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Resumo do Livro: ”História da Loucura” de Michel Foucault

O presente trabalho tem por objetivo apresentar o conceito de loucura


desenvolvido por Michel Foucault em seu livro História da Loucura. Descreve-
se o fenômeno da loucura desde o Renascimento até a modernidade,
mostrando que a maneira de o homem tratá-la foi mudando através dos
séculos. Com o advento da Psiquiatria, houve algumas transformações no
tratamento fornecido à loucura: o louco não tinha chão, não era dono de seu
pensamento, de sua cidadania, de sua identidade, nem tampouco de seu
comportamento. A metodologia escolhida foi a epistemológica, realizando-se,
dessa forma, uma leitura detalhada das idéias do autor. Considera-se uma
pesquisa de suma importância devido ao valor que se tem dado à loucura e
aos inúmeros estudos acerca de suas manifestações.

Por ser uma pesquisa epistemológica, não houve o desenvolvimento empírico,


bem como trabalhos de campo e de laboratório. Considera-se uma pesquisa de
suma importância Devido ao valor que se tem dado à loucura e aos inúmeros
estudos acerca de suas Em seu livro História da Loucura, Foucault apresenta o
fenômeno da loucura desde o Renascimento até o seu total estabelecimento na
sociedade. Sendo que, não só a maneira de o homem lidar com a loucura
sofreu transformações com o passar dos séculos, mas também o modo pelo
qual esta foi encarada pela razão. Toda a narrativa de Foucault começa com a
disseminação da lepra através das Cruzadas. Estas, por motivos diversos, iam
até o Oriente, principal foco de contaminação da enfermidade, e de lá traziam a
doença, que começou a se espalhar rapidamente por toda a Europa, atingindo
muitas pessoas. Inúmeros estabelecimentos precisaram ser construídos para
abrigar tanta gente.

De início, o poder real mantinha e assumia o controle e a reorganização dos


bens dos leprosários. No entanto, as rendas obtidas por estes bens eram
empregadas não só no tratamento de soldados, como também na alimentação
de homens pobres.

Em 1672, dois leprosários na França – Saint Lazare e Mont Carmel – assumem


a função do poder real e passam a administrar os outros leprosários. Em 1695,
os bens passam a ser administrados por outros hospitais e estabelecimentos
de assistência. No entanto, a lepra já começa a desaparecer (pelo fim das
Cruzadas), e os bens e as rendas destinados a ela são direcionados com bem
mais freqüência aos pobres. O personagem do leproso é como um ser que já
carrega consigo uma marca, um estereótipo, com inúmeras atitudes já
predeterminadas pela população, por isso excluído desta. Há realmente uma
contradição a respeito do tratamento dos leprosos pela Igreja e pela população
porque, segundo a Igreja, a existência dos leprosos é uma manifestação de
Deus – ainda que os leprosos sejam retirados da sociedade e da “comunidade
visível da Igreja” (Foucault, 1972, p. 6). É uma manifestação de Deus, no
sentido de que foi este que criou os leprosos e ordenou que estes viessem ao
mundo.
Com falsas idéias e muita hipocrisia, a Igreja afirma que, embora afastados da
Igreja e das outras pessoas, os leprosos não estão afastados de Deus. Assim,
é preciso que tenham paciência, para que, assim, o lugar no reino dos céus
lhes seja garantido. Com o fim da lepra, a estrutura onde o leproso era mantido
permanece. Contudo, este lugar será para sempre um local de exclusão, onde
outros excluídos serão encaminhados e esperarão a ‘salvação’. No lugar da
lepra surgem as doenças venéreas, que se disseminam rapidamente.
Primeiramente, os doentes são colocados nos antigos hospitais dos leprosos.
Porém, à medida que se multiplicam, é necessário que se construam outras
estruturas em lugares ‘espaçosos’ e longe das pessoas. Mas estas doenças
não terão tanta importância, assim como a lepra teve e a loucura terá, e
acabarão por se enquadrar junto às outras doenças costumeiras. Por ter se
tornado “de âmbito do médico” (Foucault, 1972, p. 8), as doenças venéreas
exigiam tratamento. Pelo fato de ser preciso internar o doente para tratá-lo,
elas se integraram juntamente com a loucura, num espaço moral de exclusão.
Dessa forma, pode-se concluir que as pessoas acometidas de lepra, doenças
venéreas e loucura representam os excluídos da sociedade (Foucault, 1972, p.
6), que necessitam com urgência desaparecer da visibilidade das pessoas.
Assim, hão de carregar sempre com eles este estigma – a marca da
discriminação e exclusão.

Na Renascença, os loucos eram colocados em barcos e navios e carregados


para cidades longe das suas em busca da razão. Havia partidas de navios
especialmente para levar os loucos. Quando estes chegavam nas cidades,
eram enxotados pelos moradores. No entanto, havia locais destinados a
colocar os loucos, existindo, assim, a possibilidade de que os que fossem
enxotados fossem aqueles provenientes de outras cidades, enquanto que os
que ficavam eram oriundos delas. Hospitais e cidades faziam peregrinações
dos loucos, e, às vezes, um grande número deles estava concentrado em
lugares que não eram seus de origem. Em algumas cidades, os insanos
chegavam a receber donativos da população. Marinheiros atracavam em
lugares comerciais e ali deixavam os loucos. Estes, quando acolhidos e
mantidos pela cidade, eram levados para a prisão. Alguns insanos eram
chicoteados publicamente e enxotados. Apesar de o louco não poder
freqüentar a Igreja, podia receber a comunhão. O fato de o louco ser levado
para outros lugares através da água mostrava o efeito purificador que esta tem.
“A navegação entrega o homem à incerteza da sorte.” (Foucault, 1972, p. 12) O
mar é traiçoeiro, inesperado, incerto, ‘prega peças’.

Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais aberta das
estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à imensidão do mar. O
lugar para onde o insano estava indo não era a sua terra, muito menos era
aquela que ficou para trás. A terra do louco se limita à distância entre ambas as
terras, a que foi sua e a que nunca será. Dessa forma, a água simboliza esta
aterritorialidade com a qual a loucura será presenteada pelo Ocidente.
Literalmente, o louco não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha
grades (Foucault, 1972, p. 12). A loucura passa a ser tema principal da
literatura, do teatro, enfim, das artes como um todo. Neste espaço, o louco não
é visto mais como uma figura boba, e sim como o detentor da verdade
(Foucault, 1972, p. 14).
Na segunda metade do século XV, com as guerras e as pestes assolando as
cidades sem controle, o tema da morte reina e ninguém escapa. Entretanto,
nos últimos anos do século, a loucura substitui a morte, e é esta ascensão que
indicará que o mundo está mais próximo do que se pensa do seu desastre.
Inúmeras imagens, telas, quadros, com faces enigmáticas de difíceis
compreensões, surgem. A imagem dá margem a diferentes interpretações. Daí
o fato de ela e a palavra expressarem diferentes significados. Essas imagens
surgem através dos sonhos, e por isso exercem tanto fascínio através dos
tempos. A loucura representada é vista como um saber obscuro, que esconde
segredos e que por isso mesmo precisam ser desvendados. Na Idade Média, a
loucura divide sua soberania com mais doze fraquezas da alma humana, como
luxúria, discórdia e outras. No entanto, na Renascença, a loucura passa a
dominar todas as fraquezas humanas. Isso porque a loucura é visível, não
esconde nada, não obscurece; ela atrai as pessoas pelo fato de conseguir
manter uma dominação sobre as coisas. A loucura faz um sarcasmo do saber.
Segundo Erasmo de Rottterdam (apud Foucault, 1972, p. 24), pelo fato de a
loucura ser uma fraqueza humana, “ela é um sutil relacionamento que o
homem mantém consigo mesmo”. A partir do momento que o homem se apega
a si mesmo, ele se ilude, surgindo, então, o primeiro sinal da loucura. A loucura
aparece como uma suposição para esta ignorância humana. Ela não diz
respeito à realidade do mundo, mas sim à realidade que o homem acredita
existir.

No século XV, a loucura aparece como sátira moral na Literatura e Filosofia. O


mundo é facilmente dominado pela loucura. Tanto Bosh quanto Brueghel (apud
Foucault, 1972, p. 25) tinham uma visão muito próxima da loucura – levando-os
a fazer uma reflexão moral a seu respeito, isto porque ela estaria ligada ao
homem, com suas fraquezas, sonhos e ambições (Foucault, 1972, p. 24). Já
Erasmo (apud Foucault, 1972, p. 26) via a loucura estabelecendo uma certa
distância, distância esta que permitia uma visão mais crítica. (Foucault, 1972,
p. 26) As pinturas de Bosh (apud Foucault, 1972, p. 26) são pinturas que
mostram e revelam a essência dos homens, o homem visto através do seu
interior. Com o silêncio das imagens, a loucura desenvolve seus poderes.
Erasmo, com sua tradição humanista, afirma a existência da loucura através do
discurso. Este discurso seria expresso através da consciência crítica dos
homens. Com isso, “o homem era confrontado com a sua verdade moral, com
as regras próprias à sua natureza e à sua verdade”. (Foucault, 1972, p. 27)

Por conseqüência, enquanto esta visão crítica ia fortalecendo-se, a visão


trágica ia enfraquecendo-se, embora nunca tenha deixado de existir – como se
pode comprovar nas obras de Sade, Goya e Freud. Esta visão crítica ganhava
força através da racionalidade, ao passo que a visão trágica se enfraquecia
devido à carga emocional empregada. Dessa forma, a razão se tornou
predominante sobre a emoção. A loucura, até o final do século XVIII, teve
existência relacionada com a razão. Elas estavam extremamente implicadas.
Esta se integrava na razão podendo até ser uma forma de sua manifestação. A
loucura levava à sabedoria, e a razão toma consciência da loucura. A loucura é
a “força viva e secreta da razão” para os renascentistas, por exemplo.
(Foucault, 1972, p. 31) No século XVII, em Cervantes e Shakespeare (apud
Foucault, 1972, p. 39), a loucura sempre ocupa um lugar extremo no sentido de
que ela não tem recurso. É uma loucura que opera sobre a morte, que precisa
da “misericórdia divina” (Foucault, 1972, p. 39). No entanto, a loucura ainda
triunfará, pois a morte não trouxe a paz. Após abandonar estas regiões em que
estava situada, a loucura passa a ser relacionada com a aparência de um
crime. Sua seriedade dramática só existe na medida em que se trata de um
falso drama. “A partir dela, a ilusão se desfaz” (Foucault, 1972, p. 40). Esta é a
troca do real pelo ilusório. A loucura é capaz de levar as pessoas a desenvolver
uma falsa percepção dos sentidos, levando a crer que determinadas partes do
corpo não fazem parte do corpo do insano. Assim, é importante ter consciência
do conceito de loucura e se o indivíduo é ou não louco, não bastando ter um
pensamento lógico e coerente se ele não acredita que é são. Descartes,
através da sua dúvida metódica e de seu subjetivismo transcendental, mostra a
razão pura como meio de se chegar à verdade, alocando a loucura ao lado do
sonho e de todas as formas de erro (Foucault, 1972, p. 45). Para ele, um ser
que cogita (pensa) não pode estar louco. Dessa forma, para ele, que submete
tudo à dúvida, até mesmo os próprios sentidos, chega à conclusão de que não
é possível duvidar do pensamento: “Penso, logo existo”. Assim, se duvido, não
posso estar louco, pois duvidaria de minha própria loucura. Esta dúvida
metódica fez com que na dialética razão-não-razão (século XVII) a vencedora
fosse a razão.

