerda; egum (não sabe o que faz, suga o plasma, não consegue
Se o médium não conhece o corpo ele fica sugando o médium acaba ficando doente
Por que se dá o banho de pinga e ervas eles não voltam? Por causa dos banhos.
97
Depois que o Pai esteve doente (infarto) o Caboclo Três Penas tem permanecido incorporado
durante o tempo em que os médiuns ficam deitados. Quando ocorre do Pai deitar, permanece menos
tempo do que os demais.
248
Por que deitar? Ficar rezando e pedindo perdão a Deus; ficar conversando com Deus
e com o Anjo da Guarda; quase uma penitência, um sacrifício; retribuição do que nós
recebemos.
Criança pode tomar? Só o de ervas, o de pinga não; mas não é muito aconselhável
que tome.
As Aulas
como notamos no relato anterior e não havia dias específicos para elas.
que o Caboclo Três Penas ou outra entidade, mas geralmente a dos Pais,
gostava muito deste momentos pelos conflitos que surgiam. Mas algumas
o Caboclo diz para os médiuns que vão conversar e inicia a discussão com
249
O Caboclo Três Penas disse que como não tem trabalho vamos conversar, que ele
vai “cutucar”:
O que acha sobre a morte? O que nós achamos que acontece quando uma
pessoa morre, para onde ela vai? (g. meu) Quer que cada um responda o que
R... – lugar de evolução, lugar de cumprir o que prometeu, não aceita muito a morte,
a despedida.
P...- possível retorno, segunda etapa, não se prende não tem medo; quando chega a
hora vai...
L... – faz parte de cada um, passo para estágios; vem para cumprir uma
missão;adquire corpo, forma para aprender e pagar coisas, terminou o estágio vai
S... – não aceita a morte, apesar de saber que ela existe e que tem espírito.
S... – estágio lá, determinado momento vem para a terra para cumprir missão, prazo
M...- antes não aceitava, quando o pai morreu encarou diferente, depois que sonhou
Caboclo Três Penas disse que tem que aprender, que temos que encarar mais
O que ele quer falar é que quando morreu, acabou, apagou é para se desligar, não é
Vai “oló”, fica três dias grudados no corpo, o espírito, pois o elo ainda está ligado, o
períspirito ainda está conectado e quando acaba algum espírito de luz vem ajudar (...)
250
Nesta parte do registro podemos notar as respostas do filhos(as) para a
morte e o que acontece ao indivíduo que não acredita numa vida espiritual.
respeito dos temas abordados, mas por outro lado, demonstrava muitas vezes
discutido.
O Caboclo Três Penas também abre espaço para que os médiuns façam suas
próprias perguntas, insistindo para que suas dúvidas sejam expressadas para
dos presentes a respeito das vítimas do acidente com o avião da TAM que
Rezar, pois na parte espiritual já estava programado. As pessoas que foram juntas
tinham um motivo para estar lá, uma missão. Para o espírito não tem tempo; então
251
Outro assunto polêmico levantado nesta mesma aula refere-se ao Dia de
Finados e a morte:
R. para ele, (Caboclo) Três Penas não tem significado algum, mas em outros lugares,
sim, pois acham que esta tudo aberto, porque as pessoas ficam chamando os mortos.
Quando morre vai direto para o hospital ou fica aqui, e onde fica?
sobre a vida espiritual, é porque não entendeu ou aceitou sobre ela. Se a pessoa tem
A mesma questão sobre a morte foi respondida pelo Caboclo Três Penas na
é colocada para abrir os trabalhos , junto com o Pai (a Mãe ficava na parte de
trás do terreiro e ia auxiliando a filha) para aprender como abrir a gira. Pelo
252
6º Trabalho que a Leda abriu
Mãe “era uma maneira de fazê-la, não só aprender como abrir os trabalhos,
procedimentos da gira”.
Mas, este é o grande conflito dos(as) filhos(as), pelo menos de grande parte
passado por este aprendizado, este não foi suficiente, pois queria ter por
que fizessem valer suas regras e suas opiniões, impondo procedimentos aos
médiuns.
253
Na primeira fase do terreiro, em uma das reuniões registradas estas eram as
qualidades cobradas por alguns filhos, que diziam que para mudar (o terreiro),
também dos Pais, que preferem uma atitude mais flexível, emancipatória. Se
Nos momentos de aula havia discussões entre os filhos, por terem opiniões
nosso cotidiano. Por este motivo, a Mãe vai aos poucos cortando estes
Penas, achando que ele era igual a nós, matéria.” Ao final deste período os
254
O Caboclo Três Penas tem uma noção interessante a respeito da
tinham dúvidas. Mas, esta nunca foi à postura dos médiuns. De forma geral
do conhecimento e da realidade.
255
As Reuniões
pessoas.
discutindo regras que melhorassem as giras. Embora não haja tantas reuniões
256
ocorreu na presença dos Caboclos Três Penas e Pena Azul, após o
O Caboclo Pena Azul pediu para o R... começar. Ele começou a falar sobre a
Para o L...:
Nos trabalhos:
Uso do avental
Barulho demais
individuais, como por exemplo, o que podem comer ou beber antes da gira, uso
257
do avental e material individual, do que aspectos coletivos, como consultas
menos demoradas (aspecto este que irá afetar diretamente o Caboclo Três
Penas, que não aceita este tipo de regra). Os tópicos descritos eram
Caboclo Três Penas, numa tentativa de fazer com que este colocasse regras
rígidas que todos deveriam seguir. É certo que nem todos os médiuns
atingindo a todos.
Alem destas regras, outras estão registradas, como “não colocar a mesa antes
dos trabalhos só depois de acabar”, “ter firmeza para não deixar outras
entidades entrar” e “quem deve falar o que é certo ou errado é o Caboclo Três
Penas”.
livre arbítrio do médium. Estas regras eram constantemente cobradas por dois
258
A dificuldade que os adeptos tinham de enxergar “a varanda” como um local
sagrado. A varanda, como sendo este local, portanto o espaço que deveria ser
98
Após os trabalhos, já de madrugada, era servido novo lanche para todos.
259
reverenciado, era violado a partir do momento que os adeptos não
registrada “quem tem firmeza, não deixar outras entidades entrar”, era
interferindo na gira.
Quanto ao item dos objetos, pelo registro podemos inferir que nem todos
pegavam dos Pais que mantinham suas “sacolinhas” sempre com material
extra ou então contavam com as coisas da casa. Para evitar este tipo de
e que ficava no sítio (os médiuns não precisavam carregar as coisas). Esta foi
uma solução em grande parte bem sucedida, a não ser pelo recolhimento da
taxa mensal para a compra do que era necessário, pois nem todos os médiuns
contribuíam.
260
seria diferente”. Os filhos que cobravam uma atitude compromissada dos
principalmente, era de que “os médiuns deveriam refletir sobre sua própria
postura, sobre sua forma de ver e agir nos trabalhos e que se isso acontecesse
antes de iniciar os trabalhos um dos filhos tem a permissão para falar com os
assunto, mas em setembro deste mesmo ano, após a gira ter terminado o
Caboclo Três Penas abre espaço para uma de suas aulas e o tema principal é
o novo terreiro.
