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Lugar Comum

Estudos de mídia, cultura e


democracia

Número 49
set 2016 - mai 2017
2

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia


é uma publicação vinculada a professores e pesquisadores do Laboratório Território
e Comunicação – LABTeC/UFRJ e à Rede Universidade Nômade.
Av. Pasteur, 250 – Campus da Praia Vermelha
Escola de Serviço Social, sala 33
22290-240 Rio de Janeiro, RJ

EQUIPE EDITORIAL
Alexandre do Nascimento, Alexandre Fabiano Mendes, Barbara Szaniecki,
Bruno Cava, Bruno Tarin, Clarissa Moreira, Clarissa Naback, Christian
Fitschgold, Fabricio Toledo, Giuseppe Cocco, Leonora Corsini, Luiz Felipe
Teves, Priscila Pedrosa Prisco, Renan Porto, Silvio Pedrosa e Talita Tibola.

CONSELHO EDITORIAL
Rio de Janeiro, Brasil: Adriano Pilatti, Eduardo Baker, Emerson Mehry, Gerardo Silva, Marcela
Werneck, Rodrigo Bertame, Sindia Santos e Vladimir Santafé.
Outras cidades, Brasil: Alessandra Giovanella – Santa Maria, Elias Maroso – Santa Maria,
Desirée Tibola – Porto Alegre, Homero Santiago – São Paulo, Márcio Taschetto – Passo Fundo,
Mariângela do Nascimento – Salvador, Murilo Duarte Corrêa – Curitiba, Marcio Pereira – São
Paulo, Silvio Munari – São Paulo, Marco Ribeiro – Porto Alegre, Peter Pal Pelbart – São Paulo,
Rita Veloso – Belo Horizonte, Rogelio Casado – Manaus, Joviano Mayer – Belo Horizonte,
Fabricio Ramos – Salvador, Sérgio Prado Pecci – São Paulo, Sandra Mara Ortegosa – São Paulo,
Salvador Schavelzon – São Paulo, Mario Joaquim Neto - Salvador.
Outros países: Anna Curcio – Itália, Antonio Negri – Itália, Ariel Pennisi – Argentina, Carlos
Restrepo – Colômbia, César Altamira – Argentina, Christian Marazzi – Suíça, Diego Sztulwark –
Argentina, Gigi Roggero – Itália, Javier Toret – Catalunha, Matteo Pasquinelli – Itália, Michael
Hardt – EUA, Michele Collin – França, Oscar Vega Camacho – Bolívia, Nicolás Muriano –
Argentina, Raúl Sánchez Cedillo – Espanha, Sandro Mezzadra – Itália, Santiago Arcos – Chile,
Alain Bertho – França, Ariel Pennisi – Argentina, Thierry Badouin – França, Veronica Gago –
Argentina, Yann Moulier Boutang – França.

Lugar Comum – Estudos de Mídia, Cultura e Democracia


Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e
Comunicação – LABTeC/ESS/UFRJ – Vol 1, n.º 1, (1997) – Rio de Janeiro:
UFRJ, n.º 49 – set 2016 - mai 2017

Quadrimestral
Irregular (2002/2007)

ISSN – 1415-8604
1. Meios de Comunicação – Brasil – Periódicos. 2. Política e Cultura –
Periódicos. I Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e
Comunicação. LABTeC/ESS.
CDD 302.23
306.2
3

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

SUMÁRIO

EDITORIAL

 O golpe que não houve 6


Giuseppe Cocco

UNIVERSIDADE NÔMADE

 1977: o ano do fim do futuro 22


Franco Berardi (Bifo) / Trad. Bruno Cava

 Constitucionalismo social e as políticas do comum 43


Gunther Teubner / Trad. Renan Porto e Luiz Felipe Teves

 –
61
João Santos

 A travessia de Eder Sader: da grande tarefa aos pedaços de experiência 83


Alexandre F. Mendes

MAQUINAÇÕES

 O significante vazio e a política hoje 104


Roberto Andrés

 Interpretar as manifestações de junho de 2013? 121


José Antonio Rego Magalhães

 Renda Universal: Para nutrir a vida fora da colmeia 138


Bruno Cava
4

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ARTE, MÍDIA E CULTURA

 Reflexões acerca da autoria no design: notas sobre o nascimento do autor e


as origens do direito autoral 150
Carolina Noury Azevedo e Jorge Lucio de Campos

 O estar-junto como processo comunicacional: A produção de vínculo a


“L 8!” B é 167
Luciana Gouvêa

NAVEGAÇÕES

 Sete teses sobre direitos humanos e a ideia de humanidade (V-VII) 186


Costas Douzinas / Trad. Daniel Carneiro Leão Romaguera , Antonio Henrique
Pires dos Santos Fernanda Frizzo Bragato e Manoel Carlos Uchôa de Oliveira

 Por uma nova compreensão de cidade: o poder comum de agir e as histórias


de vida de Mangueira 203
Lúcia Ozório

 O comum, um ensaio sobre a revolução do século 21 217


Christian Laval e Pierre Dardot / Trad. Renan Porto

RESENHA

 O que são os nossos amigos? 228


do livro “Aos nossos amigos” (Comitê Invisível, 2016)
Gigi Roggero
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Editorial
6

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O golpe que não houve1

Giuseppe Cocco2

Tradutora: Clarissa Moreira

Comecemos pelo fim. Não houve golpe de Estado no Brasil, mas uma glasnost
que conduziu à implosão do consórcio político que governava e governa o país: um
cartel mafioso de grandes empresas privadas e estatais, compostas por algumas dezenas
de patrões públicos e privados. Evidentemente, a corrupção sistêmica não é uma
novidade e certamente não foi inventada pelo PT. Lula, o PT e uma série de intelectuais
brasileiros (ou não) utilizam como defesa esse truísmo e se escondem atrás de duas
afirmações: o combate à corrupção seria seletivo e o justicialismo não será o terreno da
transformação social. São duas afirmações falsas. As investigações judiciárias contra a
corrupção estão tocando todo o sistema político e na realidade não poupam os partidos
de direita: nem os grandes aliados do PT nem os grandes partidos de oposição. O peso
relativo do PT, de Lula e Dilma, nos inquéritos, é, no entanto, proporcional a dois fatos
simples: primeiramente, os juízes não caem no esquema de marketing do PT que se
transforma em vítima do sistema como se não estivesse no poder federal por treze anos
seguidos; e, em seguida, Lula e Dilma desempenharam um papel fundamental na
amplificação e modernização da tradicional corrupção oligárquica. A corrupção de que
se fala não é apenas uma velha venalidade da política, mas um verdadeiro regime de
acumulação e de exploração de novo tipo, dirigido por um consórcio de interesses onde
o PT é o principal organizador.
É este consórcio de interesses que está hoje em crise e implodindo. Esta
implosão tem duas causas: o levante constituinte de 2013 [1] e a violenta crise
econômica. Assistimos assim à triste decadência de um dos experimentos reais mais
interessantes da esquerda mundial. O Partido dos Trabalhadores (PT), com seu líder

1
Originalmente publicado em francês na Revista Multitudes n.º 64, em outubro de 2016. Republicado no
Brasil, traduzido por Clarissa Moreira, no site da Universidade Nômade e no IHU online.
2
Graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova,
mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História
Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne), doutor em História Social pela Université de Paris
I (Panthéon-Sorbonne), Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, editor das
revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes e coordenador da coleção A Política no Império
(Civilização Brasileira).
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(Lula), nasceu como uma espécie de partido em rede pós-socialista e paradoxalmente


termina seu ciclo na mesma mistura de corrupção, burocracia e catástrofe econômica e
social que o «socialismo real» nos deu a conhecer. O PT parecia representar uma saída
para o socialismo e terminou como uma versão tropical da mesma mistura de novas e
velhas formas de corrupção visando a continuidade do mesmo bloco de poder.

Estado de Calamidade Pública: de 17 de junho de 2013 a 17 de junho de 2016

Em 17 de junho de 2016, o governo do Estado do Rio de Janeiro (aliado do PT


desde junho de 2006) decretou formalmente «Estado de Calamidade Pública». O
objetivo do decreto era o de viabilizar a utilização dos poucos recursos financeiros
disponíveis (e o dinheiro prometido pelo governo federal) para assegurar a finalização
das obras e a realização das Olimpíadas no Rio de Janeiro. Os recursos mobilizados
foram, sobretudo para pagar os policiais durante os jogos. De fato, desde o final de
2015, o Estado do Rio de Janeiro não paga seus fornecedores, paga em atraso de até um
mês seus funcionários, fecha hospitais (inclusive o Instituto Médico Legal) e não
termina obras.
Exatamente três anos antes, em 17 de junho de 2013, centenas de milhares de
pessoas manifestavam no Rio de Janeiro não apenas contra o aumento das tarifas de
transporte público, mas também contra mais um aprofundamento do modelo de cidade
desigual, dessa vez por uma representação política onde a tradicional corrupção aparecia
ainda mais insuportável devido ao consenso autoritário que reunia todas as forças
políticas (do PT ao PMDB) e todas as esferas institucionais (Munícipio, Estado e União
federal). Ao final da manifestação, uns enxames de dezenas de milhares de jovens
tomavam de assalto a Assembleia Legislativa, ou seja, o templo do acoplamento carnal
e mafioso entre os cartéis de empresas de transporte e de obras públicas e os
representantes eleitos do sistema político.
Para compreender o que se passa no Brasil se deve, portanto, ter muito bem em
mente estas duas datas e o que as separa: de uma parte, um movimento destituinte que
acenava para a constituição de uma real democracia, movimento este sem precedente na
história brasileira, e de outra parte, a confirmação de um sistema institucional que
perdeu sua legitimidade e uma boa parte de sua efetividade (notadamente no plano
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econômico). Entre estas duas datas, temos o conflito político de grandes proporções que
conduziu ao Impeachment da Presidente da República. Entre estas mesmas datas, fomos
brindados com o festival de mentiras e mistificações lançados e replicados pelo PT e
apoiadores durante as eleições de outubro de 2014.

Ceci n’est pas un coup d’État (Isto não é um golpe de Estado)

Não houve golpe de Estado no Brasil, de nenhuma espécie, nem mesmo


parlamentar. Por um lado, o Impeachment é não somente previsto pela Constituição
Democrática ( de 1988), como já foi utilizado com o apoio entusiasta do PT [2], contra
Fernando Collor de Mello (eleito em 1989 e destituído em 1992). Por outro lado, todo o
processo se realizou segundo as regras e sob a supervisão dos juízes do Supremo
Tribunal Federal (a Corte Suprema Brasileira) onde oito dos onze membros foram
nomeados por Lula ou Dilma. Dizer que não é um golpe de Estado não significa dizer
que o que ocorre no Brasil é aceitável ou normal. Ao contrário, atravessamos uma crise
muito grave, mas seus determinantes e seus resultados não são aqueles que o PT, o
governo e a esquerda brasileira apresentaram e que a esquerda internacional quis
corroborar.
Nos encontramos no capítulo seguinte ao processo que se iniciou de maneira
autônoma com o grande levante de 2013, e que ganhou um novo sentido no início de
2014 com a abertura da investigação judicial da Lava Jato, sobre a corrupção na
gigantesca estatal Petrobrás, tornando-se então uma crise profunda – e irreversível –
exatamente no momento da reeleição de Dilma. O processo de destituição de Dilma não
passa de mais um episódio na luta pela sobrevivência do sistema de representação
política em estado terminal, em virtude dos desdobramentos cruzados do fiasco de
imensas repercussões da política econômica conduzida por Dilma somado aos
resultados devastadores das operações judiciárias contra a corrupção. Dilma não foi
objeto de um processo de Impeachment por ter feito algumas reformas um pouco mais
radicais do ponto de vista social, mas porque ela já não conseguia governar nem tomar
iniciativas diante da catástrofe econômica e sobretudo, não conseguiu enfrentar a onda
crescente de deslegitimização provocada pela Operação Lava Jato.
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Dois pontos de inflexão explicam a abertura do processo contra Dilma. O


