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03/05/2019 Culpar socialistas pela queda do Império Romano é anacronismo grosseiro

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HISTÓRIA EUROPA

CULPAR SOCIALISTAS PELA QUEDA DO


IMPÉRIO ROMANO É ANACRONISMO
GROSSEIRO
Jornal conservador revive interpretação positivista da queda do Império Romano já
ultrapassada pela historiogra a e cai no anacronismo.

Por Mariana Virgolino Em 30 de jun de 2018

Há alguns dias, um artigo publicado no jornal conservador Gazeta do Povo, intitulado


“Como o socialismo imperial arrasou o Império Romano e levou ao feudalismo”, causou
espanto entre historiadores, especialmente aqueles dedicados ao estudo da
Antiguidade.

Com uma chamada que a rmava a existência de um “socialismo imperial” na Roma


Antiga, reproduzia um trecho da obra de Will Durant, História da Civilização, escrita
há mais de 70 anos, em um momento em que muitos achados arqueológicos que

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imperava uma escrita da História de viés positivista.

Entendamos, então, os motivos segundo os quais a visão de Durant (e, portanto, do


jornal) sobre a economia antiga e a transição entre o Império Romano e o Medievo não
é mais aceita pelos especialistas e por que a publicação do trecho da obra dos Durant
é falaciosa.

A origem da falácia “socialismo imperial que


destruiu o império romano”

Curso do Império — Destruição, de Thomas Cole.

William “Will” J. Durant (1885–1981) foi um importante intelectual público dos Estados
Unidos. Foi crítico da intolerância étnica vivenciada nos anos 1930–40, escreveu sobre
o Irã, defendeu a independência da Índia contra os abusos do imperialismo britânico.
Doutor em Filoso a pela Universidade de Colúmbia, foi jornalista e professor. É
lembrado por duas grandes obras: a primeira foi História da Filoso a, livro publicado
em 1926, focado na apresentação das ideias de alguns lósofos ocidentais, de
Sócrates a John Dewey, de quem foi aluno. A segunda foi elaborada juntamente com
sua esposa, Chaya (Ida) “Ariel” Durant (1898–1981). História da Civilização é a grande
obra dos Durant, um compêndio sobre história mundial em 11 volumes, publicada entre
1935–1975 e inspirada em An Introduction to the History of Civilization, do britânico
Henry Thomas Buckle, também uma coleção sobre História Geral. Ariel só recebe os
créditos por seu trabalho a partir do sétimo livro da série.

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universitários, impulsionada pelos crescentes movimentos nacionalistas europeus,
especialmente o francês e o alemão. A partir de meados do século XIX buscou-se a
aplicação de técnicas rigorosas na análise da documentação: desejava-se uma
objetividade que trouxesse aos estudos históricos um rigor cientí co e o
reconhecimento dos mesmos como uma ciência. Pululam, então, manuais escolares
que, em sua maioria, interpretavam os acontecimentos históricos das diversas
sociedades como estágios em seu desenvolvimento civilizacional inspirados pelo
evolucionismo das ciências biológicas, o que hoje não é mais aceito pelos
historiadores. Assim, a história de sociedades como Grécia e Roma era tida como um
primeiro passo no processo civilizatório ocidental, o que é ainda advogado por grupos
conservadores, que tendem a negar a pluralidade dessas sociedades e a inspiração
que outros povos próximos deram à sua cultura, política e economia. A noção de
História contida nesses manuais e compêndios muitas vezes buscava justi car a
dominação sobre os povos e territórios da Ásia e da África durante o século XIX como
meio de levar “civilização” a essas partes do globo. Não era o caso de História da
Civilização.

Tendo como foco o público geral, a coleção logo se tornou um grande sucesso e os
autores ganharam o prêmio Pulitzer de Não-Ficção em 1968 pelo décimo volume do
compêndio, cujo tema é Iluminismo e Revolução Francesa. A História da Civilização
tinha como mote levar ao público não especializado conhecimento sobre o
desenvolvimento das grandes sociedades europeias não apenas por viés político,
como era de praxe nos manuais da época, mas também abordando seus traços
culturais.

Por m, devido ao escopo da obra, acabaram por escrever uma análise que dependia e
utilizava largamente as conclusões de outros historiadores, estes sim especialistas
em suas respectivas temporalidades, uma vez que não é possível dar conta de
pesquisar todos os períodos históricos. Tratou-se, portanto, de uma “história de
segunda mão”, que sintetizava as visões dos historiadores famosos da época.