Sobre os trabalhos:
O Caboclo Três Penas disse que quando o terreiro ficar pronto, o ritual irá mudar, vai
ficar tudo diferente. Lá terá porteira (entrada e saída); não poderá entrar de sapatos,
fumar.
(...)
Porteira: quem ficar na porteira não poderá dar consulta; se um filho entrar e estiver
ruim quem (es) tiver na porteira tem que tomar conta, não pode deixar entrar filho ruim
no terreiro;
261
No caderno de registro, as anotações dizem respeito aos problemas que vêem
que “os de branco” acabam tendo pela demora em terminar a gira (para estes
médiuns ficar na gira, sem estar incorporado é como “não fazer nada”, “não
dos médiuns entre o que gostariam de fazer (ideal) e o que fazem (real), isto é,
exigências.
Resposta do Três Penas: hoje é diferente. Se for fazer como deve ser feito, os filhos
não agüentam, a vida hoje é diferente e os filhos não teriam condições de seguir.
Uma das reivindicações, quase recorrente no final deste período, dizia respeito
ao horário dos trabalhos, que segundo os médiuns “não tinha sentido demorar
os Caboclos a questão do tempo era a que menos importava, pois para eles
“não existe tempo”; na parte espiritual “não dá para impor, a matéria não „faz
mandador‟”.
262
Os(as) filhos(as) sugeriram que se determinasse um tempo x para as
“radical não é bom” e cita como exemplo um terreiro que tinham horários
rígidos de início e término dos trabalhos, que uma das filhas freqüentou durante
mais próximo aos Pais, o Caboclo tenta apaziguar a questão e faz nova
263
As respostas foram diversificadas, como aprendizagem, evoluir o espírito,
que sim, mas que para ele faltava uma coisa pequinininha, que era “ajudar ao
Para ele, Caboclo, a questão da ajuda ao próximo era o item principal com o
próximo”.
Com esta fala o Caboclo põe um fim ao questionamento dos médiuns, pelo
que sugere aumentar o número de trabalhos por mês, quer cercear o tempo de
Como vimos, embora a varanda tenha sido eleita como um espaço para
um espaço religioso, o “ponto fixo” portanto não foi construído. Esta maneira de
264
lidar com o espaço originou uma desorientação, que será reorganizada com a
construção do terreiro.
265
O SAGRADO GANHA ESPAÇO
levantar uma construção simples, onde as paredes seriam cobertas com lona,
como era feito na varanda. Não queriam algo suntuoso, mas um local modesto,
para delimitar o lugar. Como podemos observar na foto, o terreno tinha uma
266
descobrem que a empreitada era demais para todos e resolvem contratar
1997. Numa gira o Caboclo Três Penas pede a um dos filhos, como de
costume, para ler uma passagem da Bíblia, indicada por ele e depois dizer o
que leu. Segundo o registro do caderno, a passagem lida pelo médium, falava
Caboclo Três Penas pediu para o M... ler a bíblia, caiu em “Amos” (?) e ele falou, o
O M... disse que já leu essa passagem outro dia, fala em doença, mas é a mesma
passagem falando em sacrifícios, o caboclo disse que estão cobrando e terá que
fazer. (...)
99
Quando fizeram a entrega deram com o nome daqui, do terreiro e que estava
errado. Onde estava, onde foi feito é onde vai ser o terreiro.
99
O Caboclo estava se referindo a demanda provocado pelo antigo Pai de Santo do candomblé que
os visitaram, no início da década de 90 e que disputou espiritualmente o terreiro com o Caboclo,
como comentado em passagens anteriores.
267
entrega para conter a demanda e a construção do terreiro no local, como um
sinal que põe fim à tensão provocada pela ansiedade e pela desorientação, em
demanda: pode-se dizer que foi uma demonstração de poder, um enterro real e
eleição do espaço.
seguida levanta-se o altar e ao redor dele constrói-se a aldeia. Em todos estes casos
foi o animal que revelou a sacralidade do lugar, o que significa que os homens não são
livres de escolher o terreno sagrado, que os homens não fazem mais do que procurá-lo
268
definidos: assistência, vestiário, banheiro e nos fundos do terreiro, o quarto
para os Exus100.
novo espaço. O terreiro (Isto é, os rituais) passa a funcionar a partir dessa data,
definitivamente.
100
O espaço neste terreiro destinado ao “povo da esquerda”, como no terreiro do Sr. Julio e nos
demais períodos, continua sendo na parte de trás do terreiro e configura-se num espaço comum a
todos. Este espaço é para que todos os filhos(as) do terreiro possam, antes de iniciar os trabalhos,
saldar suas entidades, colocando velas, copos com bebidas e até mesmo deixando “arreado”
trabalhos realizados. A firmeza das entidades que comandam a casa tem um espaço reservado na
frente do terreiro que é cuidado pelos Pais e não é de uso comum. Mesmo que este espaço exista
na parte dos fundos do terreiro, numa ressignificação do espaço comumente reservado a esta linha
(é comum que seja na frente), seu fundamento não é deixado de lado, que é o respeito e o
reconhecimento dos exus e pombas gira como guardiões do médium e do ritual, ou seja, da gira.
269
Foram realizados outros bazares e o dinheiro arrecadado foi utilizado para o
pintura e colocação da fiação foram feitas por alguns filhos. Até a colocação do
piso as giras aconteciam com um piso improvisado: uma lona esticada para
O terreiro foi funcionando desta forma até que uma das filhas indica um colega
para fazer o chão de terra batida como o Pai queria, mas como na mesma
lo.
270
contar com uma divisão101: uma “cerquinha” que demarca a entrada e a saída
dois espaços.
Com esta delimitação, sem perceber, os médiuns dão início a uma nova
assimilar.
101
Inicialmente havia sido construída uma mureta separando os dois espaços e do lado interno, voltado
para o terreiro (conga), havia uma prateleira, para guardar as coisas utilizadas na gira, mas diante de
ponderações da Mãe (que julgava que este arranjo poderia ser perigoso para os médiuns), dicidiu-se
retirá-la. Ela temia que na hora do desenvolvimento ou de um transporte o médium pudesse cair em sua
direção e se machucar seriamente. Para confirmar sua argumentação, expôs um caso que presenciou,
quando freqüentavam o terreiro do Caboclo Arranca Toco, no Brás, em que a médium foi jogada pela
entidade na parede e esta se machucou seriamente, pois bateu a cabeça em um prego. Assim, a mureta,
como qualquer outro objeto que pudesse provocar qualquer acidente na hora dos trabalhos (como
lixeiras de madeira, garrafas, cabides muito baixos etc.) foram retirados.
271
Algumas considerações sobre o grupo neste período
naturalidade.
102
A denominação de GP1 (grupo principal) e GP2 (grupo paralelo) será apenas para efeito de
identificação dos grupos, uma vez que não utilizarei o nome das pessoas envolvidas nos conflitos
mencionados.
272
tentava de todos os modos fazer prevalecer suas idéias e interferir na forma
diretamente para a Mãe, que muitas vezes se via num “beco sem saída”, pois
dos médiuns (M1) do terreiro. Descrevo esta nova situação porque ela é
importante para revelar alguns aspectos que vamos analisar. Este filho sempre
273
teve uma participação inconstante nos trabalhos, ora vinha assiduamente ora
“sendo da família”.
demais os Pais sempre saiam em sua defesa, pois diziam que “uma de suas
Além do mais estava sempre pronto a ajudar e não recusava nenhuma tarefa,
dele uma figura singular e respeitada pelos Pais, que o acolhiam (e acolhem!)
