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Revista Internacional d’Humanitats 45 jan-abr 2019

CEMOrOc-Feusp / Univ. Autònoma de Barcelona

Tipos de David Keirsey - identificando algumas características II1

Jean Lauand2
Enio Starosky3

Resumo: O artigo – continuação de sua parte I (in International Studies on Law & Education 33,
http://www.hottopos.com/isle33/143-154JeanChie.pdf) – apresenta exemplos concretos de alguns dos
tipos psicológicos de David Keirsey a fim de ajudar na compreensão de como eles se dão na realidade.
Palavras Chave: David Keirsey. tipos psicológicos. tipos de temperamento.
Abstract: This article – its part I is in International Studies on Law & Education 33, www.hottopos.
com/isle33/143-154JeanChie.pdf –intends to show concrete examples of some psychological types of
David Keirsey in order to help understanding how they are in reality.
Keywords: David Keirsey. psychological types. temperament types.

1. O realismo SP x o realismo SJ
O fator S (de sensible) em Keirsey é um dos componentes essenciais de dois
tipos de temperamento: SP e SJ (em oposição aos dois outros tipos, N: NF e NT). S é a
visão da realidade atendo-se aos fatos, de pés no chão, sem apegar-se a devaneios e
fantasias.
Mas os temperamentos não são formados por “átomos” e sim por “moléculas”,
no caso: SJ e SP, que terão algumas características em comum; outras, em forte
oposição.
Recordemos, brevemente, que J é o átomo da preferência por situações de
decisões tomadas, fechadas e resolvidas; das coisas organizadas em relação a tempo e
prazos, rotinas de funcionamento, a ordem material etc. P é o átomo da preferência por
situações abertas, não decididas, deixando amplo espaço para a improvisação,
criatividade (boa ou má...), etc.
Ao indicar as características comuns ao tipo de temperamento SP (que como
todos os temperamentos admite 4 modalidades de sub-tipos), o site oficial de David
Keirsey (abreviaremos por DK) indica:

Tendem a ser: brincalhões, otimistas, realistas e focados na ação.


Prezam em si mesmos: serem não convencionais, audazes e
espontâneos.
Eles “dão”: cônjuges divertidos, pais criativos, e líderes que “apagam
incêndios”.
Eles são: capazes de se entusiasmar (excitable), confiam em seus
impulsos, querem conquistar com impacto (want to make a splash),
buscam estímulos, prezam a liberdade e sonham com dominar
habilidades de ação.
(https://keirsey.com/temperament/artisan-overview/)

1. A partes I deste estudo encontra-se em www.hottopos.com/isle33/index.htm.


2. Professor Titular Sênior da FEUSP. Professor Colaborador do Colégio Luterano São Paulo.
jeanlaua@usp.br
3. Mestre em Educação e Doutorando em Ciências da Religião (UMESP). Diretor do Colégio Luterano

São Paulo.

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Já os SJ:

Tendem a ser: cônscios do dever, cautelosos, humildes, e focados em


credenciais e tradições.
Prezam em si mesmos: serem confiáveis, ajudar e trabalhar duro.
Eles “dão”: cônjuges leais, pais responsáveis, e líderes que dão
estabilidade.
Eles são: cidadãos responsáveis que confiam nas autoridades, criam
grupos e associações, buscam segurança e sonham com a implemen-
tação da justiça.
(https://keirsey.com/temperament/guardian-overview/)

Originalmente DK afirmava que os SJ eram cerca de 40% da população geral;


os SP, outros 40%. O site de DK, hoje, afirma SJ 45% e SP 30%. Em qualquer caso, a
maioria absoluta das pessoas é S, realistas de pé no chão.
No artigo anterior e neste, temos visto os estilos (e as possíveis disfunções...)
de cada tipo e é muito sugestivo (e intrigante...!) pensar na riqueza da distribuição
dessa variedade de modos humanos de se instalar no mundo. Seja como for, quando há
grandeza pessoal, abertura e bondade, cada tipo é maravilhoso e traz uma enorme e
específica contribuição para aqueles com quem se relaciona. Não há tipos melhores ou
piores: grandes virtudes e grandes maldades podem ocorrer em todos os SPs, SJs. NFs
e NTs.
Claro que as diferenças e arestas entre SP e SJ dão-se por toda parte.
Tipificando (e tipificar é, de algum modo exagerar, carregar, caricaturar), os SP
tendem ao lúdico; enquanto os SJ tendem à seriedade, os SP, à gastança; os SJ, a
poupar; os SP, ao hedonismo, a curtir o momento, ao carpe diem; os SJ ao cumpri-
mento do dever; os SP à cigarra; os SJ, à formiga; os SP à ousadia; os SJ à cautela; os
SP ao otimismo; os SJ ao “realismo pessimista” (“já vi esse filme...”)4; os SP à
aventura; os SJ à rotina; os SP à criatividade; os SJ à tradição; os SP à liberdade; os SJ
a consolidar instituições; os SP à improvisação; os SJ ao planejamento regrado; os SP
são avessos a esperas; os SJ a mudanças rápidas; etc.
A oposição entre os SP e SJ (SFP x STJ) é tipificada na famosíssima cena de
“Cantando na Chuva”, quando o apaixonado personagem de Gene Kelly tem sua
dança intimidada (e abortada) pela simples presença da autoridade uniformizada do
guarda, que não está para brincadeiras...

