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Lugar Comum N.º 49 - Revista Completa
Lugar Comum N.º 49 - Revista Completa
Número 49
set 2016 - mai 2017
2
EQUIPE EDITORIAL
Alexandre do Nascimento, Alexandre Fabiano Mendes, Barbara Szaniecki,
Bruno Cava, Bruno Tarin, Clarissa Moreira, Clarissa Naback, Christian
Fitschgold, Fabricio Toledo, Giuseppe Cocco, Leonora Corsini, Luiz Felipe
Teves, Priscila Pedrosa Prisco, Renan Porto, Silvio Pedrosa e Talita Tibola.
CONSELHO EDITORIAL
Rio de Janeiro, Brasil: Adriano Pilatti, Eduardo Baker, Emerson Mehry, Gerardo Silva, Marcela
Werneck, Rodrigo Bertame, Sindia Santos e Vladimir Santafé.
Outras cidades, Brasil: Alessandra Giovanella – Santa Maria, Elias Maroso – Santa Maria,
Desirée Tibola – Porto Alegre, Homero Santiago – São Paulo, Márcio Taschetto – Passo Fundo,
Mariângela do Nascimento – Salvador, Murilo Duarte Corrêa – Curitiba, Marcio Pereira – São
Paulo, Silvio Munari – São Paulo, Marco Ribeiro – Porto Alegre, Peter Pal Pelbart – São Paulo,
Rita Veloso – Belo Horizonte, Rogelio Casado – Manaus, Joviano Mayer – Belo Horizonte,
Fabricio Ramos – Salvador, Sérgio Prado Pecci – São Paulo, Sandra Mara Ortegosa – São Paulo,
Salvador Schavelzon – São Paulo, Mario Joaquim Neto - Salvador.
Outros países: Anna Curcio – Itália, Antonio Negri – Itália, Ariel Pennisi – Argentina, Carlos
Restrepo – Colômbia, César Altamira – Argentina, Christian Marazzi – Suíça, Diego Sztulwark –
Argentina, Gigi Roggero – Itália, Javier Toret – Catalunha, Matteo Pasquinelli – Itália, Michael
Hardt – EUA, Michele Collin – França, Oscar Vega Camacho – Bolívia, Nicolás Muriano –
Argentina, Raúl Sánchez Cedillo – Espanha, Sandro Mezzadra – Itália, Santiago Arcos – Chile,
Alain Bertho – França, Ariel Pennisi – Argentina, Thierry Badouin – França, Veronica Gago –
Argentina, Yann Moulier Boutang – França.
Quadrimestral
Irregular (2002/2007)
ISSN – 1415-8604
1. Meios de Comunicação – Brasil – Periódicos. 2. Política e Cultura –
Periódicos. I Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e
Comunicação. LABTeC/ESS.
CDD 302.23
306.2
3
SUMÁRIO
EDITORIAL
UNIVERSIDADE NÔMADE
–
61
João Santos
MAQUINAÇÕES
NAVEGAÇÕES
RESENHA
Editorial
6
Giuseppe Cocco2
Comecemos pelo fim. Não houve golpe de Estado no Brasil, mas uma glasnost
que conduziu à implosão do consórcio político que governava e governa o país: um
cartel mafioso de grandes empresas privadas e estatais, compostas por algumas dezenas
de patrões públicos e privados. Evidentemente, a corrupção sistêmica não é uma
novidade e certamente não foi inventada pelo PT. Lula, o PT e uma série de intelectuais
brasileiros (ou não) utilizam como defesa esse truísmo e se escondem atrás de duas
afirmações: o combate à corrupção seria seletivo e o justicialismo não será o terreno da
transformação social. São duas afirmações falsas. As investigações judiciárias contra a
corrupção estão tocando todo o sistema político e na realidade não poupam os partidos
de direita: nem os grandes aliados do PT nem os grandes partidos de oposição. O peso
relativo do PT, de Lula e Dilma, nos inquéritos, é, no entanto, proporcional a dois fatos
simples: primeiramente, os juízes não caem no esquema de marketing do PT que se
transforma em vítima do sistema como se não estivesse no poder federal por treze anos
seguidos; e, em seguida, Lula e Dilma desempenharam um papel fundamental na
amplificação e modernização da tradicional corrupção oligárquica. A corrupção de que
se fala não é apenas uma velha venalidade da política, mas um verdadeiro regime de
acumulação e de exploração de novo tipo, dirigido por um consórcio de interesses onde
o PT é o principal organizador.
É este consórcio de interesses que está hoje em crise e implodindo. Esta
implosão tem duas causas: o levante constituinte de 2013 [1] e a violenta crise
econômica. Assistimos assim à triste decadência de um dos experimentos reais mais
interessantes da esquerda mundial. O Partido dos Trabalhadores (PT), com seu líder
1
Originalmente publicado em francês na Revista Multitudes n.º 64, em outubro de 2016. Republicado no
Brasil, traduzido por Clarissa Moreira, no site da Universidade Nômade e no IHU online.
2
Graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova,
mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História
Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne), doutor em História Social pela Université de Paris
I (Panthéon-Sorbonne), Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, editor das
revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes e coordenador da coleção A Política no Império
(Civilização Brasileira).
7
econômico). Entre estas duas datas, temos o conflito político de grandes proporções que
conduziu ao Impeachment da Presidente da República. Entre estas mesmas datas, fomos
brindados com o festival de mentiras e mistificações lançados e replicados pelo PT e
apoiadores durante as eleições de outubro de 2014.
do Senado, da República, etc.) José Sarney, explicitaram que o futuro governo interino
de Temer teria dois propósitos: enfrentar a grave crise econômica e bloquear a operação
Lava Jato a fim de proteger eficazmente o sistema político, inclusive Lula.
É claro que o chamado “golpe” de Estado é uma operação interna ao “golpe”
que foi dado durante a reeleição (outubro de 2014). Estas escutas telefônicas fazem cair
por terra o discurso do PT sobre a seletividade dos juízes. O PT não é de modo algum o
único partido visado, mas pode ser o alvo principal por ter sido o partido no poder. Os
quatro principais líderes do partido “golpista” (PMDB) figuram no âmbito de um
mandado de prisão (suspenso por um juiz do Supremo Tribunal) e a Lava Jato também
visa o presidente interino [4]. Portanto, temos um “golpe” engraçado: os seus principais
atores estão sob a ameaça do estado e recebem solidariedade… de quem recebeu o
golpe (o PT e seus senadores que criticaram os mandatos de prisão).
Estamos novamente na produção sistemática de enganos e ficções por parte da
esquerda de governo e isto merece uma boa reflexão. Por um lado, este regime
discursivo é aceito e amplificado pela esquerda intelectual global (ao mesmo tempo em
que não se diz nada sobre o que está acontecendo na Venezuela chavista, que carece de
tudo e onde a população passa fome); em segundo lugar, faz-nos pensar sobre a
capacidade e determinação que a “esquerda” (especialmente a esquerda no poder) tem
de manipular os dados subjetivos da luta objetiva e subjetiva. A “esquerda”, por um
lado, perde o contato com a realidade material do que está acontecendo e, por outro
lado, não só ignora a realidade, mas deturpa dados em função de suas necessidades e
estratégias.
“N F ”
ruas, e – desnecessário será dizer – sua própria autonomia. Neste caso, a doxa da
esquerda é usada para manter a ilusão de que os “governos progressistas” da América do
Sul não só teriam sido realmente um laboratório e uma maneira de sair do
neoliberalismo, – ou a única- mas que eles continuam em bom estado de saúde. Neste
quadro, “(…) o triunfo das forças que estão no governo (o PT no Brasil, o MAS na
Bolívia e no Uruguai o FA) permite afirmar a persistência do ciclo progressista“[6] e
novamente: “Esta ratificação prolongada no tempo afirma a derrota de tentativas
neoliberais territoriais-regionais das elites, de retomar o controle político direto e de
alguma forma, ainda mantém abertas as expectativas de uma dinâmica regional de
maturação não diretamente subordinada à hegemonia ocidental neoliberal “. Esta
análise, comprovadamente equivocada (a vitória eleitoral de Dilma foi uma grande
derrota política e o início de uma reversão eleitoral geral que também aconteceu na
Venezuela, Argentina e na Bolívia), não estava relacionada aos desafios reais, mas aos
requisitos de uma posição de “esquerda”, que é definida pela primeira vez como luta
contra o neoliberalismo (entre mercado e estado, melhor optar pelo último, ainda que
este tenha estruturas reconhecidamente mafiosas) e também como antiocidental (entre
China e os Estados Unidos, a China é melhor, mesmo que sufoque as lutas de classes).
O que é ainda mais grave é que a projeção idealista (uma esquerda que seria
estatal e anti-imperialista) é totalmente mistificada: governos progressistas em geral e
em particular o Governo do PT (Dilma), não são de modo algum antineoliberais e muito
menos antiocidentais. O neodesenvolvimentismo de Dilma é absolutamente interno ao
pacto neoliberal e é por isso que Lula passou tranquilamente de uma política à outra. Os
“líderes” do PT estão preocupados com as taxas de crescimento e nada mais. Se as
fortes doses de neodesenvolvimentismo não funcionam (na verdade, elas foram
catastróficas) aumentam-se as doses de neoliberalismo, como fizeram entre 2003 e 2008
e, em 2014 e 2015. Não é coincidência que o todo-poderoso Ministro da economia de
Temer era o homem forte da economia de Lula, durante oito anos. A política econômica
do presidente interino é exatamente a mesma que Dilma estava tentando fazer e não
conseguia, por causa da paralisia de sua base parlamentar. A defesa do PT e de Dilma é
mesmo a defesa da “esquerda” como identidade vazia e abstrata (um caso real dos
significantes vazios, à la Laclau): é mais importante se sentir bem como “esquerda” do
que entender, em primeiro lugar, as dimensões de sua derrota esmagadora e por outro
12
lado, perceber o nível de isolamento social da esquerda como um todo. Dilma tinha
apenas 8% de aceitação e milhões vão às ruas pedir seu Impeachment? Este é o
resultado da campanha dos meios de comunicação conservadores e aqueles que
manifestam… são a elite branca. Está tudo explicado! Aqueles que não aceitam essa
lógica autoritária são pessoas isoladas, possivelmente loucas ou irresponsáveis, com
alianças estranhas… quando não estão diretamente ligados ao inimigo. A corrupção
sistêmica da política se mostra como corrupção da subjetividade.
Quem seria o inimigo de um governo e um partido que governou com e pelo
dinheiro dos grandes grupos de construção saídos da ditadura militar? Na verdade, a
esquerda não precisa ser stalinista para trabalhar como… uma Polícia: a verdade da
repartição pública (de esquerda) se afirma como superior à verdade da democracia.
Esta é uma boa oportunidade para ver como a doxa da esquerda funciona e para
pensar a situação que deviam viver os dissidentes do bloco soviético – antes – e da
China maoísta – depois. Eles foram perseguidos por criticar um regime que não só não
deixava nenhum espaço para a democracia, mas que se aliava às forças da direita interna
(a burocracia estatal, tecnocratas que controlavam simultaneamente os aparelhos
produtivos e repressivos) e externa (a aliança de Stálin com Hitler, a diplomacia secreta
da China com a administração Nixon), ao passo em que enquadravam os “dissidentes”
como “agentes da direita”. E a esquerda internacional, de forma mais ou menos
entusiasmada, conforme o caso, participava desse consenso.
Leiamos Simone de Beauvoir e seu “Ensaio sobre a China”, 484 páginas escritas
a partir de uma visita organizada pelo regime em 1955 (e publicado em 1957) [7].
Beauvoir não se deixa enganar, mas ela concorda em jogar o jogo: “Os anticomunistas
sorrirão de seus escrúpulos: o governo se permite dispensar a verdade quando
conveniente. De fato. Mas esquecemos também que até o presente quase todos os
chineses foram completamente afastados da vida política. Sofriam o seu destino na
passividade e na ignorância. Um conhecimento ‘dirigido’ representa um imenso
progresso face à essa escuridão… e até mesmo por si só é capaz de dissipá-la “[8]
(grifo nosso). Assim, vejamos o dispositivo: o anticomunismo explica e, especialmente,
13
implementa contra a liberdade e, portanto, contra a verdade. Seis anos mais tarde (em
1956), antes da repressão soviética dos comunistas húngaros, Merleau-Ponty propõe
uma reflexão “sobre a desestalinização”. Em primeiro lugar, Merleau-Ponty ressalta que
mesmo “comunistas muito disciplinados (…) repudiaram solenemente o princípio de
que nunca se deva apelar ao exterior nas lutas entre comunistas“[18]. Simone de
Beauvoir, no mesmo período, mostra que era suficiente ir da URSS para a China para
dar novamente à “disciplina” perdida toda a sua rigidez. As inúmeras posições
intelectuais tomadas sobre o “golpe” no Brasil mostram que este mecanismo está ainda
ativo, mesmo se a pureza ideológica da década de 1950 já tenha se perdido. Merleau-
Ponty justamente disse que “a repressão de Budapeste (prova) que nenhum (dos)
princípios (do comunismo) sairá incólume, (e) que a desestalinização nada representa se
não significar uma reforma radical do “sistema” “[19]. De fato, não foi Stalin o
problema, mas o modo de funcionamento da “esquerda” em geral. Vejamos como
Merleau-Ponty prossegue, incluindo o uso do Relatório Khruschev no XX Congresso do
PCUS: “O custo real da produção não está relacionado com o custo previsto e a
produtividade não é dirigida. Tudo isso, no final das contas, deve aparecer em algum
lugar: chega um momento onde os disparates entre a vontade e os resultados são
óbvios. Assim, a pressão dos fatos é tão forte que o sistema renuncia a fazer contas
“[20]. Isto é exatamente o que aconteceu, em diferentes graus, na Venezuela do
“socialismo do século XXI” (onde agora a população carece de produtos básicos),
Argentina (onde as estatísticas sobre a inflação, a dívida, a pobreza e a desigualdade
eram embelezadas) e Brasil: Dilma foi reeleita em nome de uma saúde econômica
inventada, em um país literalmente falido: perda de 10% do PIB per capita, menos 20%
de produção industrial, inflação de mais de 10%, a dívida pública duplicou em um ano
no Rio, onde tivemos os Jogos Olímpicos em agosto de 2016, o estado não paga
regularmente os seus funcionários durante meses (nem mesmo a polícia ), as dívidas
não são pagas, a Petrobras está praticamente falida, assim como a Eletrobras, o maior
grupo de telefonia entrou com pedido de falência, quatro refinarias em fase de
conclusão nunca serão usadas etc. No Marketing de esquerda, tudo é explicado pelos
complô do imperialismo, da mídia e da “direita”, como se eles não estivessem ligados
carnalmente: “Um regime que quer fazer mas que nada quer saber– continua Merleau-
Ponty – trata o fracasso como sabotagem e a discussão como traição “[21]. Referências
16
A falta de alternativas
17
Pode-se replicar que não se trata disso, que o Brasil de 2016 não é a União
Soviética, e menos ainda a China maoísta de 1950. É verdade, a história se repete,
primeiro como tragédia, depois como farsa. E não estamos apenas na segunda repetição.
O que a esquerda é capaz de reproduzir é mesmo este mecanismo, entre um estado de
emergência e a mistificação de um golpe inexistente para impor seu oportunismo e
esmagar toda crítica. Não se deve ver diferença entre a opção abertamente neoliberal de
Hollande e os gritos contra o “golpe” do Brasil de Lula. Estes são os dois lados de uma
mesma esquerda a que temos realmente que dizer adeus: “O próprio do stalinismo ou
oportunismo de esquerda, diz Hervé, é fazer uma política de colaboração e manter uma
ideologia intransigente. O acordo estrondoso, a paz vociferada, a mistura de concessão
política e abuso verbal, são a própria definição do stalinismo. “[25]
Um dos mecanismos perversos do consenso de “esquerda” opera na base da
afirmação “não há alternativa”. No entanto, a falta de alternativa não é um dado natural,
muito menos o fruto dessa implosão do pacto mafioso ao qual o PT tenha aderido, mas
o produto de uma estratégia deliberada de destruir qualquer alternativa possível. Assim,
o movimento de junho 2013 foi destruído. É sempre de acordo com a mesma lógica que
a candidatura de Marina foi impedida primeiro e depois esfacelada. Da mesma forma, o
falso discurso sobre “o golpe” inexistente continua a produzir esta “falta” de alternativas
e de falsificar o debate. Não haverá alternativa enquanto permanecemos no terreno
imposto por essa esquerda. O que precisamos é voltar ao homem revoltado, ao meio-
dia do pensamento, onde a revolta nega a divindade para compartilhar as lutas e o
destino comum [26]. É bem isso que Claude Lefort vê em Arquipélago Gulag, quando
ele aponta como Solzhenitsyn , após as críticas que fez à revolução, se inflama na
“descrição das grandes revoltas dos condenados” que lhe “inspiram páginas que estão
entre as mais belas da literatura revolucionária”[27]: a revelação da “(…) revolta dos
zeks (Zek, diminutivo da palavra russa zaklioutchennyi, significando preso), e de uma
maneira geral, a sua nova resistência, através do qual eles afirmam-se como políticos,
retomam a palavra e começam a recuperar a sua dignidade de homens. “[28] O que o
condenado do sistema repressivo infame resultante da revolução acaba pensando como
uma alternativa … é exatamente a revolução ou parafraseando Camus, o homem
18
Notas
[4] Matheus Leitão, “Deleção de Sergio Machado atinge Temer”, O Globo, 16 juin
2016.
http://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/delacao-de-sergio-machado-
atinge-temer-governo-quer-congelar-gastos-jornais-de-quinta-22.html
[5] Barbara Szaniecki e Giuseppe Cocco, “Maledetto sia giugno: il Brasile un anno
dopo”. http://www.commonware.org/index.php/cartografia/479-maledetto-sia-giugno.
Giuseppe Cocco, “Dilma e Aécio são o Estado contra a sociedade”, Entrevista por
Patricia Fachin, IHU-Online http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/536610-dilma-e-
aecio-duas-faces-de-um-mesmo-esgotamento-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco-
[6] Sandro Mezzadra y Diego Sztulwark, “Imágenes del desarrollo, ciclo político y
nuevo conflicto social”, 3 novembre 2014.
http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2014/11/anatomia-politica-de-la-
coyuntura.html
[10] Ibid.
[11] Jean François Billeter, La Chine trois fois muette, Allia, Paris, 2000, p. 48.
19
Billeter fala de trinta a quarenta milhões de mortos, de acordo com diferentes fontes.
Slavoy Zizek cita a biografia de Mao para falar cerca de 38 milhões de mortos no
mesmo período (início de 1958), devido, também às exportações de trigo para a URSS
em troca de tecnologia nuclear e de armamento.
“Introduction” à Mao, “On practice and contradiction“, Verso, London, 2007, p. 10.
[23] Antony Beevor & Luba Vinogradova, Un escritor en guerra. Vasili Grossman en el
Ejercito Rojo, 1941-1944, Traduction de l’anglais à l’espanhol de Juanmari Madariaga,
Crítica, Barcelona, 2012, p. 410.
Universidade Nômade
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Resumo
O artigo parte da análise da situação política da Itália no ano de 1977 e, em particular,
de uma ruptura ali produzida entre as lutas operárias do período industrial e um tipo
novo de lutas, inspiradas na cultura e na comunicação. Na realidade, a ruptura vinha se
dando em muitos outros países da Europa aos Estados Unidos, se estendendo à Rússia e
à China. E ela pode em parte ser explicada por transformações nos próprios modos de
produção na passagem ao pós-industrial. “É hora, é hora, trabalha só uma hora”
gritavam os autonomistas enquanto sindicatos e partidos de esquerda insistiam com seu
“é hora, é hora, poder a quem trabalha” e, por meio do “compromisso histórico”
iniciavam a repressão contra os primeiros. Politicamente, o movimento perdeu mas
filosoficamente propulsionou o pensamento pós-estruturalista e, em particular, o de
Foucault, Deleuze e Guattari. Seja na política quanto no pensamento, a comunicação
teve papel central naquele momento. E continua tendo. Controlada, ela segue tecendo
um cenário de “no future”.
Palavras-chave
Movimento de 1977; pós-industrial; pós-operário; pós-estruturalista; comunicação; no
future
Abstract
The article starts with the analysis of the political situation in Italy in 1977 and, in
particular, of a rupture produced there between the wprkers’ struggles of the industrial
period and a new type of struggle inspired by culture and communication. In fact, the
1
Franco Berardi, o Bifo, é escritor, filósofo e agitador cultural italiano, autor de vários livros sobre a
relação entre movimentos de luta e tecnologias de comunicação, participou da fundação da Rádio Alice
em 1976 e, no auge do Movimento de ’77 na Itália, foi uma das principais referências da dita “ala
criativa” dos protestos.
23
rupture was occurring in many other countries from Europe to the United States,
extending to Russia and China. And it can in part be explained by transformations in the
modes of production in the transition to the postindustrial. "It's time, it's time, work only
an hour," the autonomists shouted as unions and leftist parties insisted on its "it's time,
it's time, power for those who work”. Through the "historical commitment", the last
began repression against the first. Politically, the movement lost but philosophically
propelled the poststructuralist thought, and in particular that of Foucault, Deleuze, and
Guattari. Whether in politics or in thought, communication played a central role at that
time. And still play. Controlled, it continues to weave a scenario of "no future".
Key-words
Movement of 1977; Post-industrial; Post-worker; Post-structuralist; communication; No
future
Introdução
A passagem ao pós-industrial
Para isso, em primeiro lugar, devemos nos fixar na mudança estrutural produtiva
que afetou as sociedades ocidentais a partir dos anos 70 e que vai se fazendo cada vez
mais profunda, rápida e estremecedora nas duas décadas seguintes. Trata-se de uma
transformação determinada pela difusão das tecnologias microeletrônicas (e depois, pela
digitalização), mas também pela crescente desafeição dos operários industriais pelo
trabalho de fábrica. “Desafeição” é uma palavra-chave para compreender a situação
social e a cultura ao redor do que se formou o movimento de 77. Desafeição ao trabalho
é a fórmula com que era definida (por parte do establishment jornalístico, patronal e
sindical) a tendência presente entre os operários, sobretudo os mais jovens, que se
realizava num conjunto de pequenas táticas de recusa: alegar falsamente doença, pedir
uma licença ou sistematicamente trabalhar pouco e mal.
Os empresários comentavam que a “desafeição” era a principal causa da queda
dos índices de produtividade. E de fato, assim eram as coisas.
“É hora, é hora, trabalha só uma hora” [5].
“Trabalho zero, salário inteiro/toda a produção à automação” [6].
Esses eram alguns dos slogans que os jovens operários autônomos mais
“extremistas” lançavam em meados dos anos 70 nas fábricas italianas, como na
26
que o movimento não foi capaz de traduzir a sua vocação social e as suas intuições
culturais numa ação política em longo prazo, para impulsionar a auto-organização da
sociedade e do processo produtivo? Essa é uma questão sobre o que precisamos nos
deter.
As razões pelas quais o movimento não foi capaz de traduzir a sua intuição
antilaboral num programa político factível foram duas. A primeira razão dessa
incapacidade, é preciso buscá-la no caráter intimamente contraditório do movimento, o
que deriva do fato dele enxergar a si próprio ao mesmo tempo como o último
movimento comunista do século 20 e como o primeiro movimento pós-industrial e,
portanto, pós-comunista. A segunda razão reside na repressão a que foi submetido: uma
repressão violenta e prolongada, cujas características devem ser analisadas com maior
profundidade.
Mas vejamos as coisas uma depois da outra.
Os estudantes e os jovens operários que se mobilizaram nos primeiros meses de
1977 já traziam na bagagem o acúmulo de vários anos organizando-se em mil formas
novas (centros do proletariado juvenil, rádios livres, comitês autônomos de fábrica ou
de bairro, coletivos autônomos nas escolas etc). Eles exprimiam comportamentos e
necessidades que já tinham pouco ou nada que ver com as necessidades e os
comportamentos do proletariado industrial tradicional. A reivindicação mais forte tinha
um cunho existencial. A qualidade de vida, a reivindicação de uma existência de
realização plena, a vontade de liberar o tempo e o corpo das amarras de ter de trabalhar
na indústria. Esses eram os temas fortes, as linhas ao longo do que se exprimiam e se
acumulavam a insubordinação e a autonomia. Apesar disso, a representação ideológica
predominante no interior do movimento era a que chegava, linearmente, dos
movimentos revolucionários do século 20, da história do comunismo da Terceira
Internacional. Ainda que o leninismo estivesse bastante sob questionamento naqueles
anos, a ideia predominante ainda era de um movimento revolucionário destinado a
derrubar a ordem burguesa e construir, de alguma maneira (bastante imprecisa, decerto),
uma sociedade comunista. Mas esse tipo de representação já não quadrava com a
realidade de movimentos que estavam concentrados na conquista de espaços e de
tempos, e que se manifestavam cada vez menos no plano político e cada vez mais no
existencial.
