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"Co-produção:
uma abordagem
transformadora do sector
público"

o tema da co-produção tem vindo a afirmar­ em sempre é fácil descortinar, no meio dos discursos
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se no discurso em torno da modernização N fei tos com muitas preocupações de marketing,


o que significa a co-produção. Co-produzir significa ,
do sector público, merecendo, há já alguns simplesmente, produzir em conjunto. Quando apli cado
anos, a atenção não só de académicos mas à administração pública , significa o repensar da relação
entre o Estado e a Sociedade , uma forma específica de
também de instituições como a OCDE e
fazer as coisas: produzir serviços, produzir polí ticas,
o Banco Mundial assim como de ONGs e produzir m edidas que satisfaçam necessidades sociais
alguns governos. de form a apropriada , utilizando o es forço conjunto
daqueles que estiveram, até há pouco tempo, em campos
opostos, os prestadores (en tidades públicas) e os utentes
Fátima Fonseca' (cidadãos, famílias, empresas , associações, comunidades).
Na realidade, falamos de mais do que o acto de produzir:
falamos em pensar em conjunto, projectar em conjunto,
executar em conjunto e avali ar em conjunto. Em percorrer
em conjunto todo o ciclo das políticas públicas, desde a
fase de inscrição do problema ou necess idade na agenda
política, ao planeamento do programa ou da medida,
identificando obstáculos à sua implementação, até à
efectiva implementação e à avaliação das medidas que
delas decorram , realizando auditorias sociais às políticas
para avaliar os seus reais impactes junto das pessoas e
comun idades.
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Fátima fomeca