primeiro foi em novembro de 2015: a detenção de Delcídio do Amaral, líder do governo
no Senado e o segundo foi a detenção de Lula para interrogatório (4 de março de 2016).
A prisão do senador significou o desabamento de todas as tentativas por parte de Dilma
e de seu partido, de convencer os dirigentes da Petrobrás e dos grandes grupos ligados
ao setor da construção civil, a não colaborar com a justiça. Isto teve como consequência
imediata a ruptura da negociação entre o poder executivo e o presidente do Congresso,
Eduardo Cunha. Este último queria se assegurar de não perder sua posição de deputado
(e logo, a imunidade parlamentar) e se proteger da prisão em troca de não dar
continuidade às inúmeras demandas de Impeachment contra Dilma. Uma vez que o
governo Dilma não estava mais podendo assegurar esta proteção, Cunha escolheu o
afrontamento para, por um lado, ganhar tempo (guardar ao máximo a imunidade
parlamentar) e de outra parte, apostar na possibilidade de se tornar uma peça necessária
e legítima nas grandes manifestações de massa para a destituição de Dilma [3] (que se
repetiram desde o dia seguinte de sua eleição, ao longo de um ano e meio). A segunda
inflexão veio das consequências da condução coercitiva de Lula pela polícia Federal
para interrogatório. Enquanto Dilma tentava nomeá-lo ministro da Casa Civil para lhe
oferecer imunidade parlamentar, o ex-presidente – chamando manifestações de massa
em sua defesa – visitava Cunha e o Presidente do Senado (do mesmo partido de Temer e
Cunha, incluídos em oito inquéritos de corrupção). Após uma longa reunião onde
participaram também o ex-presidente José Sarney e o ex-Ministro das Minas e Energia
(também PMDB), Lula aparecia com esta pequena trupe na tribuna do Senado Federal,
com um exemplar da Constituição nas mãos para fazer duras declarações contra a
ditadura dos juízes. É a partir deste momento que, sob a liderança do vice-presidente, o
movimento institucional pela destituição de Dilma se amplia e acelera, a partir de dois
imperativos: retomar o controle de uma economia em queda livre e bloquear o processo
judicial contra a corrupção. O que dissemos antes em termos políticos foi formalmente
confirmado pela glasnost promovida pelos investigadores da Lava Jato. Em gravações
feitas – publicadas pela imprensa no final de maio 2016 – um ex-senador e presidente
de uma grande empresa estatal (Sergio Machado, que é um colaborador da justiça), os
principais patrocinadores do PMDB (o presidente do Senado, Renan Calheiros), o
Ministro do Plano de Temer (Romero Jucá) além do ex-presidente de tudo (do PMDB,
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do Senado, da República, etc.) José Sarney, explicitaram que o futuro governo interino
de Temer teria dois propósitos: enfrentar a grave crise econômica e bloquear a operação
Lava Jato a fim de proteger eficazmente o sistema político, inclusive Lula.
É claro que o chamado “golpe” de Estado é uma operação interna ao “golpe”
que foi dado durante a reeleição (outubro de 2014). Estas escutas telefônicas fazem cair
por terra o discurso do PT sobre a seletividade dos juízes. O PT não é de modo algum o
único partido visado, mas pode ser o alvo principal por ter sido o partido no poder. Os
quatro principais líderes do partido “golpista” (PMDB) figuram no âmbito de um
mandado de prisão (suspenso por um juiz do Supremo Tribunal) e a Lava Jato também
visa o presidente interino [4]. Portanto, temos um “golpe” engraçado: os seus principais
atores estão sob a ameaça do estado e recebem solidariedade… de quem recebeu o
golpe (o PT e seus senadores que criticaram os mandatos de prisão).
Estamos novamente na produção sistemática de enganos e ficções por parte da
esquerda de governo e isto merece uma boa reflexão. Por um lado, este regime
discursivo é aceito e amplificado pela esquerda intelectual global (ao mesmo tempo em
que não se diz nada sobre o que está acontecendo na Venezuela chavista, que carece de
tudo e onde a população passa fome); em segundo lugar, faz-nos pensar sobre a
capacidade e determinação que a “esquerda” (especialmente a esquerda no poder) tem
de manipular os dados subjetivos da luta objetiva e subjetiva. A “esquerda”, por um
lado, perde o contato com a realidade material do que está acontecendo e, por outro
lado, não só ignora a realidade, mas deturpa dados em função de suas necessidades e
estratégias.

“N F ”

Tudo o que está acontecendo é, de forma piorada, o que já havíamos previsto


desde antes de Outubro e Novembro de 2014[5]. No entanto, previsões dissonantes
caíam no ostracismo geral da esquerda brasileira e mundial. Se a esquerda governista
estimulou cinicamente que se mistificasse o debate, se aproveitando disso, a “esquerda
radical” precisa cultivar seus mitos e, para este fim, moldar a realidade segundo suas
fantasias, passou a definir como «delírio» quando não, estupidez, qualquer coisa que
não se dobrasse a esta deriva geral, mesmo se isso significasse jogar fora multidões nas
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ruas, e – desnecessário será dizer – sua própria autonomia. Neste caso, a doxa da
esquerda é usada para manter a ilusão de que os “governos progressistas” da América do
Sul não só teriam sido realmente um laboratório e uma maneira de sair do
neoliberalismo, – ou a única- mas que eles continuam em bom estado de saúde. Neste
quadro, “(…) o triunfo das forças que estão no governo (o PT no Brasil, o MAS na
Bolívia e no Uruguai o FA) permite afirmar a persistência do ciclo progressista“[6] e
novamente: “Esta ratificação prolongada no tempo afirma a derrota de tentativas
neoliberais territoriais-regionais das elites, de retomar o controle político direto e de
alguma forma, ainda mantém abertas as expectativas de uma dinâmica regional de
maturação não diretamente subordinada à hegemonia ocidental neoliberal “. Esta
análise, comprovadamente equivocada (a vitória eleitoral de Dilma foi uma grande
derrota política e o início de uma reversão eleitoral geral que também aconteceu na
Venezuela, Argentina e na Bolívia), não estava relacionada aos desafios reais, mas aos
requisitos de uma posição de “esquerda”, que é definida pela primeira vez como luta
contra o neoliberalismo (entre mercado e estado, melhor optar pelo último, ainda que
este tenha estruturas reconhecidamente mafiosas) e também como antiocidental (entre
China e os Estados Unidos, a China é melhor, mesmo que sufoque as lutas de classes).
O que é ainda mais grave é que a projeção idealista (uma esquerda que seria
estatal e anti-imperialista) é totalmente mistificada: governos progressistas em geral e
em particular o Governo do PT (Dilma), não são de modo algum antineoliberais e muito
menos antiocidentais. O neodesenvolvimentismo de Dilma é absolutamente interno ao
pacto neoliberal e é por isso que Lula passou tranquilamente de uma política à outra. Os
“líderes” do PT estão preocupados com as taxas de crescimento e nada mais. Se as
fortes doses de neodesenvolvimentismo não funcionam (na verdade, elas foram
catastróficas) aumentam-se as doses de neoliberalismo, como fizeram entre 2003 e 2008
e, em 2014 e 2015. Não é coincidência que o todo-poderoso Ministro da economia de
Temer era o homem forte da economia de Lula, durante oito anos. A política econômica
do presidente interino é exatamente a mesma que Dilma estava tentando fazer e não
conseguia, por causa da paralisia de sua base parlamentar. A defesa do PT e de Dilma é
mesmo a defesa da “esquerda” como identidade vazia e abstrata (um caso real dos
significantes vazios, à la Laclau): é mais importante se sentir bem como “esquerda” do
que entender, em primeiro lugar, as dimensões de sua derrota esmagadora e por outro
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lado, perceber o nível de isolamento social da esquerda como um todo. Dilma tinha
apenas 8% de aceitação e milhões vão às ruas pedir seu Impeachment? Este é o
resultado da campanha dos meios de comunicação conservadores e aqueles que
manifestam… são a elite branca. Está tudo explicado! Aqueles que não aceitam essa
lógica autoritária são pessoas isoladas, possivelmente loucas ou irresponsáveis, com
alianças estranhas… quando não estão diretamente ligados ao inimigo. A corrupção
sistêmica da política se mostra como corrupção da subjetividade.
Quem seria o inimigo de um governo e um partido que governou com e pelo
dinheiro dos grandes grupos de construção saídos da ditadura militar? Na verdade, a
esquerda não precisa ser stalinista para trabalhar como… uma Polícia: a verdade da
repartição pública (de esquerda) se afirma como superior à verdade da democracia.

O dispositivo bipolar do consenso de esquerda

Esta é uma boa oportunidade para ver como a doxa da esquerda funciona e para
pensar a situação que deviam viver os dissidentes do bloco soviético – antes – e da
China maoísta – depois. Eles foram perseguidos por criticar um regime que não só não
deixava nenhum espaço para a democracia, mas que se aliava às forças da direita interna
(a burocracia estatal, tecnocratas que controlavam simultaneamente os aparelhos
produtivos e repressivos) e externa (a aliança de Stálin com Hitler, a diplomacia secreta
da China com a administração Nixon), ao passo em que enquadravam os “dissidentes”
como “agentes da direita”. E a esquerda internacional, de forma mais ou menos
entusiasmada, conforme o caso, participava desse consenso.
Leiamos Simone de Beauvoir e seu “Ensaio sobre a China”, 484 páginas escritas
a partir de uma visita organizada pelo regime em 1955 (e publicado em 1957) [7].
Beauvoir não se deixa enganar, mas ela concorda em jogar o jogo: “Os anticomunistas
sorrirão de seus escrúpulos: o governo se permite dispensar a verdade quando
conveniente. De fato. Mas esquecemos também que até o presente quase todos os
chineses foram completamente afastados da vida política. Sofriam o seu destino na
passividade e na ignorância. Um conhecimento ‘dirigido’ representa um imenso
progresso face à essa escuridão… e até mesmo por si só é capaz de dissipá-la “[8]
(grifo nosso). Assim, vejamos o dispositivo: o anticomunismo explica e, especialmente,
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justifica tudo. A informação dirigida é um avanço e serve a que propósito? “A situação


na China é absolutamente incomparável com a da Hungria ou a da Polônia. Longe de
sacrificar a massa chinesa a um princípio abstrato ou a um futuro mítico, como
alegado pelos anticomunistas, o regime, promovendo a indústria pesada, serve aos
interesses distantes e imediatos de toda a população. “[9] Esta é certamente uma defesa
de boa-fé, com a convicção de que sem indústria pesada, a China estaria condenada a
ser um vassalo da URSS e “recairia no atraso infernal da superpopulação e da fome.”
[10] Mas, a boa-fé funciona como um mecanismo moral de polarização: não apoiar a
industrialização forçada, se atrever a criticá-la, significaria alinhar-se aos
anticomunistas ou ser um anticomunista. O fato é que o “grande salto” em direção da
indústria pesada – apenas dois anos após o lançamento do livro de Beauvoir, se
transforma em pesadelo: “Em 1959, 1960 e 1961 (a China atravessa) a maior fome não
só da história chinesa, mas de toda a história». [11]
Ao contrário do que dizia Beauvoir, Jean-François Billeter recorda que nenhuma
fome havia atingido todo o país como naquele caso. Aqui é importante ressaltar que o
mecanismo do desastre não é apenas a escolha do tipo de planificação (indústria pesada
e a proliferação de pequenos altos-fornos na casa de todos os camponeses), mas a
organização de um consenso forçado, ou seja, a “mentira generalizada” [12]. É onde
reside o problema: o apoio à industrialização pesada pode ser um engano, mas justificar
a manipulação da informação em nome da luta contra o anticomunismo, não é. Criticar,
exercer o seu direito de fuga, é ser anticomunista. Mata-se dois coelhos com uma
cajadada só: o princípio da democracia radical vai para o lixo e a mistificação da
realidade torna-se o método de comunicação de massa escolhido. Como morreram
dezenas de milhões de pessoas na China maoísta? “Elas não morreram de cansaço ou
de doença, como é geralmente o caso nas épocas de fome, mas apenas de fome e em
silêncio, enquadradas por um regime que permaneceu senhor da situação. [13]” Em
1974, depois de quase vinte anos, Roland Barthes – durante a viagem da equipe da
Revista parisiense Tel Quel à China – teve que se limitar a confiar suas críticas ao seu
diário de viagem, num estilo blasé entediado: “Discurso mortal, comparação passado /
presente. Eu olho para o meu copo de chá: as folhas verdes se abriram e formam uma
camada no fundo do copo . Mas o chá é muito leve, insípido, mal chega a um chá de
ervas, é água quente “. O que o regime divulga é água quente, mas a informação é
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muito mais controlada do que o preparo do chá: “O fato incontestável, o bloqueio