29
O movimento bolonhês, com efeito, teve uma forte ligação com os momentos
altos da pesquisa filosófica e alimentou, ele próprio, alguns desdobramentos da reflexão
na França, Alemanha e Estados Unidos. Essa ligação teve facetas diretamente políticas
(tais como a organização do congresso internacional contra a repressão em Bolonha, em
setembro de 1977), mas também, em prazo mais longo, facetas de caráter diretamente
filosófico, interpretativo, conceitual.
Os untorelli [NT: nome com que se chamavam, em epidemias de peste negra na
Europa, as pessoas que tinham as portas untadas para marcá-las como infectadas]
Assim, 1977 pode ser descrito como o ponto de separação entre a época
industrial e das grandes formações políticas, ideológicas e estatais, por um lado, e a
seguinte, a época proliferante de tecnologias digitais, de difusão molecular dos
dispositivos transversais de poder, por outro lado.
Nesse marco, é preciso entender a relação conflitiva entre o movimento e a
esquerda cujos rituais e ideologias ainda eram uma herança da história passada da época
industrial. Essa separação pode parecer apenas mais uma entre tantas e intermináveis
disputas doutrinárias e políticas dentro do movimento operário que superlotam todo o
século 20 [12]. Mas não é o caso aqui. Pois não se tratava de ainda outra discussão
dogmática, em que se disputava a hegemonia sobre o movimento comunista. Porque
este estava ossificado em premissas que a geração de 1977 liquida por completo, no
momento mesmo em que se constitui como um movimento. Em primeiro lugar, é
abandonada a premissa segundo o que o trabalho operário seria a base de toda
identidade política da esquerda. O movimento de 1977 se concebe explicitamente como
um movimento pós-operário, e recusa a ética do trabalho que havia fundado a história
cultural do movimento comunista ao longo do Novecentos.
Muda, portanto, a referência subjetiva, e muda paralelamente a análise da
sociedade capitalista, de suas modalidades de funcionamento. Deleuze propõe
interpretar a grande transição que se desenha como passagem das sociedades
disciplinares às sociedades de controle. As sociedades disciplinares são as modernas,
que Michel Foucault descreve. São sociedades em que se disciplinam os corpos e as
mentes, se constroem grandes caixas: a fábrica, a prisão, o hospital, o manicômio, a
cidade monocêntrica. Nessas sociedades, a repressão tem um caráter institucional e
centralizado, pois consiste na imposição de regras e estruturas estáveis. A sociedade que
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vai ganhando forma nas últimas décadas do século 20 tem um caráter completamente
diferente das que, com Foucault, podemos chamar sociedades disciplinares. A nova
sociedade passa a funcionar à base de controles inscritos no próprio genoma das
relações sociais: automatismos informáticos, tecnológicos, automatismos linguísticos e
financeiros.
Aparentemente, essa sociedade garante o máximo de liberdade a suas
componentes. Nela cada um pode fazer o que bem entende. Já não há imposição de
normas rígidas. Já não pretende disciplinar os comportamentos individuais nem os
itinerários coletivos. O controle agora está infiltrado no dispositivo do cérebro humano,
nos dispositivos que tornam as relações possíveis, a linguagem, a comunicação, a troca.
O controle está em todas as partes, não mais politicamente centralizado. O movimento
de 77 percebe esse campo problemático e não é por acaso que, precisamente nesses
anos, se começa a desenhar com clareza a passagem do pensamento estruturalista ao
pós-estruturalista, se assim podemos chamar o pensamento rizomático e proliferante que
tem a sua mais significativa expressão no Anti-Édipo de Deleuze e Guattari [13].
Imaginações esquizoides substituem as representações disciplinares de tipo paranoico.
O movimento de 77 não pretende se obcecar com a centralidade política do estado, do
partido, da ideologia. Prefere dispersar a sua atenção, a sua ação transformadora, a sua
comunicação por territórios que são muito mais crispados e erosivos: as formas de
convivência, as drogas, a sexualidade, a recusa do trabalho, a experimentação de formas
de trabalho com motivação ética, a criatividade.
Por todas essas razões, o movimento escapa definitivamente da referência
conceitual e política do movimento operário à inspiração da Terceira Internacional, seja
a sua variante reformista na figura do Partido Comunista Italiano (PCI), seja em sua
variante revolucionário-leninista de organização de luta. O movimento de 1977 já não
tinha nada que ver com essas velhas histórias. E, apesar disso, aquelas velhas histórias
lhe passaram fatura, o cercaram com as suas velharias, relíquias e obsessões.
O PCI da época do Compromesso Historico tratou de isolar o movimento por
meio de uma estratégia de marginalização cultural prolongada. A tradição
estalinomaoísta perseguiu-o com o terror, a militarização, a chantagem e, finalmente,
com a epidemia de arrependimento. A partir desse ponto de vista, é preciso dizer, sem
33
se alongar muito, que 1977 (em especial o bolonhês), foi o primeiro episódio de 1989
[14].
Foi em Bolonha em que se iniciou o processo definitivo de desmantelamento da
burocracia estalinista que, depois do Memorial de Yalta de Togliatti em 1964 [15],
havia se reciclado como burocracia reformista mas sem abandonar a sua vocação de
esmagar a dissidência, de expulsá-la, de caluniá-la, mistificá-la, reprimi-la. Em
Bolonha, em março de 1977, muitos pensavam que o principal inimigo era o PCI. Os
comunistas o constatavam com incredulidade, como se fosse um escândalo denunciar o
seu poder.
A dureza desse enfrentamento deve ser entendida na perspectiva de uma
mudança cultural profunda. Pois o movimento de 1977 colocava em questão os dois
pilares sobre o que tinha sido fundada a cultura do partido comunista.
Em primeiro lugar, a ética do trabalho, o orgulho do produtor que reivindica
profissionalismo, ofício, autogestão. O movimento opunha a isso a recusa do trabalho, o
absenteísmo, a desafeição e a perspectiva de uma decadência gradual do valor histórico
e produtivo do trabalho operário.
Em segundo lugar, o movimento punha em xeque a identificação entre classe
operária e estado, bem como a adesão profunda à instituição estatal, considerada pelo
PCI como elemento fundamental da identidade democrática. O movimento preferia
afirmar a obsolescência tendencial do estado, o seu esvaziamento e a sua redução
progressiva a pura e simples máquina repressiva. O fetichismo da forma-estado
característico do grupo dirigente do PCI estava, além disso, vinculado à teorização
leninista em sua versão terceirointernacionalista. Ainda que Marx jamais tenha postado
o estado num pedestal. Foi o partido de Lênin, uma vez tendo alcançado o poder, quem
identificou o estado operário ao ideal histórico e político do poder operário.
Retrospectivamente, podemos afirmar que a identificação entre estado e poder operário
era uma das mais profundas mentiras da teoria e prática estalinistas, e uma das pegadas
mais indeléveis da tradição terceirointernacionalista e comunista.
Essa problemática apareceu em Bolonha, ainda que em forma atenuada e
reformada. A santificação do estado como forma indiscutível a que deveria ser
reconduzida toda mediação social estava longíssimo do espírito libertário do
movimento. Nesse sentido, o movimento (em especial o bolonhês) teve uma dupla
34
de ser considerada uma superestrutura, para ser entendida como uma produção
simbólica que participa da formação do imaginário, quer dizer, o oceano de imagens,
sentimentos, expectativas, desejos e motivações, sobre o que se funda o processo social,
com as suas mudanças e viradas.
A batalha da mediascape
Notas
[1] – Capítulo de 1977: l´anno incui il futuro incominciò, Roma, Fangango: 2002.
Tradução ao português pela UniNômade, a partir da tradução ao espanhol, de 2007, por
Patricia Amigot e Manuel Aguilar.
[2] – Interface amistosa entre usuário e computador, com base em metáforas gráficas
(janelas, pastas, escritório) e o uso do mouse.
[4] – Por Deng Xiaoping, dirigente comunista chinês. Vinculado desde os anos 50 à ala
moderada ou conservadora do PCC, foi destituído durante a Revolução Cultual em
1967-69. Voltou ao poder pelas mãos de Zhou Enlai, em 1973. Depois da morte de
Zhou e de Mao, em 1976, disputou o poder com chamada Gangue dos Quatro, até
vencê-la. Entre 77 e 87, Deng foi o inspirador das reformas da sociedade chinesa na
direção de uma economia capitalista comandada pelo PCC, que serviu de base política,
econômica e repressiva para a longa marcha do desenvolvimentismo chinês.
Gunther Teubner1
1
IUC Torino e Universidade de Frankfurt.
2
Mestrando em Filosofia do Direito pela UERJ e pesquisador associado à Rede Universidade Nômade.
3
Doutorando em Filosofia do Direito pela UERJ e pesquisador associado à Rede Universidade Nômade
4
Apresentação feita em 10 de março de 2011 no International University College of Turin (IUC), em
conjunto com a UniNomade 2.0, durante o debate entre os professores Antonio Negri e Gunther Teubner
entitulado “O Direito do Comum: Globalização, propriedade e novos horizontes de liberação”.
44
Meu argumento começa com a observação óbvia que a corrente distinção entre
os setores público e privado é uma descrição simplificada da sociedade contemporânea.
Mais controversamente, meu argumento continua que qualquer ideia de fusão das
esferas pública e privada, que é argumentada por muitos pesquisadores críticos, dentre
eles A. Negri, é igualmente inadequada. Eu proponho tomar uma direção oposta da
fusão: a divisão público/privado deve ser recolocada pela policontexturalidade. O
argumento é esse: discursos e práticas sociais contemporâneos já não podem ser
analisados por uma única distinção binária; a fragmentação da sociedade em uma
multidão de mundos sociais de significado requer uma multidão de perspectivas de
autodescrição. Consequentemente, a simples distinção Estado/sociedade, que é
traduzida no direito como direito público vs. direito privado, precisa ser substituída por
uma multiplicidade de perspectivas sociais, que são simultaneamente refletidas no
direito.
A distinção entre direito privado e direito público não precisa de destruição nem
de fusão, mas sim do seu Aufhebung. No primeiro passo, isso precisa ser dissolvido e
recolocado pelas afinidades eletivas do direito para uma pluralidade de discursos, ou
contextos, tal como privacidade, saúde, educação, ciência, religião, arte e mídia. Isso
poderia levar a uma profunda reflexão jurídica das distintivas ‘autológicas’5 desses
vários domínios do discurso.
O ponto é liberar o direito da divisão simplista público/privado, que significa
simultaneamente não apenas deseconomizá-la, mas também despolitizá-la; distanciá-la
não apenas do setor privado, mas também do setor público. No último século, a doutrina
jurídica tem se adaptado à dupla Grande Transformação, a vitória imperialista na
economia e no sistema político, que tem dividido o mundo social em duas grandes
esferas de influência. De um lado, a ação econômica desenvolvida totalizando
tendências em sua larga expansão social, e relações sociais não-comerciais (por
exemplo, os relacionamentos das profissões clássicas com seus clientes) transformadas
em relações econômicas orientadas pelo lucro. O direito seguiu essa mercantilização
contínua do mundo social, às vezes relutantemente, sempre obedientemente. Do outro
lado, existiu o crescimento aparentemente imparável do Estado de bem-estar social,
5
No texto original, “eigenlogics”. “Eigen” é um termo alemão que traduzido ao inglês traz o sentido de
particularidade, característica distintiva, peculiaridade, próprio. Por isso, traduzimos como ‘autológica’,
se referindo às peculiaridades lógicas dos distintos domínios de discurso.
45
2. Questão Dois: Onde está o espaço potencial para movimentos sociais em suas
relações com a governança global?
mais finas capilaridades. Assim como as constituições do poder político são usadas para
limitar o poder, a mediação do sistema-específico precisa voltar-se contra si. Combater
o fogo com fogo; jogar o poder contra o poder; contrapor a lei à lei; lutar contra o
dinheiro com o dinheiro. Tal mediação pela autolimitação seria o critério real de
distinção da transformação através de uma constituição interna da economia e da
regulação política externa.
Candidatos para a constitucionalização capilar criariam ao menos três possíveis
esferas dos “comuns”, entendidas em uma perspectiva ampla.
1) Politização do consumidor: ao invés de serem considerados como já
dados, as preferencias individuais e coletivas são abertamente politizadas através do
consumo ativista, boicote, consumo crítico, ambientalista, litígios de interesse público e
outras expressões da sustentabilidade ecológica. Essa politização da ação econômica
representa uma transformação da própria constituição interna, tocando a área mais
sensível da circulação da moeda, notadamente, o desejo de pagar dos consumidores e
investidores. E isso se torna uma questão de importância constitucional ou, mais
precisamente, uma questão de efeitos horizontais de direitos constitucionais na
economia: como proteger a formação de preferencias sociais contra as suas restrições
através dos interesses corporativos.
2) Ecologização da governança corporativa: o que se busca aqui não é uma
nova ética na gestão, mas antes a transformação interna da estrutura da companhia,
compelida por pressões externas; uma transformação que limita as tendências ao
crescimento da especulação e das compulsões necessariamente associadas com a
emergência das estruturas corporativas modernas. As tradicionais formas de
participação dos trabalhadores na firma precisariam ser reconsideradas nas condições da
globalização para as novas formas de responsabilidade social e ecológica da produção
econômica.
3) Controle público do sistema monetário penetraria o arcanum da
constituição financeira global, como uma proposta de combate ao crescimento
excessivo. A droga viciante é a criação de dinheiro não físico (“fictício”) por bancos
comerciais. Atualmente, a relação entre o papel moeda criado pelos bancos centrais e o
dinheiro fictício criado pelos bancos comerciais é 20 para 80. Bancos comerciais
deveriam ser proibidos de criar dinheiro através do crédito disponível nas contas
52
correntes e, ao invés disso, deveriam ser limitados a oferecer empréstimos que seriam
baseados nas suas reservas existentes. É nesse sentido que o presidente dos EUA
Jefferson demandou já em 1813 “que o direito de emitir moeda deveria ser tomado dos
bancos e retornado para o povo”. Mas quem seria esse “povo” quando se fala em
moeda? Como a criação de moeda seria retornada ao povo? Depois de tudo que já foi
dito, a resposta só pode ser que a criação de moeda pertence à esfera pública, à esfera
dos comuns, que não é ao domínio do Estado. A criação de dinheiro fictício deveria ser
“dada de volta ao povo”; isso deveria se tornar a prerrogativa única das instituições
públicas, que não são as instituições estatais, os bancos centrais nacionais e
internacionais sob o controle democrático.
Essas três estratégias – politização da cidadania econômica, ecologização da
produção econômica e o retorno da criação da moeda ao público – participa em dois
impulsos antinômicos aos mercados globais constitucionalizados. De forma análoga à
análise de Karl Polanyi sobre as transformações da modernidade, existe um
“movimento duplo” de constitucionalismo transnacional: primeiro a expansão de
subsistemas é realizada através de normas constitutivas e, segundo, os turbulentos
conflitos sociais forçam sua inibição através de normas limitativas que criam uma esfera
de comuns no centro da economia.
3. Questão três: a nova lei global seria articulada por uma subjetividade diferente?
democrática traçarão limites distintos em cada esfera de vida do que deve ser
legitimamente mantido privado (por exemplo, parte da vida íntima, excludente a outros,
etc.) e o que deve se tornar um empreendimento comum compartilhado por todos.
Em segundo lugar, o que eu chamo de policontexturalidade tem certas
semelhanças com a fragmentação de Império (2002) e Multidão (2004), mas, como
resultado de processos históricos de longa duração, é muito menos fluido e não pode e
não deve simplesmente ser superado por uma imposição política. Em vez disso,
qualquer transformação subversiva da modernidade que queira superá-la, mas
simultaneamente aproveitar suas potencialidades produtivas, terá como uma de suas
prioridades cultivar a policontexturalidade. Se A. Negri quer, como ele diz, construir
não só as ciências naturais e os conhecimentos técnicos (mas também os conhecimentos
sociológicos existentes), teria que considerar centralmente o que considero como os
diagnósticos mais importantes da sociologia da modernidade – as tradições que incluem
a divisão do trabalho de Emile Durkheim, o novo politeísmo de Max Weber, a
diferenciação funcional de Talcott Parsons e Niklas Luhmann, os champs sociaux
(campos sociais) de Bourdieu, terminando em suas formulações mais radicais na
policontexturalidade de Gotthard Günther e no différend (disputa) de François Lyotard.
Devo reafirmar que a policontexturalidade não pode ser identificada exclusivamente
com a diferenciação funcional que domina hoje. Ela é mais abstrata e abre o espaço para
novas diferenciações sociais que hoje testemunhamos parcialmente, incluindo a
multiplicidade de discursos identificados pelos pensadores pós-modernos e a variedade
de distinções culturais híbridas, modos da "altermodernidade" de A. Negri, como
resultado da dupla fragmentação da sociedade mundial. A policontexturalidade, em
minha opinião, não resulta apenas da fragmentação das estruturas de poder do Império,
como A. Negri tende a argumentar. Temos que levar a alta ambivalência da
policontexturalidade mais a sério. Desatando a dinâmica implacável e imprudente das
racionalidades especializadas – não só na economia capitalista, mas em muitos sistemas
funcionais –, reconhecendo como responsável pelas catástrofes da modernidade, pela
alienação dos indivíduos, pelos devastadores conflitos sociais e pelo desastre ecológico.
E, ao mesmo tempo, essa mesma policontexturalidade encarna as condições de
possibilidade para as promessas do siècle des Lumières e da modernidade: a libertação
da razão da repressão religiosa e política, a autonomia do Estado de direito contra o
60
– )
orkers after the labor movement - The case of the (post) industrial region
of Setúbal Abstract
João Santos1
Resumo
A década de 80 foi marcada por um processo de desagregação do modelo industrial que
vinha a ser construído no Ocidente. oi também um período de fragmentação do mundo
operário na grande maioria dos países industrializados, onde o fordismo e o
keynesianismo revelaram os limites das suas potencialidades, abrindo caminho à
emergência de um novo regime de acumulação. Em Portugal, este período de
reestruturação foi também marcado pela integração na CEE, assim como pela recente
memória dos anos revolucionários de 1974-1975. Partindo do caso da região de Setúbal,
onde um movimento operário com fortes tradições de luta conviveu com uma profunda
crise industrial, pretende-se refletir acerca do processo de crise e reestruturação da
economia portuguesa nos anos 80, acompanhando o processo de recomposição operária.
Para tal, a história oral será uma peça central enquanto instrumento de inquérito ao
passado e ao presente em que este passado é recordado, permitindo aprofundar o
conhecimento sobre a subjectividade operária num quadro de composição,
decomposição e recomposição de classe.
Palavras-chave
desindustrialização; classe; memória operária; Setúbal.
Abstract
In general terms, the 1980’s were characterized by the disintegration of the industrial
model that had been built in the Western world up until then. This period was also one
of fragmentation of the working class as a whole in most industrialized countries, where
Fordism and Keynesianism revealed the limits of their potential by paving the way for
the emergency of a new regime of capitalist accumulation. In Portugal, this period was
also marked by the country’s accession to the European Economic Community (EEC)
and by the recent memory of the revolutionary years of 1974-1975. Starting from the
case of the region of Setúbal, where a working class movement with strong traditions of
struggle coexisted with a deep industrial crisis, it is intended to reflect on the process of
crisis and restructuring of the Portuguese economy in the 80s, following the process of
workers' recomposition. For this, oral history will be a centerpiece as an instrument of
inquiry into the past and present in which the past is remembered, allowing to deepen
the knowledge about the subjectivity of the workers within a framework of class
composition, decomposition and recomposition.
1
João Santos é licenciado em Ciência Política pelo ISCTE (2013) e Mestrando no curso de História
Contemporânea na FCSH-UNL, no âmbito do qual desenvolveu a sua dissertação sobre a região de
Setúbal e as profundas transformações industriais e de classe vivenciadas na década de 80.
62
Introdução
2
A escolha do ano 1979 para iniciar esta investigação deve-se ao segundo choque petrolífero, que será
determinante na atividade e futuro dos estaleiros, assim como na vida destes operários. A data escolhida
para balizar um “fim” é por ser um momento de reconversão produtiva, em que se dá a abertura da
Autoeuropa, empresa produtora de automóveis e de alguma forma, exemplo expressivo do pós-fordismo
em Portugal. Desta forma, podemos considerar que 1993 representa um período de transição quer na
região quer na própria história da classe trabalhadora.
63
Trata-se aqui da relação entre a agência e a estrutura, algo que irá atravessar toda
a historiografia acerca da classe operária, mas que teve provavelmente mais impacto no
debate despoletado pela publicação do livro de E.P. Thompson, A Formação da Classe
3
Entrevistaram-se 5 operários que trabalharam quer na Lisnave quer na Setenave. No entanto, uma vez
que este artigo é resultado de uma investigação de maior dimensão no âmbito de um mestrado, aqui as
histórias de vida serão inevitavelmente exploradas sem a mesma profundidade.
64
Operária Inglesa (1987). É preciso recordar que este debate surge na década de
sessenta. É um período em que o estruturalismo se tornava hegemónico enquanto forma
de ler o mundo e ao mesmo tempo emergia aquilo que ficou conhecido como a nova
esquerda, uma corrente que estava longe de ser homogénea, trazendo consigo os
primeiros passos para uma viragem culturalista que sempre manteve uma relação
contraditória com a visão estruturalista desenvolvida por autores como Althusser.
No caso concreto da abordagem thompsiana, trata-se de um confronto direto
com essa visão. Como nota Alice Ingerson, as abordagens estruturalistas marxistas ou
não-marxistas sobre o conceito de classe tendem a dividir a classe em duas
componentes, uma de posição de classe e outra de consciência de classe (1981, p.865).
Desta forma os marxistas definem a posição de classe como sendo a relação entre as
pessoas e os meios de produção e os não-marxistas definem classe como grau relativo
na hierarquia de rendimentos e da instrução (ibid.).
Na obra já referida, Thompson visa distanciar-se dessas abordagens onde, como
o próprio afirma, existe a:
“(...) omnipresente tentação de supor que a classe é uma coisa (...) Supõe-se que “essa coisa”,
a classe operária, tem uma existência real, que se pode definir quase matematicamente — uns
tantos homens que estão numa determinada relação com os meios de produção. Com base
neste pressuposto, torna -se possível deduzir a consciência de classe que “essa coisa” tinha de
ter (...) se “essa coisa” estivesse convenientemente consciente da sua própria posição e dos
seus reais interesses. Há uma superstrutura cultural, através da qual este reconhecimento se
manifestaria por vias ineficazes (...) Se pensarmos que a classe é uma relação, e não uma
coisa, não podemos admitir isto (...) “ (1987, p. 10)
estruturalista4. Não havendo aqui o espaço necessário para discorrer sobre um debate
bastante vivo e complexo, importa-nos, no entanto, salvaguardar a importância que teve
a obra de Thompson. Ao resgatar a experiência humana da jaula de ferro da estrutura,
deu as ferramentas necessárias para que outros investigadores não só pensassem o
processo de formação dessa mesma classe mas também pensar o processo de desfazer-
se da classe operária no último quartel do século XX com o aprofundar da
desindustrialização no Ocidente (Garrucio, 2016, p.50). Como nota Roberta Garruccio,
Thompson abriu a porta para que não se descure a experiência operária e as expressões
da mudança social, permitindo olhar de forma crítica para a suposta desaparição da
classe operária, expressão que surge de forma sub-reptícia sugerindo o cancelamento
cultural de uma classe social, que em termos quer percentuais, quer absolutos mais do
que desaparecer se tornou invisível (ibid.).
Esta questão de transformação da classe operária, e não simplesmente o seu
desaparecimento permite-nos fazer manter o diálogo com outra corrente de pensamento
marxista que se começou a desenvolver em Itália nos anos sessenta e setenta, como é o
caso do operaismo. Como nota Antonio Negri, a questão da constituição era um tronco
comum entre o pensamento de Thompson e o trabalho teórico desenvolvido pelo
operaismo (2003, p.113). Na verdade, o conceito a que estes deram o nome de
“composição de classe”, parece-nos ser um complemento necessário à ideia de
“experiência ”, uma vez que prossegue o esforço de desenvolver criticamente a relação
entre a estrutura e a agência dos operários, acompanhando este desenvolvimento por
uma periodização de transformações no seio dessa mesma classe.
Segundo esta corrente podemos olhar para a “composição de classe” como uma
inversão do conceito (desenvolvido por Marx) de composição orgânica do capital. Este
conceito divide-se em duas dimensões: a composição técnica e a composição política,
dizendo a primeira respeito à questão mais objetiva, como é a posição dos trabalhadores
no processo produtivo, os métodos de produção, desenvolvimento tecnológico, entre
outros aspetos relacionados com o sistema produtivo e a segunda dimensão dizendo
respeito ao elemento subjetivo, à identificação das pessoas enquanto trabalhadores, a
aceitação ou não da disciplina patronal e também outros elementos, como crenças,
valores, práticas de resistência, de forma coletiva ou individual, e, claro, formas de
4
Para uma leitura mais aprofundada do debate que opôs a abordagem de E.P. Thompson à abordagem
estruturalista é de conferir: Perry Anderson, Arguments Within English Marxism, Verso, 1980.
66
relação historicamente determinada onde estes são sujeitos e não meros objetos ou
números.