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Esta conjugação de capacidades e de recursos públicos e investimento. A co-produção rep resenta uma abordagem
privados só é possível porque o modo de governação do substancialmente diferen te.
Estado é hoj e em dia muito mais colaborativo, assente A definição de co-produção, como todos os conceitos
em novos processos de relacionamento entre actores recentes, é ainda difusa . A co-produção emergiu nas
que passaram a conjugar esforços para criar valor numa ciências sociais há quase 40 anos. Nos anos 70, Elinor
perspec tiva não estritamente monetária. Mobilizar a Ostrom, prémio Nobel da economia em 2009, percebeu
sociedade civil utilizando a infra-estru tura dos serviços que os bens públicos como a educação, a saúde ou
públicos permite obter melhores resultados e abordar o saneamento básico eram produzidos por grandes
problemas que não seria possível resolver de outra forma entidades públicas, muitas vezes com bastante ineficiência,
por falta de meios, humanos, materiai s e de conhecimento. e que o cidadão tinha o papel de sujeito passivo, cliente
O papel das en tidades públicas é fundamental para ou consumidor. Mas tam bém percebeu que o público
garantir que as oportunidades para a co-produção são podia envolver-se activamente na produção desses bens, o
distribuídas equitati va m ente pela sociedade, actuando que teria como consequência a melhoria da sua qualidade
os colaboradores públicos como catalisadores da acção e a redução da despesa pública. Para Ostrom, co-produção
de clientes, pacientes e uten tes dos serviços públicos, é este processo através do qual os inputs utilizados para
das suas famílias e comunidades. O que representa uma produzir um bem ou serviço resultam de contributos de
mudança substancial da cultura burocrática assente indivíduos que não estão na mesma organização. Baseada
numa abordagem top-down e indiferenciada, que tira em resultados em píricos na área da governação urbana,
poder às pessoas, induz uma cultura de dependência e dá exemplos de ganhos obtidos com o envolvimento
torna o sistema propenso ao desperdício pelo facto de dos cidadãos nas áreas dos serviços policiais nas áreas
os serviços estarem ainda demasiado organizados em metropolitanas (mecanismos de reporte rápido de
silos e sem estratégias coordenadas de planeam ento e crimes pelos cidadãos para que a polícia possa actuar)
e na educação (envolvimento dos estudantes e das suas A co-produção é muito mais do que o simples
famílias na comunidade escolar). Outros autores, como envolvimento dos cidadãos, é mais do que informá-los
Prahalad, preferem falar em co-criação e não co-produção ou dar-lhes voz, é torná-los parceiros na concepção de
porque entendem que a ênfase deve ser colocada na serviços e de políticas públicas. Assim, a co-produção
natureza colaborativa da criação de valor, o que significa tem características específicas que a tornam uma forma
que o cliente é sempre co-criador uma vez que o valor é qualificada de participação activa.
determinado pelo beneficiário. Por um lado, dá poder às pessoas, confiando nos seus
Aplicada ao sector público, a ideia é simples: a criação de recursos de conhecimento, tempo, competências e nas suas
parcerias entre cidadãos e profi ssionais da administração relações recíprocas, recursos que existem em abundância
pú blica para conceber eprestar serviços, medidas e políticas, e que o mercado não valoriza. Mesmo as pessoas que,
tornando-as mais eficientes, eficazes e sustentáveis, será a aparentemente, a sociedade excluiu são potencialmente
chave para reformar os serviços públicos. Nesta óptica, a parceiros valiosos. E em troca de maior controlo sobre
co-produção será uma importante ferramenta de gestão os recursos e a decisão nos serviços públicos, os cidadãos
não só para a eficiência mas também para a eficácia do estarão em condições de assumir maior responsabilidade
governo. E será, em simultâneo, uma alavanca para a e risco.
mudança das comunidades que, ganhando poder para Por outro lado, ajuda a desenvolver redes mais fortes,
satisfazer as suas próprias necessidades, aumentam a quebrando barreiras entre diferentes tipos de pessoas e
confiança nas suas capacidades e nas entidades públicas aumentando a capacidade de todos os intervenientes,
que são suas parceiras. para que todos se apoiem mutuamente quando existam
As abordagens iniciais à co-produção baseavam-se na responsabilidades recíprocas. A criação destas redes
necessidade de dar resposta a restrições financeiras face permite ampliar substancialmente os recursos disponíveis
ao aumento das expectativas com os serviços públicos. para mobilizar.
Actualmente, as mesmas preocupações voltam a marcar a Por outro lado ainda, traz a experiência directa das
defesa da co-produção, a par com outros factores. Por um pessoas e das suas necessidades para combinar com o
lado, as inovações tecnológicas, que deram aos cidadãos conhecimento técnico especializado dos trabalhadores
maior controlo, escolha e flexibilidade nas suas relações públicos. Promove o trabalho colaborativo em vez de
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com os prestadores de serviços (permitem, por exemplo, relações paternalistas entre administração pública e
que seja o próprio paciente a monitorizar o seu estado de cidadãos, entre trabalhadores públicos e utentes. E,
saúde). Por outro lado, os cidadãos estão mais exigentes e desta forma, permite transferir um enorme capital de
mais assertivos junto dos serviços públicos e estão também conhecimento para o sector público, que, ao facilitar em