completo das informações, todas as informações, do sexo à política. O mais
surpreendente é que esse bloqueio seja bem sucedido, isto é, que ninguém,
independentemente da duração e das condições da sua estada, não tenha conseguido
forçar nenhuma brecha em qualquer ponto que seja“[14].
A esquerda, tanto nas suas experiências realmente existentes (URSS, China,
Cuba, Venezuela e, em termos muito paradoxais, o PT no Brasil) e nas suas redes
intelectuais, simultaneamente elimina o conflito (toda crítica é ” anticomunista” ou
“narrativa fantasiosa” que a polícia do pensamento atribuirá a um “desvio” qualquer) e,
portanto, a verdade. Encontramo-nos exatamente na mesma situação mencionada por
Maurice Merleau-Ponty sobre a URSS e a desestalinização e mais amplamente, a
política paranoica [15]. Muito antes do Relatório de Khrushchev, ele escreveu, “ficou
estabelecido que os cidadãos soviéticos podem ser deportados no decurso de um
inquérito, sem julgamento e sem limite de tempo (…) É provável (…) que (…) o número
total de detidos remonte à casa dos milhões: alguns dizem dez milhões, outros quinze“.
Merleau-Ponty tirou suas conclusões: “A menos que se seja um louco, admita-se que
esses fatos colocam inteiramente em questão o significado do sistema russo.”[16] O
autor escreveu isto em 1950 e já captava a armadilha que o movimento “comunista”
não apenas encontra, mas construía: “Se os nossos comunistas aceitam estes campos e a
opressão, é que eles esperam a sociedade sem classes através do milagre da infra-
estrutura.”
Se o PT de Dilma e Lula organizou os campos de trabalho das grandes barragens
e megaeventos esportivos, juntando-se carnalmente em corrupção com oligarquias
neoescravagista (grandes grupos de construção de ditadura e o PMDB de Temer, de
Sarney e Calheiros), é que ele acredita que o desenvolvimento é algo bom e necessário
e… paciência se é muito ruim para os índios ou ainda melhor, uma vez que estes serão
proletarizados e “nacionalizados” (e tanto melhor em relação aos subornos recebidos).
Em 1950, a crítica de Merleau-Ponty à URSS era profunda e não respeitava nenhuma
ortodoxia, mas ele sentia ainda a necessidade de proclamar um certo grau de fidelidade
à “ideia de comunismo”: “É mais urgente manter algumas ilhas onde se ama e pratica a
liberdade do que ir contra o comunismo” [17]. Mas é precisamente este mecanismo que
o “comunismo realmente existente” (inclusive sob forma de movimento intelectual)
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implementa contra a liberdade e, portanto, contra a verdade. Seis anos mais tarde (em
1956), antes da repressão soviética dos comunistas húngaros, Merleau-Ponty propõe
uma reflexão “sobre a desestalinização”. Em primeiro lugar, Merleau-Ponty ressalta que
mesmo “comunistas muito disciplinados (…) repudiaram solenemente o princípio de
que nunca se deva apelar ao exterior nas lutas entre comunistas“[18]. Simone de
Beauvoir, no mesmo período, mostra que era suficiente ir da URSS para a China para
dar novamente à “disciplina” perdida toda a sua rigidez. As inúmeras posições
intelectuais tomadas sobre o “golpe” no Brasil mostram que este mecanismo está ainda
ativo, mesmo se a pureza ideológica da década de 1950 já tenha se perdido. Merleau-
Ponty justamente disse que “a repressão de Budapeste (prova) que nenhum (dos)
princípios (do comunismo) sairá incólume, (e) que a desestalinização nada representa se
não significar uma reforma radical do “sistema” “[19]. De fato, não foi Stalin o
problema, mas o modo de funcionamento da “esquerda” em geral. Vejamos como
Merleau-Ponty prossegue, incluindo o uso do Relatório Khruschev no XX Congresso do
PCUS: “O custo real da produção não está relacionado com o custo previsto e a
produtividade não é dirigida. Tudo isso, no final das contas, deve aparecer em algum
lugar: chega um momento onde os disparates entre a vontade e os resultados são
óbvios. Assim, a pressão dos fatos é tão forte que o sistema renuncia a fazer contas
“[20]. Isto é exatamente o que aconteceu, em diferentes graus, na Venezuela do
“socialismo do século XXI” (onde agora a população carece de produtos básicos),
Argentina (onde as estatísticas sobre a inflação, a dívida, a pobreza e a desigualdade
eram embelezadas) e Brasil: Dilma foi reeleita em nome de uma saúde econômica
inventada, em um país literalmente falido: perda de 10% do PIB per capita, menos 20%
de produção industrial, inflação de mais de 10%, a dívida pública duplicou em um ano
no Rio, onde tivemos os Jogos Olímpicos em agosto de 2016, o estado não paga
regularmente os seus funcionários durante meses (nem mesmo a polícia ), as dívidas
não são pagas, a Petrobras está praticamente falida, assim como a Eletrobras, o maior
grupo de telefonia entrou com pedido de falência, quatro refinarias em fase de
conclusão nunca serão usadas etc. No Marketing de esquerda, tudo é explicado pelos
complô do imperialismo, da mídia e da “direita”, como se eles não estivessem ligados
carnalmente: “Um regime que quer fazer mas que nada quer saber– continua Merleau-
Ponty – trata o fracasso como sabotagem e a discussão como traição “[21]. Referências
16

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mudam, mas o mecanismo é o mesmo. Ironicamente, é precisamente na maquiagem das


contas que ocorre o acerto de contas no Brasil (impeachment), porque o PT não detém –
como o chavismo na Venezuela – o monopólio do poder e seus aliados “conservadores”
tem uma relação diferente com a contabilidade: paradoxalmente, a competição
intercapitalista precisa de uma parte de verdade sobre a verdade da exploração.
O que o XX Congresso do PCUS, portanto, tentava fazer era “a denúncia de uma
vida fictícia e verbal, a crítica do nominalismo e fetichismo.”
No entanto, na sua análise, Merleau-Ponty é lapidar não tanto sobre o stalinismo,
mas sobre a tentativa de salvá-lo que se percebe na desestalinização e é exatamente de
lá que se deve recomeçar: “é pedido à ditadura de se desafiar sem ser deixar eliminar, e
ao proletariado de se libertar sem rejeitar o controle da ditadura. É difícil, quase
impossível. O mundo tem a escolha desse caminho ou o caos. É em formas sociais
ainda a criar que uma solução deve ser procurada “[22]. Mas a esquerda no poder, é ,
ontem e hoje, na França de Hollande e no Brasil de Lula e do PT, repressão,
desqualificação e mistificação das lutas que tentam inventar novas formas sociais. É por
isso que o levante de junho de 2013 era insuportável para o PT e seus intelectuais,
porque trazia algo novo.
Como não pensar em Vasily Grossman, o grande escritor soviético que escreveu
as crônicas mais lidas narrando as batalhas realizadas pelo Exército Vermelho em
Stalingrado, que teve toda a sua família exterminada pelos nazistas e que, uma vez
tendo chegado em Berlim junto ao Exército Vermelho, se maravilhou em seu diário: “o
comandante (general Berzari) teve uma conversa com o Burgermeister (Prefeito), que
lhe pergunta o quanto será pago às pessoas mobilizadas para trabalhar para fins
militares” e destacou: “na verdade, as pessoas aqui parecem ter uma ideia muito precisa
dos seus direitos“[23] (grifo nosso). O cidadão soviético está surpreso que na capital em
ruínas da Alemanha nazista, as pessoas estão preocupadas com os seus direitos e ousam
reivindicá-los face ao ocupante: é que, paradoxalmente, o regime que emergiu da
Revolução se transformou em seu oposto, eliminando o que Marx tinha retomado de
Maquiavel, “a idéia de que a história é uma luta e que a política é uma relação com os
homens, em vez de com os princípios.” [24]

A falta de alternativas
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Pode-se replicar que não se trata disso, que o Brasil de 2016 não é a União
Soviética, e menos ainda a China maoísta de 1950. É verdade, a história se repete,
primeiro como tragédia, depois como farsa. E não estamos apenas na segunda repetição.
O que a esquerda é capaz de reproduzir é mesmo este mecanismo, entre um estado de
emergência e a mistificação de um golpe inexistente para impor seu oportunismo e
esmagar toda crítica. Não se deve ver diferença entre a opção abertamente neoliberal de
Hollande e os gritos contra o “golpe” do Brasil de Lula. Estes são os dois lados de uma
mesma esquerda a que temos realmente que dizer adeus: “O próprio do stalinismo ou
oportunismo de esquerda, diz Hervé, é fazer uma política de colaboração e manter uma
ideologia intransigente. O acordo estrondoso, a paz vociferada, a mistura de concessão
política e abuso verbal, são a própria definição do stalinismo. “[25]
Um dos mecanismos perversos do consenso de “esquerda” opera na base da
afirmação “não há alternativa”. No entanto, a falta de alternativa não é um dado natural,
muito menos o fruto dessa implosão do pacto mafioso ao qual o PT tenha aderido, mas
o produto de uma estratégia deliberada de destruir qualquer alternativa possível. Assim,
o movimento de junho 2013 foi destruído. É sempre de acordo com a mesma lógica que
a candidatura de Marina foi impedida primeiro e depois esfacelada. Da mesma forma, o
falso discurso sobre “o golpe” inexistente continua a produzir esta “falta” de alternativas
e de falsificar o debate. Não haverá alternativa enquanto permanecemos no terreno
imposto por essa esquerda. O que precisamos é voltar ao homem revoltado, ao meio-
dia do pensamento, onde a revolta nega a divindade para compartilhar as lutas e o
destino comum [26]. É bem isso que Claude Lefort vê em Arquipélago Gulag, quando
ele aponta como Solzhenitsyn , após as críticas que fez à revolução, se inflama na
“descrição das grandes revoltas dos condenados” que lhe “inspiram páginas que estão
entre as mais belas da literatura revolucionária”[27]: a revelação da “(…) revolta dos
zeks (Zek, diminutivo da palavra russa zaklioutchennyi, significando preso), e de uma
maneira geral, a sua nova resistência, através do qual eles afirmam-se como políticos,
retomam a palavra e começam a recuperar a sua dignidade de homens. “[28] O que o
condenado do sistema repressivo infame resultante da revolução acaba pensando como
uma alternativa … é exatamente a revolução ou parafraseando Camus, o homem
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

revoltado. É na exclamação de Solzhenitsyn que as alternativas repousam: “Ó força dos


movimentos populares. Como você modifica rapidamente os dados de política. “[29]

Notas

[1] Cf. Multitudes, Majeure 56 – “Devenir-Brésil post-Lula”, Paris, 2014,


http://www.multitudes.net/category/l-edition-papier-en-ligne/56-multitudes-56/

[2] Durante os dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) o PT tentou


o seu Impeachment várias vezes.

[3] Giuseppe Cocco, “Le mouvement d’indignation au Brésil face à l’austérité


néolibérale de Lula et Dilma, Multitudes, n.59, disponível em
http://www.multitudes.net/le-mouvement-dindignation-au-bresil-face-a-lausterite-
neoliberale-de-lula-et-dilma/

[4] Matheus Leitão, “Deleção de Sergio Machado atinge Temer”, O Globo, 16 juin
2016.

http://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/delacao-de-sergio-machado-
atinge-temer-governo-quer-congelar-gastos-jornais-de-quinta-22.html

[5] Barbara Szaniecki e Giuseppe Cocco, “Maledetto sia giugno: il Brasile un anno
dopo”. http://www.commonware.org/index.php/cartografia/479-maledetto-sia-giugno.
Giuseppe Cocco, “Dilma e Aécio são o Estado contra a sociedade”, Entrevista por
Patricia Fachin, IHU-Online http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/536610-dilma-e-
aecio-duas-faces-de-um-mesmo-esgotamento-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco-

[6] Sandro Mezzadra y Diego Sztulwark, “Imágenes del desarrollo, ciclo político y
nuevo conflicto social”, 3 novembre 2014.
http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2014/11/anatomia-politica-de-la-
coyuntura.html

[7] La longue marche, Gallimard, Paris, 1957

[8] Ibid., p. 240.

[9] Ibid., p. 161.

[10] Ibid.

[11] Jean François Billeter, La Chine trois fois muette, Allia, Paris, 2000, p. 48.
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Billeter fala de trinta a quarenta milhões de mortos, de acordo com diferentes fontes.
Slavoy Zizek cita a biografia de Mao para falar cerca de 38 milhões de mortos no
mesmo período (início de 1958), devido, também às exportações de trigo para a URSS
em troca de tecnologia nuclear e de armamento.

“Introduction” à Mao, “On practice and contradiction“, Verso, London, 2007, p. 10.

[12] Billeter, ibid., p. 47.

[13] Ibid., p. 48.

[14] “Le supplice chinois de Roland Barthes”


http://www.pileface.com/sollers/spip.php?article811

[15] “L’homme et l’adversité”, Rencontres Internationales de Genève, 1951, Signes


(1960), Gallimard, Paris, p. 405.

[16] “L’U.R.S.S. et les camps”, 1950, Signes, cit., pp. 424-5.

[17] Ibid. p. 438.

[18] “Sur la déstalinisation”, 1956, publié dans Signes, cit. p. 472.

[19] Ibid., p. 474.

[20] Ibid., p. 476.

[21] Ibid., p. 480.

[22] Ibid., p. 488.

[23] Antony Beevor & Luba Vinogradova, Un escritor en guerra. Vasili Grossman en el
Ejercito Rojo, 1941-1944, Traduction de l’anglais à l’espanhol de Juanmari Madariaga,
Crítica, Barcelona, 2012, p. 410.

[24] Maurice Merleau-Ponty, “Note sur Machiavel”, Communication au Congrès


Umanesimo e scienza politica, Rome-Florence, septembre 1949, publié dans Signes,
cit., p.357.

[25] Merleau-Ponty, Cit. , p. 491

[26] Albert Camus, L’homme révolté, Gallimard-Fólios, Paris, 1951, p.381.

[27] Claude Lefort, “Sur L’archipel goulag” (1978), Encyclopédie Universalis


(supplément), dans Le temps présent. Écrits 1945-2005, Belin, Paris, 2007,p. 371.