A partir do século XVIII, a loucura está fora da interlocução com a razão. Por
isso, o homem da contemporaneidade deixou de se comunicar com o louco.
Assim, a ciência a transformou numa patologia. Para ela, quem percebia o
verdadeiro, a essência das coisas, estava longe de ser um insensato. E o louco
era desprovido destes atributos. A exclusão topográfica foi substituída pela
exclusão lógica. Para exercer sua cidadania no seu território, só há duas
alternativas ao louco: zanzar pelos rios e mares ou ser confinado sob grade. E
agora, de explosão expressiva na Literatura, passa a ser silenciado na sua voz
inefável. Não tem o que dizer. O século XVII chega com a criação de uma
quantidade bastante razoável de casas de internamento. Muitas pessoas são
enviadas para estas instituições. Assim, a loucura podia ser mais bem
percebida através da quantidade de internamentos. Nestes locais, os insanos
tinham péssimas condições de vida, viviam em condições subumanas, em
locais sujos, frios, lotados de gente e sem comida. Para que fosse internado, o
insano não dependia da idade, nem do sexo, nem se seu caso fosse curável ou
não. Era dever dos hospitais dar não apenas atendimento médico aos insanos,
mas também ter o direito de decidir por eles e julgá-los, quando necessário.
Logo no início, a instância da ordem era ligada ao poder real. Aos poucos, este
poder foi concedido à burguesia. Pode-se então concluir que, para o louco, há
exclusão topográfica, exclusão lógica e exclusão política. Sem chão, sem razão
e sem cidadania. Na Inglaterra, para manter as casas de correção, a população
ajudava com donativos, embora estes não surtissem efeito. Algumas empresas
privadas passaram então a ter o domínio sem ter de pedir permissão para abrir
mais casas.

No fim do século XVIII há um total de 126 (cento e vinte e seis) casas de


correção na Inglaterra. Anos depois espalham-se por toda a Europa. A própria
população ajuda a isolar os insanos, segregando-os e atribuindo-os uma nova
pátria. O internamento aparece como algo desumano, onde revela que os
insanos não podiam responder por si mesmos – já que, por serem loucos, não
tinham consciência dos seus atos; eram predestinados. Segundo o
Protestantismo de Lutero, as obras de caridade levavam à salvação porque
com elas todos os pecados podiam ser redimidos. As instituições que recebiam
estas doações (porque elas não iam para o clero) tinham administradores que
geravam as finanças. Estas instituições representavam um castigo moral da
miséria, porque esta era considerada como uma desordem quanto à ordem
estabelecida. Esta filosofia protestante tinha a intenção de colocar o trabalho
num local rivilegiado: o trabalho como sendo fundamentado e comprovado pela
fé. Esta concepção foi tão disseminada que a Igreja Católica logo se viu
impelida a aplicar os conceitos protestantes a sua religião. Assim, esta adotou
uma percepção da miséria já desenvolvida pelo Protestantismo, dividindo os
miseráveis em dois grupos:

– Região do bem e da pobreza submissa, que aceita o internamento e encontra


o seu descanso.

– Região do mal e pobreza insubmissa, que recusa o internamento. “Uns


seriam filhos de Deus enquanto outros do demônio” (Foucault, 1972, p. 61).

Esta oposição entre bons e maus vai levar a uma divisão da loucura, segundo
esta dicotomia. A miséria perde o sentido místico porque ela não remete mais à
presença de Deus. Enquanto o louco da Idade Média era considerado como
sagrado, no século XVII ele foi dessacralizado. Assim, a loucura, antes de
natureza religiosa, passa a ser puramente moral, confrontando os costumes e
ultrapassando os limites do que se considerava normal. No século XVII, o
internamento aparece não com a intenção da cura, mas com o sentido de
disciplinar a mendicância e a vagabundagem. Isto é, os loucos, por ficarem na
ociosidade e mendigando, eram internados para que exercessem atividades.
Este louco nasce de uma sensibilidade moral; ele é excluído porque seu lugar é
entre os miseráveis; ele perturba a ordem social. Com isso, o louco passa a ser
propriedade do Estado. E, ironicamente, em tempos de crise o Hospital Geral
tinha o direito de dar trabalho aos desempregados, e quando não havia crise o
trabalho era oferecido aos presos com o intuito de obter mão-deobra barata
e/ou reabsorver os ociosos. Duas críticas podem ser extraídas: além de esta
concepção seguir totalmente a ética burguesa, o hospital geral não possuía um
caráter médico, mas meramente normal. Neste contexto havia também uma
outra exclusão: o louco não era dono de seu chão, de seu pensamento e de
sua cidadania, nem tampouco de seu comportamento. A direção de suas ações
era declinada por um tutor.