a envelhecer, o que irá trazer mais participação, porque os vez de prestar, se torna catalisador da mudança e não o
estudos empíricos revelam que esta aumenta com a idade. principal prestador.
Por fim, os responsáveis públicos estão mais orientados Por fim, pode reduzir custos de forma significativa
para os impactos das políticas que desenvolvem, tendo já na medida em que permite abordagens preventivas e
percebido que sem o contributo dos utentes eles são mais minimiza o desperdício ao desenvolver soluções com os
difíceis de alcançar. utentes, mais adequadas às suas necessidades.
A co-produção refere-se a muitas coisas em concreto. Pode
ser substitutiva (substituir os inputs das entidades públicas
As abordagens iniciais à co-produção pelos inputs dos cidadãos) ou cumulativa (adicionando
mais inputs dos cidadãos aos inputs dos profissionais ou
baseavam-se na necessidade de dar introduzindo apoio profissional a fenómenos individuais
de auto-ajuda ou de auto -organização comunitária). Pode
resposta a restrições financeiras face ao ser individual (por exemplo, um cidadão ou grupo que
compila reclamações) ou colectiva, comunitária (por
aumento das expectativas com os serviços exemplo, bancos do tempo). De todo o modo, representa
sempre uma forma de materializar a colaboração
públicos. em vários domínios e sempre com uma abordagem
transformadora do sector público. As áreas que têm
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apresentado maior potencial são muito relacionais para complementar os seguros de saúde dos voluntários
e envolvem contacto frequente entre as pessoas e os ou podem ser transferidos para outras pessoas.
profissionais da administração pública, como o apoio a Mas não se pense que só noutros países existem
idosos, os cuidados de saúde, o policiamento e justiça experiências de co-produção. Eis um exemplo português,
penal, a educação e juventude ou os cuidados infantis. o orçamento participativo do Município de Lisboa
Mas não são as únicas. As abordagens da governação em (OP). Em regra, os orçamentos participativos resultam
rede, da governação participativa e da inovação social de mecanismos meramente consultivos, quer por
têm estimulado a co-produção a ser testada noutras áreas constrangimentos legais , quer por dificuldades de
de intervenção pública, desde a concepção de políticas partilha do poder pelos órgãos políticos representativos.
económicas à governação das cidades. Mas é possível, com criatividade, envolver as pessoas de
Existem inúmeros exemplos, alguns deles ainda antes de um modo mais ambicioso. Lisboa adoptou um modelo
o conceito de co-produção ser articulado. inovador de orçamento participativo no contexto
Um exemplo, americano, dirigido à prevenção é o Nurse­ português, definido na Carta de Princípios do Orçamento
Family Partnerships, que apoia as mães jovens e os seus Participativo, aprovada em 2008 . A Carta afirma que o
bebés em famílias de baixos rendimentos através de orçamento participativo visa contribuir para o exercício
parcerias com enfermeiras profissionais até a criança ter de uma intervenção informada, activa e responsável dos
dois anos. O projecto começou em Nova Iorque, Memphis cidadãos nos processos de governação local, garantindo a
e Denver em 1977 e actualmente ex iste em 20 Estados. O participação dos Cidadãos e das organizações da sociedade
seu obJectivo é consolidar as relações entre pais e filh os , civil na decisão sobre a afectação de recursos às políticas
facultando apoio ao cuidado infantil, à inserção na família públicas municipais tendo como objectivos: incentivar
e no mercado de trabalho, permitindo, assim, desenvolver o diálogo entre eleitos, técnicos municipais, cidadãos e
crianças e jovens em ambientes mais estruturados. Dados a sociedade civil organizada, na procura das melhores
recentes revelam que este proj ecto permitiu reduzir o soluções para os problemas tendo em conta os recursos
abuso infantil em 48% e a delinquência juvenil em 61 %. disponíveis; contribuir para a educação cívica, permitindo
Um outro exemplo, do Reino Unido , é uma rede de aos cidadãos integrar as suas preocupações pessoais
apoio de pares , o projecto UserVoice, na área da justiça com o bem comum, compreender a complexidade dos
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criminal. E uma organização dirigida por ex -condenados problemas e desenvolver atitudes, competências e práticas
que tem como máxima "só os transgressores podem de participação; adequar as políticas públicas municipais
evitar nova transgressão". Organizam seminários com ex­ às necessidades e expectativas das pessoas, para melhorar
transgressores que analisam as causas das transgressões , a qualidade de vida na cidade; aumentar a transparência
estabelecem programas individuais d e mentorado da actividade da autarquia, o nível de responsabilização
entre ex-transgressores e prisioneiros e começaram dos eleitos e da estrutura municipal, contribuindo para
recentemente um modelo de conselho prisional para dar reforçar a qualidade da democracia.
aos prisioneiros um maior papel nos processos de decisão O processo tem quatro fases fundamentais. Uma primeira
nas prisões. O objectivo é evitar a reincidência, ganhando fase de apresentação de propostas pelos cidadãos para
a confiança dos detidos, dando -lhes voz, partilhando com identificar prioridades de investimento para o orçamento
eles experiências e fazendo chegar a sua voz às instituições e plano de actividades da CML; esta fa se decorre on
que podem beneficiar desse conhecimento para tomar line, num site próprio e presencialmente, através de um