[28] Ibid., p. 372.


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[29] Apud Lefort, ibid., p. 373.


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Universidade Nômade
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1977: o ano do fim do futuro

1977: the year of the end of the future

Franco Berardi (Bifo)1

Tradução: Bruno Cava

Resumo
O artigo parte da análise da situação política da Itália no ano de 1977 e, em particular,
de uma ruptura ali produzida entre as lutas operárias do período industrial e um tipo
novo de lutas, inspiradas na cultura e na comunicação. Na realidade, a ruptura vinha se
dando em muitos outros países da Europa aos Estados Unidos, se estendendo à Rússia e
à China. E ela pode em parte ser explicada por transformações nos próprios modos de
produção na passagem ao pós-industrial. “É hora, é hora, trabalha só uma hora”
gritavam os autonomistas enquanto sindicatos e partidos de esquerda insistiam com seu
“é hora, é hora, poder a quem trabalha” e, por meio do “compromisso histórico”
iniciavam a repressão contra os primeiros. Politicamente, o movimento perdeu mas
filosoficamente propulsionou o pensamento pós-estruturalista e, em particular, o de
Foucault, Deleuze e Guattari. Seja na política quanto no pensamento, a comunicação
teve papel central naquele momento. E continua tendo. Controlada, ela segue tecendo
um cenário de “no future”.

Palavras-chave
Movimento de 1977; pós-industrial; pós-operário; pós-estruturalista; comunicação; no
future

Abstract
The article starts with the analysis of the political situation in Italy in 1977 and, in
particular, of a rupture produced there between the wprkers’ struggles of the industrial
period and a new type of struggle inspired by culture and communication. In fact, the

1
Franco Berardi, o Bifo, é escritor, filósofo e agitador cultural italiano, autor de vários livros sobre a
relação entre movimentos de luta e tecnologias de comunicação, participou da fundação da Rádio Alice
em 1976 e, no auge do Movimento de ’77 na Itália, foi uma das principais referências da dita “ala
criativa” dos protestos.
23

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

rupture was occurring in many other countries from Europe to the United States,
extending to Russia and China. And it can in part be explained by transformations in the
modes of production in the transition to the postindustrial. "It's time, it's time, work only
an hour," the autonomists shouted as unions and leftist parties insisted on its "it's time,
it's time, power for those who work”. Through the "historical commitment", the last
began repression against the first. Politically, the movement lost but philosophically
propelled the poststructuralist thought, and in particular that of Foucault, Deleuze, and
Guattari. Whether in politics or in thought, communication played a central role at that
time. And still play. Controlled, it continues to weave a scenario of "no future".

Key-words
Movement of 1977; Post-industrial; Post-worker; Post-structuralist; communication; No
future

Introdução

Quando se fala de 1977, vem à mente uma série de associações de ideias,


imagens, lembranças, conceitos e palavras que, às vezes, são incoerentes entre si.
Aquele foi o ano em que irrompeu um movimento de estudantes e jovens
operários, que se exprimiu de maneira muito intensa nas cidades de Bolonha e Roma, na
Itália. Em alguns ambientes, o ano de 1977 evoca um tempo ultrajante de violência, os
anos de chumbo, o medo nas ruas e nas escolas. Noutros ambientes, 1977 significa, ao
contrário, um tempo de criatividade, a expressão feliz de necessidades sociais e
culturais, auto-organização de massas e comunicação inovadora. Como podem conviver
essas duas visões, por vezes na mente das mesmas pessoas?
1977 foi um ponto de toque, ou melhor, de recorte, o ponto em que se
encontraram (ou talvez se separaram, o que dá no mesmo) duas épocas diferentes. Por
isso, foi o momento em que emergiram duas visões incompatíveis, duas percepções
dissonantes da realidade. Nesse ano, a história de um século atingiu a sua maturidade, o
século do capitalismo industrial e das lutas operárias, o século da responsabilidade
política e das grandes organizações de massa. Ali começa a se descortinar a época pós-
industrial, a revolução microeletrônica, o início da lógica de rede, a proliferação de
agentes de comunicação horizontal e, portanto, a dissolução da política organizada, a
crise dos estados-nação e dos partidos de massa.
Não devemos esquecer que 1977, além de ter sido o ano dos movimentos de
contestação criativa nas universidades e bairros italianos, também foi muitas outras
coisas, nem todas elas alinhadas na mesma direção e tampouco debaixo dos mesmos
24

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

signos. Aquele foi o ano do nascimento do pós-punk, o ano do jubileu da Rainha da


Inglaterra contestado pelo Sex Pistols, que puseram a capital britânica de pernas para o
ar por dias e dias, com música e barricadas e o grito que marcaria as próximas duas
décadas: “no future”. Mas foi também o ano em que, nas garagens do Vale do Silício,
garotos como Steve Wozniak e Steve Jobs, hippies libertários e psicodélicos,
conseguiram criar a interface user friendly [2], que em poucos anos proveria um acesso
cada vez mais abrangente e popular à informática e, mais tarde, à internet.
1977 foi também o ano em que Simon Nora e Alain Minc escreveram uma carta
informativa ao Presidente da França, Valery Giscard d´Estaing, intitulada
“L´informatisation de la société” [3], na qual são esboçadas as transformações sociais,
políticas e urbanísticas previstas para a época seguinte, como consequência da
introdução no trabalho e na comunicação das tecnologias digitais e da telemática (isto é,
da informática a distância, a conexão em rede dos computadores, a internet).
1977 também foi o ano em que foram processados os rebeldes da Gangue dos
Quatro: Chiang Ching, Wang Hung-Wen, Yao Wen-Yuan e Chiang Chung-Chao. Os
quatro ultramaoístas de Xangai foram levados presos a Pequim e ali condenados a penas
longuíssimas de reclusão, porque representavam, aos olhos do grupo dirigente denguista
[4], a utopia de uma sociedade igualitária, na qual as regras econômicas seriam anuladas
em favor de uma primazia absoluta da ideologia. A utopia comunista começa a sua
longa crise precisamente ali onde havia sido levada às suas consequências mais
extremas e sangrentas, ali onde a Revolução Cultural Proletária tinha desencadeado as
tendências mais radicais e intransigentes.
Mas é também o ano quando, em Praga e Varsóvia, se desencadeiam as
primeiras ações de dissidência operária em meio ao socialismo real. Os dissidentes
tchecoeslovacos, naquele ano, assinaram a conhecida Carta 77. Foi o ano também em
que Yuri Andropov (então diretor da KGB) escreveu uma carta ao cadáver ambulante
de Leonid Breznev (secretário-geral do PCUS e autoridade máxima da União
Soviética), em que diz que se a URSS não for capaz de recuperar-se com rapidez de seu
atraso no campo das tecnologias da informação, o socialismo vai afundar de vez.
Portanto, aquele ano de 1977 não pode ser compreendido apenas se olhando para
o álbum italiano, que vamos encontrar recheado das fotos de jovens de cabelo comprido
com a cara coberta por máscaras ou camisas tapando o rosto. E não se pode entendê-lo
25

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

se nos restringirmos a ouvir somente os slogans truculentos do período, em parte


ideológicos, em parte estranhamente surrealistas.
Em 1977, é virada a página do século 20, assim como, em 1870-71, nas ruas
ensanguentadas de Paris, a Comuna virou a página do século anterior e mostrou com
que luzes e sombras o próximo se anunciava no horizonte. Devemos tentar levar em
conta toda essa complexidade quando falamos do acontecimento italiano de 77, aquele
movimento autônomo e criativo, porque somente a partir dessa complexidade
poderemos entender o que aconteceu para além das crônicas das ruas, das
manifestações, dos enfrentamentos, dos coquetéis molotov, para além do debate sobre a
violência, para além da repressão brutal com que o estado e a esquerda arremeteram
contra o movimento até criminalizá-lo por inteiro e empurrá-lo em parte para os braços
do terrorismo brigadista.

A passagem ao pós-industrial

Para isso, em primeiro lugar, devemos nos fixar na mudança estrutural produtiva
que afetou as sociedades ocidentais a partir dos anos 70 e que vai se fazendo cada vez
mais profunda, rápida e estremecedora nas duas décadas seguintes. Trata-se de uma
transformação determinada pela difusão das tecnologias microeletrônicas (e depois, pela
digitalização), mas também pela crescente desafeição dos operários industriais pelo
trabalho de fábrica. “Desafeição” é uma palavra-chave para compreender a situação
social e a cultura ao redor do que se formou o movimento de 77. Desafeição ao trabalho
é a fórmula com que era definida (por parte do establishment jornalístico, patronal e
sindical) a tendência presente entre os operários, sobretudo os mais jovens, que se
realizava num conjunto de pequenas táticas de recusa: alegar falsamente doença, pedir
uma licença ou sistematicamente trabalhar pouco e mal.
Os empresários comentavam que a “desafeição” era a principal causa da queda
dos índices de produtividade. E de fato, assim eram as coisas.
“É hora, é hora, trabalha só uma hora” [5].
“Trabalho zero, salário inteiro/toda a produção à automação” [6].
Esses eram alguns dos slogans que os jovens operários autônomos mais
“extremistas” lançavam em meados dos anos 70 nas fábricas italianas, como na
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

automobilística da Fiat de Mirafiori, na Petroquímica de Porto Marghera ou na Siemens


de Milão. Tratava-se de slogans rudimentares, elementares, mas detrás deles se ocultava
uma mudança cultural e, também, uma reflexão política que nada tinha de simplória. O
significado daqueles slogans, daquela desafeição, era de fato, o do fim da ética do
trabalho e o correspondente fim da necessidade social do trabalho industrial. Eram os
anos em que a tecnologia começava a tornar possível uma substituição gradual do
trabalho operário. E eram os anos em que a recusa do trabalho abria o caminho para a
cultura juvenil e a teorização por grupos como Poder Operário e Luta Contínua, que
encontraram certo eco nas fábricas do norte da Itália, especialmente no biênio de 1969-
70.
O movimento de estudantes e jovens proletários que se alastrou em 1977, das
universidades aos círculos do proletariado juvenil e aos bairros, retomava os slogans e a
hipótese da recusa do trabalho e os convertia num elemento de separação profunda,
traumática, em relação à tradição política e cultural da esquerda.
A ética do trabalho, sobre o que havia sido fundada a experiência do movimento
operário tradicional, começava a desmoronar. Em primeiro lugar, na consciência dos
jovens operários desejosos de liberdade, ócio e cultura. A seguir, nas próprias
possibilidades tecnológicas propiciadas pela mudança do sistema produtivo. A redução
do tempo de trabalho necessário, graças à introdução de tecnologias automáticas, e o
processo de recusa do trabalho são convergentes e, em certo modo, interdependentes. A
partir dos anos 1960, os operários fabris tinham começado a mostrar uma crescente
insubordinação sindical, política e comportamental. O rechaço do trabalho alienado se
difundia ao passo que a classe operária de fábrica começava a conhecer formas de vida
mais ricas, na esteira da escolarização, da maior mobilidade, da difusão popular de uma
cultura crítica. Depois de 1968, a insubordinação operária se encontrou com o
movimento dos estudantes e do trabalho intelectual e os dois fenômenos se
amalgamaram, em alguns casos, de maneira quase deliberada.
A recusa do trabalho industrial, a reivindicação de espaços cada vez mais amplos
de liberdade e, portanto, de absenteísmo, insubordinação, sabotagem, luta política
organizada contra os patrões e contra os ritmos de trabalho, tudo isso marcou a história
social dos primeiros anos da década de 1960, até vir a explodir na forma de autênticas
insurreições pacíficas dos operários contra o trabalho industrial, como ocorreu na
27

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

primavera de 1973, quando os operários do automóvel se rebelaram em toda a Europa, a


partir da fábrica da Renault, da Opel de Russelsheim e de Colônia, até o complexo
automobilístico da Fiat Mirafiori em Turim, que durante alguns meses foi ocupada por
juveníssimos operários que, com seus cordões vermelhos ao redor do pescoço, uivavam
como índios pela fábrica. Os índios metropolitanos, essas hordas de contestadores
culturais que se disseminou pelo ano de 77 na universidade, surgiram nas fábricas da
Fiat, em meio à recusa da miséria assalariada e do embrutecimento provocado pelo
trabalho industrial. Porém, ao mesmo tempo, ia se desenvolvendo a procura por
procedimentos produtivos cada mais mais automatizados, com o uso integrado da
microeletrônica e sistemas flexíveis. Os operários queriam trabalhar menos, enquanto os
engenheiros investigavam tecnologias orientadas à redução do tempo de trabalho
necessário, à automação da produção. Entre o final dos anos 70 e começo dos 80, ambas
as tendências afinal se encontraram. Mas, lamentavelmente, se encontraram já sob o
signo da reação capitalista e da revanche antioperária, e não sob o signo do poder
operário e da auto-organização. O movimento operário não havia conseguido traduzir os
protestos em auto-organização do processo produtivo.
E então chegaram os anos da contraofensiva. Em vez de reduzir o tempo de
trabalho socialmente necessário e liberar o tempo de vida do trabalhador, o capital
conseguiu, nos anos de reestruturação e de afirmação do neoliberalismo, destruir a
organização operária, por meio da demissão daqueles que participavam das vanguardas.
Iniciava-se assim a operação de redução quantitativa e política da força operária.
Iniciava-se assim a contrarrevolução liberal. Porém, no próprio interior dessa passagem,
se situa o movimento de 77, que se apresentou conscientemente, declaradamente, como
um movimento contra o trabalho industrial.
“É hora, é hora, trabalha só uma hora”, gritavam os autônomos criativos para
responder ao slogan sindical: “É hora, é hora, poder a quem lavora [trabalha]” [7]
O movimento de 77 posicionou o não trabalho, a recusa do trabalho, justamente
no centro da dinâmica social e da inovação tecnológica. Apesar disso, não conseguiu
traduzi-lo numa ação política consciente e organizada. A inovação tecnológica trouxe
consigo uma gigantesca reestruturação ao longo dos anos 80 e 90. Mas essa
reestruturação teve um caráter antioperário, antissocial e pôs em marcha o processo de
devastação da sociedade, acelerado nos anos 90 e que segue acelerando até hoje. Por
28