É interessante notar que ciúme e disputa pela atenção dos Pais do Terreiro não
luta surda pelo privilégio do reconhecimento dos chefes de uma Casa e dos
274
Candomblé e responsáveis por muitas demandas e divisões levando à
por diante. Por isso, dissemos acima do “beco sem saída” enfrentado pela Mãe
(também poderíamos dizer “saia justa”) ao tratar dos problemas da Casa que
Na mesma época, mais dois indivíduos farão parte do grupo. Um deles trazido
por uma das filhas para fazer o piso do terreiro (M2). Vem num dia de gira para
275
freqüentava assiduamente nenhuma, embora percorresse vários terreiros em
com terreiro aberto numa cidade próxima de São Paulo. Freqüentou também
cursos sobre a Umbanda com Ruben Saraceni103, como Magia das Velas e
Teologia Umbandista.
de sua autoridade, mas na sua maneira peculiar, tenta mostrar-lhe, entre outras
Três Penas pedia-lhe a opinião, querendo saber como faria tal coisa ou qual
sua opinião sobre os trabalhos que estavam sendo realizados. Esta é a atitude
103
Umbandista e escritor umbandista que adquiriu notoriedade no meio religioso por psicografar
livros – romances e técnicos – relacionados a Umbanda; além dos livros publicados o autor ministra
cursos, formando magos iniciáticos, que segundo ele não necessariamente tem ligações com a
Umbanda. Para ele, qualquer pessoa pode ser um mago sem ser umbandista.
276
esta atitude que nos estimulou a tomar o viés da educação nesta Tese. Como
veremos esta atitude do Caboclo aliada a uma postura pouco humilde de M2,
O outro rapaz (M3) chega ao final de 2003, também ele trazido por um dos
filhos (M1) que o conhece por intermédio de sua filha (afilhada dos Pais) e o
trabalhar provocam certo desconforto no grupo, pois diferia daquela que os(as)
terreiro de Candomblé.
277
acontecimentos. Dentre estes, a visita em abril de 2003, na Festa de Ogum de
uma Mãe de Santo do Candomblé (amiga de uma das filhas) recebida pelo
Caboclo Três Penas com as honrarias devidas a uma chefe espiritual. Esta
Mãe de Santo veio acompanhada de sua irmã, que era sua ekedi e seu
cunhado que era Ogã. O Caboclo Três Penas cede o atabaque para ele, que
canta para a incorporação do Orixá Ogum. O Caboclo pede que todos fiquem
sua ekedi.
mesmos.
No entanto o que está por traz desta idéia é mais do que a inquietação de virar
278
De fato, com as novas regras e (especialmente) o terreiro aberto
principalmente no ritual. É neste período que ocorre uma ruptura entre o velho
ruptura – quando há a transferência para o novo espaço, mas ainda com uma
ruptura – quando a configuração do ritual toma outro formato que é aquele que
Primeiro momento
As pessoas são chamadas de acordo com o trabalho a ser realizado e/ou pela
ordem de chegada.
279
A periodicidade dos trabalhos continua quinzenal, por isso não há uma
Mudar para o novo espaço não significou num primeiro momento mudar a
trabalhar no novo espaço estas regras vão se tornando mais consistentes, mais
280
Nesse Terreiro, o grupo anteriormente mencionado (GP2) inicia um processo
A assistência foi embora e o Caboclo Três Penas pegou os filhos para conversar
O Caboclo Três Penas citou uma passagem da bíblia onde o que não se aprende
“c/amor vai pela dor” (não sei se é isto) que os médiuns tem que aprender de um jeito
ou de outro. Que os filhos estão errados (encostados na parede). O M... disse que
está esperando o Caboclo Três Penas colocar ordem no terreiro. Ele disse que está
colocando ordem. Caboclo falou em ordem: unha pintada não entrar; não entrar de
sapato...
Este processo de enfrentamento dos Pais do terreiro fere uma das principais
281
natureza destes conflitos, onde aflora a demanda e por último, por ser através
A demanda relatada a seguir, está relacionada a uma das filhas e sua família.
A demanda contra ela visava que esta filha perdesse todos os bens adquiridos
junto ao ex-companheiro, como também afetar sua saúde, pois assim não teria
como lutar por seus direitos. Pelos registros esta demanda foi solicitada dentro
intensos e vistos com maior preocupação os que ocorriam em seu sítio, pois os
processo de defesa, realizando trabalhos para identificar o que tinha sido feito,
104
Esta demanda está sendo citada, mas não será descrita na íntegra e nem os motivos detalhados,
como está registrado no caderno para preservar a identidade das pessoas envolvidas.
282
Três Penas pediu para a S... que cantasse 3 pontos de Pomba e 3 pontos de Exú de
Candomblé.
O Caboclo Três Penas comentou que o trabalho que está sendo feito é pesado, que
somadas, algum tempo depois, com a presença de novos filhos que chegam
283
Em fevereiro de 2003105 o novo espaço do terreiro foi finalmente inaugurado, e
ano a assistência passa a ser chamada para os passes e consultas por ordem
Neste período o terreiro contava com alguns médiuns que estavam liberados
105
É em 2003 que o cisma ganha força, se intensifica. Com o terreiro pronto, novos filhos (inclusive
com conhecimentos do candomblé) e as normas sendo implantadas e cobradas, bem como o
Estatuto e o Regimento Interno, o conflito se explicita, culminando com a ruptura do grupo no final
ano seguinte, 2004.
284
O Caboclo Três Penas deu ordem para que o Caboclo Gira
não estavam autorizados a dar consultas, então foi proposto como forma de
com uma determinada entidade, mas não tinham permissão para fazê-lo, outro
demais”.
285
Sendo assim, o desenvolvimento dos médiuns a partir desta data, era realizado
Disse que o (...) não “consegue” incorporar ou ele “acaba dando baile” porque o cavalo
acaba sendo um funil e ele deixa se levar por todas as vibrações que encosta. Como
ele não conhece a vibração das entidades dele, todas as entidades que encostam ele
aceita a vibração. Então o que acontece é que todos vão entrando. Ele não assimila a
“vibração” do guia. Veio um que disse que “quer provar”. Foi até o congá e bateu a
cabeça e voltou.”
na sua incorporação. Pede aos outros dois ogãs que toquem bem rápido, até
que o filho recebe uma entidade e o Caboclo Três Penas vai “doutriná-la”,
(...) veio um sofredor, pois o Caboclo Três Penas acendeu uma vela e ficou
conversando com ele;perguntando porque judiava dele; ele respondeu que estava
286
perdido, ai o Caboclo Três Penas disseque não estava mais e que ele (T. Penas)
levava ele embora. Pediu a toalha de cabeça do (...) e cobriu a cabeça dele e pediu
que o médium aprende106 a utilizar seu corpo como meio (transer) para o
contato com os espíritos. Para o indivíduo que atua107 como médium esta
ou a entidade que o está possuindo”. Está dúvida, que martiriza quase todos os
106
Este é um processo de aprendizagem constante dentro desse terreiro. Quando está em início de
desenvolvimento, ou seja, ainda não domina seu corpo e não reconhece aquilo que é chamado de
energias vibratórias pertinentes a cada entidade; o médium tende a incorporá-las de modo aleatório, sem
controle, já que o médium fica suscetível a estas incorporações e que são aceitas como uma forma de
aprendizagem, como vimos no relato transcrito de 05 de maio de 2000. Quando o médium é requisitado
para o transporte, esta ação também não deixa de ser um modo de aprendizagem, um exercício em que o
médium vai reconhecendo nas diferentes situações e “personalidades” das entidades incorporadas,
àquelas que são peculiares aos seus guias.