Ainda no século XVII, o parlamento de Paris (1606) decide, através da força,


punir aqueles que não retomaram o lugar na sociedade. Estes seriam
“chicoteados em praça pública, marcados nos ombros e expulsos da cidade”
(Foucault, 1972, p. 64). Isto quando não recebiam a forca ou a guilhotina, que
serviam de espetáculo para as multidões, com o propósito de ser exemplo de
constrangimento para as repetições.
No entanto, com os efeitos da renascença econômica, aumenta o desemprego
e os mendigos se multiplicam. As medidas de exclusão não são as mesmas de
antes e a sociedade passa a cuidar dos desocupados. Em troca, “ele precisa
aceitar a coação física e moral do internamento” (Foucault, 1972, p. 64). Em
toda a Europa o internamento surge pelos mesmos motivos: diminuição do
salário, escassez de moeda, desempregos e outros problemas econômicos. A
Inglaterra, mesmo sendo a mais independente entre todas as nações, também
está infestada de mendigos. Pelo fato de estar fora do continente, os mendigos
são mandados em comboios para as terras recém-descobertas no lado
oriental. [1] Sempre que surgia uma crise econômica, as casas de internamento
se enchiam e retomavam a sua significação original. O século XVIII estava em
crise, inúmeras manufaturas se fecharam e muitos desempregados surgiram.
Fora da crise, o internamento era uma forma de dar trabalho àqueles que
estavam presos, e no período da crise o internamento protegia a sociedade
contra a agitação decorrente do desemprego. Isso justifica o fato de que as
primeiras casas de internamento foram construídas em regiões industriais
como Worcester, na Inglaterra. É importante ressaltar que o trabalho não servia
apenas como ocupação, mas também como um meio de produção.[2] Alguns
empresários faziam acordos com as casas de internamento fornecendo a
matéria-prima e sendo depois devolvido a eles o produto já pronto e feito pelos
internos. As casas de internamento desaparecem no começo do século XIX,
quando o seu real objetivo ficou mais visível: o de “recepção de indigentes e
prisão da miséria” (Foucault, 1972, p. 70).

É no século XIX que os loucos irão ocupar os lugares antes ocupados pelos
vagabundos e miseráveis, sendo também submetidos aos trabalhos
obrigatórios. No entanto, distinguemse dos outros pela incapacidade de seguir
os ritmos da vida coletiva. Os hospitais gerais tinham o poder de autoridade,
direção, administração, correção e punição. Nas cidades onde o
Protestantismo predominou, as instituições ensinaram, além da religião, o
necessário para o descanso das cidades (Foucault, 1972, p. 76). No século
XVII “a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade
para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo” (Foucault, 1972, p.
7).O internamento “é a eliminação espontânea dos a-sociais” (Foucault, 1972,
p. 78).

Na era clássica, a loucura era apreendida como desorganização familiar,


desordem social e perigo para o estado. Aos poucos, este conceito evoluiu e
chegou-se à conclusão de que a loucura era uma doença de natureza médica.
Algumas práticas de profanação e de formas de sexualidade mantinham um
arentesco com a loucura, segundo era evidenciado no final do século XVIII. Os
doentes venéreos eram tratados no hospital geral, e cabia a este indicar o
melhor tratamento. Homens e mulheres eram mantidos separados e a
assistência que recebiam era precária. Isto segue a crença de que estes
doentes estavam internados para pagar as dívidas, e devia-se prepará-los para
o castigo e a penitência. Assim, só eram recebidos aqueles que queriam se
corrigir, e, para isso, precisavam ser chicoteados. Logo no início, os doentes
venéreos recebiam o mesmo tratamento que as pessoas atingidas pela fome,
pelas pragas. Sua doença não tinha relação com a imoralidade e não eram
vistos como pessoas diferentes. Porém, é ao final da Renascença que esta
visão muda. A doença é vista como punição e vingança pela luxúria cometida.
Era uma resposta à vida libidinosa dos homens.

Passam a ser excluídos e são exilados dentro dos hospitais gerais. É dentro
destas instituições que eles se agrupam com “intenção purificadora” (Foucault,
1972, p. 85) mediante as chicotadas, os medicamentos e as penitências. O
flagelo designa a culpa. No entanto, estes ritos eram assimilados ao pecado,
isto é, estas medidas só valiam para quem contraísse a doença antes do
casamento. Assim, homens e mulheres eram amontoados nos hospitais;
recebiam no máximo seis semanas de cuidados e os casos mais graves eram
deixados isolados para que morressem. Fazia-se sangrias, dava-lhes banhos,
aplicava-lhes mercúrios. Era preciso que cuidassem do corpo, pois ele levava
ao pecado. Era preciso “deixar marcas dolosas no corpo, castigá-lo porque é a
saúde que nos leva ao pecado” (Foucault, 1972, p. 86). Neste ponto, verifica-se
que o louco não era proprietário do seu próprio corpo. Durante alguns séculos,
os doentes venéreos viveram lado a lado com os insanos. Isso levou para o
mundo moderno um “obscuro parentesco que destinou a ambos o mesmo lugar
no sistema de punição” (Foucault, 1972, p. 87). O espaço do internamento
seria, então, um ponto comum entre “os pecados contra a carne e as faltas
contra a razão” (Foucault, 1972, p. 87). O pecado começa a rondar a loucura e
aí se estabelece o parentesco entre a culpa e a falta de razão.