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

que o movimento não foi capaz de traduzir a sua vocação social e as suas intuições
culturais numa ação política em longo prazo, para impulsionar a auto-organização da
sociedade e do processo produtivo? Essa é uma questão sobre o que precisamos nos
deter.
As razões pelas quais o movimento não foi capaz de traduzir a sua intuição
antilaboral num programa político factível foram duas. A primeira razão dessa
incapacidade, é preciso buscá-la no caráter intimamente contraditório do movimento, o
que deriva do fato dele enxergar a si próprio ao mesmo tempo como o último
movimento comunista do século 20 e como o primeiro movimento pós-industrial e,
portanto, pós-comunista. A segunda razão reside na repressão a que foi submetido: uma
repressão violenta e prolongada, cujas características devem ser analisadas com maior
profundidade.
Mas vejamos as coisas uma depois da outra.
Os estudantes e os jovens operários que se mobilizaram nos primeiros meses de
1977 já traziam na bagagem o acúmulo de vários anos organizando-se em mil formas
novas (centros do proletariado juvenil, rádios livres, comitês autônomos de fábrica ou
de bairro, coletivos autônomos nas escolas etc). Eles exprimiam comportamentos e
necessidades que já tinham pouco ou nada que ver com as necessidades e os
comportamentos do proletariado industrial tradicional. A reivindicação mais forte tinha
um cunho existencial. A qualidade de vida, a reivindicação de uma existência de
realização plena, a vontade de liberar o tempo e o corpo das amarras de ter de trabalhar
na indústria. Esses eram os temas fortes, as linhas ao longo do que se exprimiam e se
acumulavam a insubordinação e a autonomia. Apesar disso, a representação ideológica
predominante no interior do movimento era a que chegava, linearmente, dos
movimentos revolucionários do século 20, da história do comunismo da Terceira
Internacional. Ainda que o leninismo estivesse bastante sob questionamento naqueles
anos, a ideia predominante ainda era de um movimento revolucionário destinado a
derrubar a ordem burguesa e construir, de alguma maneira (bastante imprecisa, decerto),
uma sociedade comunista. Mas esse tipo de representação já não quadrava com a
realidade de movimentos que estavam concentrados na conquista de espaços e de
tempos, e que se manifestavam cada vez menos no plano político e cada vez mais no
existencial.
29

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

O modelo dialético (derrubar, abolir, instaurar um novo sistema) não


correspondia em absoluto à realidade de lutas, que funcionavam, ao contrário, de um
modo mais dinâmico, como conflito aberto e redefinição do próprio terreno do
enfrentamento. Por sua própria composição, essas lutas não podiam nem pretendiam
almejar uma espécie de ataque final contra o coração do estado, como numa revolução
destinada a derrubar de modo dialético a ordem. Consequentemente, a defasagem entre
representação ideológica e a realidade sociocultural desse setor a que aqui chamamos de
proletariado juvenil foi a causa principal de sua incapacidade em traduzir a ação
contestadora num processo de auto-organização social em longo prazo, para consolidar
a criação de laboratórios de experimentação política, cultural, tecnológica. Pois nos
perguntávamos: com que objetivos estamos nos mobilizando? Para uma revolução
comunista clássica, com a derrubada do estado e a tomada final do poder político?
Somente alguns acreditavam que algo assim pudesse fazer algum sentido, mas de fato
esse horizonte político não chegou a ser abandonado explicitamente. O horizonte
político em todo caso não foi redefinido.
O movimento de 1977 baseado em Bolonha foi, nesse sentido, o ponto da
máxima consciência do citado problema. Porque o movimento bolonhês abandonou, de
maneira escancarada e para entrar na polêmica, qualquer leninismo residual e o modelo
historicista de revolução. Mas o movimento, entretanto, não conseguiu ser consequente
até o fim, até o ponto de romper (como talvez devia ter feito) as suas relações com os
componentes do movimento que, pelo contrário, insistiam, ainda que de maneira
contraditória, num projeto de tipo leninista e revolucionário.
Houve uma outra razão decisiva para o baque que o movimento sofreu. Foi a
repressão que o regime político do Compromesso Historico [8] desencadeou contra os
estudantes, os operários autônomos, os jovens em geral, e depois contra os intelectuais,
os professores, os escritores, contra as rádios livres, as livrarias, contra todo centro de
vida intelectual inovadora que existia no país.
O refluxo intelectual desolador que afetou a Itália no começo dos 80 devastou os
campos da arte, da ciência, da universidade, da pesquisa, do cinema, silenciou o
pensamento político. Esse refluxo se deveu, precisamente, ao extermínio cultural que o
estado democristão-estalinista pôs em marcha, primeiro em 1977, na sequência em 1979
[9].
30

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

O movimento de 77 continha, desde o começo, uma ambiguidade profunda. Não


era a ambiguidade banal entre violentos maus e criativos bons. Era a sobreposição de
duas concepções do processo de modernização e de autonomização social.
Por um lado, existia o movimento criativo que colocava no centro da ação
política as mídias, a informação, o imaginário, a cultura, a comunicação, porque
pensava que o poder se organizava principalmente por esses lugares e não na esfera da
grande política de estado ou da grande política revolucionária.
Por outro lado, estava a autonomia organizada, convencida que o estado tinha o
papel decisivo e que se lhe devia opor uma subjetividade estruturada na forma política
clássica, para tomar-lhe o poder.
O movimento deveria ter amadurecido mais, fortalecido as suas estruturas
produtivas e comunicativas, deveria ter-se transformado num processo generalizado de
auto-organização da inteligência coletiva. Esse havia sido, pelo menos, o projeto
proposto ao movimento em junho de 1977 num número da revista A/traverso com o
título “A revolução terminou e vencemos” [10]. A proposta consistia em construir um
movimento de engenheiros “descalços”, em ligar tecnologia, ciência e zonas
temporárias liberadas. Era uma visão minoritária dentro do movimento de 1977, mas
um número crescente de pessoas, de jovens pesquisadores, de estudantes e artistas,
começava a entrever a possibilidade de um processo de auto-organização do saber e da
criatividade.
A Rádio Alice e as demais rádios do movimento representaram uma primeira
tentativa de articular tecnologia, comunicação e inovação social.
Mas tudo isso ainda aparecia ligado, certamente, a uma retórica do tipo
novecentista, a uma retórica guerrilheira.
Estava em jogo o destino social da inteligência tecnológico-científica e da
inteligência criativa e comunicativa. A consciência dessa passagem começava a formar-
se naqueles anos. Neles, aparecem os livros em que se manifesta a consciência de uma
transição social, tecnológica e antropológica. Em 1973, o livro de Daniel Bell, O
advento da sociedade pós-industrial, enquanto Jean-François Lyotard publica A
condição pós-moderna, em 1978. Em 1976, Jean Baudrillard escreve A troca simbólica
e a morte [11].
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

O movimento bolonhês, com efeito, teve uma forte ligação com os momentos
altos da pesquisa filosófica e alimentou, ele próprio, alguns desdobramentos da reflexão
na França, Alemanha e Estados Unidos. Essa ligação teve facetas diretamente políticas
(tais como a organização do congresso internacional contra a repressão em Bolonha, em
setembro de 1977), mas também, em prazo mais longo, facetas de caráter diretamente
filosófico, interpretativo, conceitual.
Os untorelli [NT: nome com que se chamavam, em epidemias de peste negra na
Europa, as pessoas que tinham as portas untadas para marcá-las como infectadas]
Assim, 1977 pode ser descrito como o ponto de separação entre a época
industrial e das grandes formações políticas, ideológicas e estatais, por um lado, e a
seguinte, a época proliferante de tecnologias digitais, de difusão molecular dos
dispositivos transversais de poder, por outro lado.
Nesse marco, é preciso entender a relação conflitiva entre o movimento e a
esquerda cujos rituais e ideologias ainda eram uma herança da história passada da época
industrial. Essa separação pode parecer apenas mais uma entre tantas e intermináveis
disputas doutrinárias e políticas dentro do movimento operário que superlotam todo o
século 20 [12]. Mas não é o caso aqui. Pois não se tratava de ainda outra discussão
dogmática, em que se disputava a hegemonia sobre o movimento comunista. Porque
este estava ossificado em premissas que a geração de 1977 liquida por completo, no
momento mesmo em que se constitui como um movimento. Em primeiro lugar, é
abandonada a premissa segundo o que o trabalho operário seria a base de toda
identidade política da esquerda. O movimento de 1977 se concebe explicitamente como
um movimento pós-operário, e recusa a ética do trabalho que havia fundado a história
cultural do movimento comunista ao longo do Novecentos.
Muda, portanto, a referência subjetiva, e muda paralelamente a análise da
sociedade capitalista, de suas modalidades de funcionamento. Deleuze propõe
interpretar a grande transição que se desenha como passagem das sociedades
disciplinares às sociedades de controle. As sociedades disciplinares são as modernas,
que Michel Foucault descreve. São sociedades em que se disciplinam os corpos e as
mentes, se constroem grandes caixas: a fábrica, a prisão, o hospital, o manicômio, a
cidade monocêntrica. Nessas sociedades, a repressão tem um caráter institucional e
centralizado, pois consiste na imposição de regras e estruturas estáveis. A sociedade que
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

vai ganhando forma nas últimas décadas do século 20 tem um caráter completamente
diferente das que, com Foucault, podemos chamar sociedades disciplinares. A nova
sociedade passa a funcionar à base de controles inscritos no próprio genoma das
relações sociais: automatismos informáticos, tecnológicos, automatismos linguísticos e
financeiros.
Aparentemente, essa sociedade garante o máximo de liberdade a suas
componentes. Nela cada um pode fazer o que bem entende. Já não há imposição de
normas rígidas. Já não pretende disciplinar os comportamentos individuais nem os
itinerários coletivos. O controle agora está infiltrado no dispositivo do cérebro humano,
nos dispositivos que tornam as relações possíveis, a linguagem, a comunicação, a troca.
O controle está em todas as partes, não mais politicamente centralizado. O movimento
de 77 percebe esse campo problemático e não é por acaso que, precisamente nesses
anos, se começa a desenhar com clareza a passagem do pensamento estruturalista ao
pós-estruturalista, se assim podemos chamar o pensamento rizomático e proliferante que
tem a sua mais significativa expressão no Anti-Édipo de Deleuze e Guattari [13].
Imaginações esquizoides substituem as representações disciplinares de tipo paranoico.
O movimento de 77 não pretende se obcecar com a centralidade política do estado, do
partido, da ideologia. Prefere dispersar a sua atenção, a sua ação transformadora, a sua
comunicação por territórios que são muito mais crispados e erosivos: as formas de
convivência, as drogas, a sexualidade, a recusa do trabalho, a experimentação de formas
de trabalho com motivação ética, a criatividade.
Por todas essas razões, o movimento escapa definitivamente da referência
conceitual e política do movimento operário à inspiração da Terceira Internacional, seja
a sua variante reformista na figura do Partido Comunista Italiano (PCI), seja em sua
variante revolucionário-leninista de organização de luta. O movimento de 1977 já não
tinha nada que ver com essas velhas histórias. E, apesar disso, aquelas velhas histórias
lhe passaram fatura, o cercaram com as suas velharias, relíquias e obsessões.
O PCI da época do Compromesso Historico tratou de isolar o movimento por
meio de uma estratégia de marginalização cultural prolongada. A tradição
estalinomaoísta perseguiu-o com o terror, a militarização, a chantagem e, finalmente,
com a epidemia de arrependimento. A partir desse ponto de vista, é preciso dizer, sem
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se alongar muito, que 1977 (em especial o bolonhês), foi o primeiro episódio de 1989
[14].
Foi em Bolonha em que se iniciou o processo definitivo de desmantelamento da
burocracia estalinista que, depois do Memorial de Yalta de Togliatti em 1964 [15],
havia se reciclado como burocracia reformista mas sem abandonar a sua vocação de
esmagar a dissidência, de expulsá-la, de caluniá-la, mistificá-la, reprimi-la. Em
Bolonha, em março de 1977, muitos pensavam que o principal inimigo era o PCI. Os
comunistas o constatavam com incredulidade, como se fosse um escândalo denunciar o
seu poder.
A dureza desse enfrentamento deve ser entendida na perspectiva de uma
mudança cultural profunda. Pois o movimento de 1977 colocava em questão os dois
pilares sobre o que tinha sido fundada a cultura do partido comunista.
Em primeiro lugar, a ética do trabalho, o orgulho do produtor que reivindica
profissionalismo, ofício, autogestão. O movimento opunha a isso a recusa do trabalho, o
absenteísmo, a desafeição e a perspectiva de uma decadência gradual do valor histórico
e produtivo do trabalho operário.
Em segundo lugar, o movimento punha em xeque a identificação entre classe
operária e estado, bem como a adesão profunda à instituição estatal, considerada pelo
PCI como elemento fundamental da identidade democrática. O movimento preferia
afirmar a obsolescência tendencial do estado, o seu esvaziamento e a sua redução
progressiva a pura e simples máquina repressiva. O fetichismo da forma-estado
característico do grupo dirigente do PCI estava, além disso, vinculado à teorização
leninista em sua versão terceirointernacionalista. Ainda que Marx jamais tenha postado
o estado num pedestal. Foi o partido de Lênin, uma vez tendo alcançado o poder, quem
identificou o estado operário ao ideal histórico e político do poder operário.
Retrospectivamente, podemos afirmar que a identificação entre estado e poder operário
era uma das mais profundas mentiras da teoria e prática estalinistas, e uma das pegadas
mais indeléveis da tradição terceirointernacionalista e comunista.
Essa problemática apareceu em Bolonha, ainda que em forma atenuada e
reformada. A santificação do estado como forma indiscutível a que deveria ser
reconduzida toda mediação social estava longíssimo do espírito libertário do
movimento. Nesse sentido, o movimento (em especial o bolonhês) teve uma dupla
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responsabilidade cultural. Por um lado, contribuiu para mitigar a religião estatalista da