4.Já um típico NF, voltado para as possiblidades (N), pode afirmar, como tipicamente o fez certa vez – a
propósito da situação da Hispanoamérica – o grande pensador espanhol Julián Marías: “otimista em
relação às possibilidades; pessimista, em relação à realidade” (1986, p. 62).

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A caricatura extrema do SP era o Chacrinha: no palco do velho guerreiro tudo
era dionisíaco e improvisação; até para o tempo – sagrado na televisão – cantava o
jingle: “...um programa que acaba quando termina”; alegria desenfreada etc. Uma
imagem exponenciada do Brasil SP. Mais do que ausência de regras, nosso Mega
Palhaço, nosso Chaplin investia contra os formalismos, as hierarquias e as regras,
escalando para sua carnavalesca bancada de jurados o contraponto de algum tipo
serião, sisudo, mal humorado e rígido, como o Dooooooooooutorrr Clécio Ribeiro
(mais realista para o papel do que o folclórico Pedro de Lara) ou como quando, em seu
gesto mais característico, levava a mão ao nariz e dizia: rrrrrrealllllmente...,
esculhambação para com as afetações dos locutores de rádio da época, empenhados
em pronunciar “corretamente” os R e os L...

2. ESTP (/ISTP) x ISTJ: o realismo SP x o realismo SJ


O famoso verso de Fernando Pessoa : “Navegar é preciso, viver não é preciso”
(precedido de “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:...”) tem seu mais
imediato sentido no original latino “Navigare necesse; vivere non est necesse”, frase
de Pompeu, general romano, aos marinheiros, com medo de viajar para a guerra.
Essa necessidade, esse must, indica bem a compulsão dos SP para a ação, no
caso de Vasco da Gama, pela aventura portuguesa dos mares.
Dos ESTP (e parece estar falando do Gama, que pode ser também ISTP), diz
DK:

Os ESTP sabem usar a informação adquirida, para, ostentando nervos


de aço, engajar-se naquilo que os outros considerariam um esforço
suicida. Para outros tipos pareceria algo esgotador, mas o ESTP se
excita com trabalhar no limite do abismo. Os ESTP são implacáveis
pragmáticos e frequentemente apresentam os fins como justificação
para os meios, sejam quais forem, que lhes parecem necessários;
lamentáveis, talvez, mas necessários. Geralmente, porém, os ESTP nem
se preocupam em justificar suas ações; preferindo lançar-se a realizar a
próxima ação. (Keirsey 1984, p. 196-197)

Vale rigorosamente também para o “navegar” dos STP, o que DK afirma de


outro tipo SP (o artista ISFP):

A ação é quem impera no ISFP [STP] e não o contrário. Assim,


devemos abandonar qualquer ideia de dedicação, cuidadoso

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planejamento ou responsável preparação e ensaio. Não. Eles pintam,
cantam, fazem piruetas, dançam, correm, patinam ou seja lá o que for,
simplesmente porque they must. A montanha é escalada porque ela está
aí! (Keirsey 1984, p. 204)

Com isto, demos com a chave da aventura marítima portuguesa e do próprio


Vasco da Gama: o imperativo do impulso da ação: navegar é preciso!
Claro que para efeitos épicos, Camões começa Os Lusíadas falando de
edificar “Novo Reino” e de dilatar a Fé e o Império etc. São os tais “fins”, as
justificações de que DK falava acima, mas o que os move, em última instância é a
ação. Como bom ESTP, Donald Trump expressou isto de maneira categórica: “Eu não
faço negócios pelo dinheiro. Dinheiro, eu já tenho de sobra. I do it to do it”5
Essa compulsão da ação é parte da suspeita com que o SJ encara o SP; a praia
dos SJ é a segurança. Se procurarmos as expressões dos tipos nos provérbios, a quase
totalidade deles são dos SJ e SP, os realistas. O SJ, que valoriza o passado e a
experiência (e porque se apega à experiência) pode tender a um pessimismo (macaco
velho...); já o SP vê a realidade como um risco que vale a pena.
Os SJ dirão: mais vale um pássaro na mão do que dois voando. De grão em
grão a galinha enche o papo. Um homem prevenido vale por dois. Devagar e sempre.
Pense duas vezes antes de agir. O seguro morreu de velho. Como está o mundo, aonde
vamos parar! A pressa é inimiga da perfeição. Quem espera sempre alcança. Deus
ajuda quem cedo madruga.
O SP prefere outras expressões e provérbios como: Quem não arrisca, não
petisca. O que não mata, engorda. Carpe diem (curta o momento). Mais vale um gosto
do que seis vinténs. Quem não tem cão caça com gato. O amor é eterno, enquanto
dura… Águas passadas não movem moinhos. Bis dat qui cito dat (só dá de verdade
quem dá rapidamente). É agora ou nunca. Demorou! E, é claro: “Navegar é preciso,
viver não é preciso”.
Em meio à toda a celebração épica do heróico Vasco, a genialidade de
Camões introduz nos Lusíadas um personagem de contraponto, o Velho do Restelo,
que pretende desmascarar toda aquela “glória”, a (pseudo) motivação de dilatar a Fé e
o Império e mostrar a realidade da aventura. Atrevemo-nos a qualificar o Velho do
Restelo como ISTJ, porque esse é o tipo mais refratário à mudança e à aventura e o
mais preocupado com os perigos que ameaçam desestruturar a nação, a família, a
religião, a sociedade, as instituições, a civilização etc. (Keirsey 1984, p. 189) São
aqueles tios conservadores, super formais, sempre de terno (cinza) e que vêem na gíria
ou na música apreciada pelos jovens, ou numa saia mais curta, praticamente sinais
apocalípticos:“É o fim do mundo!”. “No meu tempo, sim, havia respeito...”
Cabe aqui o relato de um caso com um ISTJ (desses de alma grandiosa),
Fernão (chamemo-lo assim...), muito amigo nosso, maitre de um grande restaurante
em São Paulo. Para se ter ideia da ISTJice dele, uma vez confidenciou-nos da saudade
viva, mesmo décadas depois, que sentia do seu tempo de exército: “Aquilo era uma
maravilha, tínhamos o RDE (Regulamento Disciplinar do Exército), contendo regras
para tudo, regras e mais regras...”. E em seu restaurante ele tinha que pacientemente
ensinar às suas dezenas de subordinados até as normas mais elementares. Ele que é um
profissional insuperável, capaz de perceber a menor falha no bom atendimento das
centenas de clientes que lotam a casa. Enfim, o Fernão não fica nada a dever ao maitre