Em 1726, um homem foi condenado a ser queimado vivo por ter cometido
crimes de sodomia. A sodomia era condenada por razões morais, ao lado da
homossexualidade. O que para a Renascença era liberdade de expressão,
para a Era Moderna vai ser o lado proibido desta liberdade. A
homossexualidade sempre foi vista como não pertencente ao amor racional e
sim ao desatino. Com isso, aos poucos ela se encaixou nas subdivisões da
loucura. A Psicanálise afirma que toda loucura se origina na sexualidade
perturbada. (Foucault, 1972, p. 90) O internamento e toda estrutura social que
o envolve serviu para controlar e dar ordem não só à estrutura familiar, mas
também à sociedade. Um outro motivo para o internamento surgiu com a
blasfêmia. Penas como incisão nos lábios com ferro em brasa, fogueira,
pelourinho eram dadas aos que cometiam este crime. No entanto, com o
passar dos anos, diminuiu-se a punição aos blasfemadores devido ao fato de
as casas de internamento estarem cheias deles. Também as pessoas que
usavam de procedimentos mágicos, receitas de feitiçaria eram vistas como
pessoas sem moral e que podiam manter uma desordem social. Estas pessoas
eram punidas, internadas, podiam ser expulsas da cidade e em casos extremos
condenadas à morte. Ritos de magia, blasfêmia, libertinagens deslizavam de
um domínio onde tinham sentido para um sem sentido: o insano. Gestos e
condutas profanatórias tinham o sentido patológico da obsessão a partir do
momento que sua eficácia não era reconhecida.[3] É durante o século XV que
as pessoas mais cultas começam a renegar as idéias da existência de
demônios, bruxas, feitiçarias por achá-las absurdas, sem nexo. Ao invés de
uma possessão de espíritos malignos, passa-se a pensar em alienação, perda
da função mental. Assim, é nesta época que a loucura passou a ser concebida
como um processo mental, podendo ser vista através de comportamentos ou
modos de pensamento.
Com o movimento renascentista, entra em vigor o pensamento científico
(descoberta da circulação do sangue e nervos), que trouxe como conseqüência
uma maior instrução das pessoas, além também de ser um período de lutas
pela conquista dos direitos humanos. Assim, passa a fazer sentido conceber
que a doença mental surgia por causa de um mau funcionamento do cérebro e
da circulação do sangue. É durante o século XVII que a doença mental é
encarada como sofrimento do homem enquanto ser humano. Se trata de um
déficit, aquele mais cruel com o homem: o da razão. A loucura é o seu lado
negativo. A criação dos hospitais gerais assemelhava-se às prisões. Os
hospitais destinavam-se aos insanos e aos homens desatinados. Foucault
retrata que a loucura foi tratada de uma forma ‘ignorante’, que os homens
fecharam os olhos para ela não dando tratamento nem internação adequada.

Uma palavra simbolizou a loucura: furioso. Durante séculos ela esteve presente
nos livros de internamento, “alcançando as mais diversas formas de violência,
desde desordens da conduta até desordens dos hábitos e costumes” (Foucault,
1972, p. 112). Porém, agindo desta maneira, a era clássica falhou ao tratar
doente e criminoso da mesma maneira, sem fazer distinção e sem dar
tratamento diferenciado. Isso mostra que o “mundo da loucura não é totalmente
uniforme” (Foucault, 1972, p. 112). Alguns insanos tinham tratamento especial,
uma espécie de pré-internamento antes do internamento propriamente dito.
Algumas instituições tinham tratamentos mais específicos, só que mesmo
assim era muito grande o número de loucos nos leitos, e estes se amontoavam
lá dentro.[4]

Nos hospitais gerais, os médicos visitavam os doentes duas vezes por semana,
e esta falta de atenção aos insanos deixava o hospital no mesmo patamar da
prisão, inclusive quanto à imposição das regras. Assim, a única utilidade dos
médicos era não deixar que as doenças infecciosas e contagiosas
contaminassem os outros internos, nem suas famílias. O objetivo do
internamento era a correção. O internamento era “um tempo para que o castigo
cumprisse o seu efeito” (Foucault, 1972, p. 116). Na França, no século XVIII, os
loucos eram encontrados nas prisões misturados aos criminosos e vice-versa.
[5] Havia algumas instituições que só recebiam as pessoas cuja doença podia
ser curada; outras as recebiam para tentar livrá-las da sociedade. Assim, as
duas formas de enxergar a loucura na era clássica (como doença e como
crime) explicam a percepção que se tinha da loucura naquela época. Alguns
loucos[6] receberam o estatuto de doente (no sentido de sua loucura ser uma
doença), enquanto os do hospital geral ainda recebiam tratamentos
homogêneos e indiferenciados. No mundo árabe, os hospitais para loucos
surgiram bem antes do que na Europa. Há registros de que desde o século VII,
em Fez, os loucos já eram internados. Os médicos voltavam-se totalmente para
a cura e só davam alta ao doente quando este estivesse curado.Em Bagdá, “o
primeiro hospital foi fundado no fim do século XII” (Foucault, 1972, p. 120). Na
Europa, o primeiro país a construir hospitais foi a Espanha,[7] espalhando-se,
depois, por outros países. O fato é que na Idade Média o louco estava presente
na vida diária das pessoas, era visto e se agrupava na sociedade. Na
Renascença ele é reagrupado de uma maneira que o isola de todos, tornando-
se um objeto desumanizado. O louco internado com outras pessoas
(homossexuais, libertinos, doentes venéreos) perdeu sua individualidade.
Dentro dos hospitais ficava difícil diferenciar o louco, que se perdia no meio de
muitos tipos de aberrações.

Na era clássica surgiram os hospitais de internamento, as casas de correção –


instituições diferentes, que separavam o louco do criminoso. Nesta época, a
loucura era de âmbito médico, isto é, só era reconhecida pelo médico. Este,
através de todos os sinais e sintomas visíveis, bem como ciente da história de
vida da pessoa, podia determinar a natureza da doença e verificar quais áreas
psíquicas haviam sido atingidas. Somente ele podia “distinguir o normal do
insano, o criminoso do alienado irresponsável” (Foucault, 1972, p. 127). Porém,
não era assim em todos os países. Enquanto na França era o médico quem
dava a última palavra, na Inglaterra era o juiz de paz que decidia sobre o
internamento. Em 1692 surge a carta régia, um procedimento em que a família
do insano fazia o pedido ao rei, que lhe concedia o internamento após a
assinatura do ministro. Até mesmo os vizinhos ou a paróquia local podiam
tentar conseguir internamento, caso a família não quisesse e o doente não
estivesse obedecendo às leis sociais. Enquanto o insano libertava-se das
responsabilidades e deveres por ser louco, ele comprometia sua vizinhança e
toda a sociedade. Nesse ponto, a Medicina deixava de ser a única a ‘dar as
cartas’, fazendo com que surgisse uma análise jurídica de extrema importância.
A Medicina atribuiu a doença mental como objeto, e o homem insano será
“juridicamente incapaz de pertencer ao grupo” (Foucault, 1972, p. 131) por
perturbá-lo moral e politicamente. Apesar de os asilos terem surgido antes da
Revolução Francesa (1778), o manicômio só surgiu após a obra de Pinel
(1745-1826), que rompe com a tradição demoníaca da loucura e passa a
considerá-la como doença mental. Segundo Pinel, o louco necessitava de
cuidados, remédios e, principalmente, do apoio de outras pessoas. É nesse
sentido que surge a primeira “revolução” psiquiátrica, fazendo com que o
século XIX fosse considerado o século dos manicômios em decorrência da
enorme quantidade de hospitais que foram construídos e destinados aos
doentes mentais. Para justificar a quantidade de internações, surgiu uma
variedade de diagnósticos para a loucura. Toda essa revolução fez a medicina
psiquiátrica florescer, tornando o manicômio o seu núcleo gerador. Dentro
deste, a loucura era tomada como um objeto bem discriminado e delineado.