Como nota Joan Sangster, há muito tempo que a história oral e a classe operária
estão diretamente relacionadas (2013, p.1). Encontrando as suas vozes ausentes em
arquivos oficiais, a história oral revela a sua principal marca, a capacidade de dar voz a
estes grupos recuperando do vivido conforme concebido por quem viveu (Alberti, p.5).
No entanto, este também é um dos principais debates da historiografia e da sua
relação com a história oral. Serão as fontes orais suficientes por si só ou são apenas
auxiliares das fontes documentais? Importa aqui recuperar o contributo de Alessandro
Portelli; segundo este, as fontes orais têm uma forma e uma credibilidade distintas, que
residem exatamente na sua subjetividade, ou seja, por incluírem o erro, a imaginação, o
desejo, as fontes não só revelam a história acerca do que aconteceu, mas também o
significado da história e, dessa forma, o significado mais do que o “facto” é o que
caracteriza a história oral e a torna um mecanismo necessário para a história da
subjetividade (2008, p.14). Acresce ainda que as posições céticas face ao uso de fontes
orais e à sua validade ou objetividade para pensar o passado, acabam por ignorar a
contribuição da “viragem cultural” ocorrida nos anos 70 e 80, que contribuiu
decisivamente para refletir sobre as próprias fontes escritas utilizadas pelo historiador e
como estas não são espelhos transparentes que nos permitem acesso direto ao passado
(Cardina, 2016, p. 36).
Desta forma, com a história oral não se trata apenas de preencher lacunas,
comprovar ou ilustrar informações contidas em documentos escritos (Ferreira, 1994, p.
9). Ao salvar os sujeitos entrevistados da enorme condescendência da posteridade
(Thompson, 1987, p.123), valorizando as suas vivências e a sensibilidade dos mesmos
e, ao mesmo tempo negando, a memória enquanto terreno estanque e imóvel estimula-se
uma igualdade entre o investigador e o sujeito histórico dentro das suas desigualdades
socioculturais e estabelece-se uma relação de aprendizagem mútua e de práticas
intercambiáveis entre a cultura oral e a cultura letrada (Khoury, 2010, p.11). Trata-se,
portanto, de um método dialógico, em que, como nota Portelli, o conteúdo da fonte oral
68
6
Apesar da Setenave ter surgido como estaleiro complementar da Lisnave, o processo revolucionário de
1974/75 levará à nacionalização da primeira, criando assim uma bifurcação de caminhos entre estas duas
empresas que só voltarão a ser unificadas já na década de 90 com o processo de reprivatizações.
73
7
Uma vez que por limitação de espaço não é possível aprofundar os acontecimentos ocorridos no biénio
revolucionário veja-se o trabalho de Miguel Perez, Contra a Exploração Capitalista. Comissões de
Trabalhadores e Luta Operária na Revolução Portuguesa (1974-1975), Dissertação de Mestrado, 2008.
8
Uma das principais famílias da classe dominante portuguesa. Sendo que José Manuel de Mello era o
presidente do conselho de administração da Lisnave.
74
designado por Terceira Revolução Industrial.” (1986, p.6) Tratava-se pois de uma
transição, passando de um modelo de indústria pesada para uma indústria ligeira, com o
uso de tecnologias de forma descentralizada contra processos de produção em massa
(idem). Segundo este, dever- se- ia passar de “um pequeno número de grande s
organizações para uma nuvem industrial móvel, flexível e inovadora” (ibid. p.19).
Esta nova semântica que contrapunha flexibilidade e inovação à rigidez e
massificação tornar-se-á hegemónica, permitindo aos empregadores fazer uma maior
pressão sobre o controlo do trabalho numa mão-de-obra que se encontrava enfraquecida
por duas crises selvagens de deflação (Harvey, 1991, p.147). Com o surgimento deste
“novo espirito do capitalismo”, dá-se uma transformação profunda na organização do
trabalho, através de formas como a polivalência, autocontrolo ou desenvolvimento da
autonomia (Boltanski e Chiapello, 2009, p.240). Desta forma foi possível transferir para
os assalariados o peso das incertezas do mercado (idem).
No entanto, a transferência não ocorrerá de forma pacífica. Se é verdade que os
anos oitenta são marcados por uma retomada ideológica do patronato, nos locais de
trabalho foram utilizadas técnicas bastante violentas para liquidar o contrapoder
operário que havia surgido com a revolução de abril (Telles, 2006, p.17).
De facto, este período pode ser pensado a partir de um processo que Marco
Revelli define como a passagem de uma ética da solidariedade, uma mistura de valores,
regras de vida, de memórias e certezas que fizeram a alma e a identidade do movimento
operário para uma “ética da sobrevivência” que alimenta o individualismo competitivo e
que, numa gestão supostamente racional da crise (1982, p.100), abrindo assim as portas
para a decomposição de uma determinada cultura operária, representada na figura do
operário naval. Como nota Cipriano P.9, um dos operários entrevistados:
“Houve um processo de desgaste e de tentar derrotar a malta através da fome,
não é... depois começou a haver despedimentos coletivos, começou a haver a
malta... numa fase, começou a haver uma situação que foi a abertura de
rescisões voluntárias. Portanto a saturação em determinada fase foi tanta que
de um dia para o outro... epá não digo de um dia para o outro, mas no prazo
de quatro, cinco dias, uma semana, na primeira leva de rescisões voluntárias
foram à volta de 2.000 pessoas. Quer dizer, é uma coisa... isso depois tem
influência na participação, na organização das pessoas”
9
Entrevista com Cipriano P. no dia 16.03.2016.
75
O refeitório enquanto espaço que recebia os operários que não tinham trabalho
ocupava aqui um papel quase semelhante ao das tabernas no século XIX enquanto
espaço social, de partilha de discursos anti-hegemónicos (Scott, 2013, p.176), onde se
“jogava às cartas”, “lia” e “falava-se muito”, ou seja, um espaço onde os operários se
podiam organizar dentro do próprio estaleiro no seu horário laboral. No entanto, assim
como os espaços de sociabilidade dos grupos marginais do século XIX, também aqui
houve uma “vigilância a partir de cima” (ibid., p. 179), que é recordada por rancisco
como uma forma de atomização imposta pela administração visando desorganizar os
operários.
Para além destas formas de discurso oculto, o estaleiro da Lisnave também se
10
Entrevista com Francisco T. no dia 10.04. 2016.
76
De facto, a derrota acabou por se consumar nos estaleiros mas, enquanto foi
possível, construíram-se várias formas de resistência como as que vimos, resistência
essa que se realizava já não só pelo salário ou pelas condições de trabalho mas também
pela dignidade sob ataque.
A segunda metade da década de oitenta é marcada por uma mudança na
resolução do conflito. Desgastados pelo prolongamento da tensão, salários em atraso e
11
Entenda-se aqui a expressão “arma dos fracos” no sentido algo variado que lhe atribui James Scott:
“Tenho em mente as armas comuns de grupos impotentes: arrastar o pé, dissimulação, falso cumprimento,
ignorância fingida, calúnia, incêndio criminoso, sabotagem, e assim por diante” in James Scott, Weapons
of the Weak: Everyday Forms of Peasant Resistance, Yale University Press, 1985, p. xvi.
77
12
Já em 1983 havia sido assinado o primeiro pacto social na Setenave apesar de não ter o peso simbólico
do pacto assinado na Lisnave três anos mais tarde.
78
Considerações Finais
13
Como sugerem Pierre Dardot e Christian Laval na sua obra The New Way of the World – On Neoliberal
Society: “O sujeito produtivo foi o grande produto da sociedade industrial. Não se tratava apenas de uma
questão de aumentar a produção material. O poder tinha também que ser redefinido como essencialmente
produtivo, como parte da produção, cujos limites seriam apenas delimitados pelo impacto da sua ação na
produção. O correlato deste poder produtivo era o sujeito produtivo – não apenas o trabalhador mas o
sujeito que produz bem-estar, prazer e felicidade em todas as áreas de existência”, p. 287.
79
olhava para este processo como se de uma modernização quase naturalizada se tratasse,
em que os custos humanos apesar de desagradáveis se tornaram necessários face à
racionalidade de mercado; e um outro tipo de explicação que olhava para esta questão
apontando à “traição” por parte das cúpulas sindicais, que teriam facilitado o
desmantelamento do corpo operário e a sua derrota.
Sem desvalorizar contributos que resultem destas duas narrativas
historiográficas tentou-se neste artigo trilhar um caminho no sentido da elaboração de
uma “história operária do capital” (nas palavras de Mario Tronti), tomando como
elemento chave os comportamentos da classe trabalhadora no seio das relações
capitalistas de produção (Noronha, 2004, p.33-53). Para tal, a história oral enquanto
metodologia aliada ao diálogo teórico entre E.P Thompson e a corrente operaista
permitiu compreender um duplo movimento. Por um lado, foi possível aceder ao relato
de um conjunto de fenómenos que de alguma forma deixaram aquilo que Richard
Sennett denomina como “as feridas escondidas” da classe operária (1972), sendo
possível inquirir a forma como todos estes acontecimentos ganham um significado e são
relembrados como dissolução de uma determinada composição operária e da sua
estrutura de sentimentos. No entanto, por outro lado foi também possível acompanhar
um outro movimento, neste caso, um movimento constitutivo de uma determinada
identidade que acabou por se manter no presente, apesar da experiência fragmentada do
pós-fordismo. O estaleiro e os processos conflituais ocuparam também um papel
agregador da comunidade operária tendo como peça central a dignidade, quando nada
mais restava.
Referências
AMARAL, Luís Mira, A Crise Económica Social do Distrito de Setúbal; Serv. Inf.
Científica e Técnica, M.T.S.S., 1986.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian, The New Way of the World – On Neoliberal
Society, Verso, 2013.
LAINS, Pedro et al., História Económica de Portugal (1143-2010), Esfera dos Livros,
2012.
LIMA, Marinús Pires de; ROSA, Maria Teresa Serôdio et al., A Ação Sindical e o
Desenvolvimento: Uma Intervenção Sociológica em Setúbal, Edições Salamandra,
1992.
NORONHA, Ricardo Noronha, “ Para uma história operária do capital: classe, valor e
conflito social” in Sociologia, Revista da aculdade de Letras da Universidade do Porto,
2014, 33 – 53.
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WRIGHT, Steve, Storming Heaven: Class Compositio n and Struggle in Italia and
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83
The crossing of Eder Sader: from the big task to the fragments
of experience
Alexandre F. Mendes1
Resumo
O artigo busca apresentar a trajetória político-teórica do sociólogo brasileiro Eder Sader,
com ênfase nas inflexões que o autor realiza na direção de um pensamento que
acompanha os novos estilos de ação política dos personagens que entravam em cena no
Brasil, entre 1975 e 1985. Como conclusão, os conceitos do autor são prolongados para
pensarmos a atual crise política brasileira através de seis pontos distintos, que nos
indicam a necessidade de uma nova travessia.
Palavras-chave
sociologia; Eder Sader, sujeitos políticos, lutas sociais.
Abstract
The article seeks to present the political-theoretical trajectory of the Brazilian
sociologist Eder Sader, with emphasis on the inflections made by the author in the
direction of a thought that follows the new styles of political action of the characters
that emerged in brazilian scene between 1975 and 1985. As a conclusion, the concepts
of the author are prolonged to think the current Brazilian political crisis through six
distinct points, which indicate the need for a new exodus.
Keywords
sociology; Eder Sader, political subjects, social struggles.
Introdução
2
Podemos citar, como exceção, o prêmio CLASCO Eder Sader instituído em 2014, que selecionou
artigos acadêmicos, publicando-os em 2016. Cf. TAVARES, A. et al. Movimentos populares, democracia
e participação social no Brasil [et al.]; prólogo de César Barreira. Ciudad Autónoma de Buenos Aires:
CLACSO, 2016.
3
Uma parte de sua biografia, utilizada no presente artigo, foi resumida no obituário escrito por Marco
Aurélio Garcia: Eder Sader – o futuro sem este homem, publicado em setembro de 1988. Disponível em:
http://www.teoriaedebate.org.br/materias/nacional/eder-sader-o-futuro-sem-este-homem?page=0,0 Acesso
em 04 de outubro de 2016.
85
4
Sobre a POLOP, conferir: CENTRO DE ESTUDOS VICTOR MAYER. POLOP: Uma trajetória de luta
pela organização independente da classe operária no Brasil. Salvador: CVM, 2009. Disponível em:
http://centrovictormeyer.org.br/wp-content/uploads/2010/04/Polop-Uma-trajetoria-de-lutas.pdf Acesso em
04 de outubro de 2016.
5
Cf. MENDES, Eurico. O crescimento do movimento operário e as tarefas da vanguarda. In: Política
Operária, n. 06, 1963, p. 51.
6
SADER, E. A crise do reformismo e a formação do partido revolucionário. In: Revista Marxismo
Militante Nº 1, 1968, s/p. Utilizamos a versão disponibilizada em: http://centrovictormeyer.org.br/wp-
content/uploads/2011/03/A-crise-do-reformismo-e-a-forma%C3%A7%C3%A3o-do-Partido-
Revolucion%C3%A1rio.pdf Acesso em 04 de outubro de 2016.
86
7
Todas as citações em: Id. Ibidem.
8
Para uma resenha do debate: CORREA, Lucas Andrade Sá. Esboço para a análise de um debate no
exílio: O debate entre Érico Sachs e Eder Sader. In: Anais do VIII Colóquio Internacional Marx Engels,
2015. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2015/. Acesso em 04 de
outubro de 2016.
9
MARTINS, E. Post – Scriptum a “Como aprender – com quem aprender”. In: Revista Marxismo
Militante Exterior nº 1, 1975, p. 60.
10
SADER, E. Para um balanço da P.O. In: Revista Brasil Socialista nº 7, outubro de 1976, s/p.
Utilizamos a versão disponibilizada em: http://centrovictormeyer.org.br//wp-
content/uploads/2011/03/Para-um-balanco-da-PO.pdf Acesso em 04 de outubro de 2016.
87
11
Para uma resenha do debate, conferir: ROLLEMBERG, Denise. “Debate no exílio: em busca de
renovação”. In: RIDENTI, M; REIS FILHO, D. A. (Orgs.). História do marxismo no Brasil. Partidos e
movimentos após os anos 1960. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, v. 6, pp. 291-339.
12
SADER, E. Ibidem, 1976.
88
novo.
Pela primeira vez, nos textos do sociólogo, verificamos que ele é capaz de
desenvolver uma análise da luta dos trabalhadores colocando-se de forma imanente a
todo processo. Assim, em artigo de 1980, escrito com Paulo Sandroni 13, através de
informações prestadas por militantes do ABC paulista, os autores afirmam que: “já entre
14
1974 e 1977, se desenrola uma grande variedade de ‘pequenas lutas difíceis’” . Essas
“pequenas lutas” (operação tartaruga, exigência de melhor alimentação, transporte e
limpeza nos banheiros, recusa de horas extras, pequenas interrupções da jornada de
trabalho), conseguiam driblar o forte esquema repressivo estabelecido pela ditadura
contra as greves e, ao mesmo tempo, teciam um fio de afirmação operária nas grandes
fábricas paulistas.
Os fios dessa “organização invisível”, expressão utilizada pelo operaísta
Romano Alquati, em suas pesquisas sobre as lutas na FIAT dos anos 196015, só
apareceram de forma explícita nas jornadas pela reposição salarial de 1977, quando os
operários reivindicam a devolução de perdas geradas por erros no cálculo dos índices de
inflação em 1973.
Em São Bernardo, o Sindicato dos Metalúrgicos realiza uma assembleia de dez
mil pessoas, e começa a organizar aquilo que os autores denominam de “sindicalismo
autêntico”, excluindo qualquer referência que não expressasse “o próprio interesse dos
trabalhadores”. Na conclusão do artigo, os autores defendem que um dos pontos de
destaque do movimento operário e sindical, que se iniciou naquele ano, foi a presença
de “traços de autonomia e independência tanto a respeito dos aparatos estatais quanto a
dos partidos de oposição e esquerdas tradicionais” 16.
Em 1986, Eder Sader realiza o esforço teórico de lançar as novas inquietações
para dentro da tradição marxista e da história do movimento operário. No livro
Marxismo e teoria da revolução operária17, o autor acerta as contas, no campo teórico,
com todas as formas de positivismo, racionalismo, determinismo e evolucionismo
presentes no pensamento marxista desde o séc. 19 e, no campo político, com as
13
SADER, E; SANDRONI, P. Luchas obreras y táctica burguesa en Brasil. In: Cuadernos Políticos, n.
26, México D.F.: Era, outubro-dezembro, 1980, pp. 51-63.
14
Id. Ibidem.
15
ALQUATI, R. Sulla FIAT e altri scritti. Milano: Feltrinelli, 1975, p. 190.
16
Todas as citações em: SADER, E; SANDRONI. Ibidem.
17
SADER, E. Marxismo e teoria da revolução operária. 2a edição. São Paulo: Ática, 1991.
89
18
Id. Ibidem, p. 55
19
Id. Ibidem, p. 56
20
Id. Ibidem.
21
Id. Ibidem, p. 57
22
SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena. Experiências e lutas dos trabalhadores da
Grande São Paulo 1970-1980. 4a edição. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
90
será descrito, não através da tentação de uma grande totalização, mas através dos
pedaços de experiência e da partitura comum escrita pelas aventuras, às vezes
titubeantes e contraditórias, dos sujeitos reais que, no cotidiano ou em novas
organizações, se engajaram em lutas concretas.
Para desenvolver este olhar, que sem dúvida é o traço mais penetrante do livro,
Eder opera um importante deslize das análises verticalmente “estruturantes” que
interpretavam as práticas sociais da época através de unidades causais-explicativas que
privilegiavam as “condições objetivas dadas” (a coerção do Estado militar, o
automatismo dos processos econômicos da acumulação capitalista, a alienação
ideológica etc.). Para Eder Sader, era preciso estilhar essas unidades para que a relação
entre as ações produzidas e a emergência de novos personagens irrompesse em sua
singularidade 23.
Por outro lado, se afastar da explicação objetivante não quer dizer retomar a
ideia de um sujeito absoluto, pleno de liberdade e senhor de todas as ações possíveis.
Realizando um panorama sobre o debate filosófico em torno do conceito de sujeito,
Eder tenta compreender como novos imaginários e práticas instituintes24 são possíveis
de serem articulados, mesmo que imbricados nas condições e estruturas já dadas. Nessa
linha, sujeito autônomo não é aquele que “seria livre de todas as determinações
externas, mas aquele que é capaz de reelaborá-las em função daquilo que define como
sua vontade” 25.
23
Id. Ibidem, p. 40
24
Conferir a seguinte passagem: “Com essas referências procurei pensar as alterações nas práticas
coletivas de trabalhadores, como reelaboração do imaginário constituído, através de novas experiências,
onde se produzem alterações de falas e deslocamento de significados. Por aí surgem práticas instituintes”
(Id. Ibidem, p. 46).
25
Id. Ibidem, p. 56. Vale comentar que o conceito de “vontade” não deixa de ser problemático por retomar
concepções clássicas de sujeito que pressupõem sua separação com relação às práticas sociais. Uma das
formas de contornar esse problema pode ser encontrada no conceito de “modos de subjetivação”,
desenvolvido por Foucault na última fase de seu pensamento, à qual Eder Sader não teve acesso. Sobre o
tema, conferir o preciso comentário de Judith Revel: “O termo ‘subjetivação’ designa, em oucault, um
processo pelo qual obtemos a constituição de um sujeito, ou mais exatamente de uma subjetividade. Os
‘modos de subjetivação’ ou ‘processos de subjetivação’ da existência humana correspondem a dois tipos
de análise. De uma parte, os modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos – o que
significa que há somente sujeitos objetivados, e que os modos de subjetivação são, nesse sentido, práticas
de objetivação; de outra, a maneira como a relação com si, estabelecida através de um certo número de
91
práticas, permite que ele se constitua como sujeito de sua própria existência”. REVEL, J (Org).
Dictionnaire Foucault. Paris: Ellipses, 2008, p. 128.
26
Id. Ibidem, p. 60
92
“Você trocou Lenin por Paulo reire!”. É com essa acusação, presenciada pelo
próprio autor e desferida contra um militante em 1980, que Eder Sader abre o capítulo
31
sobre o balanço teórico do “marxismo de uma esquerda dispersa” . O sucesso dos
métodos de educação popular, e sua predominância com relação aos clássicos da teoria
revolucionária (Lenin, Mao e até o fugaz Debray32), é percebido como a possibilidade
de abertura de “um lugar para a elaboração crítica e coletiva das experiências da vida
individual e social” 33.
Através de alguns depoimentos pessoais, o autor mostra o caminho realizado,
um pouco de forma intuitiva, por vários militantes de esquerda oriundos dos grupos
vanguardistas. Ele apontava na direção de um novo estilo de ação política, que tinha
como centro, não mais uma determinação abstrata da vontade em torno da revolução,
mas “vinculações políticas a partir de suas competências profissionais: advogados,
34
arquitetos, assistentes sociais, professoras” . Os relatos mostram que os militantes
“desgarrados” de suas organizações também encontrarão espaços de atuação nos novos
movimentos de bairro, nas comissões de moradores, nos grupos de fábrica, nos
movimentos sanitaristas, nas pastorais da Igreja Católica etc.
O encontro dessas trajetórias, que Foucault descreveria igualmente através da
35
figura do “intelectual específico” , com o processo material de produção de
subjetividade que se efetuava no interior do ciclo de lutas de 1970-1980, não apenas
exemplifica o que seria aquele “marxismo vivo”, utilizado como fonte de elaboração de
novos conhecimentos e práticas, mas também demonstra que as ações políticas
31
Id. Ibidem, pp. 167-178.
32
O autor cita referências que eram leituras “obrigatórias” para os militantes da década de 1960-70: “Mas
o fato é que, nessa ‘ida ao povo’, buscando ajudar num processo de fazer despertar a ‘consciência crítica’,
o método Paulo reire esteve mais presente que os escritos de Gramsci, ‘Que fazer?’, de Lenin, os
livrinhos de Mao ou a ‘Revolução na revolução’ de, de Debray, de meteórica carreira” (Idem, ibidem, p.
167).
33 Id. Ibidem, p. 169.
34 Id. Ibidem, p. 176.
35
Cf. OUCAULT, M. “Verdade e Poder”. In: OUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro:
Graal, 1979, p. 10.
94
Eder Sader encerra o livro com um olhar já externo ao ciclo de lutas, avaliando
as derrotas sofridas pelos novos movimentos sociais e afirmando, enigmaticamente, que
as suas promessas (consideradas por alguns como “ilusões”, “mistificações” ou “erros
de avaliação”) poderiam ser reatualizadas, já que estão “inscritas numa memória
coletiva” 43.
39
Id. Ibidem, p. 313.
40
Id. Ibidem.
41
Id. Ibidem.
42
Id. Ibidem.
43
Id. Ibidem, p. 315.
96
Para entender o que o autor chama de “derrota”, é preciso ter em mente os seus
comentários num colóquio intitulado A constituinte em debate 44, realizado em maio de
1986, reunindo juristas e intelectuais de esquerda. O título sugerido pelo autor foi
“Poder constituinte e democracia no Brasil hoje”, e a intervenção se deu num contexto
geral de crítica do idealismo presente nas discussões sobre a elaboração de uma nova
Constituição.
Eder Sader concordou sobre a importância de se evitar a armadilha da abstração,
mesmo reconhecendo que uma Constituinte, inevitavelmente, lança os participantes
para um terreno propenso às idealizações. O ponto de partida que o autor utilizou para
qualificar materialmente o processo consistiu na proposta de examiná-lo à luz de um
“poder constituinte realmente existente” que, segundo o autor, seria a expressão das
lutas políticas em curso no Brasil e estaria efetuando transformações significativas no
marco da transição para a Nova República 45.
O problema seria que, apesar de fundamentais na derrota do Estado Militar, os
novos movimentos sociais não tiveram, naquele momento, êxito em se constituir como
uma força política apta a disputar as institucionalidades. Esse papel acabou sendo
exercido pelo MDB que, a partir de sua atuação parlamentar contra a ditadura, apareceu
como representante indireto das insatisfações e aspirações populares difusas. Ele
acabaria por reelaborá-las, sempre através de suas expressões particulares, como
pressupostos de uma vontade geral de democracia e de justiça social.
A derrota residiu na impossibilidade dos novos movimentos sociais de darem a
suas aspirações “uma voz própria” 46. Por isso, o desafio da Constituinte seria, primeiro,
impedir que o processo se transformasse na conclusão de uma transição política
realizada “por cima” e, segundo, construir as condições de democratização do próprio
exercício do poder constituinte. Assim, uma das batalhas mais importantes que se
configurava seria “alargar as possibilidades de intervenção da população no sistema
político” e “alargar vários direitos” que teriam vindo à tona nas lutas políticas dos anos
anteriores47.
44
FORTES, Luiz Roberto Salinas; NASCIMENTO, Milton Meira do. (Orgs.) A constituinte em debate:
colóquio realizado de 12 a 16 de maio de 1986. São Paulo: Sofia, 1987.
45
SADER, E. “Poder constituinte e democracia no Brasil hoje”. In: ORTES, Luiz Roberto Salinas;
NASCIMENTO, Milton Meira do. (Orgs.) A constituinte em debate (...), p. 200.