5. Cit. in Trump - https://www.idrlabs.com/estp.php

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do palácio de Buckinkgam. Mas, claro, esse seu trabalho importantíssimo permanece
invisível.
Dezembro de 2011, meu irmão [de JL], João Sérgio, tinha acabado de
defender seu doutorado sobre DK na Feusp e calhou de, na véspera de Natal, estarmos
ambos sós em São Paulo e resolvemos passar a Ceia do dia 24 no restaurante do
Fernão. Naturalmente, falamos de seu doutorado, ainda fresco, e de como o Fernão era
um ISTJ chapado. Conversa vai, conversa vem, propus ao João uma aposta: se eu
conseguisse fazer o Fernão chorar, ele pagaria a conta. Claro que nunca usei meus
(parcos) conhecimentos de DK para manipular ninguém: tratava-se de comover às
lágrimas o Fernão, por gratidão sinceríssima e verdadeira.
Como abalar o todo certinho e (aparentemente) blindado a sentimentos ISTJ?
Lembrei dos ensinamentos de DK: que os SJ, e mais ainda os ISTJ, se ressentem de
que seu trabalho, importantíssimo, raramente é reconhecido, dá-se por assente que o
SJ, com sua vocação de cuidar, tem mais é que prestar seus serviços mesmo. E que o
ISTJ, como todos os SJ, preza datas, comemorações, tradições, reuniões de família
(especialmente o Natal!) etc.
Lá pelas tantas chamei o Fernão e disse: “Não, não está faltando nada, está
tudo ótimo. Eu só queria dizer que estamos todos nós aqui, famílias inteiras, passando
um Natal maravilhoso e ninguém repara que isto só é possível porque, você, Fernão,
para prestar-nos esse precioso serviço, renunciou ao seu próprio Natal, ao convívio
com a família da qual você é o patriarca, à companhia de filhos e netos, numa data
como a de hoje e eu não queria que esta noite acabasse sem que você ouvisse o nosso:
muito, muito obrigado, Fernão!”.
O Fernão ouviu, não respondeu nada e retirou-se. O João já estava
comemorando e ia pedir champanhe por minha conta (já que ele achava que tinha
ganhado a aposta), quando volta o Fernão, acompanhado do dono do restaurante e de 3
ou 4 colegas gerentes, choroso de emoção e dizendo-me: “Por favor, repita... repita
para eles o que o senhor me disse agora há pouco”. Eu, claro, repeti, também muito
emocionado pelo bem que tinha feito ao amigo, e ao final, recompus-me e disse: “Ah,
sim, Fernão, por favor, vê uma garrafa de champanhe para nós!”
Se os ISTJ tendem a nunca aparecer (por mais que seu trabalho seja
importante), os ESTP agitam e brilham (em alguns casos até com o esforço de
outros...). DK reiteradamente fala do pouco reconhecimento que se presta aos SJ (seu
serviço é taken for granted) e da mágoa que isso pode lhes causar. Isso é reproduzido
em uma postagem do Facebook do ISTJ Geraldo Alckmin:

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Escrevemos este artigo em pleno processo eleitoral. O jornalista Otávio
Guedes, no programa “Globo News em Ponto” de 30-08-18, logo após as entrevistas
dos candidatos à presidência da República ESTP, Ciro Gomes (27-08) e Bolsonaro
(28-08), e do ISTJ Alckmin (29-08); a propósito do estilo insosso deste, o famoso
“picolé de chuchu” (José Simão), em comparação com o dos citados ESTP, ponderou:

Não basta você ter uma boa proposta; é preciso que o eleitor entenda a
boa proposta (...). Por exemplo você pode dizer: “Eu vou aquecer a
economia, atacando o problema da inadimplência das famílias”; outra
coisa é dizer: “Vou tirar seu nome do SPC” – mensagem clara, curta,
objetiva, que está falando a mesma coisa. Você pode dizer o seguinte:
“Vou dar garantias jurídicas aos agentes em caso de ações que resultem
em letalidade por parte do policial”. Ou você pode dizer: “Eu vou
prestigiar o policial que der trinta tiros no bandido.” [...]
(https://globosatplay.globo.com/globonews/v/6983962/)

3. Ainda Vasco da Gama e o Velho do Restelo


Voltemos ao Velho de Camões. No Restelo, em Lisboa, está a região do
embarque dos navegadores (ainda hoje margeada pela Avenida das Descobertas e pela
Avenida Dom Vasco da Gama). No canto IV, o Gama em primeira pessoa, narra o
embarque. É um momento dramático, toda a cidade concorre para o evento, os
marinheiros (acompanhados de multidão de religiosos) vão em procissão para os
batéis (IV, 88). Mães, esposas e irmãs na extrema aflição da possível (ou até provável)
morte dos seus amados (IV, 89 e ss.). Como por exemplo, a queixa da mãe:

Por que me deixas, mísera e mesquinha?