esquerda. Por outro lado, abriu o caminho, de algum modo, ao liberalismo que nos anos
80 se estendeu pela cultura e a economia, especialmente depois das vitórias de Thatcher
no Reino Unido e Reagan nos Estados Unidos.
Quando os estudantes se puseram a contestar os mandarins acadêmicos,
descobriram que em boa parte se tratava de mandarins dependentes do contracheque do
PCI. Os jovens operários de Emília se depararam com os patrões que, em muitas casos,
eram filiados ao PCI. Quando os operários da Fiat atacaram as políticas patronais e
reivindicaram a sua autonomia, se depararam com a defesa da Agnelli [16] por Giorgio
Amendola, o velho dirigente estalinista napolitano reconvertido a um reformismo
autoritário. Por todas essas razões, o movimento viu no PCI um inimigo e não um
interlocutor.
Nos anos anteriores, se tinha insistido muito, na Itália e no estrangeiro, sobre a
natureza específica da experiência comunista italiana. Dizia-se que o PCI era um partido
mais democrático que os partidos irmãos da Europa Oriental ou da França. Com certeza,
mas somente até certo ponto. Era certo que assim era no começo dos anos 60, antes da
invasão soviética da Tchecoeslováquia (1968). No final dos anos 60, porém, no PCI, se
abriu uma dialética cultural que ressaltava a novidade do movimento estudantil. Mas
nesse momento o debate já não conseguiu mobilizar a cúpula, nem a direção central,
nem as ideologias fortes que guiavam o partido-colosso. Nos 70, então, o PCI se
encerrou na torre de marfim da “autonomia do político”. Depois do golpe de estado no
Chile (1973), o então secretário-geral do PCI, Enrico Berlinguer, pensou que não havia
mais outro caminho senão, o do compromisso político com a Democracia Cristã.
Quando viu crescer o movimento autônomo e, sobretudo, quando viu que o movimento
atacava o baluarte bolonhês do PCI, reagiu chamando depreciativamente os
contestadores de untorelli [17], e prometeu que jamais conseguiriam conquistar o
bastião do partido na cidade.
Mas a previsão de Berlinguer foi desmentida largamente pelos fatos. O
movimento de 77 pôs em marcha uma dinâmica de corrosão que pode hoje ser lida ao
lume do que viria a acontecer doze anos mais tarde, em 1989, em toda a Europa. Desde
77, o número de filiados ao PCI começa a cair de modo inexorável. Mas a esquerda não
via outra coisa que não a política, e não conseguiu ou não quis enxergar o que começava
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a mover-se nas profundezas do ventre da sociedade. Não soube ver as dinâmicas


culturais profundas que procediam da cultura americana. Tampouco pôde prever as
dinâmicas tecnológicas e as transformações produtivas que delas se derivariam. Em
lugar de seguir a evolução da sociedade, a esquerda se erigiu como guardiã da
continuidade do mesmo sistema político. Nisso reside a analogia entre o 77 bolonhês e o
que depois foi o 89. O 77 foi o anúncio de 89 precisamente porque reivindicou a
autonomia do devir social molecular (tecnológico, produtivo, cultural, comunicativo)
ante a rigidez molar do político, do estado e do partido.

Information to the people

“Informação ao povo” foi um dos slogans que nasceu do movimento da


contracultura na Califórnia dos anos 60. No caldo efervescente da costa ocidental dos
EUA, cresceram Steve Wozniak e Steve Jobs, fundadores da Apple Computer,
inventores da filosofia e prática que estão na base da disseminação da informática, a
interface user friendly, o espírito de rede e o código aberto/open source. O ano de
patenteamento da marca Apple é, que coincidência!, 1977. Nesse ano, se produz na
Itália a explosão de uma forma inovadora de comunicação, a das rádios livres e da
transmissão ao vivo dos acontecimentos na rádio. O nascimento das rádios livres é
consequência de um acontecimento jurídico, de dezembro de 1974. Nesse mês, o
Tribunal Constitucional italiano estabeleceu a inconstitucionalidade do monopólio
estatal do éter, e indiretamente firmou o direito de transmissão para qualquer cidadão ou
associação. O próprio Tribunal, nessa sentença, reclamava a necessidade de uma
regulação para o uso do éter.
Nesse vazio legal, alguns começaram a entrever a possibilidade de construir
estruturas de informação completamente livres, desligadas de qualquer instituição
estatal ou política, bem como de qualquer interesse comercial, econômico ou
especulativo. E era mesmo possível. O custo de instalação de uma emissora radiofônica
nessa época era irrisório. Inclusive para os estudantes ou os jovens operários, era
possível conseguir as poucas centenas de mil liras necessárias para comprar uma
transmissor, um equipamento de alta fidelidade e um mixador. Foi assim que nasceu a
Rádio Alice, a primeira rádio livre capaz de colocar em marcha um processo de auto-
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

organização criativa, e por à disposição do movimento um instrumento simples e eficaz


de informação. A Rádio Alice nasceu em 9 de fevereiro de 1976. Desde os primeiros
dias de emissão, suscitou uma onda de indignação entre a opinião pública bem-
comportada. O Resto del Carlino, o jornal diário bolonhês ultraconformista, denunciou
que “Rádio Alice transmite menagens obscenas”, enquanto o PCI insinuava que havia
algo por trás da rádio, “interesses escusos”. Mas não havia nenhum financiador. A rádio
se financiava com aportes voluntários dos redatores, que no começo eram uma dezena
mas que, em poucas semanas, alcançaram um número incalculável. Na Alice, não havia
programação fixa para cada dia, salvo um boletim político emitido em horas mais ou
menos regulares e algumas emissões um tanto peculiares, como lições de yoga pela
manhã e longas sessões de música ao vivo e poesia que se prolongavam até altas horas
da noite.
A Rádio Alice, como A/traverso, a revista maodadaísta que começou a ser
publicada em maio de 1975, foi o signo explícito e declarado de uma vontade de sair
dos esquemas linguísticos do movimento operário tradicional, para experimentar
linguagens provocativas e diretas que se inspiravam no surrealismo e no dadaísmo, e
que propunham técnicas de agitação próprias da cultura hippie: o chiste, a ironia, a
difusão de notícias falsas, a mistura de tons líricos e histéricos na comunicação política,
a mistura de um horizonte histórico com acontecimentos menores da vida cotidiana.
Sexualidade e drogas se converteram pela primeira vez em assunto de discussão pública
e ativismo. Não devemos esquecer que esses foram também os anos em que aparecem e
grande proporção na cena cultural, primeiro nos Estados Unidos, depois na Europa, o
movimento feminista e o movimento gay. São os anos em que o consumo de drogas, até
então um fenômeno absolutamente marginal, se converte num elemento característico
das vivências estudantis e juvenis.
Ao mesmo tempo, o pensamento filosófico, em especial na França, repensa em
termos de microfísica o horizonte do poder e da liberação. A subjetividade já não é
identificada ao modo monolítico próprio da ideologia, da política, do pertencimento
social, senão mediante toda uma microfísica das necessidades, do imaginário, do desejo.
A noção de microfísica social foi introduzida na discussão por Michel Foucault e,
posteriormente, desenvolvida por Deleuze e Guattari no Anti-Édipo. A noção de sujeito
é substituída pela de subjetivação, para indicar que o sujeito não é algo dado,
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

socialmente determinado e ideologicamente consistente. Em seu lugar, devemos ver


processos de atração e imaginação que modelam os corpos sociais, fazendo com que
atuem como sujeitos dinâmicos, mutantes, proliferantes. A História da loucura, de
Foucault, o Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, e Fragmentos de um discurso amoroso,
de Roland Barthes [18], foram livros ao redor do que se desenvolveu naqueles anos um
enorme interesse. Esses livros acabaram por converter-se em pontos de referência para o
discurso político, apesar deles não portarem um programa político em si próprios. Esses
livros, em vez disso, propunham um estilo, um estilo nômade, não identitário, flexível
porém não unificável, criativo porém não competitivo. O movimento bolonhês, em
particular, nutriu a sua linguagem e os seus comportamentos com as palavras que saíam
daqueles livros e por isso desenvolveu antecipadamente uma ideia de movimento
enquanto agente simbólico, como coletivo de produção midiática, como sujeito coletivo
de enunciação, para usar uma expressão de Guattari.
Durante todo o século do movimento operário, o problema da produção cultural
havia sido colocado em termos puramente instrumentais, em termos de
contrainformação, de restabelecimento da verdade proletária contra a mentira burguesa.
A cultura era considerada (segundo as teses do materialismo histórico) como uma
superestrutura, um efeito determinado pelas relações de produção. O pensamento pós-
estruturalista francês finalmente pôs em crise essa visão mecânica.
Tomando como referência a ruptura impingida pelo pós-estruturalismo francês, a
revista A/traverso avançou uma dura batalha contra o materialismo histórico e o seu
mecanicismo. A Rádio Alice sempre rechaçou ser identificada como um instrumento de
contrainformação. Para começar, a Rádio Alice não era um instrumento. Era um agente
comunicativo. Não estava a serviço do proletariado ou do movimento, pois era, ela
própria, uma subjetividade do movimento. E, sobretudo, não pretendia restabelecer uma
verdade negada, oculta ou reprimida. Não existe uma verdade objetiva a que
corresponda a uma dinâmica profunda da história. A história é precisamente o lugar em
que se manifestam verdades contraditórias, produções simbólicas, todas elas igualmente
falsas e igualmente verdadeiras.
A lição desencantada da semiologia de Umberto Eco e do pós-estruturalismo de
Foucault e de Deleuze-Guattari se infiltrou com fecundidade nas teorias e práticas das
rádios do movimento e, pouco a pouco, rachou o edifício da ortodoxia. A cultura deixou
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

de ser considerada uma superestrutura, para ser entendida como uma produção
simbólica que participa da formação do imaginário, quer dizer, o oceano de imagens,
sentimentos, expectativas, desejos e motivações, sobre o que se funda o processo social,
com as suas mudanças e viradas.