46
Id. Ibidem, p. 201.
47
Id. Ibidem.
97
48
A expressão é do filósofo Vladimir Safatle. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2015/03/15/a-nova-republica-acabou-diz-filosofo-vladimir-safatle.htm Acesso em 14 de outubro
de 2016.
98
“pedaços” de experiências vividas nos últimos anos, recusando o imobilismo dos velhos
personagens que não admitem sair de cena e buscando encontrar as novas subjetividades
que emergem no contexto da crise.
É do próprio léxico e dos problemas levantados por Eder Sader que alguns
elementos para futuras reflexões podem ser pontuados:
a) Autonomia: perceber a crise como o esgotamento da possibilidade de manter
em aberto uma dimensão instituinte que permita que os novos sujeitos políticos possam
continuar elaborando suas trajetórias e lutas através de uma “voz própria”, que na
verdade se articula polifonicamente com muitas vozes produzidas desde baixo. Os
últimos anos indicam que a realidade dos próprios movimentos sociais que surgiram na
década de 1980 pode ser vista como sintoma dessa crise. Incapazes de reelaborem suas
lutas através de novas práticas autônomas, acabam subordinados a governos,
burocracias ou instâncias decisivas cada vez mais externas aos problemas reais
enfrentados por seus integrantes;
b) Comum: a relação entre estado e mercado, como pressentia Eder Sader, foi
rearticulada através de novas formas de gestão que eliminaram qualquer forma de
participação ou de questionamento das decisões sobre projetos e investimentos. A
resposta brasileira à crise global de 2008 foi reforçar dinâmicas desenvolvimentistas
híbridas que mesclaram uma imposição estatal de grandes projetos, com novas formas
de privatização e empresariamento dos espaços comuns das cidades e das florestas. A
aposta de resgatar a mobilização produtiva “por cima” não só lançou o Brasil para uma
crise ainda mais profunda, como gerou um efeito de “rolo compressor” contra qualquer
tentativa de questionamento das decisões tomadas. Perspectivas alternativas como o
marco do bem viver ou de políticas do comum foram esquecidas ou atropeladas pela
utopia modernista de um “Brasil Maior”;
c) Novos personagens entram em cena: as novas mobilizações indicam que a
heterogeneidade que marca os movimentos sociais dos anos 1980, não só é estendida
por toda a dinâmica de funcionamento das metrópoles, como ganha contornos
irreversíveis. Nas análises Eder Sader, a separação entre esfera da produção
(sindicalismo) e esfera da reprodução (movimentos sociais) determinava características
distintas no conjunto das lutas sociais, mas também ensaiava o seu canto do cisne.
Atualmente, essa divisão perde o sentido, na medida em que a heterogeneidade do
99
trabalho precário passa a atravessar a própria esfera da produção e esta última, por sua
vez, se dilui cada vez mais na antiga esfera da reprodução, atingindo a vida como um
todo. Um novo sindicalismo social “autêntico”, que tenha a metrópole como base, só é
possível com a articulação de uma multiplicidade de sujeitos singulares que definem um
terreno comum de luta (ex: mareas na Espanha e luta contra a tarifa dos transportes no
Brasil). Uma compreensão da figura dos “indignados” é importante, não só para dar
carne a esta multiplicidade capaz de ações comuns, mas também para mostrar que as
lutas contemporâneas dependem de um tipo de cooperação que está para além, na
maioria dos casos, do que entendemos por “esquerda” e seus atores tradicionais
(movimentos, sindicatos e partidos);
d) Poder constituinte realmente existente: para além do idealismo e das
promessas não correspondidas do constitucionalismo, exasperado às ultimas
consequências na recente crise política brasileira, uma investigação das dinâmicas
constituintes dos últimos anos deve reconhecer que há um desejo transversal de
mudança que transborda e se volta contra todo o poder constituído existente. Este desejo
se condensou em múltiplas formas, ambíguas e contraditórias, em Junho de 2013.
Assim como na emergência dos movimentos sociais analisados por Eder, é preciso ter
em conta que o poder constituinte também é exercido através do conformismo, de uma
suposta atitude de “alienação política” e até por expressões aparentemente
conservadoras. O contexto atual parece indicar que o desafio reside na criação de
plataformas de ação onde estas manifestações possam encontrar ferramentas materiais
de transformação que apontem para caminhos de mais democracia, participação e
direitos;
e) A constituição de uma força política: no Brasil, o poder constituinte de Junho
de 2013, por enquanto, não foi capaz de organizar uma força política nova que possa
atravessar as institucionalidades com ventos de renovação. Ele foi canalizado apenas em
sua dimensão destituinte através de grandes operações policiais e judiciais que são
incapazes de constituir um terreno de radicalização democrática. Um dos motivos desta
mutilação foi a homogeneização das “aspirações difusas” que constituíram Junho
através de sua subordinação às figuras mórbidas de uma representação política que não
guarda mais qualquer relação efetiva com elas. A constituição de uma força política
através das experiências do ciclo de Junho se constitui como um enigma que diz
100
Referências
101
CORREA, Lucas Andrade Sá. Esboço para a análise de um debate no exílio: O debate
entre Érico Sachs e Eder Sader. In: Anais do VIII Colóquio Internacional Marx Engels,
2015. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2015/.
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102
Maquinações
104
Roberto Andrés1
Resumo
A vitória de Donald Trump nas eleições de 2016 reacendeu o debate sobre o populismo,
embora não haja nenhum consenso sobre o significado do termo. Esse artigo busca
superar as generalizações empíricas que geralmente associam a ideia de populismo a
algumas práticas políticas, sem uma conexão teórica que dê sentido ao conjunto. Busca
entender o populismo como uma forma de articulação política, na linha do pensamento
de Ernesto Laclau, Chantal Mouffe, Francisco Panizza, entre outros. Faz uma retomada
histórica até o People’s Party, nos Estados Unidos do século dezenove, passando por
outras experiências populistas na Europa e na América Latina. Analisa ainda o novo
municipalismo espanhol e as eleições brasileiras de 2016, chegando à hipótese de que a
utilização da forma populista pode servir à superação de vícios políticos e à
radicalização democrática.
Palavras-chave
Populismo, política, democracia, municipalismo.
Abstract
Donald Trump's victory in the 2016 elections has reignited the debate over populism,
although there is no consensus as to the meaning of the term. This article seeks to
overcome the empirical generalizations that tend to associate the idea of populism with
certain political practices, without a theoretical connection that throws meaning over the
whole. It seeks to understand populism as a form of political articulation, following the
line of thought of Ernesto Laclau, Chantal Mouffe and Francisco Panizza, among other
authors. It proposes a historic inquiry, departing from the People's Party, in nineteenth
century America, and passing through other populist experiences in Europe and Latin
America. It also analyzes the new Spanish municipalism and the Brazilian elections of
2016, proposing that populism, understood as a form, can be used to overcome political
vices and democratic radicalization.
Keywords
Populism, politics, democracy, municipalism.
1
Arquiteto-urbanista, professor na UFMG, editor da revista Piseagrama. Colunista do jornal O Tempo,
tem artigos publicados em veículos como a revista Piauí, a Folha de São Paulo e o site Outras Palavras.
Co-organizador, com Fernanda Regaldo, do Guia Morador | Belo Horizonte.
105
4
MÜLLER, Jan-Werner. Populistas. Em: Revista Piauí, 124, janeiro de 2017.
5
WILES, Peter. A Syndrome Not a Doctrine. Em: IONESCU, Ghita e GELLNER, Ernest. Populism: Its
Meaning and National Characteristics. Londres, 1969.
6
MÜLLER, Jan-Werner. What is populism? Filadelfia. University of Pennsylvania, 2016.
7
LACLAU, Ernesto. A Razão Populista. São Paulo. Editora Três Estrelas, 2013.
107
Exemplos dessa narrativa abundaram nas praças ocupadas dos últimos anos.
"Nós somos os 99% e não vamos mais tolerar a exploração do 1%" era o slogan do
Occupy Wall Street. "Não somos de esquerda nem de direita, somos os de baixo e
vamos para cima", lia-se em cartazes no 15M espanhol. O nós contra eles é via de regra;
o que muda é a definição desses dois campos e do conteúdo político articulado em torno
do significante vazio.
Quando formulada pela direita, a equação ganha um vértice geralmente
xenófobo ou racista. O que era uma linha reta (o povo contra a elite) torna-se um
triângulo em que (1) o “povo verdadeiro” (os brancos, os verdadeiros americanos,
franceses, austríacos..) se insurge contra (2) as elites, que favorecem (3) alguma classe
social ou étnica que está "roubando empregos" ou gastando os recursos do Estado.
Nos momentos de crise, essa narrativa encontra e explora o lado pior das
pessoas. Semeia medo, desconfiança e intolerância, e costuma colher muitos votos. Mas
é preciso reconhecer que, para além de uma estratégia eleitoral bem sucedida, há aí um
mérito: o de se compreender e falar para os anseios reais de grande parte das pessoas,
capacidade que os progressistas têm perdido a passos largos.
Os contextos de erupção populista são muito bem apresentados em outro livro
recente – The Populist Explosion, do jornalista americano John Judis8 –, e têm relação
direta com crises econômicas. Na medida em que o dinheiro é um instrumento central
na ordem da vida capitalista, problemas como a hiperinflação imediatamente abrem
brechas na hegemonia vigente. Também geram fissuras crises políticas e partidárias,
escândalos de corrupção, mudanças sócio-culturais, extrapolamento da comunicação
política para a cultura de massas.
A conjunto das rachaduras dá a intensidade do momento populista, que Laclau
sumarizou na coexistência de uma pluralidade de demandas com a inabilidade do
sistema institucional de absorvê-las. Difícil não pensar no Brasil atual, a partir da fissura
exposta de junho de 2013. Reconstruir a esquerda pode ser uma tarefa heroica de longo
prazo, mas quem quiser evitar que o lobo saia da toca – nos termos do crítico T. J.
Clark, que coloca como principal papel da esquerda evitar os momentos históricos de
8
JUDIS, John. The Populist Explosion. Nova Iorque. Columbia Global Reports, 2016.
108
9
CLARK, T. J. Por uma esquerda sem futuro. São Paulo. Editora 34, 2013.
109
como ladrões de empregos e beneficiários ilegítimos do estado de bem estar social, cuja
conta começava a não fechar.
Os primeiros partidos populistas na Europa eram tributários do fascismo (Le
Pen, o pai, afirmava que o holocausto foi uma nota de rodapé na história). Com o passar
dos anos, foram amenizando o discurso e se tornando viáveis eleitoralmente. Até
recentemente, as experiências populistas na Europa se resumiam à direita, o que faz
com que o termo entre os europeus seja associado a xenofobia, eugenia, racismo.
Na América Latina, populistas pipocaram na primeira metade do século 20,
geralmente articulando pautas trabalhistas. Nas últimas décadas, o fortalecimento de
governos de esquerda no continente teve que ver com a narrativa populista, em figuras
como Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia, os Kirchner na Argentina e
Rafael Correa no Equador. O que faz com que, diferentemente da Europa, por aqui
associemos populismo à esquerda.
A linha da história – e o excelente livro de John Judis – mostram que os
momentos populistas podem ser apropriados de maneiras muito diversas, por todo o
espectro ideológico. Suas pautas bombásticas podem ser a estatização de ferrovias
(People’s Party) ou a construção de um muro gigantesco na fronteira (Trump); o
preconceito étnico (Le Pen) ou a recuperação de casas hipotecadas (Ada Colau); o fim
dos marajás (Collor) ou a auditoria da dívida pública (Rafael Correa); a universalização
da saúde (Sanders) ou a taxação de grandes fortunas (Huey Long).
Em um artigo publicado no dia seguinte às eleições americanas10, Pablo Iglesias,
liderança do Podemos espanhol, apontava as semelhanças de seu partido com Donald
Trump: nenhuma do ponto de vista de conteúdo e todas do ponto de vista do momento
político. A crise de 2008, que empobreceu as classes médias e reduziu investimentos em
serviços públicos, segundo ele, provocou as rachaduras.
Os estrategistas do Podemos bebem na fonte das teorias políticas de Ernesto
Laclau e Chantal Mouffe, que constituíram uma vertente crítica ao consenso neoliberal
na política europeia a partir dos anos 1980. O Podemos talvez seja o primeiro partido
populista que surge da teoria, com lideranças formadas nas bibliotecas e universidades.
Quando Iñigo Errejón, hoje deputado e um dos fundadores do partido, é questionado
10
IGLESIAS, Pablo. Trump y el momento populista. Disponível em: http://blogs.publico.es/pablo-
iglesias/1091/trump-y-el-momento-populista/
111
sobre as razões do sucesso, ele costuma responder, com jeito de aluno caxias, que
"estudaram muito".
A teoria encontrou a prática e o marketing político. Os discursos do Podemos
são endereçados às maiorias sociais e evitam os jargões progressistas, visando, nas
palavras de seus articuladores, ocupar o centro do tabuleiro. Refutam a divisão política
no eixo esquerda-direita, argumentando que esse modo de narrar só interessa ao poder,
pois joga quem constrói alternativas diferentes para as bordas. Sua formulação é a dos
99%: os de baixo contra os de cima, la gente contra la casta.
Pela ênfase intelectual e no debate teórico, o Podemos acaba constituindo um
laboratório populista, em que as teorias desenvolvidas nas décadas passadas são testadas
de maneira consciente. As transposições e tensões entre teoria e prática aparecem no
encontro de gerações que foi a instigante conversa entre Iñigo Errejón e Chantal
Mouffe, publicada no livro Construir pueblo.11
Ali, Mouffe repassa sua crítica à pós-política do neoliberalismo, em que restaria
à disputa política nada mais do que “administrar o consenso”. A partir do momento em
que os principais partidos oferecem soluções parecidas, e quando essas soluções não
melhoram a vida das pessoas (e, no caso da Espanha, não conseguem responder à crise),
podem aparecer frestas na hegemonia.
Os populistas do Podemos souberam perceber esse momento e entender a
essência da política, que para Mouffe consiste na criação de um “nós” – o que implica
necessariamente na distinção de um “eles”. Além disso, atentam para o “papel dos
afetos coletivos na construção desse ‘nós’, assim como para a importância dos símbolos
e de oferecer alternativas”.
O comentário de Errejón sobre o tema poderia ser uma provocação aos autores
citados no início deste artigo: “Há uma ideia entre as forças de esquerda, bastante
equivocada, que entende que se você faz um discurso similar aos populistas de direita –
no sentido de popular – você está ajudando, abrindo caminho. Quando na realidade eu
creio que o que os ajuda é deixar todo esse terreno dos afetos coletivos livre para eles;
assim como outro terreno-chave, que é o da identificação nacional.”12
11
ERREJÓN, Iñigo; MOUFFE, Chantal. Construir Pueblo: Hegemonia y Radicalización de la
Democracia. Barcelona. Icaria Editorial, 2015.
12
ERREJÓn, Iñigo. Op. Cit. Pg 60
112
13
ERREJÓn, Iñigo. Op. Cit. Pg 110
113
14
TORRALBO, Isabel. Discurso de vitória eleitoral proferido em 13/6/2015. Tradução do Círculo da
Cidadania do Rio de Janeiro. Discurso completo em espanhol disponível em:
http://www.laopiniondemalaga.es/malaga/2015/06/13/discurso-ysabel-torralbo-malaga-
ahora/773558.html
15
CAVA, Bruno. O Podemos entre multidão e hegemonia: Negri ou Laclau?. Em: CAVA, Bruno e
ARENCON, Sandra. Podemos e Syriza: experimentações políticas e democracia no século 21. São Paulo.
Annablume, 2015.
16
Conversa entre Pablo Iglesias e Antonio Negri, programa Otra Volta de Tuerka. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=BOpTvdOXF9U
114
que identificá-los com uma nebulosa “onda conservadora” – termo confortável para a
esquerda, na medida em que abdica da análise e da autocrítica subsequente – interessa
atentar para as diferenças de suas campanhas e contextos eleitorais.
Por sua história, Marcelo Crivella teria dificuldades em largar como um
candidato anti-sistema. Ex-ministro da pesca de Dilma Rousseff e ex-senador, o bispo
licenciado da igreja Universal já havia se candidatado ao Governo do Estado e à
Prefeitura do Rio uma pá de vezes. Sua vitória parece ter vindo da identificação de um
eleitorado evangélico somada à dificuldade dos seus oponentes de capturarem o
momento de crise.
O Rio de Janeiro registrou o maior índice de abstenções de todo o país no
primeiro turno: um quarto dos eleitores preferiu nem se dirigir às urnas. Outros 13%
foram, mas digitaram números que não tinham candidatos. No segundo turno, a soma de
abstenções, brancos e nulos cresceu para inacreditáveis 47% – quase metade dos
eleitores cariocas preferiu não escolher.
O recorde Bartleby e os resultados pífios dos partidos tradicionais mostram que
a vitória de Crivella foi o resultado de um vácuo. Marcelo Freixo, que havia conseguido
capturar o sentimento de indignação em 2012, em uma campanha muito mais precária,
não conseguiu vencer fora do eleitorado politizado de classe média.
Uma pena, porque o candidato do PSOL carioca reúne qualidades raras no
cenário político atual e sua campanha chegou a um patamar novo para o partido, com
ótimos vídeos, uso de tecnologias do ativismo digital e forte mobilização nas ruas. Mas,
como já foi dito, inclusive pelo próprio Freixo, pregou demais para convertidos.
O mote de campanha – “derrotar o PMDB no Rio” – é justificado, mas não
resultou em um significante vazio suficientemente amplo. Talvez porque essa
construção colocasse o candidato muito mais dentro do que fora do jogo político,
embora ele esteja fora de todos os esquemas da política tradicional. O equívoco do
slogan Vai ser desse jeito, bonito no jingle mas arrogante quando descontextualizado,
talvez mostre que a esquerda não está “perdida na floresta”, nos termos de Ruy
Fausto17, mas “se achando demais”, como provocou Bruno Cava18.
17
FAUSTO, Ruy. Op. Cit.
18
CAVA, Bruno. Entrevista concedida ao Instituto Humanistas Unisinos em 29 de novembro de 2016.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-entrevistas/562848-a-esquerda-precisa-de-um-impulso-
de-despressurizacao-entrevista-especial-com-bruno-cava
116
19
NUNES, Rodrigo. A vitória da obscenidade. Caderno Ilustríssima, Folha de São Paulo, 2016.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/12/1837803-como-2016-levou-o-
indizivel-ao-estrelato.shtml
118
conseguido ter um alcance tão grande porque construiu de fato a ideia de uma outra
política, conseguindo furar a bolha da classe média esclarecida.
Furar a bolha talvez seja o maior desafio de propostas cujo principal meio de
comunicação são as redes sociais. Aqui não foi diferente e duas ações tiveram um papel
particularmente importante nesse sentido. A primeira foi firmar em cartório
compromissos de redução de privilégios. A ideia parecia ingênua, porque as propostas já
haviam sido divulgadas, mas teve boa cobertura da imprensa local e acabou por ampliar
o público.
A segunda foi um vídeo, que foi ao ar a uma semana das eleições, em que cada
candidata – o coletivo usa o feminino para a generalização – pedia voto para outra,
numa demonstração de desapego e coletividade. A peça viralizou e teve centenas de
milhares de visualizações. A grande repercussão do ato em cartório e do vídeo mostram
como o significante vazio outra política pode deixar de ser um mero slogan e adquire
consistência quando há uma verdade por trás.
A bolha estourou. Na última semana, quando um grande mutirão de panfletagem
voluntário ocupou as ruas da cidade, a maior parte do público já conhecia as
candidaturas. Duas vereadoras foram eleitas com pouquíssimos recursos, sendo o PSOL
o partido com menor gasto entre os que elegeram na capital.
Trago essa história não por proselitismo, mas para mostrar, com ajuda das
experiências espanholas e gregas, que o momento de crise pode ser abordável por quem
busca justiça social, boa gestão, aprimoramento democrático. Em uma entrevista
recente, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad afirmou que a disputa no país nos
próximos anos será entre a direita e a extrema-direita.20 Pode até ser, mas a perspectiva
de Haddad ignora as construções para além do PT e parece incapaz de imaginar a
utilização da narrativa populista pelas esquerdas.
Talvez fizesse bem aos campos progressistas deixar de ver o populismo como a
“sombra da democracia e um constante perigo”, como sugeriu Müller em seu livro, e
passar a mirá-lo, nas palavras de Panizza, como um “espelho no qual a democracia pode
se enxergar em detalhes, com verrugas e tudo mais, e entender suas virtudes e falhas”.
Isso não quer dizer fazer nenhuma concessão para demagogia, autoritarismos e
20
HADDAD, Fernando. Entrevista ao jornal Folha de São Paulo em 21/11/2016. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/11/1833961-disputa-sera-da-direita-com-a-extrema-direita-
afirma-haddad.shtml
120
clientelismos, mas entender de onde vem sua força e poder enfrentá-los a partir do
campo mais promissor para o embate nos momentos de crises.
A velha política brasileira já compreendeu o momento e vai tentar eleger, nas
próximas eleições, outsiders de dentro. O PTN, partido cujo presidente estadual em
Minas foi recentemente afastado do seu mandato de vereador por denúncias de
enriquecimento ilícito, mudou seu nome para (nada menos que) Podemos. O PTdoB
deve se transmutar em Nova Democracia. Essas siglas fisiológicas com novas
roupagens podem ter chances em eleições como as que vêm aí. Mas isso não é o pior. A
eleição de um novo Collor ainda pode sair barata, frente à possibilidade –real, Trump
vem nos lembrar – da indignação popular cair no colo de um Bolsonaro nos próximos
pleitos.
Deixar esse terreno livre para reafirmar a importância da política com P
maiúsculo, dos partidos tradicionais e fazer um discurso moral contra os populistas – o
que só os beneficia, pois reforça sua imagem de outsiders – pode parecer valente, mas
talvez seja abandonar a partida para não sujar o uniforme, porque o campo está
enlameado. Como coloca Chantal Mouffe, “o discurso antiestablishment pode ser
articulado de várias maneiras e por isso é muito importante não abandoná-lo às forças
da direita. No caso da Grécia é evidente que se não houvesse existido o Syriza, o partido
neonazista Amanhecer Dourado teria tido melhores resultados.”21
21
MOUFFE, Chantal. Op. Cit. Pg 60.
121
Resumo
Neste artigo, questiono a ideia adquirida de que as manifestações de junho de 2013
estejam aí para ser interpretadas. Gostaria de mostrar que, quando a sua análise se
resume a esse gesto, ela deixa passar uma dimensão essencial do funcionamento desses
eventos, da sua função política: a crítica radical, imediata e performativa da esfera da
representação conforme ela se apresenta em um dado momento. Nesse sentido, ao
relacionar as manifestações à crise da representação, a maneira interessante de fazê-lo
não é dizer que as manifestações se referem à crise da representação como sentido a ser
transmitido. O que uma manifestação desse tipo faz é, na sua intervenção concreta,
obrigar certas instituições a fazer a experiência da crise da representação, deixando-se
alterar por ela. Tratarei da relação entre as manifestações de 2013 e duas esferas em que
elas foram objeto de interpretação. Em primeiro lugar, dos veículos de imprensa e, em
segundo, dos intérpretes acadêmicos/intelectuais que se dedicaram à tarefa de traduzir a
“mensagem” das manifestações, definir seu “sentido” etc.
Palavras-chave
junho de 2013; manifestações; violência; representação.
Abstract
In this paper, I question the received idea that the demonstrations of june 2013 in Brazil
should be interpreted. I would like to show that, when their analysis is restricted to that
gesture, it ignores an essential dimension of those events, of their political function: the
radical, immediate and performative critique of the sphere of representation such as it
presents itself in a given moment. In this sense, in linking those demonstrations to the
crisis of representation, the interesting way to do it is not to say that the demonstrations
refer to the crisis of representation as a meaning to be transmitted. Rather, what a
demonstration of that kind does is, in its concrete intervention, force certain institutions
to go through the experience of the crisis of representation, and thus be altered by it. I
will discuss the relation between the 2013 demonstrations and two spheres in which
they were the object of interpretation. First the press, and then the academic/intellectual
interpreters who undertook the task of translating the “message” of the demonstration,
defining their “sense” etc.
1
Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro
122
Keywords
June 2013; demonstrations; violence; representation.
1. Introdução
Essa constatação tem a ver com a noção, proposta por Walter Benjamin (2011),
e recuperada recentemente por Giorgio Agamben (2004; 2010), de “puro meio” – uma
forma de ação humana que não é nem um fim em si mesma, nem um meio dirigido a um
fim, mas um puro meio que se libera de qualquer relação de finalidade.
Em “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”, Benjamin
(2011) escreve que a linguagem como puro meio manifesta-se a si mesma. Se
pensarmos, a partir daí, que uma manifestação manifesta-se a si mesma, e que portanto
ela tem uma dimensão de puro meio, então podemos pensar que, nessa dimensão, a
manifestação não se refere a nenhum significado transcendente, que careça de ser
recuperado na interpretação, mas apenas se mostra, e mostra-se justamente enquanto
irredutível à esfera da representação.