Por que de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento! (IV, 90)

Mas como navegar é preciso, “o forte Capitão” dá ordem de que ninguém se


despeça, nem olhe para trás:

Nós outros sem a vista alevantarmos


Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa. (IV, 93)

Neste momento, surge o Velho do Restelo, um ISTJ, de quem o gênio de


Camões diz que seu “saber (é) só de experiências feito”, tirado do “experto
(experiente) peito” e vai atinar com as verdadeiras motivações de nosso STP, a
compulsão da ação – “dura inquietação d’alma e da vida (IV, 96) – para a glória das
batalhas, em sentido próprio e também a batalha que era a navegação naquele tempo:

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Glória é um conceito que os ISTP entendem melhor do que os outros
tipos. Ou, pelo menos, o ISTP está mais interessado nela do que a
maioria. Na batalha há glória porque na batalha podem exercitar, com
aprovação, sua habilidade mortífera.

Enquanto embarcam, surge o Velho:

Mas um velho d'aspeito venerando,


Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito: (IV, 94)

Nas estrofes seguintes (94 a 104), o Velho despeja longamente suas críticas e
maldições aos aventureiros do mar:

Ó glória de mandar! Ó vã cobiça


Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas! (IV, 94)

Dura inquietação d'alma e da vida,


Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo di[g]na de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana! (IV, 95)

Etc. Etc.

Nem o Gama nem Camões contestam o “velho honrado” em suas críticas e o


canto seguinte começa com a conclusão do episódio: simplesmente deixando-o para
trás:
Estas sentenças tais o velho honrado
Vociferando estava, quando abrimos
As asas ao sereno e sossegado
Vento, e do porto amado nos partimos.
E, como é já no mar costume usado,
A vela desfraldando, o céu ferimos,
Dizendo: "Boa viagem", logo o vento
Nos troncos fez o usado movimento. (V, 1)

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4. SJ e SP na religião
Como sabemos, a teoria keirseyana dos temperamentos também tem
extraordinária e surpreendente aplicação no campo religioso. Textos religiosos em
geral, particularmente os que se referem à liderança religiosa, podem ser analisados
com maior profundidade quando lidos à luz dessa teoria tipológica. Um dos mais
impressionantes nos vem do antigo Decálogo (Dt 6.5)6, que é registrado pelo médico
Lucas, autor de um dos evangelhos da Bíblia: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o
teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com toda a tua mente”
(Lucas 10.27).
Podemos muito bem estabelecer um paralelo com os quatro temperamentos da
teoria keirseyana: “Com todo o teu coração” – remete ao tipo SP; “com toda a tua
alma”, ao NF; “com todas as tuas forças”, ao SJ; e “com toda a tua mente”, ao NT.
Neste tópico exploraremos apenas os tipos SP e SJ, apontando as correlações
desses temperamentos keirseyanos com a liderança religiosa. Os principais dados
reunidos neste estudo estão fundamentados no livro “Personality Type and Religious
Leader”, de Roy Oswald e Otto Kroeger.
O líder religioso SP é orientado para a ação. Sua atividade é realizada de
maneira intensa, “com todo o coração”. Tem necessidade compulsiva de agir e fazer
coisas e é naturalmente atraído a se engajar em alguma atividade. Assim como o líder
SJ, está enraizado nos sentidos e deseja estar com contato direto com a realidade
exatamente como experimentada pelos sentidos; é pé no chão e prático e tem pouca
tolerância para a abstração. O fator P leva a procurar novas possibilidades e, no caso
do SP, permanente ação. Por isso mesmo o líder SP é impaciente com discussões
estáticas, longas teorias ou encontros que não “levam a lugar algum”. O SP é um dos
temperamentos mais extraordinários (lembremos especialmente S. Francisco de Assis,
entre outros). Os SPs sempre buscam inserir bom humor e algo prático nas situações
estáticas. Porém, quando falham nisso, perdem rapidamente o interesse e passam a
outro projeto.
De acordo com os estudos de Roy e Otto, menos de 8% dos líderes religiosos
são SP, enquanto na população em geral são 38%. Isso mostra que as atividades
religiosas, de modo geral, atraem poucos SPs. De fato, se compararmos o número
expressivo de outros profissionais de temperamento SP – atletas, artistas, comediantes,
mecânicos, vendedores, soldados ou médicos – constataremos que esse tipo seja pouco
atraído para atividades religiosas por achá-lo muito estático e teórico (dependendo, é
claro, do grupo religioso ser mais “animado” ou não...). É importante considerar esse
aspecto, sobretudo porque, enquanto os SJs querem organizá-las, os NFs tentam amá-
las e os NTs teorizam sobre elas, os SPs querem se engajar nelas – de todas as formas
sempre em atividades e assuntos práticos. Mas, é muito provável que este também seja
o motivo porque tão poucos SPs estão presentes nas lideranças religiosas. SPs são
encarados como hedonistas e hedonistas têm pouco espaço nas religiões de modo geral
– especialmente nas mais tradicionais que prezam a ordem e a organização.
O aspecto paradoxal é que a enorme variedade das atividades práticas nas
religiões estariam melhor supridas e mais bem executadas se tivesse um SP em postos
de liderança. Isso é ainda mais significativo quando consideramos que particulamente
o atendimento das necessidades práticas é muito valorizado nos grupos religiosos.
Portanto, mais SPs na liderança poderia suprir uma importante lacuna nas atividades