A batalha da mediascape

O movimento bolonhês intuitivamente antecipou a função decisiva dos media


numa sociedade pós-industrial. Essa presciência foi mérito, entre outros, do DAMS
bolonhês [19], a escola surgida precisamente naqueles anos, onde ensinavam pessoas
lúcidas como Giuliano Scabia, Umberto Eco ou Paolo Fabbri. Em certo sentido,
podemos dizer que o movimento de 77 foi também um laboratório de formação para
milhares de operadores da comunicação que, nas décadas seguintes, participaram da
grande batalha da comunicação travada de 1977 até hoje. Essa batalha acabou por
sobredeterminar a luta política, de modo a produzir uma figura como Berlusconi, rei da
televisão que virou rei da república que, de fato, é uma república monárquica.
A batalha terminou em desastre. Depois da sentença do Tribunal Constitucional
italiano que tornou possível a liberdade de emissão, enquanto nós fazíamos as primeiras
rádios livres, a esquerda nos advertia, desconfiada: “agora vocês estão abrindo essas
suas rádios democráticas caseiras, mas amanhã chegará o grande capital e se
assenhoreará do sistema midiático”. Assim soava, mais ou menos, a reprovação
vaticinada pela esquerda, em especial, pelo PCI. Na época, pensava-se que acabaria
sendo Rizzoli, à época proprietário de vários jornais, quem construiria um império
midiático no terreno aberto naqueles anos, mas no final quem fez isso foi mesmo
Berlusconi. A brecha aberta pelas pequenas rádios livres permitiu a ele criar Milano 5,
que depois se converteu no Canal 5.
Tinha razão então o PCI?, que defendia o caráter estatal da informação e nos
alertava dos perigos da liberalização, pois pavimentava a estrada para o grande capital?
Não. Não tinha razão o partido. Tinha-a o movimento das rádios livres. Porque a
liberdade de informação, além de ser um bem em si próprio, é também um processo
inevitável e iniludível, pois não se pode estancar o fluxo proliferante das informações. O
movimento de 1977 tinha intuído a evolução das relações entre comunicação e
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

sociedade, e graças a isso pôde transformar-se num gigantesco laboratório de produção


comunicativa. Aquele movimento, sim, era o antídoto contra o perigo Berlusconi, o
antídoto antecipado contra a chegada da ciberditadura. Mas isso não aconteceu. Em
março de 77, se produziu uma insurreição dramática e ao mesmo tempo alegre, e em
setembro se realizava o congresso contra as repressões.
Março foi colorido e feliz, criativo e inteligente.
Setembro foi cinzento e rancoroso, ideológico e agressivo.
O movimento de 1977 tinha encontrado a rua bloqueada por pequenos tanques
de guerra e centenas de jovens terminaram na prisão. A esperança de março se
converteu na tenebrosa e desesperada determinação de setembro.
O terrorismo veio depois, assim como a heroína. Chegaram de mãos dadas com
a derrota, para eliminar o único adversário possível do ciberfascismo italiano. Hoje
escrevemos estas páginas num clima completamente mudado. Por enquanto, e não
sabemos ainda por quanto tempo, o ciberfascismo ganhou a batalha. Personagens
ridículos dominam a cena da política nos ameaçando com potenciais desastres.
A paisagem da mídia de hoje (duzentas mil vezes mais fechada do que em 77)
está estruturada conforme as mesmas linhas que já existiam naquela época. Havia então
uma informação completamente controlada, uma informação oficial que procedia do
púlpito do Compromesso Historico, da igreja católico-togliattiana. E, de chofre,
apareceram as rádios livres, os panfletos transversais, os índios metropolitanos, os
centros do proletariado juvenil, os primeiros grupos de videoativistas. Do mesmo modo,
hoje a informação está totalmente controlada, procede de uma única fonte assim como
naquela época. Um único patrão governa os fluxos que polvilham a mente barroca do
povo italiano. Mas de súbito surgiu a inumerável massa de comunicação horizontal que
compõe a Internet, os cem mil nós da rede Indymedia, a proliferação dos videomakers
pelas ruas.
Talvez seja nesse terreno, no da comunicação, de produção do imaginário, da
formação dos panoramas psíquicos, em que se desenha uma possibilidade de
recuperação de uma perspectiva civil, política e cultural, que permita superar a atual
barbárie. Supondo que algo de humano reste no final da tormenta. O que não está de
jeito nenhum claro.
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O movimento de 77 foi, lembremo-lo, a antecipação e o início do fenômeno


chamado punk, que representou a alma mais profunda das culturas jovens dos anos 80 e
90. O punk foi o despertar da consciência tardomoderna ante o efeito irreversível de
devastação produzido por todos aqueles que os movimentos revolucionários não
conseguiram mudar, eliminar, destruir.
O punk foi uma espécie de desesperada e lúcida consciência de um amanhã sem
salvação.
No future, declarou a cultura punk, contemporânea da insurreição criativa de
Bolonha e de Roma: “Não há nenhum futuro”. Ainda estamos nesse momento, enquanto
a guerra mais demencial que a humanidade conheceu destrói as consciências e as
esperanças de uma vida vivível. Estamos ainda aí, nesse mesmo ponto em que nos
deixou o congresso de setembro de 1977.
No future continua sendo, hoje como outrora, a análise mais aguda e o
diagnóstico mais acertado.
E o desespero, o sentimento mais humano.

Notas

[1] – Capítulo de 1977: l´anno incui il futuro incominciò, Roma, Fangango: 2002.
Tradução ao português pela UniNômade, a partir da tradução ao espanhol, de 2007, por
Patricia Amigot e Manuel Aguilar.

[2] – Interface amistosa entre usuário e computador, com base em metáforas gráficas
(janelas, pastas, escritório) e o uso do mouse.

[3] – Simon Nora e Alain Minc, La informatización de la sociedade, Madrid, Fondo de


Cultura Económica: 1982.

[4] – Por Deng Xiaoping, dirigente comunista chinês. Vinculado desde os anos 50 à ala
moderada ou conservadora do PCC, foi destituído durante a Revolução Cultual em
1967-69. Voltou ao poder pelas mãos de Zhou Enlai, em 1973. Depois da morte de
Zhou e de Mao, em 1976, disputou o poder com chamada Gangue dos Quatro, até
vencê-la. Entre 77 e 87, Deng foi o inspirador das reformas da sociedade chinesa na
direção de uma economia capitalista comandada pelo PCC, que serviu de base política,
econômica e repressiva para a longa marcha do desenvolvimentismo chinês.

[5] – “È ora, è ora, lavora solo un’ora”.

[6] – “Trabajo cero, sueldo entero/toda la producción a la automatización”.


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[7] – “Ya es hora, ya es hora, el poder a quien trabaja”.

[8] – O PCI chamou de compromisso histórico (Compromesso Historico) a sua proposta


de acordo com o partido Democracia Cristã para, em coalizão, reformar a sociedade
italiana. Apresentou-se como uma linha contrária à tradicional de promover um governo
de esquerda alternativo, que Berlinguer, então secretário-geral do PCI, considerava
fadada ao fracasso no cenário de ascensão das direitas que se desenhava com o golpe no
Chile, em 1973. Na prática, o compromisso se traduziu com uma colaboração subalterna
do PCI à DC durante os anos da emergência movimentista ou dos anos de chumbo, na
repressão contra o movimento social, contra a Autonomia Operária e contra as Brigadas
Vermelhas.

[9] – 7 de abril, 21 de dezembro: prisões em massa de intelectuais ligados ao campo da


Autonomia, muitos dos quais foram declarados inocentes depois de cumprir até cinco
anos de prisão sem provas.

[10] – “La rivoluzione è finita e la abbiamo vinto”.

[11] – Daniel Bell, El advenimiento de la sociedad postindustrial: un intento de


prognosis social , Madrid, Alianza 1976; Jean–François Lyotard, La condición
postmoderna: informe sobre el saber , Madrid, Cátedra 1984; y Jean Baudrillard, El
intercambio simbólico y la muerte , Caracas, Monte Ávila 1993.

[12] – Começando pela ruptura da Primeira Internacional, seguindo com o cisma


bolchevique, o conflito entre a Terceira Internacional e o Linkskommunismus, a guerra
entre estalinismo e trotskismo nos anos 30, e acabando na ruptura sino-soviética e na
guerra entre revolucionários e reformistas, nos anos 60.

[13] – Gilles Deleuze e Felix Guattari, O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Ed.


34: 2011.

[14] – Ano da queda do muro de Berlim, sintoma do iminente e ultra-veloz


esfacelamento do bloco soviético do Pacto de Varsóvia.

[15] – Palmiro Togliatti, dirigente da Internacional Comunista e máximo dirigente do


PCI por quase 40 anos, de 1926 até a sua morte em 1964, em Ialta (Crimeia, URSS).
Em seu testamento político, o chamado Memorial de Ialta, deixou formuladas as linhas-
mestras de sua concepção do policentrismo do movimento comunista internacional (por
oposição à liderança da URSS) e da via italiana ao socialismo, por meio de uma ação
pacífica, de massa, eleitoral e reformista, no marco das instituições da República
Italiana.

[16] – O grande patrão da Fiat.

[17] – Em sentido figurado: pobre diabo.


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[18] – Michel Foucault, Historia de la locura en la época clásica , México, Fondo de


Cultura Económica 1997; Roland Barthes y Eduardo Molina, Fragmentos de un
discurso amoroso , Madrid–México, Siglo XXI 1999.

[19] – O DAMS (abreviação para Disciplinas das Artes, da Música e do Espetáculo)


nasceu em 1971 na Universidade de Bolonha como curso de licenciatura na Faculdade
de Filosofia e Letras, com o objetivo de desenvolver uma política de sinergias entre
linguagens expressivas não verbais (http://www2.unibo.it/dams/).
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Constitucionalismo social e as políticas do comum

Gunther Teubner1

Tradução de Renan Porto2 e Luiz Felipe Teves3

No artigo introdutório deste evento4, Sandro Mezzadra colocou questões


precisas, que possibilitam identificar convergências e divergências de duas leituras do
Direito Global apresentadas por Antonio Negri e por mim. Eu vou discutir cada
questão e formular tentativas de respostas.

1. Questão Um: Qual o Futuro da Divisão Público-Privado?

Ambas abordagens (de A. Negri e a minha) insistem em uma crítica fundamental


da distinção privado/público. Para A. Negri, a crise da sociedade moderna se deve pela
divisão da propriedade privada e propriedade pública no capitalismo. Meu ponto de
partida é a inadequação da distinção entre um setor privado e um setor público e entre
direito privado e direito público. O problema, portanto, é como deslocar esta distinção e
como recolocá-la. Teóricos sociais têm repetidamente analisado a ruptura da fronteira
entre Estado e sociedade, mas o que eles oferecem como alternativa é uma politização
total da sociedade inteira. Similarmente, a distinção entre direito público e direito
privado tem sido atacada por muitos estudiosos do direito, mas têm sido substituída pela
vaga afirmação que direito privado é profundamente político. Negri toma um caminho
diferente. Ele critica a propriedade privada bem como a propriedade pública, enquanto
esta última é entendida como propriedade do Estado, e recoloca a distinção por outro
conceito: o comum.

1
IUC Torino e Universidade de Frankfurt.
2
Mestrando em Filosofia do Direito pela UERJ e pesquisador associado à Rede Universidade Nômade.
3
Doutorando em Filosofia do Direito pela UERJ e pesquisador associado à Rede Universidade Nômade
4
Apresentação feita em 10 de março de 2011 no International University College of Turin (IUC), em
conjunto com a UniNomade 2.0, durante o debate entre os professores Antonio Negri e Gunther Teubner
entitulado “O Direito do Comum: Globalização, propriedade e novos horizontes de liberação”.
44

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Meu argumento começa com a observação óbvia que a corrente distinção entre
os setores público e privado é uma descrição simplificada da sociedade contemporânea.
Mais controversamente, meu argumento continua que qualquer ideia de fusão das
esferas pública e privada, que é argumentada por muitos pesquisadores críticos, dentre
eles A. Negri, é igualmente inadequada. Eu proponho tomar uma direção oposta da
fusão: a divisão público/privado deve ser recolocada pela policontexturalidade. O
argumento é esse: discursos e práticas sociais contemporâneos já não podem ser
analisados por uma única distinção binária; a fragmentação da sociedade em uma
multidão de mundos sociais de significado requer uma multidão de perspectivas de
autodescrição. Consequentemente, a simples distinção Estado/sociedade, que é
traduzida no direito como direito público vs. direito privado, precisa ser substituída por
uma multiplicidade de perspectivas sociais, que são simultaneamente refletidas no
direito.
A distinção entre direito privado e direito público não precisa de destruição nem
de fusão, mas sim do seu Aufhebung. No primeiro passo, isso precisa ser dissolvido e
recolocado pelas afinidades eletivas do direito para uma pluralidade de discursos, ou
contextos, tal como privacidade, saúde, educação, ciência, religião, arte e mídia. Isso
poderia levar a uma profunda reflexão jurídica das distintivas ‘autológicas’5 desses
vários domínios do discurso.
O ponto é liberar o direito da divisão simplista público/privado, que significa
simultaneamente não apenas deseconomizá-la, mas também despolitizá-la; distanciá-la
não apenas do setor privado, mas também do setor público. No último século, a doutrina
jurídica tem se adaptado à dupla Grande Transformação, a vitória imperialista na
economia e no sistema político, que tem dividido o mundo social em duas grandes
esferas de influência. De um lado, a ação econômica desenvolvida totalizando
tendências em sua larga expansão social, e relações sociais não-comerciais (por
exemplo, os relacionamentos das profissões clássicas com seus clientes) transformadas
em relações econômicas orientadas pelo lucro. O direito seguiu essa mercantilização
contínua do mundo social, às vezes relutantemente, sempre obedientemente. Do outro
lado, existiu o crescimento aparentemente imparável do Estado de bem-estar social,

5
No texto original, “eigenlogics”. “Eigen” é um termo alemão que traduzido ao inglês traz o sentido de
particularidade, característica distintiva, peculiaridade, próprio. Por isso, traduzimos como ‘autológica’,
se referindo às peculiaridades lógicas dos distintos domínios de discurso.
45

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

transformando muitas atividades sociais em serviços do setor público.