Nesse sentido, ao relacionar as manifestações – como frequentemente é feito –
à crise da representação, a maneira interessante de fazê-lo não é dizer que as
manifestações se referem à crise da representação como sentido a ser transmitido. O que
uma manifestação desse tipo faz é, na sua intervenção concreta, obrigar certas
instituições a fazer a experiência da crise da representação, deixando-se alterar por ela.
Neste artigo, tratarei da relação entre as manifestações de 2013 e duas esferas
(que, cada uma à sua maneira, podem ser consideradas privilegiadas) em que elas foram
objeto de interpretação. Colocarei, assim, a questão de qual foi o papel, em primeiro
lugar, dos veículos de imprensa e, em segundo, dos intérpretes acadêmicos/intelectuais
que se dedicaram à tarefa de traduzir a “mensagem” das manifestações, definir seu
“sentido” etc. Usarei aqui, como paradigma para a discussão, alguns textos incluídos na
compilação “Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do
Brasil”, organizado pela editora Boitempo, um dos livros mais difundidos, na sequência
a junho de 2013, sobre o assunto.
Maria da Glória Gohn (2014, p.72) ressalta que a mídia escrita, a TV, o rádio e a
internet foram, em junho e na sequência, “muito mais que veículos de transmissão dos
acontecimentos”. Esses órgãos condicionaram o próprio desenrolar das manifestações,
seja noticiando-as com destaque, em manchetes diárias, divulgando convocações, seja
124
transmitindo-as em tempo real. Essas instâncias, porém, não serviram apenas para
capturar os acontecimentos e reduzi-los a uma dada interpretação, embora isso seja em
grande medida a sua função. Elas também foram espaço privilegiado para a
desestabilização simbólica operada pelas manifestações. Bucci (2015, p.438) lembra
que, se por um lado “a exploração do olhar social [pela mídia] como força constitutiva e
força produtiva da significação da imagem permitiu o estabelecimento de signos como
manifestantes pacíficos em oposição a vândalos”, ela por outo lado “resultou na
construção de auras românticas associadas a certos figurinos, em especial os black
blocs, e catapultou, em reação imediata, a adesão das multidões às passeatas” quando
mostrou, ainda que contra a própria narrativa, a brutalidade da repressão policial contra
manifestantes aparentemente pacíficos.
Qual dessas dimensões predomina? É verdade que, por um breve momento, os
meios de comunicação tradicional serviram para canalizar a energia das manifestações
com uma força que hoje ainda parece exceder a capacidade das redes sociais
horizontais. Mas isso, de certo modo, não passou de um curto-circuito que pôde ser
resolvido em pouco tempo. É claro que a transmissão da imagem dos black blocs serviu
para inflamar o espírito revolucionário do público, ainda que a mídia a veiculasse com
clara reprovação, o que leva Bucci (2014, p.412) a levantar a questão se “as câmeras
não idolatraram aquilo que, nos microfones, os apresentadores rejeitaram”.
Por outro lado, a mesma mídia demorou muito pouco para pôr em ordem o
aparato interpretativo necessário para domesticar as manifestações, instrumentalizando
a imagem dos próprios black blocs nesse intuito. Vários autores comentam a “clivagem
entre ‘pacíficos’ e ‘baderneiros’” (Rolnik, 2013) estabelecida, a partir de um dado
momento, pelo discurso midiático. “A tela que nos apresenta as manifestações encontra
dividida”, observa Silvia Viana (2011, p.57), “de um lado, imagens verde-e-amarelas, de
outro, cenas vermelhas”. “Desde que depurada dos vândalos, a passeata torna-se
aceitável” (Secco, 2013, p.72). Por isso mesmo, é claro, faz-se inofensiva. Cabe atentar
aqui para o uso do termo “passeata”, em lugar de “protesto” ou “manifestação”.
Com efeito, a manifestação meramente legítima torna-se uma passeata, um
simples passeio. Um grupo de cidadãos no exercício legítimo do seu direito de
manifestação não tende a trazer nenhuma interrupção no fluxo de auto-reprodução do
direito. A demanda legítima expressa aí já faz parte do mundo do direito. Não força as
125
suas formas. A manifestação perde o seu potencial de promover uma ruptura no ciclo do
direito, de desestabilizá-lo ou de suspendê-lo. A manchete do jornal O Estado de São
Paulo, “Violência nos atos ofusca movimentos pacíficos” (Manso, 2013, grifos meus) é
representativa. No texto, porém, após se referir ao “desafio que as forças de segurança e
de imprensa estão enfrentando” para lidar com a violência nas manifestações, a matéria
curiosamente deixa escapar que a mesma violência “vem se consolidando como a forma
mais eficiente de fazer reverberar os protestos que passariam em branco se ocorressem
pacificamente”.
Bucci (2015, p.416) afirma que a “operação semântica insistente” dos noticiários
em “tachar os black blocs de vândalos, contrapondo-os aos demais, designados de
manifestantes pacíficos” tinha como propósito “prevenir e educar os novatos em
passeatas, para que não enveredassem para a pancadaria”. Me parece, contudo, que há
uma inteligência ainda mais profunda e interessante nessa operação, ainda que ela
funcione sem consciência. Ela não é de mão única, no sentido de condenar os
“vândalos” e legitimar os “pacíficos”, mas de mão dupla. De um lado, os “vândalos”,
manifestantes cujas demandas não são evidentemente legítimas, ou que exercem alguma
violência (física ou não) externa aos fins do direito, ameaçando deslocar suas estruturas,
têm sua relação com o direito anulada através de uma operação que estabiliza e define
sua violência como não tendo nada a ver com o direito. Do lado oposto, a passeata dos
“pacíficos” não oferece nenhum desafio ao estado presente do direito, despida de
qualquer elemento de força que pudesse suspender, temporariamente, as estruturas
interpretativas que definem direitos e não-direitos.
Vista assim, a violência interpretativa promovida pela mídia, ao operar a
clivagem entre “legítimos” e “vândalos”, não fez menos do que separar e isolar os dois
elementos que, em sua discussão da “Crítica da Violência” de alter Benjamin, Jacques
Derrida admite como duas dimensões da desconstrução: de um lado, a violência
jurídica, legível mas incapaz de decidir, de outro, a violência pura, ilegível mas
decisiva, no sentido de permitir uma suspensão temporária do direito. Qualquer das
duas violências, operada essa separação bem definida, torna-se incapaz de transformar o
direito. A cisão promovida pela mídia consegue pôr em marcha um dispositivo de
interpretação que desarticula o potencial da manifestação de alterar o direito. Ela separa
126
2
O jornal El País noticia que “o falecimento do profissional da TV Bandeirantes atingido por um
explosivo no Rio representou uma inflexão na forma como o Estado lutará contra a violência do
movimento black bloc” (Barón, 2014). Segundo a matéria, “os grupos violentos, que inclusive chegaram
a contar com o apoio e a compreensão de parte da população brasileira durante a eclosão das
manifestações em junho [...], parecem ficar cada dia mais sós em sua cruzada particular contra a Copa do
Mundo, os aumentos do transporte, o sistema educacional vigente, a corrupção e, definitivamente, essa
maionese que chamam ‘sistema’”.
3
O Projeto de Lei 728 de 2011, de autoria de Romero Jucá, senador pelo estado de Roraima, viria
“tipificar como terrorismo o ato de destruir ou explodir meios de transportes ou qualquer bem público ou
privado, com a pena máxima de até 30 anos" (Rossi; Bedinelli, 2014). Segundo sua ementa, o projeto
“define crimes e infrações administrativas com vistas a incrementar a segurança da Copa das
Confederações FIFA de 2013 e da Copa do Mundo de Futebol de 2014, além de prever o incidente de
celeridade processual e medidas cautelares específicas, bem como disciplinar o direito de greve no
período que antecede e durante a realização dos eventos, entre outras providências”. Ele terminou sendo
rejeitado em 12 de novembro de 2014.
127
4
A Anistia Internacional expressou seu descontentamento através de um ato conjunto em Roma, Haia,
Santiago do Chile, Assunção, Brasília e Madri. No protesto, vários ativistas vestidos como árbitros
mostravam um cartão amarelo às autoridades brasileiras. O referido relatório fala em uma “estratégia de
medo” reforçada pela possibilidade da presença do Exército na contensão de manifestações durante a
Copa do Mundo. Ele ainda qualifica a atuação da polícia em manifestações como “violenta e abusiva” e
ressalta que, apesar do número de incidentes violentos de que se teve conhecimento, não houve nenhum
agente processado. (González, 2014)
128
3. Guerra de interpretações
Raquel Rolnik (2013, p.8) abre sua apresentação ao volume Cidades Rebeldes
comentando o editorial de um periódico francês, que ela descreve como exemplo da
“ladainha do fundamentalismo neoliberal, apontando o elevado custo do trabalho, a alta
carga tributária e a corrupção como os responsáveis pelo grande descontentamento
manifesto nas ruas”. Sem dúvida uma crítica pertinente, na medida em que a abordagem
em questão parece preocupada antes em projetar seus próprios axiomas no
acontecimento interpretado do que em perguntar-se sobre esse acontecimento.
Abordagens desse tipo parecem partir do seu ponto de chegada, tomando por evidente
aquilo que deveria aferir, isto é, o que dizem as “vozes das ruas”. A sua crítica é
pertinente.
Logo em seguida, contudo, Rolnik faz referência a uma “guerra de
interpretações das vozes rebeldes” e enaltece a “bela e forte tentativa de interpretação”
das manifestações de junho empreendida pelos pensadores reunidos na compilação.
Coloca-se, assim, uma questão importante: Como garantir que interpretações pela
esquerda, como as compiladas em Cidades Rebeldes, não padeçam do mesmo vício, isto
é, que não imponham sobre os acontecimentos um vocabulário pré-pronto que traga
consigo suas conclusões interpretativas? Ademais, posto o que foi discutido até aqui,
não se trata simplesmente de rejeitar interpretações simplistas, impositivas ou
equivocadas do fenômeno em questão mas, antes disso, de colocar a questão se um
acontecimento dessa ordem demanda interpretação, se sua interpretação é possível ou
desejada, e em primeiro lugar o que significa interpretar uma manifestação.
O intérprete é aquele que descobre o sentido por trás de algo. Interpretar um
fenômeno implica em que seu sentido não se dá obviamente, que é preciso descobrir o
seu sentido oculto. Como foi visto ao longo deste trabalho, a interpretação, em sentido
estrito, está do lado do direito, da linguagem como instituição e da garantia forçada de
129
4. Agendas
“clinch” dos discursos já estabelecidos, não dando tempo para que o acontecimento, por
assim dizer, encontre a sua própria linguagem.
Mesmo Gohn (2014, p.142) ressalta que “o grande problema” da abordagem de
muitos pensadores sobre os acontecimentos de junho “é o fato de considerarem os
jovens e as manifestações como um todo, um bloco homogêneo”. Para ela, muitos
autores “fazem uma leitura com os óculos de uma dada abordagem e, como não
encontram os elementos dessa abordagem nas manifestações, descaracterizam-nas”.
Nesse sentido, seria preciso evitar produzir interpretações simplesmente
marxistas ou simplesmente “de esquerda”, da mesma forma que deve-se evitar produzir
interpretações neoliberais ou “de direita” sobre o que aconteceu. Em qualquer dos casos,
o que se perde na tradução é justamente “a eventualidade do evento” (Derrida, 2005).
Seria preciso produzir, digamos, interpretações juninas dos acontecimentos de junho, ou
pelo menos deixar que qualquer “marco teórico” que se utilize para traduzi-los seja, em
alguma medida, afetado e deslocado por eles de formas imprevisíveis. Não
simplesmente submeter junho a uma interpretação marxista, mas submeter o marxismo
a junho – da mesma forma que, como disse Caetano Veloso em uma entrevista, há
menos interesse em pensar o que seria um Brasil civilizado do que em pensar o que o
Brasil faria com a ideia de civilização.
O próprio espectro que assombra não só a Europa, mas toda discussão política
contemporânea – o chamado “espectro político” – não passa de mais uma instituição
cujas distinções, pautadas entre “direita” e “esquerda”, estão, a qualquer momento,
sujeitas a ser deslocadas por um acontecimento.
5. Pautar a manifestação
Lincoln Secco (2013, p.72) traça, em sua contribuição para Cidades Rebeldes,
uma distinção entre “pauta popular” e “pauta de massas”.
O que ele chama de “pauta popular” é aquela organizada “de baixo para cima”
nos dias iniciais das manifestações de junho, entre as quais a questão da tarifa do
transporte era central. Já a “pauta de massas” é a “que veio de cima para baixo”, isto é,
o conjunto das demandas difusas e mais moralizantes, voltadas especialmente à questão
da corrupção, que foram menos o produto de qualquer articulação entre agentes nas
132
6. Antipartidarismo
6
No dia 17 de junho de 2013, representantes de partidos políticos foram impedidos de levantar bandeiras
em São Paulo ( igueiredo, 2014b). Gohn (2014, p.42) escreve que “todas as bandeiras partidárias [eram]
rejeitadas nas manifestações, gerando inclusive tumultos” em torno dos que insistiram em desfraldá-las,
que “eram hostilizados”.
134
do termo. Que a rejeição aos partidos seja uma característica do fascismo não significa
que haja algo essencialmente fascista em toda e qualquer rejeição à representação
partidária. Afinal, se os mesmos intelectuais e acadêmicos diagnosticam uma profunda
crise da representação, por que presumir que esse repúdio à representação só pode ter
sido produzido “de cima para baixo”, pela mídia? Mídia essa que, aliás, foi outra
instância de representação rejeitada enfática – e mesmo violentamente – pelos
manifestantes de junho.
Vladimir Safatle, antes mesmo de 2013, já clamava:
Podemos não saber o que vai acontecer no futuro, que tipo de nova
organização política aparecerá, mas sabemos muito bem onde acontecimentos
não ocorrerão. Com certeza não nas dinâmicas partidárias. Você tem uma
força de pressão enquanto está fora do jogo partidário. Quando entrarmos
nele, tal força diminui. Então, conservem este espaço! (Safatle, 2012b, p.55)
7. Conclusão
Para concluir, não parece excessivo frisar que, não se trata, aqui, de pretender
um acesso direto ao acontecimento, sem a mediação de discursos. Sempre haverá
discursos que serão produzidos sobre qualquer acontecimento novo, e o nosso
conhecimento sempre se dá por meio desses discursos.
Ainda assim, é preciso cuidado, na medida em que esses discursos ameaçam
suplantar a novidade do acontecimento as formas de uma velha linguagem. Essa
novidade só poderá ser traduzida, em alguma medida, na invenção de uma nova
linguagem, e essa invenção demanda demora, em oposição ao ímpeto imediato de
reduzir o acontecimento à linguagem já posta. É talvez uma tarefa que, antes de caber
aos cientistas políticos, caberá aos poetas. E, acima de tudo, àqueles que, na presença e
no trabalho dos seus corpos, construírem as novas formas do que se manifesta.
Ademais, repetindo aquilo que foi dito na introdução, sempre haverá uma
esfera que excederá a toda e qualquer interpretação, a toda e qualquer linguagem. E, ao
excedê-la, se colocará como uma barreira, uma aporia concreta, obrigando a esfera da
representação a se deixar afetar e, assim, reconfigurar-se a cada vez.
Em um momento em que, talvez mais do que nunca, as instituições
responsáveis pela representação no Brasil se mostram em crise – não apenas as da
democracia representativa, mas também da mídia e inclusive dos pensadores que
estariam responsáveis por fornecer propostas para pensar o que está por vir –, não se
trata aqui de voltar a 2013 para fornecer mais uma possível interpretação desse
acontecimento, segundo a qual seu verdadeiro sentido tem a ver com a crise da
representação, mas sim de recuperar a potência desse acontecimento no agora, como
crítica concreta da representação.
Referências
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138
Bruno Cava1
A história do capitalismo pode ser dividida em três fases. De início, foi formiga,
depois abelha e finalmente vespa. Primeiro, a fase do capitalismo mercantil, baseado na
acumulação de riquezas. O seu principal representante foi o burguês avaro e diligente, o
homem previdente que poupa e investe com parcimônia, como retratado nas pinturas
românticas de austeras famílias burguesas ou no ideal de ascetismo que, para Max
Weber, moldou o espírito protestante do capitalismo. Depois dele, veio o capitalismo
industrial, fundado na produção. À semelhança da sociedade das abelhas, a fábrica se
torna o lugar para a coletivização disciplinada do trabalho, o lugar em que o capitalismo
integra as várias capacidades humanas e técnicas, os diferentes fatores de produção,
segundo uma linha de montagem com começo, meio e fim, como os alvéolos da
colmeia. No capitalismo industrial, a acumulação deixa de ser entesouramento, mero
conceito estático, para depender da exploração do trabalho e de um ciclo que se realiza
no tempo. O capital se põe em movimento e o processo se completa apenas ao final de
um giro, que vai da produção ao consumo, do investimento ao lucro. Na teoria, a
modernidade industrial entronizou o sonho da colmeia produtivista, organizada por uma
razão calculada de cima a baixo. A realização histórica desse sonho apiforme se deu por
duas vias distintas. Por um lado, pelo mercado estadocêntrico guiado por uma ética
virtuosa do trabalho, que culminou no operário superprodutivo da União Soviética e nos
campos de trabalho forçado do socialismo real. Por outro, pelo estado mercadocêntrico,
guiado pela concepção racionalista do liberalismo clássico, como na fábula de
Mandeville em que o entrechoque de abelhas que perseguem o próprio interesse privado
é o que catalisa a competitividade e a eficiência da economia como um todo,
convergindo por uma força invisível no bem coletivo. Em ambos os casos, é o trabalho
1
Blogueiro e professor de cursos livres fora da instituição universitária, é coeditor da revista Lugar
Comum, autor com Alexandre F. Mendes de A Constituição do Comum (Renavam, 2017). Participa da
rede Universidade Nômade e Kinodeleuze.
139
coletivo – em sua versão stakhanovista ou no consórcio de self made men – que propele
produtivamente a sociedade.
Por fim, chegamos ao terceiro e atual estágio, o capitalismo cognitivo,
apoiado principalmente no desejo e não na produção. Não mais a ética parcimoniosa da
poupança e diligência dos capitalistas puritanos, nem o produtivismo
desenvolvimentista da lógica da colmeia, mas a capacidade de produzir e atravessar
subjetividades. Agora, o capital se desloca do chão de fábrica e dos uniformes cinzas
para o colorido da produção de imagens, de formas de vida, de estéticas de existência.
Tempos em que os executivos de ponta se destacam pela criatividade e pelo estilo, as
empresas mais famosas adotam uma moral antiburguesa (contra o poupador austero,
pelo gozo, pelo fun) e começam a assemelhar-se, cada vez mais, com as vanguardas
artísticas do século XX. O design, a publicidade, as mídias, as bolsas de valores, a
moda, a produção dos saberes, a mobilidade, a indústria do prazer, da celebridade, da
diversão – tudo isso vem a primeiro plano, tornando-se a base fundamental por meio do
que funciona a nova economia. É o fim dos esquemas binários que opõem um setor
produtivo, geralmente industrial, enquanto infraestrutura dura, a um setor financeiro e
de serviços que viria depois, somente como expressão daquela, “somente”
superestrutura. Tempos em que o agitprop dos militantes panfletários do começo do
século passado dá lugar aos coletivos transversais de produtores culturais, coworkers,
designers, publicitários, arte-ativistas e ambientalistas.
Como Deleuze e Guattari já escreviam em 1972 em seu Anti-Édipo,
agora o desejo reside na infraestrutura e toda a economia política é economia libidinal,
sem mediações. Nem formiga nem abelha, mas vespa e orquídea. A vespa é um animal
geralmente muito solitário que habita grandes exteriores como praias, desertos,
matagais. É um animal errante e avesso à vida socializada com semelhantes. Em alguns
casos, durante toda a sua existência, a vespa não entra em contato com nenhum outro
semelhante. Apesar disso, algumas espécies se relacionam frequentemente com outras
criaturas, por vezes muito diversas. E nem sempre essa relação está associada ao ciclo
de produção e reprodução da própria vespa. Uma dessas relações não utilitárias, que
chamou a atenção de Felix Guattari – um exemplo caro para os movimentos LGBT –, é
a que a vespa e a orquídea estabelecem entre si. As abelhas cooperam com as flores no
regime ecológico do mutualismo, ou seja, há benefício para ambos os lados da
140
cooperação, seja com o pólen, seja com o néctar. Já a vespa e a orquídea mantêm uma
relação noutros termos. A orquídea produz uma imagem do órgão sexual da vespa que,
ao excitar-se, efetivamente transa com a flor. Do ponto de vista da vespa, não há
benefício para a reprodução da espécie. A vespa faz sexo com a orquídea por puro
prazer. Trata-se aí, não de uma cooperação intraespecífica entre iguais voltada à
produção ou reprodução, mas de uma cooperação interespecífica entre diferentes,
movida pelo desejo. Peço ao leitor que guarde essa imagem.
No capitalismo mercantil, a luta era diretamente uma revolta contra a
apropriação de corpos, bens e recursos pelo capitalista. Já no capitalismo industrial,
quando a dominação se confunde com a organização do trabalho, a luta se orienta pela
reapropriação do produzido e das condições de produção. Nessa fase do capitalismo, a
dinâmica do poder opera por meio da formação do lucro, que é dado pela dedução entre
o total produzido pelo trabalho coletivo e a fração remunerada aos trabalhadores a título
de trabalho, ou seja, o salário. O salário mede, assim, a força do operariado em opor-se
à exploração capitalista. A margem de lucro é condizente, por outro lado, com o estado
da relação de força entre um e outro. As táticas operárias, nessa lógica, variam entre o
bloqueio da produção, visando a inverter a chantagem ao trabalho, até a tomada violenta
do poder, a fim de assumir o governo da colmeia. O bloqueio da produção, em geral,
procede pela greve, a sabotagem, a ocupação da fábrica. Já a tomada do poder procede
pela auto-organização dos trabalhadores em sindicato e partido, com o fito de construir
uma instância política de contrapoder operário para, dadas as condições, fazer um
assalto ao poder. Por consequência, a distinção entre reforma e revolução consiste na
distinção entre uma luta pela melhoria das condições de partilha entre lucro e salário e
uma luta para tomar os meios de produção e, eventualmente, abolir a distância social
entre quem domina e quem é dominado. O objetivo final, então, é racionalizar a
produção segundo uma harmonia iluminista: de cada um segundo as capacidades, a cada
um segundo as necessidades. Historicamente, um dos problemas mais recorrentes se
liga ao fato de que, para traduzir-se no plano político e tomar de assalto a colmeia, a
força revolucionária se vê na contingência de forjar um Indivíduo Coletivo (a
vanguarda, o partido, o estado, o líder). Dessa operação problemática emergiram, ao
longo do século XX, tanto a reprodução em escala ampliada das mazelas tradicionais do
individualismo (o partido sempre tem razão, o estado não pode ser contrariado, tudo
141
precisam ser postas para fora da empresa, descoladas de sua imagem, esconjuradas
como um desvalor que não lhe diz respeito. Digamos, o Facebook não pode deixar
transparecer a sua dependência pelo trabalho precário de funcionários na África ou
América Latina; a marca de roupa deve desencarregar-se da fração da cadeia produtiva
ramificada por sweatshops do Sudeste Asiático (ou bolivianos em confecções de São
Paulo); a Amazon tem de lidar com a logística povoada de precários e subempregados;
empresas como Monsanto, Thyssenkrupp ou Vale do Rio Doce devem a todo o
momento empenhar-se, por meio de lobby político, táticas de desinformação e um
batalhão de advogados, em desincumbir-se da responsabilidade pelos passivos
ambientais, sociais e biogenéticos que nos legam por onde passam, terceirizando o
problema; e por aí vai.
Como lutar nessas condições sem recair na nostalgia das abelhas
operárias e seus hexágonos disciplinares? Como transpor o amor das vespas e das
orquídeas para as lutas? Se não funcionamos mais como abelhas na colmeia, como
ficam as lutas “fora da colmeia”? Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que passam
pelo desejo. Qualquer segregação entre desejo e política ou economia já é, de partida,
uma estratégia falida. Em segundo lugar, nos grandes exteriores do capitalismo
cognitivo, não se pode mais falar num limite claro entre capitalismo e anticapitalismo,
entre subjetividade capitalista e subjetividade antagonista. Os limiares se alargam e tudo
se torna mais difícil de distinguir, não se admitindo mais categorias normativas que
antes eram vigentes, até certo ponto, na luta interna à colmeia. Menos do que a noite,
onde todos os gatos são pardos, a pós-modernidade é uma espécie de lusco-fusco, de
cromatismo em que tudo passa a ser estratégia, limiar, nuance. Falar na disseminação do
capitalismo para fora da fábrica – de maneira que agora está realmente em tudo e em
toda parte, em extensão e profundidade – não significa ecoar teses do fim da história ou
assumir que sejamos todos capitalistas, que tenhamos sido totalitariamente subsumidos.
Significa, em vez disso, que habitamos um limiar de contornos borrados, que nossa
própria autoconstituição passa por uma constante transigência de gradientes e limiares.
Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, sugerem que deixemos de nos inspirar
pela imagem do jogo de xadrez, típica das revoluções da modernidade, onde os
adversários se contrapõem num espaço estriado em casas, com peças de valor bem
definido e quantificado, e passemos a olhar para o go chinês, com todas as sutilezas do
144
espaço liso de seu tabuleiro. É nesse deslocamento do xadrez para o go, então, que o
próprio rentismo – o próprio dinheiro – pode ser repensado como um terreno de batalha.
Num ambiente tão saturado e incerto, talvez seja necessário aprender a traiçoeira
paciência mandarim. Para, assim, ingressar na luta pela própria moeda e assumir a
ambivalência de deter, usar o dinheiro, fruí-lo. É no espaço pós-moderno do capitalismo
cognitivo, “fora da colmeia”, que a renda universal e incondicionada assume o lugar
estratégico central, o que antes cabia à luta produtivista do trabalho coletivo, à luta do
assalariado, do partido operário e do grande sindicato. A pauta da renda universal não se
confunde com a redução assistencialista, pois o caso não é somente remediar a miséria
para reconduzir o trabalho improdutivo a condições mínimas de produtividade, o
excluído ao mercado – como teorizado por economistas neoliberais. Também não é o
caso de simplesmente distribuir riqueza por meio da transferência de renda, como se
esse fosse o seu propósito, uma justiça social cada vez mais igualitária até atingir a
utopia capitalista de reabsorção da sua contradição interna na forma de um grande
conselho acionário, em que todos são detentores dos meios de produção. Nem
assistencialismo nem distributivismo, mas linha de fuga em relação ao capitalismo
cognitivo, linha de fuga para outro lugar.
Há, portanto, uma diferença grande de abordagem dentro da discussão
teórico-política da renda universal hoje. Na realidade, as forças políticas do próprio
capitalismo começam a aprofundar-se nesse debate, diante da ressurgência de
populismos nacionalistas e neossoberanistas que ameaçam o seu projeto de
globalização. O caso não é abraçar ou rechaçar o tema em função dessas ingerências,
mas requalificá-lo, não deixar que o sequestrem. Não queremos decerto tomar o
programa da renda universal do ponto de vista do contexto do capitalismo cognitivo,
como ajuste fino para restabelecer a normalidade da exploração. Mas, sim, tomá-lo
enquanto problema das lutas, para as lutas. Isto é, estamos falando da renda universal e
incondicionada, pensada e promovida de maneira inseparável de uma ecologia desejante
que nos dê condições de lutar para que possamos viver como vespas e orquídeas. Uma
renda que seja a pedra angular para o funcionamento pleno da liberdade e mobilidade –
ou seja, libertação e mobilização –, que a metrópole já contém em estado nascente, mas
cuja realização permanece frustrada pela captura das externalidades positivas,
concomitante à socialização das negativas.
145
Referências
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Philippe Van Parijs. Basic Income: A simple and powerful idea for the twenty-first
century. In Redesigning Distribution. Ackerman: 2005.
Palavras-chave
Autor. Autoria. Direito autoral. Design. Design gráfico.
Abstract: The notion of author arises from the birth of the notion of the individual, at
the same time that the idea of the subject gains such importance that it becomes
indispensable to the identification of the creator of the text. The purpose of this article is
to shed some light on both the concept of authorship and the historical emergence of the
figure of author and copyright as well as its manifestations in the context of design.
Keywords
Author. Authorship. Copyright. Design. Graphic design.
Considerações preliminares
(2000), ao afirmar que o homem é uma invenção recente, o pensador francês teria sido
influenciado pela constatação nietzschiana da “morte de Deus” (NIETZSCHE, 2008).
Assim, a autoridade divina e da Igreja é transferida para o homem que passa a ser objeto
de seu próprio saber.
Portanto, a noção de autor surge a partir do nascimento do indivíduo, quando a
ideia do sujeito ganha uma importância tal que passa a se tornar indispensável à
identificação do criador do texto. Desta forma, o objetivo deste artigo é lançar algumas
luzes sobre o surgimento histórico da figura do autor e do direito autoral e suas
manifestações no campo do design.
A identificação do autor dos textos nem sempre foi uma necessidade, pois este
era considerado um veículo de transmissão da palavra inspirada por Deus. "O escritor é
o escriba de uma Palavra que vem de fora e que o habita. É sobre esse modelo
evangélico que será, durante muito tempo, concebido e representado o gesto do criador,
inspirado e sagrado" (CHARTIER, 1999, p. 28).
A partir do momento em que surgem textos que transmitiam ideias contrárias às
doutrinas políticas e religiosas da época, surge a necessidade de identificar a autoria da
obra. Portanto, a autoria do texto nasce com a intenção de condenar e punir os escritores
de textos transgressores, ou seja, surge com a transgressão do discurso. Foucault (1992)
chama essa censura e interdição dos textos de "apropriação penal do discurso", o que
justificava a destruição dos livros e a punição não só dos autores como também de seus
editores e leitores.
3 Ensaio integrante do livro O rumor da língua, publicado no Brasil em 1988 pela Brasiliense.
4 Conferência publicada originalmente no Brasil em 2011 no livro Ditos e escritos III: estética: literatura
e pintura, música e cinema pela Forense Universitária.
153
vira o protagonista da história; é ele quem decide o significado das palavras que
compõem o texto.
Entretanto, argumenta que o texto é um campo neutro em que há a dissolução do
sujeito, com a perda da sua identidade e ausência da sua voz. Utilizando como exemplo
a narrativa de uma personagem da novela Sarrasine, de Honoré de Balzac (1799-1850),
Barthes divaga sobre a origem daquela voz que fala e afirma que
Jamais será possível saber, pela simples razão de que a escritura é destruição
de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse
oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o preto-e-branco em que vem se
perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve (BARTHES,
2004, p. 57).
Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras, a produzir
um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a 'mensagem' do
Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se
contestam escritas variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um
tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura (BARTHES, 2004, p.
62).
5 Foucault questiona a noção de obra e sua relação com o autor. "A teoria da obra não existe, e aqueles
que, ingenuamente, tentam editar obras, falta uma tal teoria e seu trabalho empírico se vê muito
rapidamente paralisado (...) A palavra 'obra' e a unidade que ela designa são provavelmente tão
problemáticas quanto a individualidade do autor" (p. 8).
6 A escrita deveria permitir a ausência do autor, mas ela acaba afirmando dois princípios: o religioso e o
crítico. A escrita representa em termos transcendentais "o princípio religioso do sentido oculto (com a
necessidade de interpretar) e o princípio crítico das significações implícitas dos conteúdos obscuros (com
a necessidade de interpretar)" (p. 10).
155
Desta forma, não basta atribuir um discurso a um indivíduo para fazer atuar a
função-autor, ela é resultado de uma operação mais complexa. A crítica moderna
utilizaria os mesmos critérios definidos por São Jerônimo, ao localizar a noção de
autoria no interior da própria obra.
A autoria no design
unicidade do autor através da noção de singularidade, além de se referir, mais uma vez,
à sua capacidade intelectual.
Assim como "inventor", o termo "criador" também ratifica a ideia de
singularidade, bem como da capacidade intelectual do autor. Porém, surge um novo
elemento: o religioso. Ao definir o termo "criador" como "Deus"; "que possui força
criadora suprema e que, nesse contexto, teria criado tudo que existe"; ou "aquele que
deu origem a tudo que existe (diz-se de Deus)", os dicionários ressaltam o caráter
religioso do criador e definem o autor como sendo alguém com poderes e características
semelhantes a Deus (MARTINS, 2010).
A questão da autoria na visão do senso comum é baseada na individualidade do
sujeito e no seu poder de criação. Já a visão sociológica vai contra essa posição do senso
comum, visto que o homem é um indivíduo histórico imbuído de crenças e valores
sociais. Sendo assim, o processo de criação não pode ser um ato individual já que as
condições sociais influenciam nesse processo. Deste modo, podemos dizer que a autoria
é coletiva não se tratando o resultado dessa criação como um poder único e singular.
Tal questão no design começou a ser discutida nos Estados Unidos no período
pós-moderno,7 através de autores como Michael Rock, Rick Poynor, Ellen Lupton e
Anne Burdick. Em “The designer as author”, Rock corrobora os discursos de Barthes e
Foucault e também nos alerta para o fato de que a teoria acerca da autoria pode
contribuir para reforçar noções conservadoras e subjetivas baseadas no talento
individual. Por isso, ele (2015) nos leva a refletir sobre o que significa para um designer
ser chamado de autor e ressalta a complexidade dessa prática, que envolve métodos
artísticos e comerciais, individuais e colaborativos.
Rock nos chama atenção para a semelhança na relação entre o trabalho do
designer e o do diretor de cinema. Assim como este, o designer, muitas vezes, também
trabalha de maneira colaborativa, dirigindo a atividade criativa de outras pessoas.
Pensando na questão de como tornar um trabalho colaborativo como o de um artista
7 De acordo com Fredric Jameson (2000), o início da pós-modernidade está relacionado ao surgimento da
nova fase do capitalismo avançado, multinacional e de consumo. Para o autor, o termo pós-moderno não
deve ser utilizado para descrever um determinado estilo, mas sim como uma forma de relacioná-lo com o
surgimento de uma nova ordem econômica, a do capitalismo tardio, em que já não é mais possível a
criação de um estilo novo, uma inovação estilística. Como tudo já foi criado, através do pastiche
passamos a imitar o passado havendo uma revisitação constante ao modernismo. Porém, esse rearranjo do
original se dá de forma acrítica, através apenas da imitação pela imitação. Com isso passou-se a valorizar,
cada vez mais, os diferentes estilos e repertórios.
157
a solução foi adotar critérios que permitissem definir quais diretores seriam
considerados autores. A fim de estabelecer o filme como um trabalho de arte,
a teoria do autor deu ao diretor − até então um terço da trinca criativa − o
controle total de todo o projeto (IDEM, p. 239).
O crítico americano Andrew Sarris aponta três condições para que os diretores
possam ingressar no seleto grupo dos autores: 1) devem demonstrar expertise técnica; 2)
devem apresentar uma assinatura estilística capaz de ser perceptível após alguns filmes;
3) mostrar consistência de visão subjetiva através da escolha dos projetos e do
tratamento cinematográfico.
É fácil se identificar com duas das condições apontadas por Sarris: proficiência
técnica e assinatura estilística, porém apenas virtuosismo técnico e estilo não elevam
ninguém à categoria de autor. A dificuldade em estabelecer a autoria está justamente na
terceira categoria, ou seja, identificar a visão subjetiva do designer.
Em Abaixo as regras: design gráfico e pós-modernismo, Poynor (2010) também
localiza a discussão sobre a autoria no design no período pós-moderno e defende as
argumentações de Barthes em relação à morte do autor e ao nascimento do leitor,
ressaltando a ideia de que os designers oferecem mecanismos para que cada leitor
desenvolva sua própria interpretação, em vez de impor uma única leitura. Cada vez
mais, os designers buscam imprimir um estilo próprio como uma forma de assinatura
tornando possível identificar sua autoria. Com isso, ele nos alerta para a possibilidade
de os criadores tornarem-se o centro das atenções, afirmando sua presença e
importância, mesmo quando ainda há a crença de que os designers devam expressar a
mensagem de um cliente de forma neutra.
Para ele, o ato de criar nunca pode ser um ato completamente neutro, uma vez
que envolve incluir algo ao projeto. "Até certo ponto é impossível que um design não
seja baseado em gosto pessoal, entendimento cultural, crenças sociais e políticas e
8 A Politique des auteurs procurava justificar o caráter artístico do cinema desvinculando-o da ideia de
ser uma diversão para as massas. François Truffaut não considera o filme uma obra coletiva e, por isso,
deve ter apenas um único autor "fazendo com que roteiristas, músicos, diretores de fotografia, produtores
e todo o arsenal de profissionais que constituem o universo de uma produção fílmica não passem de
auxiliares inteiramente subordinados" (TORRES, 2012, p.3).
158
profundas preferências estéticas" (IDEM, p. 120). Além disso, os designers alegam que,
para um melhor desempenho, precisam reescrever o briefing dos clientes e, ao mesmo
tempo, necessitam da aprovação dos seus pares.
Até os anos 1980, poucos profissionais cogitavam atribuir uma autoria gráfica à
sua prática. A expressão "designer como autor" ganhou força a partir dos anos 1990 e
teve Bruce Mau como uma referência dessa ideia (IDEM). Parodiando o texto de Walter
Benjamin, “O autor enquanto produtor”,9 Mau propõe ocupar o papel inverso de "o
produtor como autor". O objetivo de Mau, segundo Weymar (s/d),
era colocar seu design acima do campo onde o conteúdo se desenvolve e daí
defende um design menos fragmentado no sentido da divisão de trabalho
onde o designer se encarregue também da pesquisa e do aprimoramento das
ideias de criação.
9 De acordo com Sequeira (2010), "um dos princípios defendidos seria o modo como forma e conteúdo
estão intrinsecamente ligados na produção de significado. Assim, no exemplo do livro, tratando o escritor
da parte do conteúdo e o designer da parte da forma, ambos partilhariam a autoria do objeto final" (s/p).
159
10 Em matéria publicada na revista Valor de 10 de abril de 2015, Luiz Schwarcz, editor da Companhia
das Letras, comenta que "os livros se transformaram em um produto e não existe vergonha alguma nisso
(...) O editor tem que fazer um bom produto, mas é um produto." (p. 22).
160
suas atribuições. Victor Burton acredita que o designer muitas vezes assume também o
papel do editor
Considerações finais
161
Nesse sentido, podemos citar a atuação de Baptiste Louis Garnier, um dos mais
importantes editores brasileiros do século XIX que esteve à frente da livraria Garnier
Frères, e de Francisco Alves, fundador da livraria homônima, que teve um importante
papel na edição do livro didático no Brasil.
Já o impressor-editor ou gráfico-editor detém o conhecimento das técnicas de
impressão, desde a fundição do tipo até a impressão do texto. Seu local de trabalho é
nas oficinas gráficas e, por ser proprietário dos meios de produção, consegue negociar
financiamentos e empréstimos a banqueiros ou investidores interessados em sua
produção, lhe ficando assegurada a função de editor (IDEM). Nesse sentido, podemos
igualmente citar a atuação de Silva Serva, fundador da primeira oficina tipográfica da
Bahia em 1811, e de Francisco de Paula Brito, fundador da Imperial Typographia Dous
de Dezembro em 1850.
No Brasil, a palavra editor surge no dicionário em 1813. Vocábulo de origem
latina, seu significado está associado ao movimento de “dar à luz” e “publicar”. No
dicionário Aurélio da língua portuguesa, “editor” é:
Referências
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Allworth Press, 2002, p. 237-44.
Luciana Gouvêa1
Resumo
Este artigo analisa a mobilização social denominada “Liberdade ao 8!”, rede de contra-
informação e manifestações em defesa dos proprietários do 8 Bar, detidos ilegalmente
pela Polícia Militar, em Belém (PA), em junho de 2015. O movimento se pautou no
estar-junto (MAFFESOLI, [1992] 2005) como uma forma de refutar a representação
negativa exibida nos veículos midiáticos hegemônicos da cidade, especialmente no
jornal Diário do Pará. As problemáticas contidas neste artigo foram analisadas à luz das
teorias de Michel Foucault ([1979] 2006), Muniz Sodré (1971), Guy Debord ([1967]
2006), Günther Anders ([1956] 2007), Vilém Flusser (1985) e Michel Mafesoli ([1992],
2005).
Palavras-chave
Imagem; vínculo; estar-junto; mobilização social
Abstract
This paper analyzes a social mobilization called “ reedom to 8!”, a counter-information
network and mobilization in benefit of the “8 Bar” owners, illegally arrested by the
local Police, in Belém, State of Pará. The movement is sustained by the be-together
concept (MAFFESOLI [1992] 2005) as a way to deny the negative representation
shown in the hegemonic media, specially the Diário do Pará newspaper. The issues
presented in this paper were analyzed under the thought of several authors, such as
Michel Foucault ([1979] 2006), Muniz Sodré (1971), Guy Debord ([1967] 2006),
Günther Anders ([1956] 2007), Vilém Flusser (1985) and Michel Mafesoli ([1992],
2005).
Key-words
Image; social bond; be-together; social mobilization
"Ninguém ama aquilo que não conhece, nem defende aquilo que não ama. É preciso
conhecer para amar e amar para defender"
Juraci Siqueira2
A prisão do casal está longe de ser um caso factual e isolado em Belém. A partir
do ocorrido, o Governo do Estado através da PM intensificou a perseguição a artistas e
passou a obstruir a liberdade de reunião de opositores que trabalham com iniciativas
culturais consideradas “marginais”. Entre 2015 e 2016, ocorreram casos emblemáticos
de perseguição a coletivos culturais e a eventos independentes, como por exemplo, a
Batalha da Dorothy Stang, roda de rima realizada no bairro da Sacramenta, em Belém,
que sofreu sucessivas tentativas da PM de embargar o encontro de MCs6, mesmo que a
organização estivesse recebendo auxílio financeiro do Ministério da Cultura através do
prêmio Hip Hop 2014, dispondo de autorização da Prefeitura para o funcionamento do
soundsystem até 22h30 às sextas-feiras, e pago todas as licenças exigidas pela Secretaria
Municipal de Meio Ambiente (Semma).
5
Link da página: https://www.facebook.com/8livre/?fref=ts.
6 No dia 22 de Agosto de 2015, policiais militares obrigaram os organizadores a encerrar o evento 30
minutos mais cedo, alegando o barulho excessivo do soundsystem. No dia 29 de agosto de 2015, o grupo
que promove o encontro se manifestou em sua página no acebook: “O Coletivo Cultural, ontem
apresentou a Carta de Autorização da SEMMA (...) agora o argumento é que falta Autorização da DPA -
Divisão de Polícia Administrativa, e presença da Guarda Municipal. Na verdade sabe-se muito bem que a
questão vai muito além de "autorizações" e processos burocráticos, e mais um fator de abordagem
"viciada", "estigmatizada", "preconceituosa", "exclusiva" com as culturas, artistas e artes de/e nas ruas,
nas praças, nos bairros, nas "periferias", e que contribuem para a cidadania, para o exercício dos direitos
humanos e culturais de um amplo e diverso público, de forma protagonista e livre”. FONTE:
https://www.facebook.com/pg/batalhadorothystang/posts/?ref=page_internal.
170
7 O caso repercutiu no Post Brasil, portal VICE, TVI e Jornal de Notícias (ambos de Portugal). João é
cidadão português, despertando o interesse da mídia daquele país pelo acontecimento.
171
na esfera midiática, não houve nenhuma chance de defesa para os acusados. Desta
maneira, podemos admitir que o Portal Diário do Pará, o primeiro a noticiar, negou a
posição de fala aos detidos ou a quem pudesse ter apresentado uma versão diversa da
instituição policial, conferindo assim a ambos um ar grotesco, pois se comunica apenas
pela sua imagem distanciada.
O grotesco, por se tratar de algo que deve ser apartado do social, desperta a
curiosidade, assim levando o leitor a consumir as suas notícias. Para Muniz Sodré
(1971, p. 39), o grotesco “é o mundo distanciado, daí a sua afinação com o estranho e o
exótico”:
Cada organização das relações de produção engendra uma atmosfera
psicossocial própria, que se destina a perpetuar o seu tipo específico de
relações humanas. A cultura de massa – frisamos: essencialmente política – é
hoje o grande médium da atmosfera capitalista. No caso do brasileiro, ela é
também o espelho que reflete o id e os demônios das nossas estruturas
(SODRÉ, 1971, p. 39).
O estar-junto
11 Muniz Sodré comentou o tema em entrevista para a revista Pensamento Comunicacional Latino
Americano (PCLA), da Universidade Metodista (SP), em 2001: “Muitos dizem que a comunicação não
tem objeto. Eu acho que tem. Para mim hoje é claro. Isso é, na verdade, o assunto do meu próprio livro a
ser lançado pela Editora Vozes e que tem sido tema das minhas aulas e pesquisas nos últimos dois anos,
que é uma teoria da comunicação. Eu acho que o objeto da comunicação é a vinculação social. É como se
dá o vínculo, a atração social, como é que as pessoas se mantêm unidas, juntas socialmente”. FONTE:
http://www2.metodista.br/unesco/PCLA/revista9/entrevista%209-1.htm.
12 Após o ocorrido, o espaço foi fechado por iniciativa dos proprietários no dia 11 de outubro de 2015.
Os ex-frequentadores do 8 Bar se encontram em um evento chamado “Matando a saudade”, que ocorre na
travessa Piedade, em frente ao local que foi invadido pela polícia. O organizador do evento é o ex-gerente
do espaço. Atualmente, o encontro está em sua 9ª Edição (em fevereiro de 2017). Karllana e João se
mudaram para a cidade do Porto, em Portugal, pois têm medo de retaliações dos policiais envolvidos no
caso. FONTE: http://www.outros400.com.br/urubuservando/3896. Acesso em 09 de junho de 2016.
176
jornalista Lúcio Flávio Pinto13. Ele fez uma cobertura jornalística diária sobre o caso no
blog do Jornal Pessoal, que é um dos veículos de maior credibilidade na cidade de
Belém. No dia 26 de junho, o jornalista publicou informações adicionais sobre o caso
que até então tinham sido desconsideradas pela grande mídia, como o fato de que os
proprietários já terem relatado sofrer perseguições da polícia, dois anos antes quando
policiais fizeram revistas sem respaldo oficial alegando excesso de barulho apesar de o
bar estar regularizado (PINTO, 2015).
Conforme apurou Lúcio Flávio Pinto, o conflito entre os proprietários do 8 Bar e
a polícia ocorria desde o seu primeiro ano de funcionamento, em 2013. Apesar de ter
todas as licenças e alvarás em dia, o bar foi obrigado a mudar de endereço no início de
2014, por determinação do Departamento de Polícia Administrativa da Polícia Civil
(PC-DPA), que se recusou a emitir a renovação de alvará para a permanência do
estabelecimento na rua Rui Barbosa, no Centro de Belém, seu primeiro endereço. A
principal alegação da diretoria do DPA era de que os vizinhos haviam denunciado o bar
pelo Disque-Denúncia, por excesso de barulho – a veracidade do argumento nunca
poderá ser atestada, uma vez que as ligações para o órgão são anônimas.
Ressaltamos, porém, que o perfil dos frequentadores do 8, que consideravam o
bar um ponto de encontro para o planejamento de manifestações culturais e eventos
polêmicos14 – a maioria deles contra a política cultural do prefeito Zenaldo Coutinho e
13 Vencedor de quatro prêmios Esso e um Wladimir Herzog de Direitos Humanos pelo conjunto da sua
obra em 2012 (na ocasião foram premiados ele e Alberto Dines, editor do Observatório da Imprensa). De
acordo com levantamento do portal Jornalistas & Cia. (2014) é o 75º jornalista brasileiro mais premiado
do país. Foi pioneiro ao escrever a primeira reportagem especial sobre o território amazônico para um
veículo nacional, a revista Realidade (1971). Ex-correspondente do jornal O Estado de São Paulo, o
jornalista atualmente comanda o Jornal Pessoal, iniciativa independente que já dura 28 anos. O Jornal
Pessoal, assim como a perseguição dos latifundiários e políticos paraenses contra o repórter, já virou
matéria nos jornais Le Monde, Whashigton Post, New York Times e Corriere de La Sierra. Lúcio Flávio
também é autor de 21 livros sobre a Amazônia.
14 Para protestar contra a falta de políticas culturais na cidade e ainda para promover a visibilidade
LGBT, o 8 Bar abrigava o evento “Viada Cultural”, cujo nome é inspirado na Virada Cultural de São
Paulo. Mesmo sem o bar, os produtores continuam a realizar a festa, que agora é itinerante e chegou a sua
9ª edição no final de 2016. Além disso, em uma ação mais polêmica ocorrida em maio de 2015, apenas
um mês antes do casal ser preso ilegalmente, o Solar da Beira, prédio histórico abandonado situado no
Complexo Ver-o-Peso, foi ocupado por artistas. A ocupação que exigia a reforma e a transformação do
Solar em um espaço cultural durou cerca de 2 semanas. Os manifestantes se retiraram pacificamente,
depois de longas negociações com a Prefeitura de Belém. A gestão municipal não aprovou o ato,
chegando a ameaçar os participantes com força policial ostensiva no dia 19 de maio, como relatou o
jornalista Lúcio lávio Pinto no blog do Jornal Pessoal: “Esse grupo transformou o Solar num espaço
cultural contestador e crítico. Por ironia, a atenção que atraiu foi a da repressão. Uma força tarefa
municipal, com a participação de guarda fortemente armada, tentou retirá-los no dia 19 para lacrar o
prédio ou devolvê-lo ao seu desmazelo característico dos últimos anos”. É interessante observar que,
177
mesmo que o Ocupa Solar não tenha influenciado na ação policial, todo o núcleo-duro da ação era
frequentador do 8 Bar. FONTE: https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2015/05/21/1305/.