6
O texto veterotestamentário não inclui “com toda mente” (o tipo NT). Parece ter sido um
acréscimo de Jesus (que – para os cristãos – reunia perfeitamente o equilíbrio dos quatro
temperamentos). E, Lucas, que provavelmente conhecia a mais antiga teoria tipológica que se
tem conhecimento, Hipócrates – seu colega de profissão –, fez o registro sem hesitar.
130
religiosas que deveriam estar mais disponíveis para o expressivo número de SPs na
população em geral (38%).
Ainda que sejam em número muito reduzido, os SPs se destacam onde
estiverem. Seu jeito espontâneo, atrevido e impulsivo se aplica também ao seu estilo
de pregar. Os pregadores SP, especialmente os extrovertidos, levam as pessoas às
lágrimas com suas palavras comoventes e bem-humoradas. Muitas situações na vida
do grupo religioso exigiriam a presença de um líder SP, pois muitas ocasiões estão
voltadas mais para a ação e menos para a organização.
Outra característica cativante e deliciosa de alguns SPs é que eles são
perpetuamente jovens – nunca crescem. Como seu foco é liberdade e espontaneidade,
esperar (wait) por qualquer coisa é sua morte psicológica. O Evangelho SP é o de São
Marcos.7 Jesus é retratado como um homem (Leão de Judá) de ação, sempre em
movimento; ele é visto como aquele que tem uma missão urgente. No primeiro
capítulo do Evangelho, Jesus já reuniu alguns discípulos em volta dele; fez milagres
na Galileia e se envolveu em um problema político. No evangelho todo, Jesus trata
uma crise depois da outra até ser crucificado.
Talvez as religiões seriam muito mais interessantes sem a grande escassez de
líderes SPs e, a vida religiosa, mais interessante e animadada. Especialmente porque
SPs preservam fortemente a sua maior grandeza: um coração inteligente e uma
inteligência cordial (no caso F)!

Disfunções:
Os outros três temperamentos (SJ, NF e NT), mas especialmente os SJs – que
são a grande maioria nas comunidades religiosas em geral – tendem a ver os SPs como
vagabundos. (O exemplo clássico é São Francisco, cuja história e tipo já foram
analisados em outro artigo de nosso Grupo de Pesquisas). E os próprios SPs
frequentemente se consideram loucos de alguma forma. A habilidade SP para
permanecer aberto, flexível e espontâneo também pode deixá-lo com problemas
quando sua comunidade religiosa clamar por maior conformidade com as regras e
principios regimentais. Por um lado os liderados querem exatamente um SP autêntico;
querem familiaridade, boas e empolgantes pregações, mas, por outro, também querem
estabilidade, organização e seriedade. Aí o líder SP pode ter dificuldade. E, por não
gostar de rotina, pode se entediar e negligenciar os aspectos mais rotineiros do
trabalho de administração. Como a maioria dos SPs não gosta de planejamentos,
tendem a enfrentar tensão com a comunidade religiosa que gosta de viver na ordem e
na estrutura bem ordenada.

O líder religioso SJ
Sua atividade é conservadora e é realizada “com todas as forças”. É um
servo, procura pertencer ao grupo e servir aos outros. É um tipo que sabe se instalar
perfeitamente nas comunidades religiosas. É um líder que já vem “pronto”. Oferece
naturalmente maneiras concretas, práticas de assistir aqueles que estão em dor,
necessidade ou angústia. Já na sua formação os SJs se preparam docilmente e suas
perspectivas são ampliadas e aprofundadas e com natural facilidade também se tornam
a norma pela qual seu trabalho será julgado. SJs são os mais dependentes de
autoridade de todos os tipos. Eles podem ser criticados, já que possuem grande força
resiliente, e seguem em frente porque entendem que é isso mesmo que a instituição