107
Verbo utilizado com o sentido de exercer ação ou atividade; agir, obrar, operar e não de uma
atuação teatral, representação.
287
médiuns em desenvolvimento deve-se ao fato dele ou dela estarem consciente
da sua incorporação108.
para isso.
108
Para os médiuns na Umbanda esta questão é extremamente importante e delicada já que envolve
uma questão ética. Embora o transer ou médium seja um meio para o contato com os espíritos ele
não será totalmente inconsciente durante um longo período desta sua aprendizagem (embora isto
possa variar de indivíduo para indivíduo), adquirindo a inconsciência com o tempo. Os médiuns
podem ser classificados, portanto em duas categorias: conscientes e inconscientes. Todos gostariam
de fazer parte da primeira categoria, mas esta leva bons anos para ser adquirida. E este é o drama da
grande maioria, pois constantemente estão em dúvida a respeito de suas ações no terreiro. Por isso
a aprendizagem passa por etapas que o médium/entidade vai vencendo ao longo do processo, como
por exemplo, dar passes e depois de um tempo, consulta. A questão ética encontra-se justamente
neste processo, pois se o médium é consciente e suas entidades podem aplicar o passe ou dar
consultas deve redobrar sua atenção às suas ações e principalmente ao que fala, para não “adiantar”
as intuições que serão dadas por suas entidades.
288
Em fevereiro de 2003 como já dissemos, o novo terreiro é definitivamente
inaugurado. Este ano é bem intenso para todos os(as) filhos(as) no terreiro. As
pessoais no grupo. Uma “reunião” que acontece após uma gira, com a
produziu um mal estar entre ele e os médiuns mais velhos da casa 110. O GP2
109
Estas conversas serão discutidas no item Reuniões.
110
Muitos desses acontecimentos extrapolaram o ambiente do terreiro, atingindo a vida pessoal de
alguns médiuns e a vida do terreiro.
289
Durante as giras públicas o Caboclo Três Penas se dirige constantemente ao
para eleição.
Iridia falou sobre a organização que será feita no terreiro para organizar melhor.
Que o cargo de Presidente é do Flavio e de Vice da Iridia e que o cargo não está a
disposição e que os outros cargos serão colocados por todos, que será eleição.
111
Tanto ele como sua filha adolescente (na época) diziam “enxergar”, isto é, como videntes tinham
a possibilidade de “saber” o que acontecia na parte espiritual e este era um dos motivos pelo qual o
Caboclo Três Penas sempre pedia sua opinião ou então discutia com ele sobre os trabalhos; mas
pelos registros que temos das conversas, na verdade o Caboclo Três Penas utilizava estes momentos
muito mais para “doutriná-lo” do que compartilhar o modo de realizar a magia, pois segundo a visão
do Caboclo “M2 tinha uma visão dura e pragmática da vida espiritual”, que na visão da entidade
“mais atrapalhava do que ajudava o próprio M2 e sua família”. Parece um fino jogo de estratégia no
qual o chefe do terreiro como que “dá corda para o dissidente se enforcar”.
290
É a partir desta data que o conflito vai se intensificando. Conversas fora do
jogo de poder no qual um dos envolvidos procura cooptar adeptos que fazem
parte do terreiro. É interessante também que ele chame “aulas” aos encontros
mostra como terreiros são difíceis de administrar dado que envolvem questões
112
Esta situação era provocada por M2 que reunia em sua casa alguns médiuns, entre eles M1 e a
médium que o levou, para discutirem os acontecimentos dos trabalhos. Ele convidava os médiuns e
a partir do que tinham visto e ouvido nas giras, a discussão acontecia. Estas “aulas” como chamava,
tinha como objetivo entender o que acontecia nos trabalhos. A explicação era dada por ele com base
nos conhecimentos que tinha adquirido em outras casas e cursos como já mencionado. Este
“estudo” provocou entre os médiuns novos conflitos, pois um grupo chegava com informações
diferentes que conflitavam com as que eram dadas no terreiro, além de terminarem muitas vezes
em “fofocas” sobre pessoas que não estavam na reunião. Estes informações foram fornecidas na
época por duas filhas que acompanharam estes eventos durante alguns encontros.
291
entidade da Mãe, da linha de Ogum coloca quatro pessoas na frente do congá,
três filhos (M1, M2, M3) e o Pai, todos envolvidos nos conflitos entre os
cabeça para eles com a ordem de que aquele que não o fizesse poderia ir
embora.
Antes de começar qualquer coisa veio a entidade que veio da outra vez; colocou os
filhos M..., Flavio, A... e C... na frente e falou para os filhos baterem cabeça para eles.
Que não era para a entidade, mas sim para os cavalos e que ele não queria mais
falatório no terreiro, que se isso continuar que ele fecha o terreiro; que eles são iguais
a todos que não existe ninguém diferente; que o filho que não bater a cabeça pode
Que ele não está brincando e quem não acredita nele ele vai mostrar. Que no
próximo trabalho é para fazer a mesma coisa com os filhos que faltaram e o M... ficou
oferenda que se fazia no início dos trabalhos para a linha de esquerda) bem
dos médiuns (M1) envolvido na situação descrita chama um dos filhos, que
diz que falava em nome dos Caboclos Três Penas e Penas Azul, mandando se
292
afastar do terreiro. Esta situação foi levada até o Caboclo Três Penas que
Os Caboclo Três Penas e Caboclo Pena Azul ouvem a outra entidade e lhe
dizem que “estava errado e que não tinha permissão para falar em nome deles,
como mais ninguém ali e não davam esta permissão para ninguém; quando
algo, como por exemplo, o que tinha sido dito, eles o fariam pessoalmente”.
terreiro. Estes acontecimentos deixam todos muito abalados. Mas ainda não
havia terminado.
após uma discussão com uma das filhas do terreiro, pelo mesmo motivo que os
sido a descoberta de que seu poder era menor do que imaginava dentro do
293
personagem declara na presença dos médiuns, ser possuidor de um “título de
Pai de Santo” (conquistado na Bahia por volta da década de 80) e que “não é
desaparece novamente; M2 por sua vez, deixa de freqüentar dizendo que “não
responsabilidade”.
Um dos médiuns que fazia parte GP2, era médium de consulta e muitas vezes
faltar, comparecendo uma vez por mês ou menos aos trabalhos. Esta situação
chama, ou melhor, chama sua entidade – um Caboclo – e coloca para ele sua
na “mente do cavalo a conversa que estavam tendo para que ele decidisse sua
freqüência nos trabalhos, pois estava sendo cobrado espiritualmente por isso,
em questão acaba optando por não mais freqüentar o terreiro, levando com ele
Ao final de 2004 por volta de 15 médiuns deixam o terreiro, iniciando uma nova
fase na casa.