15 Em pelo menos duas ocasiões a Polícia Militar buscou flagrante no bar: No dia 26 de outubro de 2013
e no dia 14 de outubro de 2013. As ações policiais foram filmadas e podem ser vistas no canal
www.youtube.com/OitoBar.
178
argumenta o sociólogo, estas coletividades não procuram mais uma utopia longínqua,
abstrata e estritamente racional, mas uma fragmentação em pequenas utopias
intersticiais vividas, bem ou mal, no dia-a-dia, aqui e agora.
Ao analisar a produção de vínculo no interior destas pequenas coletividades no
qual se fundamenta o estar-junto, é preciso ter em mente que o agrupamento em questão
não pretendia se converter em um movimento social permanente, com atribuições e
missões definidas, isto é, se institucionalizar. A reunião era tão-somente pela vontade de
evidenciar a inocência dos acusados, que eram seus amigos, e retomar o espaço de
convivência que era o bar. Porém, ainda que do ponto vista sociológico o estar-junto
seja o fenômeno mais evidente, isso não deixa de apresentar consequências políticas
práticas, quais sejam a libertação do casal e as retratações na grande mídia.
Para isso, os freqüentadores criaram o movimento para apresentar a sua versão
dos fatos, pois não tiveram espaço na grande mídia, e para trocar informações sobre o
processo judicial em andamento – estabelecendo, porém, um sistema de comunicação
informal e diverso, no qual foi possível produzir e divulgar conteúdos compatíveis com
o propósito do núcleo em meio a manifestações festivas e lúdicas. Com o fechamento
do bar, o movimento de caráter efêmero também se dissolveu.
A ação “Liberdade ao 8!”culminou na construção deste sistema comunicativo
temporário baseado em criação de vínculos, laços de amizade e solidariedade, que
lançou mão da linguagem do documentário, de cartazes, das artes visuais, das
fotografias e de tambores17 para se fazer transmitir a sua mensagem, de que Karllana e
João eram inocentes e vítimas de abuso por parte da autoridade policial e que o 8 Bar
era um espaço político de resistência, de troca de afetos e portanto, deveria permanecer
aberto.
Todas estas formas de comunicação, que possuem linguagens diversas, podem
ser tão técnicas quanto o próprio texto jornalístico ao sustentar os seus pressupostos e
discursos predicativos – mas não quando o estar-junto, ação que dá vida ao espaço
social, é a mola propulsora dos encontros que se realizam em prol da busca de outras
formas de se mobilizar e conviver; aí, imperam o vínculo e os afetos.
Referências (bibliografia)
FLUSSER, Villém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Editora Hucitec, 1985.
Referências (jornalísticas)
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Post. São Paulo, 30/06/2015. <http://www.brasilpost.com.br/paloma-franca-
amorim/liberdade-para-a-resistencia_b_7699382.html>. Acesso em 09/06/2016.
______________________. 'Vivemos sob o poder de um Estado onde é errado ser
correto', diz proprietária do 8 Bar Bistrô. Brasil Post. São Paulo, 05/08/2015.
<http://www.brasilpost.com.br/paloma-franca-amorim/liberdade-para-o-
8_b_7907888.html>Acesso em 09/06/2016.
182
PINTO, Lúcio Flávio. Ainda o flagrante da droga. Jornal Pessoal. Belém, 26/06/2015.
<https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2015/07/19/ainda-o-flagrante-da-droga/>.
Acesso em 09/06/2016.
__________________. Chame o ladrão!. Jornal Pessoal. Belém,
27/06/2015<https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2015/06/27/chame-o-ladrao/>.
Acesso em 09/06/29016.
__________________. Droga: justiça defende os cidadãos. Jornal Pessoal. Belém,
30/06/2015. https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2015/06/30/droga-justica-defende-
os-cidadaos/. Acesso em 09/06/2016.
__________________. Juiz extingue processo do 8. Jornal Pessoal. Belém,
29/06/2015.https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2015/06/29/juiz-extingue-processo-
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__________________. Juiz mantém decisão. Jornal Pessoal. Belém,
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__________________. MP vai apurar ação da polícia. Jornal Pessoal. Belém,
05/07/2015.https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2015/07/05/mp-vai-apurar-acao-da-
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__________________. Tráfico ou flagrante forjado? Jornal Pessoal. Belém,
26/06/2015.https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2015/06/26/trafico-ou-flagrante-
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__________________. Uma voz da rua. Jornal Pessoal. Belém,
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__________________. Violência destrói sonho. Jornal Pessoal. Belém, 15/07/2015.
https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2015/10/15/violencia-destroi-sonho/. Acesso em
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__________________. Vítimas da polícia absolvidas. Jornal Pessoal. Belém,
13/04/2016.https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2016/04/13/vitimas-da-policia-
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Portal Diário do Pará. Casal dono de bar de Belém é preso por tráfico. Belém,
25/06/2015. <http://www.diarioonline.com.br/noticias/policia/noticia-335028-casal-
dono-de-bar-de-belem-e-preso-por-trafico.html>. Acesso em 09/06/2016.
Portal Diário do Pará. Internautas defendem casal proprietário de bar. Belém,
25/06/2015. <http://www.diarioonline.com.br/noticias/para/noticia-335058-internautas-
defendem-casal-proprietario-de-bar.html>. Acesso em 09/06/2016.
Portal G1 Pará. Advogados pedem liberdade de donos de bar presos por tráfico. Belém,
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liberdade-de-donos-de-bar-presos-por-trafico.html>. Acesso em 09/06/2016.
183
Portal G1 Pará. MPE recorre da decisão que extinguia inquérito do caso 'Bar do Oito
Bistrô'. Belém, 17/07/2015.http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2015/07/mpe-recorre-
da-decisao-que-trancou-inquerito-do-caso-bar-do-oito-bistro.html. Acesso em
09/06/2016.
Portal G1 Pará. Juiz extingue processo contra donos de bar presos por suspeita de
tráfico. Belém, 29/06/2015. <http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2015/06/casal-dono-
de-bar-preso-por-trafico-de-drogas-vai-responder-em-liberdade.html>. Acesso em
09/06/2016.
Portal G1 Pará. Polícia apreende drogas e prende donos de bar em Belém. Belém,
26/09/2015.
<http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2015/06/policia-apreende-drogas-e-prende-donos-
de-bar-famoso-em-belem.html>. Acesso em 09/06/2016.
Referências (imagens)
<https://www.vice.com/pt_br/read/karllana-e-joao-bar-8-belem-para> .Acesso em
09/06/2016.
MATERIAL AUDIOVISUAL
Liberdade ao 8. Autoria desconhecida. Belém, 26/06/2015. (7m00).
<https://www.facebook.com/8livre/?fref=ts>. Acesso em 10/06/2016.
185
Navegações
186
Costas Douzinas1
Tradutores
Daniel Carneiro Leão Romaguera2, Antonio Henrique Pires dos Santos3Fernanda Frizzo
Bragato4 e Manoel Carlos Uchôa de Oliveira5
Nesta edição, será publicada a tradução das últimas três teses sobre Direitos
Humanos de autoria de Costas Douzinas, denominou-se de “Parte 2” a reunião dos
textos: “ (5) Despolitização”; “ (6) Desejo”; “ (7) Cosmopolitismo, igualdade &
resistências”. As “Seven Theses on Human Rights” foram publicadas originalmente no
site da Critical Legal Thinking. No presente escrito, os textos traduzidos estão dispostos
integralmente em sequência, no intuito de preservar o formato de publicação original.
Quanto as quatro primeiras teses, estão publicadas na edição de nº 48, 2016.2, da
Revista Lugar Comum.
1
Costas Douzinas é professor de direito e diretor do Instituto de Humanidades de Birkbeck, na
Universidade de Londres. Também é professor visitante nas Universidades de Atenas, Paris, Tessalônica e
Praga. Traduzido ao português, tem publicado O fim dos direitos humanos (Unisinos: 2009).
2
Doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-RIO e Mestre em Jurisdição e
Direitos Humanos pela UNICAP/PE, membro dos Grupos de Pesquisa Jurisdição Constitucional,
Democracia e Constitucionalização de Direitos, Pós-colonialidade e Integração Latino-Americana e
Teoria Crítica do Direito. E-mail: danielromaguera@hotmail.com.
3
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Mestrando em Ciência Política
pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Bolsista FACEPE. E-mail: antonio.hps26@gmail.com.
4
Mestre e Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, com período de estágio
doutoral na
University of London (Birkbeck College) (2009) e pós-doutorado na University of London (School of
Law - Birkbeck College) (2012). Atualmente é professora do Programa de pós-graduação e graduação em
Direito da Unisinos e Coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos.
5
Doutorando no PPGCJ-UFPB. Professor Assistente I na Unicap. E-mail: manoel.cuo@gmail.com.
187
1
Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado na página da “Critical Legal
Thinking” no dia 31 de maio de 2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/05/31/seven-
theses-on-human-rights-5-depoliticization/
188
emergentes relações dominantes econômicas e sociais. Eles foram usados para retirar do
desafio político as instituições centrais do capitalismo, como a religião, a propriedade,
as relações contratuais e a família, proporcionando assim a melhor proteção possível. As
ideologias, os interesses privados e as preocupações egoístas aparentam ser naturais,
normais e vocacionadas ao bem público quando encobertos pelo vocabulário dos
direitos. Como disse Marx, de forma inigualável, “liberdade, igualdade, propriedade e
Bentham”2.
Os direitos humanos inicialmente foram vitórias históricas de grupos e
indivíduos contra o poder do Estado, mas ao mesmo tempo promoveram um novo tipo
de dominação. Como Giorgio Agamben argumenta, eles “simultaneamente prepararam
uma inscrição tácita, mas crescente, da vida dos indivíduos dentro da ordem estatal,
oferecendo assim uma base nova e mais terrível para o mesmo poder soberano do qual
eles queriam se libertar”3. No capitalismo tardio, com seu regulamento biopolítico
proliferante, a multiplicação sem fim de direitos paradoxalmente aumentou o poder
investido nos corpos.
Se os direitos naturais clássicos protegiam a propriedade e a religião tornando-as
"apolíticas", o principal efeito dos direitos hoje é despolitizar a própria política.
Permitam-me introduzir uma distinção fundamental na filosofia política recente entre a
política (la politique) e o político (le politique). De acordo com Chantal Mouffe, a
política é o terreno da vida política rotineira, da atividade de debater, dos lobbys e das
negociatas que são realizadas ao redor de Westminster e Capitol Hill4. O “político”, por
outro lado, refere-se à forma pela qual o laço social é instituído e concerne às fendas
profundas da sociedade. O político é a expressão e articulação da irredutibilidade do
conflito social. A política organiza as práticas e instituições pelas quais a ordem é
criada, normalizando a co-existência social no contexto do conflito fornecido pelo
político.
Esse antagonismo profundo é o resultado da tensão em meio ao corpo social
estruturado, onde cada grupo tem seu papel, sua função e seu lugar, e o que Jacques
Rancière chamou de "a parte de nenhuma parte”. Os grupos que foram radicalmente
2
Karl Marx, Capital, Volume One (Harmondsworth: Penguin, 1976), 280
3
Giorgio Agamben, Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life (Stanford University Press, 1998), 121.
4
Chantal Mouffe, On the Political (London: Routledge, 2005), 8–9.
189
excluídos da ordem social; eles são invisíveis, estão fora do senso estabelecido do que
existe e é aceitável. A política própria irrompe somente quando uma parte excluída
demanda ser incluída e devem mudar as regras de inclusão para se alcançar isso.
Quando possuem sucesso, um novo sujeito político é constituído, em excesso ao grupo
de grupos hierarquizado e visível, e uma divisão é colocada no senso comum pré-
existente5.
Qual é o papel dos direitos humanos nessa divisão entre a política e o político? A
demanda de direitos reforça mais do que desafia os arranjos estabelecidos. O requerente
aceita o poder estabelecido e as ordens de distribuição e transforma sua reivindicação
política em uma demanda de admissão à lei. O papel da lei é transformar as tensões
sociais e políticas em um conjunto de problemas solucionáveis regulados pelas leis e
entregá-los aos especialistas da lei. O requerente de direitos é o oposto do
revolucionário das primeiras declarações, cuja tarefa era mudar o arranjo geral da lei.
Nessa medida, suas ações abandonam o compromisso inicial de direitos, de resistir e de
se opor à opressão e à dominação. Os sujeitos “excessivos”, que representam o
universal de uma posição de exclusão, foram substituídos por grupos sociais e
identidades em busca de reconhecimento e redistribuição limitada.
Na nova ordem mundial, as reivindicações de direitos dos excluídos são
enclausuradas por meios políticos, jurídicos e militares. Migrantes econômicos,
refugiados, prisioneiros da guerra ao terror, os sans papiers, habitantes de
acampamentos africanos, esses “humanos de um só uso" são a precondição
indispensável aos direitos humanos, mas, ao mesmo tempo, são as provas vivas, ou
melhor, mortas, de sua impossibilidade. As lutas bem-sucedidas de direitos humanos
sem dúvida melhoraram a vida das pessoas pelos rearranjos marginais das hierarquias
sociais e redistribuições não ameaçadoras do produto social. Mas seu efeito despolitiza
o conflito e remove a possibilidade de mudança radical.
Podemos concluir que as demandas de direitos humanos e suas lutas trazem à
superfície a exclusão, a dominação e a exploração, e também a inescapável contenda
5
Jacques Rancière, Disagreement. trans. Julie Rose (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1998);
“ ho is the Subject of the Rights of Man?” in “And Justice for All?” Ian Balfour and Eduardo Cadava,
special issue, eds., South Atlantic Quarterly, 103, no. 2–3 (2004), 297.
190
que permeia a vida social e política. Mas, ao mesmo tempo, escondem as raízes
profundas da contenda e da dominação ao enquadrar a luta e a resistência em termos de
remédios legais e individuais, que, se bem-sucedidos, levam a pequenas melhorias
individuais e ao rearranjo marginal do edifício social.
Podem os direitos humanos reativar uma política de resistência? A ligação
intrínseca entre direitos naturais, transcendência (religiosa) e radicalismo político abriu
essa possibilidade. Ela ainda está ativa em partes do mundo não integralmente
incorporadas pelas operações biopolíticas de poder. Mas é só isso. A metafísica de nossa
época é a desconstrução da essência e do significado, o fechamento da divisão entre o
ideal e o real, a sujeição do universal ao particular dominante. A globalização
econômica e o monolinguismo semiótico estão realizando essa tarefa na prática; seus
intelectuais apologistas o fazem na teoria. O dever político e moral da crítica é manter
aberta a fenda e descobrir e lutar pela transcendência na imanência.
191
1
Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado na página da “Critical Legal
Thinking” no dia 03 de junho de 2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/06/03/seven-
theses-on-human-rights-6-desire/
192
sua atualização heurística pela "posição originária") cria sociedade e governo, mas
preserva esses direitos e os torna obrigatórios para o governo. Os direitos e os atuais
direitos humanos são pré-sociais, pertencem aos seres humanos precisamente porque
são seres humanos. Nós usamos esse patrimônio natural como ferramentas ou
instrumentos para enfrentar o mundo exterior, para defender os nossos interesses e
perseguir nossos planos de vida.
Essa posição é fortemente contrastada pela dialética hegeliana e marxista,
hermenêutica e psicanálise. O self humano não é uma entidade estável e isolada que,
uma vez formada, vai para o mundo e age de acordo com motivos e intenções pré-
estabelecidos. O self é criado pelas interações constantes com outros, o sujeito é sempre
intersubjetivo. A minha identidade é construída em diálogo contínuo e luta por
reconhecimento, na qual os outros (tanto pessoas como instituições) reconhecem certas
características, atributos e feições como meus, ajudando a criar minha própria noção de
self. A identidade emerge dessa conversa e luta com os outros, que segue a dialética do
desejo. A lei é uma ferramenta e efeito dessa dialética; os direitos humanos reconhecem
o papel constitutivo do desejo.
A ideia básica de Hegel pode ser colocada de forma simples. O self é distinto e
também dependente do mundo externo. A dependência em relação ao não-Eu, tanto o
objeto quanto outra pessoa, faz com que o self perceba que ele não é completo, mas
carente e constantemente conduzido pelo desejo. A vida é uma luta contínua para
superar a estranheza da outra pessoa ou coisa. A sobrevivência depende de ultrapassar
essa divisão radical do não-Eu, mantendo a sensação de unicidade do self2.
A identidade, portanto, é dinâmica, sempre em movimento. Estou em diálogo
contínuo com os outros, numa conversa que modifica os outros e redesenha minha
própria autoimagem. Os direitos humanos não pertencem aos seres humanos e não
seguem os ditames da humanidade; eles constroem os seres humanos. Um ser humano é
alguém que pode reivindicar com êxito direitos humanos e o grupo de direitos que
determina o quão "humano" nós somos; nossa identidade depende da quantidade de
direitos que podemos mobilizar com sucesso nas relações com os outros. Se este for o
caso, os direitos devem estar vinculados a funções e necessidades psicológicas
2
Costas Douzinas, “Identity, Recognition, Rights or hat Can Hegel Teach Us About Human
Rights?” Journal of Law and Society 29 (2002), 379–405.
193
indivíduos com suas condições reais de existência”. Nesse sentido, os direitos humanos
são ideologia em seu ponto mais forte, mas muito diferente daquela de Michael
Ignatieff3.
Finalmente, a operação simbólica e imaginária dos direitos encontra seu limite
no real. Nós circulamos em torno do vórtice do real: a falta no núcleo da subjetividade
tanto faz com que os nossos projetos falhem como cria o impulso para continuar o
esforço. Quando fazemos uma demanda, não só pedimos para que o outro satisfaça uma
necessidade, mas também que nos ofereça amor sem reservas. Uma criança que pede
pelo seio da mãe precisa de comida, mas também pede atenção e amor da mãe. O desejo
é sempre o desejo do outro e significa precisamente o excesso de demanda sobre a
necessidade. Cada vez que a minha necessidade de um objeto entra na linguagem e
endereça ao outro, há a exigência por reconhecimento e amor. Contudo, essa demanda
por totalidade e reconhecimento irrestrito não pode ser satisfeita pelo grande Outro (a
linguagem, a lei, o Estado) ou por outra pessoa. O grande Outro é a causa e o símbolo
da falta. A outra pessoa não pode oferecer o que o sujeito não tem porque ela também
está em falta. Em nosso apelo para o outro, nós nos deparamos com a falta, uma falta
que não pode ser suprida nem totalmente simbolizada.
Os direitos nos permitem expressar nossas necessidades pela linguagem ao
formulá-las enquanto demandas. A reivindicação de direitos humanos envolve duas
demandas endereçadas ao outro: um pedido específico em relação a um aspecto da
personalidade ou do status do requerente (tal como ser deixado em paz, não sofrer
violação de sua integridade física e ser tratado de forma igualitária), mas, além disso,
uma demanda muito mais ampla de ter uma identidade completa reconhecida em suas
características específicas. Quando uma pessoa de cor alega, por exemplo, que a
rejeição de um pedido de emprego configura uma negação de seu direito humano a não
discriminação, ela faz duas afirmações relacionadas, mas relativamente independentes.
A rejeição é, simultaneamente, uma negação injusta da necessidade de emprego do
candidato e uma violação da sua identidade mais ampla. Cada direito, portanto,
relaciona a necessidade de uma parte do corpo ou da personalidade com o que excede a
necessidade, o desejo do reclamante ser reconhecido e amado como uma pessoa inteira
e completa.
3
Michael Ignatieff, Human Rights as Politics and Ideology(Princeton and Oxford: Princeton University
Press, 2001).
197
O sujeito dos direitos tenta encontrar o objeto perdido que irá preencher a falta e
transformá-lo em um ser integralmente completo no desejo do outro. Mas esse objeto
não existe e nem pode ser possuído. Os direitos oferecem a esperança de que o sujeito e
a sociedade possam se tornar um todo: “Se apenas aos meus atributos e características
fosse conferido reconhecimento legal, eu seria feliz”; “Se ao menos as exigências de
dignidade humana e igualdade fossem plenamente aplicadas, a sociedade seria justa”.
Mas o desejo não pode ser preenchido. Os direitos se tornam um suplemento fantástico
que estimula, mas nunca sacia o desejo dos sujeitos. Os direitos sempre provocam mais
direitos. Eles levam a novas áreas de reclamações e reconhecimento que sucessivamente
se provam insuficientes.
Hoje os direitos humanos se tornaram a marca de civilidade, porém seu sucesso
é limitado. Nenhum direito pode me dar o pleno reconhecimento e o amor do outro.
Nenhuma declaração de direitos pode completar a luta por uma sociedade justa. De fato,
quanto mais direitos são introduzidos, maior a pressão para que se legisle mais, para que
os aplique melhor, para transformar a pessoa em um coletor infinito de direitos e a
humanidade em um mosaico interminavelmente proliferante de leis. A lei continua a
colonizar a vida e o mundo social, enquanto a espiral sem fim de mais direitos,
aquisições e posses alimenta a imaginação do sujeito e domina o mundo simbólico. Os
direitos se tornam a recompensa pela falta psicológica e impotência política. Direitos
plenamente positivados e os desejos legalizados extinguem o potencial de autocriação
dos direitos humanos. Passam a ser o sintoma de um desejo que tudo devora - sinal do
Soberano ou do indivíduo - e ao mesmo tempo a sua cura parcial. Em uma virada
estranha e paradoxal, quanto mais direito temos, mais inseguros nós nos sentimos.
Entretanto, há um direito que está intimamente ligado com o real de desejo
radical: o direito à resistência e à revolta. Este direito está perto da pulsão de morte, da
chamada reprimida de transcender as distribuições da ordem simbólica e os prazeres
gentis do imaginário, para algo mais próximo de nosso destrutivo e criativo núcleo
interior. Assumir riscos e não desistir de seus desejos é a chamada ética da psicanálise.
A resistência e a revolução são seus equivalentes sociais. Da mesma forma que o real
198
4
Costas Douzinas, “Adikia: On Communism and Rights,” in The Idea of Communism Costas Douzinas
and Slavoj Žižek eds (London: Verso, 2010), 81–100. Also available on Critical Legal
Thinking: http://criticallegalthinking.com/2010/11/30/adikia-on-communism-and-rights/
199
3
Ernst Bloch, Natural Law and Human History trans. J.D. Schmidt (Cambridge Mass.: MIT Press, 1988),
xxviii.
202
Lúcia Ozório1
Resumo
Buscamos uma nova compreensão da cidade que trabalha pela centralidade das
periferias, com novos modos de resistência, novas formas de antagonismos em que um
poder comum de agir na cidade marca um processo em que se evidencia a biopolítica.
As concepções de Antonio Negri sobre o comum, inspirado em Michel Foucault e Gilles
Deleuze, contribuem para compreender a resistência como biopotência. A história oral
de vida em comum, como dispositivo de pesquisa, aprofunda esta perspectiva refletindo
sobre uma memória comum como crítica em ato à violência contra as diferenças.
Buscamos dar formas a subjetividades, terreno fundamental das lutas políticas, que se
aliem às urgências de um comum no presente. As experiências de vida como diferentes
modos de ser, estar e agir no mundo enriquecem esta discussão.
Palavras-chaves
Cidade; comum; biopolítica; subjetividade; história oral de vida em comum.
Résumé
Nous cherchons une nouvelle compréhension de la ville qui travaille pour la centralité
des périphéries, avec de nouveaux modes de résistance, de nouvelles formes
d´antagonismes dans lesquels un pouvoir commun d´agir marque un processus mettant
en évidence la biopolitique. Les conceptions d`Antonio Negri sur le commun inspirées
de Michel Foucault et Gilles Deleuze contribuent à comprendre la résistance comme
biopuissance. L´histoire orale de vie en commun, comme dispositif de recherche,
approfondie cette perspective réfléchissant sur une mémoire commune comme critique
en acte à la violence contre les différences. Nous cherchons à donner des formes aux
subjectivités, terrain fondamental des luttes politiques, qui s´allient aux urgences d´un
1
Pesquisadora do laboratório Experience, França - Universidades Paris 8 e Paris 13-Nord); Laboratório
Lipis - Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social, PUC. Membro do GT Psicologia
Comunitária – Anpepp E-mail: lozorio@gmail.com
204
commun au présent. Les expériences de vie comme différents modes d´être, d´agir dans
le monde enrichissent cette discussion.
Mots – clés
Ville; commun; biopolitique; subjectivité; histoire orale de vie en commun.
Ano de 2003 – “[...]“A gente vai contar as histórias das rezadeiras, das criadoras de
porco, das verdureiras (....). A gente vai contar as histórias da gente daqui. A
Mangueira está precisando disso.”
(Celso, morador da comunidade da Mangueira. In: Ozório, 2016: 31).
Ano de 2010 – “... comi o pão que o diabo amassou com o rabo” ...”. Tinha dia que a
minha tia não tinha nada pra dar pra gente, a gente comia só o pó do fubá cozido na
água... Sem sal, sem tempero, sem nada... Hoje, tem arroz, tem feijão, tem às vezes uma
carne,..”
(D. Mena, moradora da comunidade da Mangueira. In: Ozório, 2012).