Mesmo defendendo que Grécia e Roma eram devedoras das trocas com o Oriente no
primeiro volume da História da Civilização, as ideias nas quais se basearam para
explicar a economia e a política antigas eram, principalmente, as de Mikhail
Rostovtzeff (1870–1952), classicista nascido na Rússia e que emigrara para os EUA na
década de 1920, vindo a se tornar uma grande referência para a História Antiga feita

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feminino, equidade salarial, direitos para o operariado americano, e tendo ertado
com ideais socialistas, além de terem participado da Escola Moderna (de princípios
anarquistas) —, os Durant muitas vezes zeram uso de autores que não
compartilhavam de suas visões, mas que eram famosos em sua época nos EUA, como
Rostovtzeff.

Fiel a uma visão da escrita da história chamada de metódica ou positivista,


Rostovtzeff entendia a História como um fazer literário que devia tratar das grandes
narrativas e grandes feitos: sua preocupação estava na formação e queda dos
impérios ateniense e romano.

Acreditando ser a tarefa do historiador investigar e descobrir as leis que regem as


sociedades humanas; para ele, sociedades antigas passariam por processos
semelhantes aos da Europa Ocidental da virada dos séculos XIX e XX. A diferença
entre o que ele via como um capitalismo antigo e o de seu tempo seria em termos de
quantidade, não de qualidade: para ele, a economia antiga tinha livre comércio e
iniciativa pessoal, ignorando em sua análise diversos aspectos das economias
capitalistas contemporâneas, como especulação e a existência de salários mínimos.

Rostovtzeff via a democracia ateniense como equivalente ao socialismo soviético,


podando a livre iniciativa da “burguesia”. O Império Romano teria também se tornado
muito parecido com a Rússia pré-Revolução: no século III de nossa era, segundo o
entendimento de Rostovtzeff reproduzido na obra de Durant, teria havido uma aliança
entre camponeses e militares. Os imperadores da Roma tardia, oriundos nessa época
de setores do exército, teriam estrangulado a “livre iniciativa” econômica ao controlar
preços e distribuir alimento à população. A interpretação desse historiador sobre o
declínio do Império Romano relega a segundo plano até as tensões provocadas pelas
invasões bárbaras.

Logo, Rostovtzeff se encaixa no que os historiadores chamam de corrente


modernista, aplicando noções de seu tempo (burguesia, capitalismo, etc.) às
sociedades que tinham uma lógica comercial bastante diferente do capitalismo da
transição entre os séculos XIX e XX.

O erro de observar o passado com a visão do


presente
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Como bem colocou G.W. Bowersock em 1974, “hoje não há, provavelmente, nenhum
historiador respeitável que aceite as teses básicas do livro de Rostovtzeff”. Não era o
que ocorria quando os Durant, na década de 1940, escreveram o volume sobre a
história de Roma. Hoje entende-se, conforme lembra Pierre Grimal, que as ações de
Aureliano e Diocleciano ampliaram a sobrevida do Império. O que vai contra ao
argumento presente nos trabalhos de Rostovtzeff, que serviram de base para a
História da Civilização de Durant.

As discussões entre as duas correntes clássicas sobre a economia antiga, chamadas


pelos especialistas como “Debate do Oikos”, tiveram início em 20 abril de 1895 em
Berlim, no Terceiro Congresso de Historiadores Alemães. Eduard Meyer, que se
tornou um dos principais defensores do que caria conhecido como a “visão
modernista”, se opôs às visões do economista Karl Bücher, entendido como principal
nome do que viria a ser conhecido como “corrente primitivista”. A “Economia do
Oikos”, formulada pelo último, defendia que, na Antiguidade, a casa/oikos (no sentido
de household, em inglês), não era apenas um local para habitar, mas consistia na
agregação de homens de forma a constituir uma comunidade econômica.

Conforme esclarecem Michel Austin e Pierre Vidal-Naquet, Bücher se inspirou nas


ideias de Karl Rodbertus e formulou três estágios evolucionistas pelos quais a história
econômica da humanidade teria passado: Economia doméstica fechada, Economia
Urbana e Economia Nacional, cada um deles correspondendo à Antiguidade, ao
Medievo e o último con guraria a economia capitalista. Na visão de Bücher, as
sociedades antigas não possuíam sistema de trocas. O oikos (casa) seria uma unidade
autônoma, produziria tudo o que ele mesmo consumisse. Assim sendo, caracterizar-
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os adeptos dessa corrente: primitivistas.