294
Segundo Momento
determinação.
O sistema de fichas foi substituído por uma planilha com o nome dos médiuns
e suas entidades, controlada por uma das filhas (irmã carnal da Mãe e que os
trabalhos.
algumas modificações:
a) O ritual dos(as) filhos(as) de “bater cabeça” que antes era realizado durante
a abertura da gira, passou a ser feito assim que os médiuns entram no terreiro,
295
antes do início da gira e sem o toque dos atabaques. Após este ritual o médium
segundo os Pais tem dois propósitos: primeiro para que os(as) filhos(as) em
terreiros, portanto daria uma firmeza a mais para o ritual, com a incorporação
de todos os médiuns.
para o trabalho com esta linha, exus e pombas giras são incorporados em
após a gira de Caboclo, a linha virou para a esquerda. Neste dia, as entidades
trabalho especial para a mãe de um dos médiuns (M3) do terreiro, que estava
296
d) O número de atendimentos para cura e operações cresceu, devido ao fato
nesta linha. Isto significou um acréscimo de pessoas que buscam o terreiro por
acontecer entre 21h e 22h, mas devido ao número de operações, bem como ao
113
Em média a operação leva de 30 a 40 minutos para ser realizada.
297
d) O Estatuto e o Regimento Interno 114 passam a vigorar de fato e alteram o
giras, pois estabelecem horários para as tarefas do terreiro como: início às 20h,
(ninguém sai sem ser atendido); marcação de consulta até às 21:30h, sendo
que após este horário é permitido que o adepto entre para tomar um passe,
mas sem escolha de entidade. Com os horários agora bem demarcados, com a
os Pais (e com os seus Caboclos), e são mais intensas e polêmicas no que diz
Tanto o Pai (como o seu Caboclo) e o médium que realiza as operações, são
supervisiona a gira e neste caso cuidava para que fossem cumpridas, como por
114
Esta discussão será retomada no item referente Às Reuniões. Por ora, citarei apenas as mudanças
implantadas com o Estatuto e o Regimento que imprimem as giras novo formato.
298
exemplo, terem maior agilidade nas conversas, provocando alguns atritos, pois
Embora o ritual tenha uma constância, não são iguais. Nas giras ocorrem
tempo do sagrado pode ser vista como uma forma de entendê-lo, pois
construir sua realidade de forma ideal e muitas vezes fechada, que considero
como sendo “um mundo de certezas”, onde acredita ser possível ordenar e
controlar existindo pouco espaço para o imprevisto. Mas, este mundo que é
299
como se estivesse fora de lugar. Quando os médiuns tentam organizar a gira
regido por princípios que não dominam; quando essa ordem é alterada, a
a lidar com o novo espaço (do sagrado) e com o tempo (do sagrado) de forma
juntos”, com regras confusas, não existe mais e que o tempo humano, do
nesta data, os Pais e alguns médiuns foram para Tupã (cidade do interior do
dos Caboclos e depois dos Exus, conforme as anotações, que fizeram uma
300
limpeza (espiritual) na casa. Encerrados os trabalhos houve o lanche coletivo e
confusão quando saiam, exigindo dos(as) filhos(as) uma postura ainda mais
As Festas
visibilidade maior. Como o formato das giras em dias de festa não se modificou
Penas e a homenagem aos Exus e Pombas Giras que agora é realizada em dia
que a partir de 2001 não acontecem mais na praia e são suspensas em virtude
ocorrência cada vez mais comum no litoral paulista. Como o Pai e a Mãe
301
evitando as praias lotadas, optaram (numa decisão coletiva) por suspender os
302
Ao final dos trabalhos, que não tinham hora para terminar, paravam em algum
as suas datas oficiais. O terreiro era preparado com enfeites no congá, flores,
acesas sete velas na cor do Orixá homenageado: para Oxossi a cor verde e
no terreiro.
303
Nos dias de festa, a Mãe prepara a mesa com as oferendas (comida) do Orixá,
Orixá.
A festa que recebe maior atenção por parte do Terreiro, especialmente da Mãe,
preparativos têm início de três a quatro meses antes e tudo é comprado com o
Todo ano fazem uma decoração diferente, desde os enfeites das paredes às
304
sacolinhas são feitas pela Mãe e sua irmã, e quando se aproxima o período da
é maior que o normal, pois muitas vêm somente neste dia para participar do
evento.
305
ano, aquele em que a demanda contra o terreiro estava no auge e as entidades
Esta festa aparentemente segue o mesmo fluxo das giras normais e acontece
realizar a festa durante o dia ou em dias diferentes, como por exemplo, aos
Antes dos ogãs chamarem a linha das crianças, cantam para o Caboclo Três
ordem a ser seguida, solicitando que se inicie ou não a festa com a chamada
das Crianças.
306
Com a implantação do Regimento e da ordem de chamada para atendimento
das pessoas, a assistência é prevenida que neste dia isso pode não ocorrer,
era realizada quando o adepto entrava para conversar e tomar passe, mas em
307
Fotografia 27 Homenagem ao Caboclo Três Penas
Pai (a frente) incorporado pelo Caboclo
Recebe homenagem dos filhos(as) - 2003
Imagem Solange Vaini
As Obrigações
As entregas para a linha de esquerda acontecem duas vezes por ano: uma
Semana Santa. A solicitação da entrega no início do ano, foi gerada por uma
demanda e acabou por ser incorporada no ritual. Nos últimos dois anos, o
que argumentou com o Caboclo que muitas vezes o médium não tinha
308
espiritualidade não interfere, a mesa tem sido oferecida, como obrigação,
o Exu Veludo. Não havendo problemas com a relação dos itens solicitados, o
médium entregava da forma que havia sido pedido, podendo ser vetada, como
a do Exu incorporado por M1, (médium envolvido no conflito) que é vetada, por
Capa
Preparar o piau – cortar em cima do pescoço, de uma vez deixar toda menga
correr na quartinha.
(registro do cambono que foi verificar com o Exu Veludo sobre a entrega) “o Veludo
não deixou matar o piau, é para ele soltar o piau no mato, se quiser...”
sobre a proibição, já que esta é uma reação normal nesta linha, quando as
309
entidades são “proibidas” de fazer algo. O Caderno de Registro também não
oferecido a exu e pomba gira), esta proibição afeta o que é considerado nesta
adquiridos no varejo).
115
Esta proibição veio de uma entidade da linha de Ogum, incorporada pela Mãe, na gira em que os
médiuns do terreiro bateram cabeça para os filhos envolvidos nos conflitos (M1, M2, M3 e o Pai).
310
O Banho de Abô acontece no segundo ou terceiro trabalho do ano. O preparo é
sítio antes do sol nascer ou depois que este se punha. Em 2000 recolheu 51
a obrigação era pequeno, mas suficiente para gerar insatisfação naqueles que
viam esta atitude como um desrespeito a Casa e aos Caboclos. Assim, para
como proposta, esta “obrigação” ser opcional; a fala de uma das médiuns
“quem não toma o banho, não esta prejudicando os trabalhos mas a si mesmo,
311
“convencer” o Caboclo, que novamente acata a decisão do grupo e durante os
As Aulas e Reuniões
presença de todos.
principalmente porque abria este espaço, como uma forma de saber das
dúvidas e das concepções sobre a vida espiritual que os médiuns tinham. Para
a Mãe esta prática ainda era vista com reserva, pois relembrava os momentos
312
espaço, as aulas/reuniões também aconteciam para apaziguar os ânimos e
de maio de 2000.