Na Idade Clássica, o louco perde o valor mágico adquirido na Idade Média e


passa a ocupar o lugar dos vagabundos e pobres. Nessa época, ainda era
muito difícil determinar o motivo pelo qual as pessoas eram internadas,[8] bem
como para descobrir as doenças que elas tinham. As fórmulas de internamento
não falavam de análises patológicas ou doenças, mas de uma “experiência da
loucura” (Foucault, 1972, p. 135) que nunca poderia ser avaliada na Internava-
se o louco quando este não tinha ‘consciência’ de que sua loucura poderia
perturbar moralmente uma sociedade e não sentia remorso pelo crime feito.
Para este insano, a sua moral era intransferível, diferente de todas as outras.
Assim, a “loucura na era clássica torna-se perceptível na forma da ética”
(Foucault, 1972, p. 136). Durante a Idade Média e parte da Renascença, a
loucura esteve ligada a causas malignas. No entanto, no século XIX (Idade
Clássica), ela se repousava sobre a moral, a ética, sendo por isso chamada de
“loucura moral” (Foucault, 1972, p. 137). Percebe-se, com clareza, a oposição
da idade clássica quanto à divisão alienação x maldade. Neste caso, a loucura
e o crime não se confundem, nem tampouco se excluem, mas são tratados
com a mesma racionalidade. Existem dois tipos de loucuras: a involuntária (que
se apodera do homem sem seu consentimento) e a intencional (que é fingida
pelos homens lúcidos). Para a Medicina, elas se inter-relacionam, e as pessoas
são internadas com ou sem intenção pelo fato de ambas as loucuras terem a
mesma origem perversa. Mas, para o Direito, a loucura só é crime se o
indivíduo tem ‘consciência’ de seus atos.[9] Quem fora atingido pela loucura
involuntária não seria punido. Esta afirmação deve-se ao fato de que a loucura
atinge a razão, alterando assim a sua vontade e indo de encontro com seus
desejos. Quanto mais grave, maior será a inocência. Contudo, como já foi dito,
a Medicina não diferencia o tratamento dado à loucura real da intencional. O
internamento vale para ambas, e é a forma mais eficaz de evitar escândalos.
Enquanto na Renascença a loucura era exibida publicamente, com o
internamento ela se torna menos visível, porém presente. Mesmo assim, em
alguns hospitais como Bethleem e Bicêtre, os insanos são exibidos aos
domingos para a população, sendo paga uma taxa pela visita, aumentando a
renda institucional. “A loucura era o teatro do mundo” (Foucault, 1972, p. 147).
Com risadas maldosas, atitudes inconseqüentes, os insanos eram objeto de
curiosidade das pessoas da sociedade, que os viam por detrás das grades.

Tanto os alojamentos de Bicêtre quanto os de Salpetrière tinham péssimas


condições de higiene; algumas pessoas ficavam próximas a esgotos que, com
as chuvas, traziam ratos e outros tipos de sujeiras. Estes alojamentos eram
destinados aos mais agitados, enquanto os mais calmos ficavam em celas
mais amplas. Alguns eram acorrentados nas camas. Os hospitais pareciam
mais zoológicos, e a quantidade de fechaduras e barras de ferro na frente das
portas das celas era notória. Dentro das celas, homens e mulheres não
conseguiam ficar em pé. Comiam, dormiam e faziam suas necessidades lá
dentro, com os outros. O fato é que os loucos eram internados em condições
subumanas por representarem um perigo para a sociedade. O internamento,
então, surgiu não como uma prática médica, mas como medida de exclusão.
Eram tratados como animais não só por suportar fome, frio, dor e calor, mas
por serem expostos ao público e substituírem bestas de carga na lavoura. “Esta
animalidade da loucura era tratada com a domesticação a que eram expostos”
(Foucault, 1972, p. 152). Na loucura, todas as formas de liberdade eram
banidas para que o louco não ameaçasse a sociedade. Dentro das instituições
ele era vigiado em todas as suas ações. Como o próprio Foucault (1972) diz: “o
conceito de loucura não existiu sempre, mas sim começou a se estruturar a
partir do momento em que se criou a distância entre razão e nãorazão”.