Eduard Meyer se opôs de forma contundente às noções de Bücher, aplicando


conceitos e terminologias da economia capitalista de ns do século XIX às
sociedades clássicas, tais como indústria, classe e status. Em sua análise, o que
muda da economia antiga para contemporânea é a escala: o comércio e a indústria
ocorriam em menor escala na Antiguidade pois a população era em número menor. Os
autores que defendiam essa linha de interpretação da economia antiga (incluindo
Rostovtzeff) caram conhecidos como modernistas justamente por transportarem
noções de seu tempo para sociedades da Antiguidade.

O tempo acirrou os debates entre as duas correntes e, por m, a posição modernista


prevaleceu entre os historiadores até meados do século XX, pois essa fazia um melhor
uso das fontes escritas. Como principal erro de ambas as teorias, Pierre Vidal-Naquet
e Michel Austin apontam a crença numa evolução econômica unilinear, enquanto a
discussão sobre a validade do uso de categorias modernas nem sequer entrou em
pauta, o que hoje é visto como anacronismo. Neste sentido, a contribuição de Max
Weber para o estudo da economia das cidades antigas foi fundamental, pois mudou o
foco do debate: a questão não era mais dos estágios de evolução econômica, mas sim
a articulação entre economia e política.

Dentre as interpretações sobre a economia antiga que se seguiram, desconstruindo


os argumentos das posições anteriores, temos Moses Finley, que adotou a noção de
“cidade antiga” como um tipo ideal, concordando com a ideia weberiana da cidade
antiga grega e romana como centros não produtores, mas consumidores. Karl Polanyi
também contribuiu largamente para a área, defendendo que um mercado regido por
autorregulação era algo recente na história humana, não existindo na Antiguidade.

Conclusão
Assim sendo, ao reproduzir o trecho da obra dos Durant em que atribui ao controle
imperial da economia as motivações para a queda do Império Romano, cuja origem
está nos trabalhos de Mikhail Rostovtzeff, chamando-a mesmo de um “socialismo
imperial”, o jornal conservador Gazeta do Povo não é apenas anacrônico, como ignora
mais de 70 anos de pesquisas e debates na área que mostram que a desestruturação
do império romano do Ocidente foi um processo multifacetado, com razões não
apenas econômicas, mas também políticas e culturais.
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que você esteja de acordopara interesses
com as do presente,
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não analisa a economia romana sob suaConcordo
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mais sim procura projetar no

passado ideias que corroborem suas crenças contemporâneas. Ao reproduzir as


convicções de Rostovtzeff para a queda do Império Romano, a História da Civilização
acabou por ver na Roma Antiga a Rússia do início do século XX.

Referências

AUSTIN, M. & VIDAL-NAQUET, P. Economia e Sociedade na Grécia Antiga. Lisboa:


Edições 70, 1986.

BOURDÉ, G. & MARTIN, H. As Escolas Históricas. Mem Martins: Publicações


Europa-América, 2012.

BOWERSOCK, G.W. The Social and Economic History of the Roman Empire by
Michael Ivanovitch Rostovtzef. Daedalus, 103, n.1, 1974, p.15-23.

CARVALHO, Alexandre Galvão. A Economia Antiga: História e Historiogra a.


Vitória da Conquista: Uesb, 2011.

DURANT, W. A História da Filoso a. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

DURANT, W. Story of Civilization: Our Oriental Heritage. Nova York: Simon &
Shustler, 1935.

DURANT, W. Story of Civilization: The Life of Greece. Nova York: Simon & Shustler,
1939.

DURANT, W. Story of Civilization: Caesar and Christ. Nova York: Simon & Shustler,
1944.

GRIMAL, P. História de Roma. São Paulo: Unesp, 2011.

REINHOLD, M. Studies in Classical History and Society. Oxford: Oxford University


Press, 2002.

ROSTOVTZEFF, M. História de Roma. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.

ROSTOVTZEFF, Mikhail. The social & economic history of the Roman Empire. Nova
Iorque: Biblo & Tannen, 1926.

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