Caboclo Pena Azul, que dizia “que estava ruim, que estavam tentando entrar
podemos notar (pela leitura) que o Caboclo se dirigiu aos médiuns muito bravo,
paredes, hábito este que reproduziam no novo espaço. É bom lembrar que o
terreiro ficou definitivamente pronto somente em 2003, e que até este período
Assim, quando o Caboclo Três Penas se dirigiu aos médiuns, foi para lhes
O Caboclo Três Penas antes disso dizia que não entendia porque os médiuns
estavam todos sentados; porque seus caboclos não estavam no terreiro (?); porque
eles foram embora (?), porque os médiuns não agüentavam ficar incorporados?
313
Não dá para ficar assim. Quando o terreiro estiver pronto vai mudar muita coisa.
116
Que ele ia chamar o “papai” dele e ai ele queria ver, que iria colocar todos
porteira ficou aberta, sozinha. O Caboclo Pena Azul falou em trocar os médiuns da
porteira.
Nesse terreiro não há um dia específico para “ensinar” os(as) filhos(as), como
Caboclo interrompeu por alguns momentos a gira, para explicar aos médiuns
116
A entidade a que se refere 0 Caboclo era o Pai do Caboclo Três Penas que tinha o mesmo nome
que o seu; era considerada uma entidade (Caboclo) muito brava, autoritária, que não aceitava meio
termo. Este Caboclo era incorporado pelo Pai no começo de sua jornada como umbandista. Depois
que o atual Caboclo Três Penas passou a trabalhar com o médium (Pai) constantemente, esta
entidade raras vezes incorporava. O motivo do Caboclo Três Penas dizer que chamaria seu pai para
“colocar ordem, no terreiro” é que Ele não aceitava meio termo ou negociações e não “passava a
mão na cabeça de ninguém”, diferente do Caboclo (atual) que estava sempre negociando,
desculpando e acolhendo aqueles que de alguma maneira “feriam” as pessoas do terreiro e os
próprios Caboclos. Geralmente quando era necessário chamar a atenção ou ser mais duro com
algum filho(a), as entidades da Mãe, principalmente da esquerda, eram chamadas, pois como o Exu
Lalu costumava dizer “não gosta de mandar recado”. A partir da concepção espiritual a “bronca”
foi pertinente, afinal no início do ritual tinha avisado que alguma coisa estava acontecendo ou ia
acontecer e deste modo os médiuns deveriam estar atentos à gira.
314
os trabalhos que estavam sendo realizados para uma das filhas do terreiro
chamados para o centro do terreiro, dando início a uma gira específica para
ela. Os médiuns são trocados de lugar, numa ordem estabelecida pelo Caboclo
(...) que o trabalho que está sendo feito é pesado, que tem mais de um terreiro
bagunçados, pois é somente na bagunça que ele pode pegar. (...) quando foi feito
trabalho no sítio dela, foi feito um trato, quase um acordo. (Agora) Ele tem que
estabelecidos para “dar aulas”, como os médiuns cobravam, não ficavam sem
315
principalmente nos de “nação” 117, pois nesta prática nada é realizado na frente
Mãe, então, pede para chamar o Caboclo Três Penas e “ele resolveria o que
deixando para o Caboclo a decisão sobre o que deveriam fazer. Esta postura
117
Existem inúmeros trabalhos e pesquisas realizadas sobre a prática do candomblé. Para maiores
detalhes, consultar entre outros, os trabalhos das antropólogas Josildeth Consorte, Terezinha
Bernardo, ambas da PUC/SP, bem como pesquisadores da USP que também possuem várias
pesquisas publicadas.
316
mudança, isto é, que o terreiro “já não era a mesma coisa” (comparado com os
trabalhos na varanda).
espaço, iniciavam a gira com a cortina fechada ao público, que era aberta
fala dos médiuns, que afirmavam que “as pessoas se sentiam excluídas”, pois
O Caboclo disse que se quiser a cortina aberta, pode deixar, não tem problema, mas
que o problema é aqui dentro, que o terreiro dele é daqui, e mostrou a porteira,
O M...(GP2) disse que temos que enxergar isto mais amplamente, que não devemos
Para o Caboclo o terreiro é aqui dentro e não lá fora. O Caboclo apenas confirmou
que não ligou para a matéria e que não liga, para ele o problema é espiritual.
Caboclo:
“quem não está aqui dentro, não vale, pois eles não têm firmeza. Se você
reconhece a matéria, mas não enxerga o lado espiritual, esta ruim. Não precisa
118
Embora a transcrição fique um pouco longa é interessante reproduzi-la da forma como se
encontra no Caderno de Registro, para entendermos melhor a discussão.
317
enxergar é só sentir”. Filhos (os médiuns): eles disseram que está mudando, que já
O Caboclo: que já havia dito que ia mudar, que não ficaria na mesma, que ia
mudar se para melhor ou pior não interessa ou que cada um que analise do jeito
que quiser.
Eles continuam a insistir que não concordam quando o Caboclo diz que não se
importa com o lado de fora. Eles não entendem e não concordam. Ele (Caboclo)
O M... disse que é difícil, pois tem o lado sentimental. E tentou explicar (para o
restante dos médiuns): quando o Caboclo disse que não importa o lado de fora, não
quer dizer que espiritualmente não tem amparo. O Caboclo disse que é difícil!!!”
pública) e discutir sobre o sentimento dos médiuns sobre esta idéia, os(as)
ângulo:
(a respeito dos médiuns irem embora antes de terminar a gira) o Caboclo nunca
achou ruim dos filhos saírem antes do término (dos trabalhos), o que ele fica bravo é
de médiuns (GP2) que dão consulta e não vem, pois fica em falta com as pessoas
“Numa situação destas pode rodar tudo, pois a pessoa que veio procurar ajuda
veio e o médium não veio, ai o discurso de ligar para o lado de fora, foi por
318
Diante do argumento utilizado pelo Caboclo, os médiuns, principalmente
organização do ritual era quase uma “idéia fixa” para alguns médiuns.
regras do terreiro, e o Caboclo colocou que “as regras do jeito que o R... quer,
não acontece, não dá certo... pois lá em cima é diferente e cada pessoa tem
uma evolução”119.
119
Podemos notar que dificilmente o Caboclo Três Penas ou o Caboclo Pena Azul se contrapunham
às proposta apresentadas pelos filhos(as). Todas as vezes que vinham com alguma proposta de
organização da gira, isto é, regras e normas para serem implantadas no terreiro, o Caboclo
concordava, com raras exceções, como a questão do tempo; no mais deixava que os filhos
colocassem em prática aquilo que estavam propondo para perceberem que “as regras do jeito que
querem não dá certo...”.