Com a Psiquiatria, o coroamento do internamento é realizado sem território,


sem lógica, sem cidadania, sem corporeidade. O louco agora também passa a
ser desprovido de classe. Então, qual o significado do louco, qual a sua
essência entre os “homens de razão” (Foucault, 1972, p. 177)? A Filosofia e a
Medicina contribuíram com duas diferentes direções: a filosófica distinguiu a
razão do desatino e a médica se referiu ao que existe de racional e irracional
na natureza.
Mas se para o anatomista diferenças cerebrais podem distinguir o louco do
não-louco, para os psicopatologos, o louco é reconhecido pelo seu delírio
particular. Assim, a loucura diverge muito da forma como ela era percebida na
Renascença. Ela está presente em toda parte, mas nunca se manifesta da
mesma maneira: é absorvida de uma forma muito difusa. Boissier de Sauvages
(apud Foucault, 1972, p. 181) afirma que quando um homem utiliza a sua
razão, através dos gestos, movimentos, ele pode descobrir a ligação entre
estas ações. Assim, isto remete ao fato da facilidade com que o louco é
reconhecido, exatamente pelas inúmeras manifestações da loucura, que
exibem o quanto é incapaz de síntese, atribuição máxima de um ser racional.
Este ponto é paradoxal. Como distinguir um louco, se a loucura é confusa e
imperceptível para os olhos humanos? O perfil do louco se destaca se
comparado a outros perfis no espaço exterior. Seu jeito extravagante e
diferenciado leva sujeitos normais a perceberem a distinção entre eles e o
louco. “A loucura só existe em relação à razão” (Foucault, 1972, p. 184).

Para Foucault, a loucura não está apenas do outro lado da razão (diferença,
negatividade e ausência de razão), mas sob seu olhar (individualidade através
da linguagem, dos gestos e da conduta). Assim, a Idade Clássica percebe o
louco (através da razão e da não-razão) e deduz a loucura. E esta é deduzida a
partir de uma análise da doença, através de fenômenos observáveis e
manifestos. Do lado do homem, a doença tem sinônimo de desordem, pecado;
do lado de Deus as “doenças são umas vegetações racionais” (Foucault, 1972,
p. 191). Para Platero (1609), as doenças se definem por suas causas (internas
e externas), pelo contexto patológico e pelos sintomas. Para Jonston (1644), as
doenças cerebrais fazem parte das doenças orgânicas. Para Sauvages (1763),
as doenças dividem-se em duas classes (vícios e doenças que perturbam a
razão) e quatro ordens (alucinação, bizarrias, delírios e loucuras anormais).
Linné (1763) divide as doenças em ideais, imaginativas e patéticas. E,
finalmente, Weickhard (1790) fala em doenças do espírito e doenças do
sentimento. No entanto, no século XIX esta divisão é abandonada e pressupõe,
porém, “não mais uma tentativa de cobrir em sua totalidade o espaço
patológico” (Foucault, 1972, p. 196). Assim, as doenças serão definidas através
da “afinidade dos sintomas, identidade das causas, sucessão no tempo,
evolução progressiva” (Foucault, 1972, p. 196) e outras categorias que
agruparão as diferentes manifestações da doença. As classificações da loucura
multiplicaram-se porque elas eram feitas mediante as imagens, isto é, por meio
das manifestações da loucura. E isto nem sempre se constituía uma verdade,
já que importava também a origem e significação destas manifestações.

Segundo Foucault (1972, p. 197), uma classificação deveria interrogar apenas


as doenças do espírito. Remetendo-se a isso, Arnould (apud Foucault, p. 198)
fala de uma loucura que incide sobre as idéias e seu conteúdo e uma outra que
incide sobre o trabalho reflexivo que elaborou as idéias. Desta forma, a
classificação de Arnould parte de poderes do espírito para chegar às
“caracterizações morais”. “No momento em que quer alcançar o homem
concreto, a experiência da loucura encontra a moral” (Foucault, 1972, p. 197).
As classificações que pretendiam encontrar as formas da loucura identificaram
apenas deformações da vida moral. Assim, a noção patológica de doença se
altera para uma noção crítica. Até o começo do século XIX nota-se que as
formas da loucura não se modificaram. O que mudava era o seu nome e suas
divisões. É a partir do século X, portanto, que as neuroses serão separadas
das psicoses, a paranóia da demência precoce, etc. Os loucos que cometiam
crimes eram internados, porém não perdiam seus direitos civis. O internamento
seria apenas uma medida, cuja finalidade seria a médico-terapêutica. A loucura
atingia apenas os limites do corpo, a alma do louco, mas permanecia pura. Era
com esta explicação que juízes e advogados inocentavam loucos que
cometiam crimes. O mundo exterior também podia provocar a loucura através
do “tipo de clima, da vida em sociedade, de espetáculos de teatro...” (Foucault,
1972, p. 2). Paixões profundas, tristezas, cólera, amores não-correspondidos
também eram eventos da alma, e quer sejam poucos, quer sejam muito
intensos, não escaparam do círculo das causas distantes da loucura. Tudo isto
mostra a heterogeneidade das causas na origem da loucura. As causas
distantes da loucura não pararam de aumentar, e no século XVIII elas foram
catalogadas sem organização. Até mesmo as fases da lua foram confirmadas
como sendo influentes sobre o sistema nervoso, alterando assim a agitação e a
fase maníaca dos doentes. A paixão, além de fazer parte das causas distantes
da loucura, também estava bem próxima do corpo e da alma por ser a
“superfície de contato entre ambas” (Foucault, 1972, p. 226).