7
Não por acaso São Jerônimo ligou o Evangelho de Marcos à figura de um leão, representando
a ação e a força.
131
requer deles. Submetem-se às regras e aprendem com elas e as repetem com maestria.
Seu estilo de liderança está focado na denominação e a ela mantém fidelidade e nela
constroi o melhor que vem do passado. Enfatizará os fundamentos da religião, ,
procurará transmitir a tradição às pessoas, a fé simples e as regras práticas, pé-no-
chão, apontando para o modo de viver a vida religiosa.
O líder SJ tende a ser o mais tradicional de todos os temperamentos religiosos,
trazendo estabilidade e continuidade em qualquer situação. Tenderá a ser leal aos ritos
denominacionais e às doutrinas. Preocupar-se-á com uma rigorosa instrução dos fiéis.
O líder SJ deseja ser um servo da sua religião e leal às autoridades. Só deixa de lado
sua rígida fidelidade quando acredita que aqueles que têm autoridade “abandonaram a
fé”. O líder SJ pode fazer mudanças, mas, de preferência, paulatinamente e só se
reconhecer a mudança como necessária. O líder NT pode enxergar as mudanças
necessárias, mas o líder SJ é o mais apto para implementá-las. É politicamente sagaz e
enraizado na realidade; sempre está ciente dos passos necessários para a mudança e
jamais permitirá uma mudança se a achar desnecessária. Para ele, o que é testado e
validado pelo passado deve ser preservado. Adora a continuidade do passado e se vê
como protetor e conservador da riqueza do passado. Se a mudança for necessária, ela é
entendida como uma evolução, nunca como uma revolução. Como seu espírito é
conservador e naturalmente servidor, anseia por associação e pertencimento; ele se
destaca na construção e preservação de uma comunidade religiosa. Deseja que o grupo
ao qual pertence e lidera seja saudável e útil. E que aqueles que pertencem à sua
comunidade religiosa sejam tão leais quanto ele e trabalhará para que todos adotem
esse mesmo senso de lealdade e pertencimento.
Uma das frases preferidas do líder SJ é "vocês devem e vocês não devem",
procurando implantar o senso de obrigação social, moral e espiritual. Gosta de se
sentir necessitado e trabalha melhor com pessoas que têm motivação similar. Procura
maneiras tangíveis, concretas para se doar aos outros. Ser "salvo pela graça"é quase
negar ao SJ seu temperamento, pois dever e obrigação são parte de sua personalidade.
A admoestação de Jesus ao jovem rico: "faça isso e você terá vida eterna"é o caminho
espiritual natural do líder SJ. Como líder, o SJ traz ordem e estabilidade às suas
comunidades. Raramente comete erros e tende a ser excepcional no trabalho. Não
descansa até que as coisas sejam estabelecidas e decididas. É superconfiável e
geralmente trabalhará com uma agenda planejada, ordenada.
Como bem sabemos, o temperamento SJ é a coluna vertebral que sustenta a
maioria das instituições da sociedade – a família, a comunidade religiosa, os clubes
sociais, as escolas, governos, indústria. O líder religioso SJ verá a família nuclear
como a unidade familiar mais básica da sociedade que precisa ser preservada. Para ele,
uma sólida família é a melhor maneira de cuidar das crianças e pessoas mais velhas.
As pregações do líder SJ são discursos bem organizados e centrados nos textos da
tradição religiosa. Sempre será pé-no-chão, realista e direto, refletindo as lições
apontadas para o dia. E o fará que tal modo que os que estão nos bancos facilmente se
lembrarão do seu trabalho e obrigação.
O Evangelho do líder SJ é São Mateus, o mais organizado dos quatro
Evangelhos. O Sermão da Montanha contém vários “deves” do tipo SJ. Jesus é
apresentado como o cumprimento das profecias do Antigo Testamento e não como
alguém que apresenta uma nova religião. Mateus se refere a Jesus como “Mestre”
doze vezes e registra cinco longos sermões. O Antigo Testamento é citado mais do
que nos outros três Evangelhos. Mateus se deleita em mostrar como Jesus recapitula a
experiência de Israel em sua própria vida. É apresentado como o novo Moisés, o novo
Davi, o novo Salomão, o profeta por Excelência, o novo Israel. Curiosamente também
somente o Jesus de Mateus fala de ekklesia. E é o único Evangelista interessado na
fundação da Igreja de Cristo. Os doze apóstolos são reverenciados como líderes
hierárquicos da igreja, sendo Pedro o principal líder. São aspectos que refletem o
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estilo da liderança SJ: ser o guardião da genialidade criativa do passado. Os outros
temperamentos podem censurar os SJs pelo seu tradicionalismo e sua inflexibilidade.
Porém, sem os seus esforços, sem o seu amor “com todas as suas forças” qualquer
instituição religiosa difícilmente sobreviveria.

Disfunções:
As potenciais dificuldades do temperamento SJ não são poucas. E, a bem da
verdade, o líder religioso SJ não se desenvolve sem ao menos um pequeno
desenvolvimento do fator N. A preferência para o tipo J implica menos tolerância para
a natureza aberta e não-estruturada do tipo P.
Áreas em que pode necessitar atenção:
Literalismo: o líder SJ tende a ler literalmente tudo o que está escrito. Isso em
geral resulta em uma abordagem mais conservadora da Escritura e da Doutrina. Torna-
se nervoso quando as mensagens são interpretadas figurativa ou simbolicamente –
acha que as fronteiras desaparecem e ninguém mais sabe esboçar novas diretrizes e em
que base. Por isso mesmo acha que deve tomar as coisas escritas simplesmente como
estão escritas.
Pessimismo: Um tipo de cinismo/pessimismo pode acompanhar o
temperamento do SJ. Como David Keirsey pontua no seu livro, os realistas SJ em
geral tendem a antecipar reveses e eventos desfavoráveis. Eles são simplesmente
realistas sobre erros e faltas. A lei de Murphy também é completamente SJ: "Se algo
pode dar errado, dará”.
Esgotamento: O fenômeno do esgotamento se aplica a todos os tipos; cada
tipo se torna esgotado a sua maneira. Porém, o líder SJ parece ser particularmente
vulnerável, pois adiciona mais e mais fardos para a sua já longa lista de “tu deves”. E
este mesmo senso de dever pode ser constantemente martelado com suas regras,
políticas e moralismos aos seus liderados. A habilidade do SJ em organizar e ordenar a
vida paroquial é uma força que, quando usada desmedidamente, pode direcionar
muitos ao completo aborrecimento da vida religiosa. O líder SJ precisa observar essa
tendência. Se não a corrigir, pode tornar-se mesquinho e levar as pessoas a fazer o que
supostamente devem fazer de maneira artificial. O líder SJ poderá se irritar quando
seus liderados não seguirem os seus procedimentos padrão, por violarem os prazos ou
por não cumprirem o que foi estabelecido. Como tende ao pessimismo, o líder SJ pode
arrastar seus liderados para o mesmo caminho.