medidas preventivas e de reabilitação mais adequadas. conjunto de assembleias participativas. Uma segunda
Um exemplo de apoio inter-geracional vem do Japão, país fase de análise técnica pelos serviços municipais para
com uma das populações mais envelhecidas do mundo. O confirmação da elegibilidade das propostas apresentadas
projecto Furea i Kippu (bilhetes de relações carinhosas), e sua transformação em projectos quantificados e
nascido em 1995, é um sistema para valorizar as horas calendarizados; para as propostas não convertidas em
que os voluntários gastam a apoiar pessoas idosas ou projecws são apresentadas as respecti vas justificações.
com dificuldades nas suas rotinas diárias. Essas horas Uma terceira fase de votação pelos cidadãos na lista de
são creditadas numa "conta do tempo" que é gerida projectos. E uma quarta fase de avaliação do processo,
exactamente como uma poupança mas cuja unidade de com a participação dos cidadãos através de questionários,
conta são horas de serviço. Os créditos ficam disponíveis e de definição de melhorias para o processo a desenrolar
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n o ano seguinte, disponibilizando publicamente um proj ecto de co-produção e permitir que a com unidade
relatório sobre o processo. Os projectos mais votados até decida onde devem ser gastas. Internamente, dar mais
ao valor definido anualmente pela Câmara (5 milhões poder, autonomia e reconhecimento para quem colocar
de e uros) são integrados na proposta de orçamento a o valor da co-produção em prática.
apresentar pela Câmara à Assembleia Municipal. Tornar a co-produção um dos pontos foca is da estratégia
Desenhado desta forma fl exível e com um cariz de acruação da organização. Incluí-la nos planos de
assumidamente de aprendizagem e melhoria contínua actividades. Ser criativo, promovendo experiências de co­
- facto que determinou, logo em 200 9, o seu produção em novos sectores para além das áreas sociais.
reconhecimento pela ONU-Habitat como boa prática Medir os impactos da ac tuação através de indicadores
de governação urbana - o OP permite não só que as relacionados com os utenres e identificados por estes.
pessoas escolham directamente proj ectos a execu tar num Incluir a co-produção nas cláusulas da concessão de
horizonte temporal máximo de 2 anos mas também que serviços públicos, identificando os compromissos devem
os serviços municipais e o execut ivo fiquem com uma constituir critério de avaliação das propostas, incluídos
leitura clara e na primeira pessoa de quais são as reais nos contratos e avaliados em função dos impactos o btidos.
necessidades da população. Em resumo, depois de alguns anos de maturação nas áreas
Como facilmente se percebe, o potencial da co-produção do apoio social , tudo indica que a co-produção enquanto
é imenso. Mas o caminho para uma adopção mais filosofia e método de trabalho está pronta para se
generalizada deste tipo de mecanismos de funcionamento expandir para o utras áreas. Os problemas das pessoas não
não é fácil. É necessário mudar a cultura ainda dominanre obedecem às fronteiras internas das organizações públicas
nos ser viços públicos, bastante avessa à experimentação. e carecem de uma intervenção conjunta e da combinação
E para isso é necessário que as organizações públicas de recursos. Talvez a escassez de recursos financeiros ajude
comecem a dar alguns passos. a sublinhar o enorme capi tal de conhecimento e outros
Começar por conhecer o terreno. Conhecer profundamente recursos, materiais e imateriais, que existem nos utentes
os utentes. Inventariar tipologias de utentes para poder dos serviços e no ambiente em que estes se movem.
criar grupos de utentes que se apoiem entre si. Mapear Recursos que podem ser utilizados para criar uma nova
os recursos comunitários que podem ser utilizados para geração de serviços públicos, nos quais os trabalhadores
....
criar redes de apoio (associações temáticas, por exemplo). públicos, dotados de novas competências, actuam
Consolidar o conhecimento das necessidades para adoptar essencialmente como catalisadores de redes sociais. Um
abordagens preventivas. enorme po tencial a explorar para a sus ten tabilidade de
Conhecer també m a casa para poder arrumá-Ia. um estado social em cri se.
Redesenhar es tratégias e processos, tornando-os flexíveis
para ter em conta novos papéis que os mentes podem
ass umir. Conhecer os trabalhadores envolvidos e as suas
competências para trabalhar com os mentes. Transformar
os trabalhadores em facilita dores e não apenas no rosto 'Directora Mu nicipal de Serviços Centra is da Câmara Mun icipa l de Lisboa; co­

que presta o serviço. Desenvolver competências através autora dos livros "Admini straç ão Pública: modernizaçã o, qualidade e Inovação" e

de formação, coaching, es tágios noutras organizações, "Governação, Inovação e Tecnologias: o Estado-Red e e a administração pública do

para apreender os novos métodos de trabalho. Tornar a futuro".

co-produção responsabilidade de todos na organização,


não criando estruturas dedi cadas qu e sejam donas da
co- produção, partilhando experiências e conhecimento,
encorajando o trabalho colaborativo.
Criar os incentivos apropriados, quer para os cidadãos
quer para os trabalhadores públicos. Pensar numa lógica
de reciprocidade: por exemplo, oferecer descontos
no cin ema ou em eq uipamentos desportivos a quem
consagre parte do seu tempo em actividades de apoio à
comunidad e. Quantificar as poupanças geradas com um

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