Introdução
Este artigo se inspira nas pesquisas que realizamos com a comunidade de Mangueira
no Rio de Janeiro, desde 2003 (Ozório, 2014; 2016). Interessamo-nos por um poder
comum de agir na cidade, em mutação, uma política do comum, considerando a história
oral de vida em comum como nosso dispositivo de trabalho. Na cidade em devir se há
um combate a ser travado, seu alvo principal é a polaridade ordem/desordem. Trata-se
de combate ao regime identitário da cidade partida, o do asfalto – favela, o que não
implica buscar uma pulverização generalizada da cidade, nem muito menos ideários de
cidade - asfalto com opiniões prontas de cidade, imagens a priori, clichês que querem a
discriminação e criminalização das periferias. Diríamos que uma nova compreensão da
cidade trabalha pela centralidade das periferias, ou melhor, pela compreensão das
cidades sempre se fazendo, com novos modos de resistência, novas formas de
antagonismos num processo em que se evidencia a biopolítica. Como diz A. Negri
(2010: 208), movimentos de liberdade não podem estar separados da metrópole que “...
nasce da construção e reconstrução que a cada dia ela opera sobre si mesma e de si
205
difícil saber onde se vai chegar. Esta compreensão de dispositivo dá ideia da sua
complexidade e permite que se o utilize para que se tenha acesso à riqueza do comum,
de seus processos em constante desequilíbrio, no aqui e agora da experiência-
resistência.
É oportuno marcar que o Papo de Roda é demandado num momento difícil
desta comunidade, em que seus moradores enfrentavam uma conjuntura político-social
local e no Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2003, complexa, violenta (Dutra, 2003;
Araújo, 2003; Ozório, 2007). O número de pessoas mortas em confronto com a polícia
neste ano aumentou em cerca de 50%, assim como o número de cadáveres encontrados
foi de 40% (Theophilo, 2003) com o Programa Tolerância Zero implementado pelo
Estado.
A fala de Celso, morador de Mangueira, registrada no início deste artigo, acontece
neste momento, e marca uma diferença-resistência da comunidade. O desejo de contar
histórias de vida comumente, de fazer conhecer as histórias da comunidade, foi um
modo que Mangueira encontrou para resistir à violência a que estava sujeita. Foi um
modo de enfrentar a discriminação e a criminalização da pobreza que atravessam seu
quotidiano. O Papo de Roda, dispositivo proposto, favorece o acolhimento desta
diferença-resistência manifestando um querer comum : as histórias dos moradores de
Mangueira serão contadas por eles mesmos, para o lugar, para a cidade, para o mundo.
Celso provoca o comum na cidade ao desejar disseminar as histórias de vida das
rezadeiras, das criadoras de porco, das verdureiras de Mangueira. Explicita um
entendimento de comum como práxis na medida em que o alia à experiência de vida
comunitária.
No início deste artigo, também registramos a narração de D. Mena, outra
moradora de Mangueira, que habita próximo a um lugar peculiar desta comunidade
chamado Buraco Quente. A comunidade da Mangueira é campo da diversidade e como
tal, tem muitos territórios, com diversos nomes, nomes acontecimentos como diriam
Deleuze e Guattari (1980), que guardam uma sintonia com a vida do lugar. Pois
Mangueira é comunidade com muitas comunidades. Quando faz este relato, no Papo de
Roda, sua irmã, que a escutava, D. Esmediária, lembra que D. Mena faz um trabalho
com as crianças da Mangueira do Amanhã.
...Mena é diretora da Mangueira do Amanhã, um movimento na
comunidade que congrega quase duas mil crianças que se
211
a vida que se inventa nas histórias narradas em comum. Celso, Esmediária e Mena
afirmam a minoritária história, descontínua e em fragmentos, que se faz em lugares năo
oficiais.
Uma outra cultura vai proliferando, ao optar por certas perspectivas estético-
culturais das riquezas das fontes populares da narratividade em comum. Nela não há
pretensão à perfeições, à estabilidades, à formalidades, ao reinado da razão. As alianças
entre as vidas que se contam, constroem a estética do comum, uma cultura que nas suas
dispersões mostra que quem conta pode se encantar, pode encantar, pode se
potencializar com as grandezas do ínfimo, com o voo da coruja, com as insignificanças,
as ignoranças. A potência de um calor vivo cadencia a narração em comum e releva o
partilhar a vida, não a subtração de vida.
Isto nos autoriza pensar num comum – experencial- cultural que se faz, num
exercício de um certo agorismo, afinal traz-se para a praça pública - comunidade,
cidade – uma experimentação: uma comunização de vidas, outras mundovisões -
culturas que sem pretenderem a verdade acenam para outros espaços-tempos da política:
a política do comum e seu poder comum de agir. A insureição de vidas postergadas à
uma zona de silêncio é práxis da perspectiva heterobiográfica (Delory-Momberger e
Hess, 2001; Ozório, 2004a; 2007; 2007a) das histórias orais de vida, com o potencial
que têm de resistir e provocar desterritorializações. Na cultura do comum que se faz
vislumbramos novos processos de subjetivação. A revalorização do saber das pessoas,
saberes locais, regionais, histórias deixadas de lado explicitam o saber histórico das
lutas (Foucault, 1982).
A experimentação de vida que Mena e mais de duas mil crianças com seus pais
fazem com Mangueira do Amanhã maquinam por novas subjetividades na cidade. Mena
com seu saber, sem se importar com o saber da erudição, faz-narra uma história da
cultura do samba.
“É muito bonitinho! As crianças pequenininhas até seis anos... É legal porque
evolui as crianças (...)É uma Escola mesmo!” (Mena In: Ozório, 2016: 115-116).
E as crianças estão no mundo, ela conta. Este fragmento da história de Mena traz
a magia da aliança, faz aparecer humores, sorrisos, cores, gestos que apostam que novas
ternuras aliadas à novas inteligências são possíveis. Estes afectos circulam, vão por aí, e
nos instigam: como produzir espaços-tempos que favoreçam subjetividades na sua
214
potência de conexão e criação? Trata-se de inquietação que tanto nos faz pensar no
paradoxo de viver comumente e suas insurreições-experimentações, como pensar a
cidade pelo contato-tensões-cultura, testemunhos de um tempo e de modus vivendi no
tempo que cuidam das cidades, daquelas que podem vir a ser (Calvino, 1990).
Sabe-se que no modelo identitário da cidade partida, favela e asfalto, em lados
antagônicos, são estimulados a reproduzir modelos da cidade - asfalto que deixam de
lado a riqueza que as periferias portam. A intervençao nesta dicotomia aponta para uma
operação de subjetivação que encoraja a práxis do comum no mundo contemporâneo e
faz pensar no que diz Foucault (1982) sobre a historicidade de nossos dias, muito
beligerante. Uma aliança entre asfalto e favela pode acontecer, posição singular que não
é um nem é o outro, que trabalha e aponta para algo que pode começar a acontecer. Um
comum que se faz neste processo mostra a importância dos interstícios das cidades,
transitórias, aquelas, como diz Calvino (1990), que insistem em dar forma aos seus
desejos, uma viabilização do trânsito em mão dupla entre o plano virtual das
intensidades e o plano atual das formas.
Negri, num dos seus livros, que inspira este artigo, Fábrica de Porcelana (2006)
releva o termo fábrica, ou seja, forjar conceitos que possam dar conta de um processo de
transformação em marcha no mundo pós-moderno. O comum é um destes conceitos. Por
outro lado, releva na construção do comum tanto a presença de um sopro comum que
revigora, mas também uma espécie de tempestade que agita nossas existências, nos
fragiliza, coloca nossos desejos em estados derrisórios (Negri, 2006: 15). Poder-se-ia
pensar no cuidado-insistência que se deve ter na construção do comum, porcelana,
potência animada pelas diferenças? É instigante pensar a porcelana como potência, é
provocador pensar o comum como processo mutante de diferenças que se convocam,
que provocam sutilezas no seu trato. Como este autor diz, cabe a nós liberdades de
movimento para fazermos com que este grande vento, com suas faces múltiplas, se
pareça a uma brisa de primavera que nos revigora (Idem: idem).
Celso, Mena e Esmediária numa liberdade de movimentos, com seu poder comum
de agir, narram em suas histórias, uma singular sensibilidade para com as diferenças,
exercem a práxis por uma centralidade das periferias como política do comum no
mundo contemporâneo.
Referências
215
DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux. Paris : Les Editions de Minuit, 1980.
647 p
DUTRA, M. Cinco PMs são indiciados pela morte de quatro rapazes no Morro do
Borel. O Globo, Rio de Janeiro, 25 de jul. 2003. Rio, p. 17.
FOUCAULT, M., Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Editora Graal, 1982. 295p.
NEGRI, A., 5 lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2003. 279 p.
NEGRI, A. e HARDT, M., Império. Rio de Janeiro: Editora Record. 2010. 501p.
OZÓRIO L.Penser Les Périphéries. Une expérience Brésilienne Pour un nouveau type
de politique publique de construction du commun.. Paris: L´Harmattan, 2014.
Resumo
O artigo traz reflexões sobre a emergência do conceito de comum entre movimentos
como o das ocupações 15M e Gezi Park como resposta à crise da representação política.
Contudo, hoje o conceito não deve ser interpretado de acordo com sua origem grega e
sim como um princípio de lutas que questionam a oposição entre o Estado e o mercado,
isto é, que questiona a posição que faz do Estado o que nos defende das forças do
mercado. Com efeito, nas últimas décadas, o Estado sofreu transformação que o levam,
com freqüência, a um protagonismo neoliberal. Diante deste quadro, é preciso por um
lado evitar entender o comum no sentido restrito de bens comuns e, por outro,
desenvolver um direito do comum como um novo tipo de direito de uso, onde
apropriações se distinguem dos usos proprietários e levem a criação de instituições do
comum. Essas, por sua vez podem romper com sistemas políticos oligárquicos
interligados a interesses econômicos dominantes, em suma, promover uma revolução no
sentido de “reinstituição da sociedade”.
Palavras-chave
Comum; direito do comum; direito de uso; crise da representação; democracia
participativa.
Abstract
The article brings reflections on the emergence of the concept of common among
movements such as the 15M occupations and Gezi Park in response to the crisis of
political representation. However, today the concept should not be interpreted according
to its Greek origin but as a principle of struggles that question the opposition between
the State and the market, that is, that question the position that makes of the State the
one that defends us from market forces. Indeed, in the last decades, the state has
undergone transformations that often lead to a neo-liberal protagonism. In this context,
it is necessary, on the one hand, to avoid understanding the common in the narrow sense
of common goods and, on the other, to develop a right of the common as a new type of
right of use where appropriations differ from proprietary uses and that leads to creation
of Institutions of the Common. These, in turn, can break with oligarchic political
1
Renan Porto, ensaísta, poeta e bacharel em Direito pela Universidade de Uberaba,
pesquisador associado à rede Universidade Nômade.
218
Key-words
Common; Right of the Common; Right of use; Crisis of representation; Participatory
democracy.
comum assumiu um significado que não poderia ser reduzido a ‘estatal’, até ser
sequestrado e adulterado tanto pelo Estado quanto pela teologia. Mas isso não significa
que a sua ‘redescoberta’ hoje seja um retorno a suas origens grega e romana. Trata-se de
outra coisa: definir uma alternativa política positiva à razão neoliberal orientada pela
competitividade.
Tal alternativa nos permitiu sair da dualidade entre propriedade pública/estatal
versus propriedade privada. Por muito tempo, a esquerda tem vivido sob a ideia de uma
oposição entre o Estado e o mercado que fez do Estado a melhor defesa contra a
ofensiva das forças do mercado. Essa oposição, junto com a estratégia que cria, é
totalmente uma coisa do passado. Há trinta anos, o Estado tem sofrido uma profunda
transformação, que fez dele um verdadeiro protagonista neoliberal. Está, ele próprio,
sujeito à lógica empresarial, e, enquanto Estado-empreendedor, ou “Estado
corporativo/empresarial”, age como um parceiro das grandes multinacionais na
coprodução de novas formas internacionais. A famosa fórmula de Marx de que o
governo não é mais do que um comitê executivo para gerir os negócios da burguesia
está largamente ultrapassada agora, não porque seja uma definição ultrajante; ao
contrário, porque fica aquém da realidade de hoje, em meio à crescente hibridização
entre Estado e mercado. O paradigma estatista precisa ser impiedosamente
desconstruído se quisermos trabalhar na reconstrução da esquerda. O Estado é inclusive
menos do que um instrumento que poderia ser usado por ‘projetos políticos’, como se
fosse o caso de direcioná-lo para outros fins. Pelo contrário, o Estado é impõe a sua
própria lógica sobre aqueles que nutrem a ilusão de sua transformação possível, quando
se está imerso num ambiente de luta contra o capitalismo neoliberal.
Aqui vemos tudo que separa o comum, entendido nesse sentido, do Estado e do
Público. O Estado/Público repousa sobre dois requisitos completamente contraditórios:
por um lado, garantir o acesso universal aos serviços públicos; por outro, dar à
administração estatal o monopólio da gestão desses serviços e reduzir seus usuários a
consumidores, enquanto são excluídos de qualquer forma de participação na gestão. É
justamente essa divisão entre ‘funcionários’ e ‘usuários’ que o comum tem de abolir.
Em outras palavras, o comum pode ser definido como o público não-estatal, que
garanta o acesso universal através da participação direta dos usuários na administração
dos serviços. Uma de nossas ‘propostas políticas’, na terceira parte do livro, é a
220
transformação dos serviços públicos em instituições do comum. Isso significa que esses
serviços não pertencem ao estado no sentido de o Estado ser proprietário ou mesmo o
único gestor. Para realizar esse tipo de transformação, é necessário quebrar com o
monopólio da administração estatal de modo a garantir verdadeiro acesso universal a
esses serviços. Portanto, os usuários não devem ser considerados como ‘consumidores’,
mas como cidadãos participando lado a lado dos funcionários nas deliberações e
decisões concernentes a eles próprios.
O comum e os comuns
Mas instituir um banco de sementes para fazendeiros ou designar um sítio cultural para
uso comum enquadra-se na mesma categoria. Essas são práticas que preparam e
constroem a revolução como uma ‘auto-instituição da sociedade’.
Nós podemos tirar conclusões nos tempos do Direito. De fato, nós pensamos que
a instituição dos comuns envolve um conflito opondo o direito do comum ao antigo
direito de propriedade e que esse conflito entre dois direitos é o conflito fundamental de
nosso dia. O direito do comum é um direito do que difere do antigo direito de uso
coletivo fundado em costumes antigos. Quer consideremos o uso como um simples uso
fora da lei (comer, beber, viver em uma casa etc), quer como um direito coletivo surgido
do costume (o direito de colheita ou de usufruto), o uso é sempre entendido por ser a
ação de usar uma coisa externa com o objetivo de satisfazer necessidades vitais; usar
como ação implica certo tipo de relação com as coisas externas que frequentemente
inclui consumo, que é a destruição das coisas em questão (abuso, em latim, quer dizer
uma consumação completa). Mas, pode-se igualmente dizer em inglês ‘usar com’, com
outra pessoa, com uma pessoa particular, etc. Nesse caso, se trata de agir ou conduzir-se
de certo modo com os outros, na medida em que haja uma relação ativa com os outros
que é significativa, longe de qualquer relação com coisas externas que teria como meta
a destruição completa, isto é, a consumação. Nesse novo sentido, o uso toma o
significado de supervisão, manutenção e preservação. Podemos então sublinhar a
diferença entre o antigo e o novo direito de uso.
A primeira diferença apreciável com o velho direito envolve a natureza do
objeto que é usado. No direito do comum, o uso não está relacionado a uma coisa
material externa, mas ao que nós chamamos de comuns (no plural). Os comuns não são
‘coisas em comum’ (res communes). Certamente, coisas em comum não são nada (o
adágio res nullius primo occupant² não se aplica a elas). Mas a limitação dessa categoria
inerente ao direito romano é que corta as coisas da atividade. O conceito de comuns
enfatiza as construções institucionais através das quais a conexão entre as coisas e a
atividade do coletivo que se encarrega delas vem à tona. Assim, há comuns de diversos
tipos a depender do tipo de atividade dos protagonistas que instituem eles e os
223
sua coisa. A noção de ‘apropriação’ deve ser clarificada para evitar alguma confusão.
Há pertencimento-apropriação quando alguém se apropria de uma coisa para si mesmo e
exclui qualquer outra relação de pertencimento que envolva a mesma coisa, e
destinação-apropriação, em que uma coisa é particular para certo objetivo. Aqui
também há um risco de equívoco: o que está em questão não é a apropriação do comum
para o que ele se destina, mas apropriar-se da conduta dos membros do coletivo. O
objetivo é garantir, através de normas de uso coletivo, que o comportamento de
apropriação predatória não desvie do objetivo de uma específica destinação social em
comum. Em outras palavras, o objetivo é regular o uso do comum sem precisar fazer-se
seu proprietário, isto é, sem conceder a si o poder de dispor dele como seu dono
supremo.
A pluralidade dos comuns coloca a questão de sua coordenação através da
construção de instituições em comum, daí a ideia de uma federação de comuns sócio-
profissionais a depender do tipo de objeto pelo qual os diferentes comuns são
responsáveis. Não há comuns que sejam puramente profissionais, apenas comuns sócio-
profissionais que devem absorver neles mesmos sua própria relação com o resto da
sociedade. O exemplo da Itália é unicamente instrutivo nesse ponto. Nápoles é um
laboratório político do comum, não só por causa da sua experiência na gestão
participativa da água, mas também por causa da importância assumida por várias
‘ocupações’ (dentre elas, a ocupação do Asilo Filangieri, que tem sido convertido em
um espaço voltado a atividades culturais). Contudo, essas experiências podem ser
vividas apenas se elas promovem a demanda de autogestão em todos os níveis, inclusive
na coordenação dentre os comuns.
Essa demanda por autogestão não é outra coisa senão a demanda por democracia
política, que tem prevalecido em todas as esferas da vida social. Ela impede qualquer
tecnocracia ou “expertocracia” (grifo nosso: governo dos especialistas) na medida em
que tem de tornar a participação de todos como regra.
‘Democracia Real’ é uma questão de instituir. Esta é a essência do que nós
gostaríamos de dizer. O que não devemos subestimar é a dificuldade de inventar novas
225
Resenha
228
resenha do livro Aos nossos amigos: crise e insurreição, Comitê Invisível (2015,
download em https://we.riseup.net/assets/262783/AosNossosAmigos2014.pdf)
Gigi Roggero1
Aos nossos amigos é um livro que merece ser lido. Em parte, para estudar o que
os autores dizem, em parte, os leitores, reais ou potenciais, que o leem. Mas a quem o
livro apela, afinal? A resposta está contida no título, sem dúvida, um título certeiro: aos
amigos. São os amigos de um “partido” invisível e disperso, imaginário e despido de
organização. Na verdade, que refuga a própria organização. É um partido que emerge
onde haja insurgência, “onde a época se incendeia”, que mergulha onde prevaleça uma
calma aparente, no momento em que se volta a falar em “baixo entusiasmo da ‘gente’
para lançar-se numa batalha que se sente perdida por antecipação”. O livro fala aos
amigos concretos e virtuais desse partido: àqueles que já o são, para reforçar a sua
convicção, àqueles que podem vir a sê-lo, oferecendo-lhes argumentos fascinantes para
tal.
A linguagem é adequada à tarefa, às vezes culta, às vezes coloquial, entremeada
de várias referências filosóficas, explícitas ou implícitas, e com numerosas citações dos
amigos do partido, que falam a partir da matéria viva das lutas no Egito ou na Grécia.
Os alvos polêmicos são frequentemente escolhidos com cuidado, os principais são a
esquerda e os anarquistas, ou melhor, o sentimento profundo de derrota de que a
primeira é portadora, bem como as lamúrias ideológicas dos últimos. Mais problemático
do que isso nos parece ser, em diversos aspectos, o sentido conferido à crítica do
1
Militante e copequisador de lutas e movimentos a partir de Bolonha, na Itália,
participante dos ciclos de lutas na universidade (Edu-Factory) e dos precários no sul da
Europa, autor de vários livros, como La produzione del sapere vivo (2009) e Elogio
della militanza (2016). Seu livro La misteriosa curva della reta di Lenin está
correntemente em tradução pela editora Autonomia Literária, com publicação prevista
para 2017.
229
presente, embora ele seja coerente com uma tonalidade geral de fundo que o livro
transpira.
Repassaremos rapidamente os pontos de acordo e nos delongaremos, em vez
disso, nos problemas que encontramos. O objetivo desta resenha não é, de fato, fazer
um simples comentário, mas contribuir para uma discussão militante e coletiva, clara e
produtiva. Também os nossos amigos, pensamos, compartilham desse mesmo propósito.
revoltas pontuais e erráticas, incomunicantes entre si. Todavia, apenas constatar o fato
não é suficiente. Com efeito, quem foi derrotado não foi a democracia, um rótulo
geralmente etiquetado do exterior de toda insurgência de movimento. Quem foi
derrotado na verdade foi a revolução pela própria democracia. Nesse sentido, quem
segue invocando a primeira impede a perspectiva da segunda.
Longe de estarmos posicionados num momento decisivo de ação revolucionária,
então, a crise é um estado de exceção permanente, um apocalipse duradouro. No lugar
das lentes da economia política, afloram seguidamente no livro os instrumentos e as
mensagens de uma teologia política. O apocalipse deve ser entendido, ao contrário,
como já tendo ocorrido, porque o anúncio contínuo de sua chegada iminente apenas
serve para normalizar os meios repressivos aptos em combater quem busque subverter o
existente. A crise como oportunidade deveria por isso ser substituída pela catástrofe
como oportunidade. Porque há vida na catástrofe, dizem-nos os nossos amigos. Ou
melhor, a catástrofe é o espaço de onde se libertam a auto-organização e as
comunidades de solidariedade. Dizer isso não é uma coisa particularmente nova, há um
filão que defende a mesma linha já há bastante tempo, muito libertário e muito
americano, até chegar aos episódios dos furacões Katrina (2005) e Sandy (2012).
Porém, aqui vale uma observação importante, não podemos cair na retórica do “ser da
necessidade”, da figura da falta que imediatamente convoca quem poderia preencher o
vazio. Disso, decorre uma crítica pontual às ideologias associativistas e cooperativistas,
explícitas ou implícitas, que atuam dentro dos movimentos na crise. Porque elas
terminam por reproduzir a separação entre o ser da necessidade e quem se pressupõe
represente-lhes as demandas, o que reduz o primeiro a um ator passivo e o segundo a
um prestador de serviços. Esses não são uma alternativa ao capitalismo, como
sustentam os nossos amigos, mas apenas uma alternativa para a própria luta. Este
realmente é um tema contraditório e ambivalente, difícil de ser contornado somente com
uma crítica à ideologia, e que não pode ser nem afastado, nem nele ficarmos amarrados.
Em seguida, é preciso distinguir a prática que cria uma nova ligação social
potencialmente antagonista das meras receitas burocráticas, que reproduzem
setorizações e separações do ser da necessidade, preparando-o à representação. É
preciso contornar o perigo de converter o mero atendimento das necessidades em
finalidade política, o que neutraliza o que as necessidades portam de subversão, de
231
potencial para a socialização das possibilidades de luta. Nessa passagem para a luta,
acrescentamos, o ser da necessidade se torna sujeito do conflito, e os pobres devêm
classe.
Nós e eles
Desmercantilizar o desejo
Conquistar o desconhecido
Um livro como este dos nossos amigos dialoga com frações significativas da
composição jovem e metropolitana, exprimindo-lhe parcialmente os problemas e o
desejo de alternativas, as possibilidades antagonistas e a ambivalência das paixões.
Exprime também o pensamento do imediato em sua dupla face: de um lado, a
reapropriação do “aqui e agora” contra as correntes do passado e as utopias do futuro,
do outro lado, é fruto do colapso da temporalidade histórica, a sua fagocitose num
presente sem fim, sem genealogia e sem perspectiva. No imediato se perde aquilo que é
primeiro e aquilo que vem depois, ou seja, a possibilidade de antecipar e a necessidade
de sedimentar. O contrário do imediato não é a mediação, mas o projeto, que se
alimenta continuamente da relação entre construção de processo e salto em frente.
A ordem do discurso dos nossos amigos está entre outras coisas colocada em
tensão com tantas experiências territoriais e metropolitanas que nos levam adiante. No
interior desses percursos, tentam escapar da dialética entre local e global,
desestruturando-lhes os termos, a fim de arrancá-los da logística do capital e, por
conseguinte, imaginar a conexão entre planos com diversas consistências. Não
simplesmente enraizando-se no território, mas produzindo-o. Pois é aí que afloram os
problemas materiais, rasgando o véu das soluções retóricas. Aqui há tanto trabalho
político a ser feito, para os nossos amigos e para todos.
Há então, de qualquer modo, uma atitude de fundo da parte dos nossos amigos
que compartilhamos, independentemente das expressões concretas que ela assume: é a
disponibilidade ao desconhecido. Isto que antes de qualquer coisa deve ser recusado é o
que já conhecemos: a miséria da condição presente. A guerra e a barbárie futura não
podem ser sacadas como armas de chantagem, porque a guerra e a barbárie as sofremos
todos os dias. O conhecido é que nos dá medo. Para derrotar esse medo devemos
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