Segundo Foucault (1972, p. 359), na época clássica, a consciência da loucura


e a consciência do desatino não se haviam separado uma da outra. Mas na
segunda metade do século XVIII, o medo da loucura cresce ao mesmo tempo
em que o pavor diante do desatino, e desta forma ambas apóiam-se uma na
outra. O pensamento médico do século XVII e XVIII relacionava a loucura como
um efeito do mundo exterior. Assim, a lua, o clima, exerciam uma influência
sobre o homem pondo em risco seu sistema nervoso e suas paixões. Segundo
Cheyne (apud Foucault, 1972, p. 363), a riqueza, a alimentação fina, a
abundância de que se beneficiam todos os habitantes, a vida de lazeres e
preguiças que tornam a sociedade cada vez mais rica são causas das
perturbações nervosas. Assim, a loucura na Inglaterra, mais do que qualquer
outro lugar, é apenas o preço da liberdade e da riqueza que ali reina (Foucault,
1972, p. 363). A liberdade, ao invés de aproximar o homem da sua essência,
estaria afastando-o cada vez mais. Outro fator que podia ter implicação
diretamente na loucura seriam as crenças religiosas. Elas trariam uma falsa
imagem, com idéias ilusórias e pensamentos irreais, sendo, inclusive, proibida
ao doente mais devoto a leitura de livros sacros. Segundo Foucault (1972, p.
388), o internamento é que distingue na loucura os perigos de morte que ela
comporta. Assim, foi neste contexto que a loucura conquistou uma linguagem
própria, cada vez mais se instalando como objeto de percepção diferentemente
do poder de fascinação que o desatino trazia consigo. Ao longo do século XVIII
foram feitos protestos em prol dos alienados e suas condições de vida dentro
das casas de internamento. Estes eram jogados “como criminosos de estado,
em subterrâneos, em celas onde o olhar da humanidade nunca penetrava”
(Foucault, 1972, p. 394). Isto mostra a individualização da loucura,
extremamente ligada ao crime, porém por razões ainda não esclarecidas.
Quando a loucura começa a ser separada do crime, e de outras formas de
desatino, uma imagem bastante conhecida volta a habitar o ambiente social.
Os loucos que não eram encaminhados às novas casas de internamento eram
mandados para as ilhas. Novamente a imagem da nau se fazia presente, e
este louco era obrigado a habitar e explorar os territórios coloniais. O
internamento se ligava cada vez mais aos aspectos complexos. O espaço
social no qual situava a doença também estava renovado. Entre a Idade Média
e a Clássica todo homem pobre e doente tinha o direito a receber cuidados. No
século XVIII, pensa-se em dar assistência também, mas de uma forma
diferente da que era dada. Um auxílio às famílias seria suficiente para que o
doente tivesse apoio sentimental (vendo a família todos os dias), médico e
menos gasto econômico (já que o internamento seria dentro de sua casa).
Então, a imagem que se tinha do internamento como sendo criador de pobreza
e o hospital como criador de doenças é eliminada.

A prática do internamento é reduzida. Não se interna mais pelas faltas morais,


nem por conflitos familiares, mas agora o espaço asilar era reservado aos
loucos. Porém, as dificuldades eram muitas, já que os hospitais não eram
suficientes para tratar sequer dos insanos. Dessa forma, a família passa a ser
responsável pela vigilância do alienado, impedindo que este cometesse
desordens. Assim, o louco continua sem liberdade, só que desta vez mais
disfarçada, porque, ao invés de estar sob as garras do internamento, ele se
encontra sob as ordens da família. Para os insanos que continuam internados,
a melhor forma de pagar pelos erros que cometeram é a dedicação ao
trabalho. O controle dentro das casas gera lucro econômico, fundamento da
ética burguesa. Aquilo que o insano produz “cabe inteiramente à administração
e à sociedade e por outro lado, o trabalhador recebe o certificado de
moralidade” (Foucault, 1972, p. 427). Ao receber os cuidados médicos dentro
das casas, o internamento recebe uma outra imagem: já não carrega aquele
peso como sendo um lugar de exclusão social, de correção, e recebe o título
de curador, isto é, os loucos lá dentro são tratados e curados, a despeito de
sofrerem restrição da liberdade.

Segundo Foucault (1972, p. 464), a Medicina não participa da mudança do


internamento para o asilo; apenas herda essa mudança. Sua concepção
estrutura-se sobre uma rede de significações ainda existentes nas fases
anteriores de internamento, tais como a humilhação, o erro, a animalidade. Por
isso, para Foucault, Pinel e Tuke não libertaram a loucura, mas “abriram o asilo
ao conhecimento médico” (Foucault, 1972, p. 498). O asilo, após a “libertação”,
começa a simbolizar a família que o louco nunca poderá ter. A grande tarefa do
asilo seria homogeneizar a sociedade, em nome da verdade. Com o tempo, a
própria coerção corporal e verbal é amenizada, pois o próprio louco passa a
pertencer a uma rede estigmatizada. É como se o conceito de loucura fosse
aos poucos se internalizando nos indivíduos.

A objetividade do médico (em detrimento ao desprezo, e a coerção, antes


necessários) é adquirida com a própria incorporação da ‘condenação’ do
próprio louco, de seu próprio estado. Com o advento da Psiquiatria, houve
algumas transformações no tratamento fornecido à loucura exemplificado da
seguinte forma: O louco não era dono de seu chão (desterritorialidade), de seu
pensamento (exclusão lógica), de sua cidadania (exclusão política), de sua
identidade, nem tampouco de seu comportamento. Isso perpassa alguns
períodos, como a Renascença, o racionalismo, as medidas políticas mercantis,
a moralização e a psiquiatrização. O papel a que se destinavam os hospitais
também foi se alterando. Enquanto que na Idade Média não era visto como
meio de cura, em 1780 ele assumia a responsabilidade de uma instituição
destinada a promover a cura. É no século XVIII que o hospital se apresenta
como um meio de exclusão social, onde se internavam loucos, prostitutas,
leprosos, criminosos, etc. Lá dentro estas pessoas eram docilizadas e
disciplinadas, controladas constantemente. Apesar de a coerção física e os
maus-tratos contra a loucura estarem mais camuflados e maquiados, o
conceito social que trouxe uma relação de dominação à loucura permanece e
permeia a nossa sociedade até os dias atuais.

Referências Bibliográficas:

Perspectiva, 6ạ edição – reimpressão (1972), 2000

FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora

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