319
Em 2003, com o terreiro definitivamente pronto, se junta ao grupo de médiuns
um novo grupo, trazido por M2. A corrente agora era formada por um número
a mudança e os médiuns/entidades
Banho de Abô, de uma conversa. Dessa vez, a iniciativa não parte do Caboclo,
mas de um dos filhos (GP1) que justifica sua iniciativa pelo número de
320
Em dezembro, nos dois últimos trabalhos do ano, duas reuniões foram
reunião aconteceu para tirarem dúvidas a respeito das mudanças que vinham
ocorrendo nas giras, mudanças, que muitos(as) filhos(as) não entendiam e não
não aceitavam esta prática, endossada pela Mãe, que dizia “que as coisas do
Na última gira do ano, os registros mostram que outra reunião foi feita.
Caboclo Três Penas estava presente e “explica e insiste que todos que tem
dúvida ou que não concordam com determinada atitude devem se dirigir a Ele
(ou ao Caboclo Pena Azul ) para perguntarem”, que não “devem ficar com
321
era a imagem que tinham da espiritualidade, bem como de uma autoridade.
Disse ele:
“Que tem um filho que não vem e que está com a cabeça virada, mas se ele não
vem,, vai ser difícil...(se não vem não tem conversa e não dá para tirar as dúvidas)
Quantas vezes ele (Caboclo) não perguntou o que era para ser feito, pois não sabia o
que tinha sido feito, ele (Caboclo) precisava saber para poder mexer... que não é
porque é Caboclo que tem que saber tudo. (g. meu) Ele não vai mexer com
alguém se não sabe o que foi feito, Ele precisa saber, então ele pergunta.”
adivinhar” o que acontece com os filhos, provocando uma ruptura nas formas
322
No Caderno de Registro estão anotadas somente as decisões tomadas a
assistência marcar consultas com as entidades, que passa a ser 21:30h, pois
por exemplo, um filho que diz: “antes da gira começar, uns 10m antes, que seja
explicado algum tema, pois sente falta de explicações”, mas segundo o registro
da escrente, o Caboclo Três Penas diz “que não concorda, que prefere deixar
323
um espaço (na gira) para esclarecimento de dúvidas”. O Caderno de Registro
que exige esforço, certa habilidade e domínio da língua falada e escrita, como
desta pesquisa.
Nas entrevistas e conversas com os Pais,
quando questionados sobre o assunto
“aulas”, solicitadas por alguns médiuns,
A próxima reunião, formalmente
estes não compreendem porque “tanto
alvoroço” a este respeito, por parte dos
registrada, está datada de maio de
filhos(as), já que o processo de
aprendizagem deles mesmo se deu na
2006; não há registro de quem
prática, no fazer dentro dos terreiros que
participou e das falas destes freqüentaram. Para eles a “educação da
umbanda se dá a partir da vivência do
participantes, apenas anotações gerais médium no terreiro, fazendo,
perguntando, vivendo, se doando à
sobre as propostas levantadas, como: religião. Esta foi a forma que
aprendemos!” “Vê se nos terreiros
elaborar uma apostila com os pontos ensinavam a gente como fazia? Ninguém
ensinava, aprendíamos fazendo, na
para (que) a assistência (possa) gira...”. (Flavio – Pai)
do sítio (São Paulo) para que todos participem; ao final dos trabalhos
324
que percebemos, pelos registros, foi que a proposta mais praticada tem sido
aquela em que conversam no final dos trabalhos sobre a gira, ou seja, apesar
O Caboclo Três Penas parou tudo e perguntou aos filhos se alguém tem duvida, se querem
perguntar alguma coisa. Já que não tem escola ele faz perguntas.
como os(as) filhos(as) imaginam, não tem, então abria espaço para
Nessa reunião percebe-se que o grupo está mais coeso e a preocupação que
R... – corrente mais firme – parece que tem mais harmonia; se daqui a algum (tempo)
Resp. Caboclo: medo de quebrar a harmonia? Que o grupo não pode dar ouvido,
M... – o grupo já passou pelas duas situações, então o grupo pode fazer uma análise
325
(Caderno de Registro de 09/09/2006 – Escrevente Solange Vaini)
ansiedade que foi tomando conta do grupo, que era a preocupação com o
outros mais velhos (de casa), mas que ainda não tem uma incorporação
para apenas uma hora antes do início da gira; “realizar uma aula formal com os
médiuns, que seria dada pelos médiuns mais velhos da casa, antes do início
gira iniciar foi abandonada e voltaram para o período normal, ou seja, dentro da
120
A idéia era iniciar às 15h somente para as operações,
326
gira. A proposta do desenvolvimento ao final da gira mostrou-se ineficaz, já que
a gira terminava muito tarde e os médiuns diziam não “ter condições físicas”
domingos, foi aceita pela maioria dos médiuns e somente daqui a alguns
A realização da aula formal aconteceu uma única vez, pelo que está registrado,
sagrado.
muito diferentes.
327
CONSIDERAÇÕES...
primordial a ser utilizado, minha idéia, como já disse, era trabalhar basicamente
desafio, não sem antes aceitá-lo também, de trabalhar com eles para
adeptos e aprendizes, seu trabalho autônomo como Pai e Mãe (mas ainda sem
328
Como se vê, o desafio foi grande, pois aliada a questão da leitura crítica dos
crítica pessoal aos registros, por se tratar de uma narrativa muito próxima,
quase que uma narrativa de mim mesma, já que pertenço ao grupo e muitos
registros foram por mim realizados. Isso exigiu um esforço não pequeno de
olhar de fora”. Nosso trabalho, que não se limitou à leitura dos registros, não foi
Aos colegas que em início de curso diziam dos perigos de iniciar uma
pesquisa desta natureza, tenho a dizer que é possível, mas realmente não foi
fácil. Não foram raros os momentos em que ao ler os registros e recordar das
A angústia de tornar este processo o mais objetivo possível foi constante, até
329
(GEERTZ, 2001), então, como iniciante na antropologia estava no caminho
cristalizada”, para utilizar o termo proposto por Maria Helena quando realizou
uma pesquisa sobre a Umbanda através de jornais, se fez no calor mesmo dos
121
A este respeito ver os trabalhos realizados por Maria Helena V. B. Concone, que fez uma análise
da Umbanda paulista a partir de textos publicados em jornais, basicamente a partir da hemeroteca
do jornal O Estado de São Paulo.
330
Percebemos ao longo dos registros a dificuldade das escreventes em registrar
muito mais que dificuldade, pois permitiu desvelar através dos apontamentos
das giras, das festas, das reuniões, das aulas, uma Umbanda viva, presente,
surge nova imagem, nova figura, “num conjunto de cores e formas que formam
Caboclo Três Penas com a Bíblia; a abertura da gira com as preces de Cáritas
Por outro lado, localizamos elementos que permanecem, que são constantes,
331
homenagem aos Orixás e à entidades dirigentes dos terreiros; a liturgia122 do
122
Ivan Illich, em seu texto sobre a cultura escrita faz referência a sua área favorita de pesquisa: o
estudo da liturgia (Igreja Católica). Diz ele: a liturgia estuda como os gestos e os cantos solenes, as
hierarquias e os objetos ritualísticos criam não apenas a fé, mas também a realidade da comunidade-
enquanto-Igreja, que é o objeto dessa fé. Esta pode ser mais uma pista para pensarmos a Umbanda
como uma comunidade-terreiro e identificarmos nela sua produção cultural, sua produção de
sentidos. Esta pode ser, assim como Geertz falou, uma mudança de olhar para a religião, deixando
de lado apenas a descrição e ocuparmo-nos com o que ela constrói.