5. Anexo metodológico: tipos não são conceitos

Para esta série de artigos que nosso Grupo de Pesquisas está publicando, uma
distinção importante a se ter sempre em conta quando aplicamos a metodologia dos tipos é que
os tipos não são conceitos.
O tipo é, assumidamente, aproximativo, incerto e não pretende ser a realidade. Para
utilizá-lo, sempre devem ser reiteradas as devidas ressalvas metodológicas, que afirmam:
- seu caráter caricato (no sentido de “carregado”);
- a possibilidade de mistura de fatores opostos dentro de um mesmo sujeito (que pode
ser, por exemplo, em alguma medida S e N ao mesmo tempo e não necessariamente um tipo
puro S ou N);
- a neutralidade ética e valorativa dos diversos tipos (um tipo não é “melhor” do que o
outro).

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E sobretudo não confundir tipos e conceitos. E ter em conta que o tipo psicológico é
só um fator para a compreensão do indivíduo; ao lado de tantos outros fatores: gênero, classe
social, família (p. ex. pai tirano ou ausente), geração, classe social, substrato cultural etc. etc.
etc.
A própria linguagem comum já nos ensina algo sobre os tipos e previne contra sua
absolutização: em espanhol, “tipo (ou tío)” é qualquer pessoa, equivalente ao nosso “cara”;
afinal, ninguém é tão original que não se encaixe em algum tipo… Já a relativamente recente
gíria “tipo” (ou “tipo assim”) indica imprecisão, inexatidão: “500 francos suíços, sei lá, acho
que é tipo 300 ou 400 dólares”. “Tipo” serve também como eufemismo para o inautêntico ou
Ersatz: um salame “tipo” italiano é não italiano, mas de Pirituba mesmo. E a “baiana típica”
não existe senão para marcar presença em banca de acarajé ou para figurar em selfies de
turistas…
O próprio Max Weber adverte:

Um tipo ideal é normalmente uma simplificação e generalização da realidade.


Partindo desse modelo, é possível analisar diversos fatos reais como desvios
do ideal: Tais construções (...) permitem-nos ver se, em traços particulares ou
em seu caráter total, os fenômenos se aproximam de uma de nossas
construções, determinar o grau de aproximação do fenômeno histórico e o tipo
construído teoricamente. Sob esse aspecto, a construção é simplesmente um
recurso técnico que facilita uma disposição e terminologia mais lúcidas”
(WEBER, Max. “As rejeições religiosas do mundo e suas direções” cit. in
Quintaneiro 2003, p. 103):

E um parágrafo weberiano clássico na caracterização do Tipo Ideal:

acentuação unilateral de um ou mais pontos de vista e como uma síntese de um


grande número de fenómenos concretos individuais, que são difusos,
descontínuos, mais ou menos presentes ou então ocasionalmente ausentes, que
são ordenados de acordo com esses pontos de vista acentuados
unilateralmente, de modo a formar-se uma construção analítica unificada” (cit.
por Barreto 1999)

Essas afirmações são importantes e têm consequências: há situações que requerem a


condição aberta dos tipos; em outras pode-se fechar com conceitos bem estabelecidos.
Claramente, em Matemática, há, digamos, o conceito de triãngulo retângulo e é rígido e
imutável; em outras ciências, podemos também falar do conceito de mamífero, ou de isótopo
etc. O problema surge em situações (como é o caso tantas vezes em Ciências Humanas) nas
quais não fica claro se se trata de um conceito ou de um tipo, o que é frequentemente discutido
em Direito e deve sê-lo também em Religião.
No Direito, discute-se a aplicabilidade de tipos (x conceitos). Derzi assim considera as
diferenças entre tipo e conceito:

Opondo-se ao nominalismo, que vê na desigualdade a característica básica do


mundo real, o conceito, no sentido aristotélico de “essência” da coisa, une os
objetos em classe pela identidade e distingue-os segundo a diferença de
espécie, mas sempre tem como pressuposto a idéia de que o conceito mais
específico e menos geral estará contido naquele superior e mais amplo da
mesma classe.
Igualmente, o tipo ordena o conhecimento segundo as semelhanças e
dissemelhanças encontráveis nos indivíduos, mas abole o rigor da identidade e
admite as transições fluidas, a comparação e a gradação entre as diferentes
ordens. (Derzi, pp. 214-215)

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E também:

O tipo, como uma nova metodologia para o Direito, vem a ser uma ordem que
se opõe ao conceito classificatório rígido e exato. Consiste em uma nova
metodologia que vem proposta tanto para ordenar o conhecimento jurídico
científico, como para aplicar o Direito em cada caso concreto. Em face dessa
concepção, o pensamento conceitual abstrato e fechado, como observa Leenen,
é considerado arcaico, vale dizer, tanto antiquado, a merecer uma superação,
como originário. (Derzi, pp. 221-222)

Mesmo para o Direito Tributário, Castro alerta para casos nos quais há a necessidade
do emprego de tipos e em que os conceitos não são apropriados:

Limitar o fenômeno tributário aos conceitos significa condenar a atividade


tributária a uma miopia inaceitável, considerando a necessidade de
financiamento das despesas públicas por intermédio de novas manifestações
econômicas que demonstram, de forma inequívoca, capacidade contributiva.
Por outro lado, o tipo mostra-se como “um sistema elástico de características”,
marcado pela abertura, pela gradação, pela flexibilidade e facilitador ou
viabilizador da apreensão dos fenômenos econômicos mais importantes para a
tributação, justamente aqueles descritos pelo constituinte. Nesse rumo, o tipo
funciona como uma categoria alternativa ao conceito e visceralmente mais
adequada para lidar com as flutuações intensas da realidade econômica.
Portanto, os vocábulos constitucionais delimitadores da realidade econômica
tributável são, em verdade, tipos.
Erroneamente, o tipo foi introduzido no direito tributário brasileiro com o
sentido de algo “fechado” ou “hermético”. Daí surgiram as expressões “tipo
tributário” e “princípio da tipicidade fechada ou cerrada”. Em verdade, o “tipo
fechado” mostra-se como uma contradição em termos. Se é tipo é aberto. Se é
fechado é conceito. Não existe o “tipo fechado”, assim como não existem o
“frio quente” ou o “branco preto”. (Castro 2011)

E foca no caso de “serviços” (e as correspondentes consequências tributárias...):

Entre os vários tipos constitucionais-tributários, o serviço aparece como um


dos mais ricos e complexos. Justamente porque as mudanças no campo
econômico produziram um considerável alargamento do que se entende por
serviço, adotada como ponto de partida a idéia de serviço como “obrigação de
fazer” ou “atividade humana em benefício alheio”.
O sentido do vocábulo absorveu de tal forma a complexidade da realidade
econômica e a representação de uma gama tão ampla de atividades que a
famosa revista The Economist chegou a consignar serviço como “qualquer
coisa vendida que não cai em seus pés”. [...] A noção em questão, vista como
tipo, pode ser atualmente enunciada, somente para efeitos práticos, como “a
realização de atividade econômica voltada para produzir alguma utilidade para
terceiro”. Assim, não escapa da caracterização como serviço a locação de bens
móveis.

Evidentemente no campo das interpretações religiosas e da moral cristã, também se dá


o embate entre a “clareza” dos conceitos e a adaptabilidade dos tipos. Quando o pastor Silas
Malafaia esbraveja suas certezas, defende-se das acusações de homofobia e preconceito contra
gays: “eu não acho, eu tenho conceitos bíblicos (...) eu não tenho preconceitos; eu tenho
conceitos firmados” e “Deixa eu te falar uma coisa que você não sabe (...) O mesmo Deus que
fala sobre amor lança o homem no inferno [etc.]” (https://www.youtube.com/watch?v=-
pwXJCotDCU – 2 min e ss.)

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Do mesmo modo, o então candidato a assumir o lugar do falecido Teori Zavascki no
STF, o ministro do TST Ives Gandra Filho, provocou polêmica ao evocar o conceito de família
e afirmar: “casais homoafetivos não devem ter os mesmos direitos dos heterossexuais; isso
deturpa o conceito de família”. (https://www.revistaforum.com.br/cotado-para-stf-ives-gandra-
filho-defende-submissao-da-mulher-ao-marido/)
Sem pretender relativizar a doutrina e a moral cristãs, lembramos o fato de que Cristo
não elaborou conceitos. Se o pensamento grego tem seu lugar no logos, nos conceitos e na
argumentação lógica; o mashal, a parábola é “a cara” do Oriente. Cristo não está preocupado
em elaborações conceituais nem empreende requintados debates lógicos: dEle, o evangelho diz
- Mt 13, 34-35 – que só falava em mashalim, parábolas: “E sem parábolas nada lhes falava,
para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta: ‘Abrirei a boca em parábolas; proclamarei
coisas ocultas desde a fundação do mundo’”. E quando é perguntado pelo “próximo”, Cristo
não procura estabelecer aristotelicamente uma conceituação teórica (“A diz-se próximo de B
se, e somente se, tal e tal ...), mas simplesmente conta a parábola do bom samaritano...

Referências
Barreto, Maria Cristina Rocha A Sociologia em Max Weber Mossoró: DCS/URRN,
1999. https://dokumen.tips/documents/leituras-de-sociologia-3-weber.html
Castro, Aldemario Araujo “Uma análise crítica acerca da idéia de serviço consagrada
na súmula vinculante 21 do STF” Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011.
http://www.sinprofaz.org.br/2014/artigos/uma-analise-critica-acerca-da-ideia-de-
servico-consagrada-na-sumula-vinculante-21-do-stf
Derzi, Misabel de Abreu Machado “Tipo ou conceito no Direito Tributário?” Revista
da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte: UFMG, No. 30-31, 1988.
https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/1046/979
Keirsey, David; Bates, M. Please understand me. Del Mar: Prometheus Nemesis, 4th
ed., 1984.
Marías, Julián Hispanoamérica, Madrid: Alianza, 1986.
Quintaneiro, Tania; et al. Um toque de clássicos : Marx, Durkheim, Weber. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
Roy M. Oswald & Otto Kroeger. Personality Type and Religious Leadership. An
Alban Institute Publication, 1988.

Recebido para publicação em 30-08-18; aceito em 30-09-18

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