332
médiuns ao praticarem a Umbanda, enfrentando o medo do preconceito e da
intolerância123.
época em que ser da Umbanda significava ser “macumbeiro” ou fazer coisa “do
pesquisa sobre a Umbanda quando esta ainda é vista com preconceito – que
um pergunta traduz este receio ainda hoje: “Mas, a faculdade aceitou o seu
trabalho? Você não tem/teve dificuldade em ser aceita lá?” e ao ouvirem minha
O nome macumba, que antes designava uma prática religiosa, que tinha no
123
Pesquisadoras como Maggie, Birman, Concone descrevem em suas pesquisas a relação entre os
adeptos das religiões consideradas afro-brasileiras e a sociedade, que no geral apresentam relações
desconhecimento destas religiões gerando a intolerância e o preconceito, por serem consideradas
práticas míticas e não naturais.
333
do século passado, como uma forma de desqualificar o adepto da Umbanda,
principalmente124.
que ser considerado “ignorante”, uma “pessoa sem cultura”, sem “educação”
pesquisa, como a médium que pede para se afastar do grupo, pois sua prática
124
O termo “macumba” ou “macumbeiro” adquire significados diferentes dependendo do local, da
comunidade ou do grupo que a utiliza; podemos encontrar entre os umbandistas a designação um dos
outros como “macumbeiros” e do ritual como “macumba” sem que, no entanto isso tenha uma
conotação ofensiva ou desqualificadora do sujeito e da prática; mas não é bem vista ou aceita quando
utilizado por sujeitos externos ao grupo, já que pode implicar “uma desqualificação social – ignorância,
primitivismo, boçalidade etc. (do sujeito umbandista), aparecendo ainda uma identificação entre
macumba e “baixo” ou “falso” espiritismo.” (CONCONE, 2004).
125
Estou considerando como privilegiada, aqueles que tinham acesso a bens materiais e culturais,
como carro, escola, emprego fixo, profissão (sem necessariamente ter escolaridade) e lazer;
reconheço que esta classificação é bem simplista do ponto de vista dos estudos e/ou pesquisas das
áreas econômica e social, mas tendo em vista que estas classificações nos últimos anos tem sofrido
consideráveis alterações, optei em utilizar uma classificação menos fechada.
334
reconhecidamente colocada na frente da casa, para guardar e proteger a gira
facilitando aos outros seu reconhecimento. Mas, também pode siginificar uma
que estes eram constantes dentro do terreiro e que a Umbanda continua sendo
uma religião que tem na transmissão oral dos conhecimentos uma de suas
335
de aquisição de conhecimentos, isto é, a transmissão oral desses
das constantes cobranças que surgiram ao longo das três décadas de história
desse terreiro.
reflexão esta que poderia gerar uma ruptura no modo como percebiam sua
336
Essas conversas (diálogos) realizadas com os médiuns e na presença da
conseqüentemente emancipatória.
O que mais chamou a atenção, nos Cadernos de Registro, foi a dificuldade dos
médiuns que anotassem estas dúvidas para depois serem explanadas, já que
337
De forma geral, os médiuns se posicionavam de forma passiva diante deste
viesse até eles. Neste aspecto, acredito que a escola, aliás, o modelo de
tem deste processo. Num mundo onde a escrita predomina e a escola é tida
aceitar que o outro pode ter um saber diferente do seu, uma forma de ver a
realidade diferente da sua e acima de tudo aceitar que aquilo que não está
126
Em toda parte, espera-se que os alunos adquiram uma certa “educação” – que se tenciona
monopolizada pela escola -, supostamente necessária para fazer cidadãos úteis, cada um deles
consciente da classe social que essa “preparação para a vida” lhes destina. Vi, assim, como a liturgia
da escolaridade cria a realidade social em que a educação é percebida como um bem necessário.(g.
meu) (ILLICH, 1991) Esta dimensão apontada pelo autor invade o espaço do terreiro, através das
concepções adquiridas pelo indivíduo na escola, como verificamos na pesquisa.
338
A escola, sabemos, está longe desse processo, sua lógica ainda está
Concordo com Morin, quando diz que o desafio de nosso tempo, ou melhor, “ o
aquilo que ele considera ou que lhe fizeram considerar como sendo
não.
339
A escola faz esta distinção através dos livros didáticos utilizados em sala de
que foi desconsiderado como válido? Neste caso, perguntamos: e o Pai e Mãe
Umbanda. Esta idéia não é nova, mas tem produzido atualmente algumas
127
Como educadora gosto de utilizar o termo “projeto político pedagógico”, reafirmando a dimensão
política do currículo, desconsiderada no contexto escolar e na elaboração do projeto, que tende a
ver este processo como possuidor de neutralidade.
340
ao sujeito como ser umbandista. E aqui, a meu ver, começam os problemas...
e valores?
Neste caso como proceder à aprendizagem daquilo que não é dito, dos gestos,
dos passos (da dança), da fala peculiar dos Caboclos, Pretos Velhos, Baianos
Em uma cultura oral, pode não haver “palavras” como aquelas que comumente
um sílaba ou uma sentença, mas não o nosso átomo: a palavra. Todas as expressões
vocais são aladas, desaparecendo para sempre antes mesmo de serem totalmente
internet, trazendo a meu ver, novos questionamentos e por que não, novas
341
pesquisas, para entendermos e talvez descobrirmos o que tem acontecido nos
terreiros, que faz com que seus filhos(as) acreditem mais no computador (e na
pessoa que está respondendo, sem ao menos conhecê-la) do que no seu Pai
ou Mãe espirituais.
estes Pais e Mães espirituais que estão perdendo o domínio de seus filhos(as)
dentro dos terreiros quando estes dois mundos se encontram? Como não
Voltando ao meu ponto de partida, foi através dos Cadernos de Registro que
pratica. Esta obviamente não pode ser considera “a” história da Umbanda, mas
através deste universo foi possível verificar uma Umbanda viva, que preserva
342
elementos fundamentais a sua prática e remodela outros de acordo com o
tempo social vivido por seus integrantes, bem como a preocupação de seus
A Umbanda que meus pais, quando iniciaram na religião por volta da década
de 50, não é a mesma Umbanda que praticam hoje no próprio terreiro, mas
As vivencias sociais mudaram, os sujeitos que fazem parte deste mundo social
estão diferentes e com novas preocupações, novas aflições, que não eram
de uma cidade moderna, com aflições que minha avó como benzedeira
dificilmente veria chegar às suas mãos, como por exemplo, a busca por um(a)
aspectos que a três ou quatro décadas eram pouco comuns ou que nem faziam
presente não só no ritual, mas também nos sujeitos que o freqüentam, seja
343
dentro do espaço do terreiro, faz dele um lugar de convivência e de
pela frente. Como Geertz nos alertou, as pesquisas na área da religião ainda
pensa, quais são seus horizontes morais, suas formas simbólicas e de que
do mais, este indivíduo hoje necessita, principalmente numa cidade como São
344
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