Consequentemente, o direito abdicou sua responsabilidade quanto à regulação jurídica
dessas atividades sociais em favor de políticas estatais. E esse dualismo errôneo tem
sido o ponto de partida comum para as maiores ideologias influentes, liberalismo e
marxismo, em incontáveis variações e combinações, incluindo democracia social e New
Labour. Portanto, o debate é apenas sobre se o direito deveria refletir eficiência
econômica ou políticas governamentais, princípios de autonomia econômica ou de
intervenção política. E mesmo após a crise financeira, somos confrontados com outra
volta nessa oscilação, após a atual volta da desregulação neoliberal para um renovado
intervencionismo estatal. Tertium non datur? Ambas ideologias políticas têm ajudado na
criação de instituições jurídicas que a tensão, embora em formas diferentes, dos
conflitos entre os setores políticos e econômicos, mas ao mesmo tempo – e esse é meu
ponto central – têm negligenciado ou instrumentalizado a grande variedade de outras
esferas da sociedade civil.
Neste sentido, a divisão público/privado será descartada, mas ganha um novo
significado. Agora, radicalmente separada da distinção Estado/sociedade bem como da
distinção direito público/direito privado. De fato, fica ortogonal para elas. A tradicional
dualidade privado/público é dissolvida em uma pluralidade de segmentos sociais
(policontexturalidade). As supostas políticas “públicas” e a suposta economia “privada”
são apenas duas de uma completa variedade de segmentos sociais. Entretanto, o
segundo passo é crucial: a divisão privado/público reaparece em cada esfera social
formalmente “privada”. O “público” agora toma um significado diferente – não mais
como políticas de Estado no então chamado campo das políticas regulatórias; agora o
público é aquela esfera de expressão de sua normatividade intrínseca em suas relações
com a totalidade social, que o direito legitimamente leva em conta.
Quanto ao “privado”, há um contraste com a ideia de A. Negri, que tende a
reduzir o problema do “privado” ao conceito de propriedade privada e ignora outras
dimensões do “privado. No meu ponto de vista, a categoria do “privado” não deveria ser
abandonada ou dissolvida em um conceito abrangente, seja o público ou o comum.
Historicamente, a distinção público/privado tem sofrido muitas mudanças de significado
(oikos/polis, moralidade interna/direito externo, Estado/sociedade etc.) que são
inadequadas para identificá-la exclusivamente com propriedade individual/coletiva.
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Pelo contrário, o “privado” deveria ser reintegrado e desenvolvido para além do


indivíduo e dos atores coletivos de realização autônoma. A crítica radical da propriedade
privada tem claramente seus méritos. Mas, essa crítica deveria implicar a destruição de
muitos outras significações do privado: privacidade pessoal contra a intrusão de outros,
espaço para intimidade em relações pessoais sem interferência da sociedade, busca
autônoma de projetos estritamente individuais contra sua coletivização, proteção dos
direitos humanos para indivíduos e grupos não só contra políticas majoritárias, mas
também contra relações de poder capilares em diferentes disciplinas sociais, o
innerlichkeit do pensamento humano contra a intrusão comunicativa, a espiritualidade
da consciência individual contra a dominação pela religião pública e política? Ao meu
ver, todas essas são expressões legítimas do “privado” que não falam contra, mas
claramente por uma reconstrução da divisão público/privado, é certo, não como uma
divisão da sociedade em um setor privado e um setor público, mas como uma variedade
de distinções em diferentes mundos de significado.
“Público” nesse novo sentido não deve se referir a algum corpo político de
deliberação e decisão coletiva (sujeito coletivo de A. Negri), mas a uma multiplicidade
de espaços públicos, que tornam possíveis os processos de reflexão comunicativa em
cada esfera formalmente “privada” da sociedade. Em cada um desses locais públicos,
conflitos, lutas, deliberações e decisões são direcionadas a encontrar um equilíbrio entre
a relação local com toda sociedade e suas contribuições aos indivíduos e atores
coletivos. Claro, o direito não faz e não consegue ditar esses processos de reflexão
dentro dessas esferas da sociedade civil. Por outro lado, ele precisa estar sensível a isso
e simultaneamente participar disso através de decisões em litígios individuais, que são
por sua vez expostos ao processo de reflexão contínua.
Para esquematizar meu argumento, a divisão público/privado precisa sofrer uma
Aufhebung dialética no duplo sentido de negação e preservação.
(1) A simples dualidade que domina até hoje nem deve ser destruída nem
deve haver uma fusão de ambos os polos. Em vez disso, precisa ser recolocada pela
multiplicidade de perspectivas sociais, que em seguida serão reconstruídas no direito.
(2) Em um sentido bastante limitado, a velha divisão público/privado deve
ser preservada enquanto essa divisão é entendida como diferença entre racionalidade
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política e racionalidade econômica, que, embora, é relativizada porque elas representam


apenas duas entre muitas outras racionalidades sociais.
(3) No sentido mais importante (e diferente), a divisão público/privado deve
reaparecer em cada contexto de policontexturalidade como uma diferença precária entre
responsabilidade social e busca de autorrealização dos atores, e o direito precisa estar
sensível a ambos lados dessa divisão.
A famoso e controversa clausura geral de bona fide e boni mores em direito
contratual e responsabilidade civil, para dar um exemplo do meu próprio campo no
direito privado, como muitos advogados veem isso, não subjuga contratos privados à
políticas do Estado democrática e ao direito público. Pelo contrário, elas são uma
expressão do que eu chamei de elemento público interno nas assim chamadas
instituições privadas, em outras palavras, a idées directrices das múltiplas instituições
da sociedade civil, que conectam elas à ideia de bem comum. Direitos constitucionais
na esfera privada, como outro exemplo, não são transferências do direito constitucional
estatal da relação de Estado-cidadão para uma relação entre cidadãos. De outra forma,
eles protegem a integridade das autonomias individuais e sociais contra a subjugação
dos processos sociais anônimos nos diferentes setores da sociedade. O que ambos
exemplos têm em comum é que eles fazem o direito não responder a um processo
político unificado de uma nova coletividade, mas à dimensão pública peculiar de
diversas configurações sociais.

2. Questão Dois: Onde está o espaço potencial para movimentos sociais em suas
relações com a governança global?

Nós temos como ponto de partida comum a ideia que estratégias de


transformação não se opõem à modernidade tout court; em vez disso, como coloca A.
Negri, estratégias de transformação devem “subvertê-la” – em outras palavras, a
proposta é mudá-la fundamentalmente enquanto simultaneamente se vai explorando as
altas ambivalências da modernidade, atacando seu potencial destrutivo e fortalecendo
seu potencial produtivo. Karl Marx teve essa ideia de fazer uso das forças produtivas do
progresso no capitalismo para sua transformação, e tentativas contemporâneas visam
explorar a organização industrial pós-fordista em seu inerente potencial democratizante.
48

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Similarmente, A. Negri e eu vemos as ambivalências da nova governança global não só


como um objeto de crítica, mas também como uma chance de sua transformação.
Subversão e não oposição é a fórmula de A. Negri, que ele dirige contra a
propriedade privada no capitalismo global. Minhas ideias sobre o momento
constitucional usam um modelo similar, mas elas identificam as ambivalências da
modernidade de uma forma diferente. Minha questão é se existe uma coisa tal como
“vício coletivo” em diferentes setores das sociedades modernas tardias? Nós
reconhecemos esse vício como um fenômeno social genuíno e não apenas como um
problema individual? A resposta comum seria, consumo excessivo de álcool, ou o
instinto de rebanho dos banqueiros antes da crise. Na verdade, esses são amplificadores
sociais do comportamento viciante: elas influenciam o comportamento obsessivo na
forma de pressão social, imitação, normas sociais ou mentalidade de rebanho. Mas, o
que elas estão preocupadas ultimamente é apenas o vício de indivíduos.
Porém, eu procuro por algo bastante diferente. É possível que processos sociais
como esses possam exibir propriedades de comportamento viciante completamente
independente das síndromes de dependência dos seres humanos individualmente. Josef
Ackermann claramente não é um viciado, e ainda o Deutsche Bank está precisando
urgentemente de uma terapia detox (desintoxicação). Isso equivaleria a uma
dependência coletiva em sentido estrito. Independentemente dos vícios individuais, a
comunicação concatenaria de tal forma que eles se encontrariam presos aos
comportamentos compulsivos nas atividades apesar das consequências autodestrutivas.
A definição do vício individual – compromisso compulsivo com uma atividade
independente das consequências negativas duradouras – precisa ser repensado para os
sistemas sociais em geral, e também para os atores coletivos em particular. Em outras
palavras, quais “mecanismos de vício” são responsáveis pelo fato de que a
autorreprodução autopoiética do sistema social, através da recursividade das operações
sistêmico-específicas, revertem-se em uma compulsão comunicativa da repetição e
crescimento, atrelando consequências autodestrutivas no seu caminho? Essa dinâmica,
por seu turno, levanta uma questão fundamental para a teoria autopoiética: como
conceberíamos as relações entre autorreprodução social e a compulsão por crescimento?
A inquietante pergunta remanesce sobre se a autopoiese de sistemas funcionais
altamente especializados não seria secretamente dependente da lógica do crescimento?
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

E, particularmente relevante para a nossa discussão, a recursividade da autopoiese


possui tendências inerentes, além e acima de tal crescimento normal, em direção a uma
compulsão socialmente prejudicial de repetir e crescer? E por quais meios essa
autopoiese turbinada é acionada?
Agora, o ponto crucial é que o vício social não é limitado à economia capitalista
na sua dinâmica impiedosa de crescimento, como muitos dos críticos da modernidade
enxergam (como A. Negri). Ao contrário, muitos, se não todos os sistemas exibem
tendências expansionistas similares – a famosa-infame tendência à politização
compreensiva, economicização, juridificação, midiatização, sexualização ou
medicalização do mundo – que indica que a dinâmica de crescimento compulsiva é
inerente a várias esferas da diferenciação funcional. Isso transforma a crítica da
economia capitalista em uma crítica da diferenciação funcional. Essa provavelmente é a
principal diferença entre a crítica da modernidade de A. Negri e a minha. Em todos os
sistemas, o momento de expectativas excessivas, um tipo de crédito de alto risco nas
comunicações futuras, se esconde nas motivações de aceitar a comunicação criada não
apenas por meio do dinheiro, mas também por meio do poder, da lei, da verdade e do
amor. O momento só pode ser "arrecadado em espécie" com pagamentos cada vez mais
altos, causando uma reação de aumento de expectativa de "crédito," de modo que uma
necessária dinâmica de crescimento, uma espiral crescente, se desenvolva. Nesse caso, a
espiral de crescimento patológica não poderia mais ser considerada um fenômeno
particular ao meio da economia capitalista baseada em propriedade privada, mas como
uma característica inerente de cada sistema funcional.
Tal aceleração do crescimento em sistemas funcionais acaba por sobrecarregá-
los, mas também a sociedade e o meio no qual se desenvolve com sérias ‘consequências
para a sua diferenciação, especialização e orientações de alto desempenho’. Três
campos de colisão poderiam ser identificados: 1) a colisão com o imperativo de
crescimento de um sistema com a integridade de outro subsistema social; 2) colisão com
a compreensão de uma racionalidade de sociedade mundial; e 3), a colisão da aceleração
do crescimento de um sistema com a sua própria autorreprodução. A dinâmica de
evolução dessas três colisões certamente tem o potencial de se transformar em
catástrofes sociais. Mas não há qualquer necessidade sobre o colapso, como Karl Marx
postula, ou qualquer necessidade sobre a jaula de ferro da modernidade em Max Weber.
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Só depende da possibilidade das contraforças inibidoras do crescimento emerjam para


prevenir o retorno catastrófico positivo dentro da dinâmica do crescimento.
A experiência da quase-catástrofe, como oposta à experiência da sua
contingência, pode ser referida como o “momento constitucional” no qual as
contraforças estruturais emergem potencialmente. É nesse momento que o colapso é
diretamente iminente. A similaridade entre o fenômeno do vício individual é novamente
óbvia – “Aperte o botão!”. Deve ser um minuto antes da meia-noite. Só então há uma
chance para que o entendimento seja suficientemente elucidado, a vontade de mudança
forte o suficiente, para permitir a mudança de curso fundamental. E isso se aplica não
apenas à economia, na qual os avisos acerca da próxima crise são regularmente
ignorados, mas também nas ciências e na política.
Essa é a mensagem do constitucionalismo social. Um projeto constitucional
global assume a tarefa: como as pressões externas podem ser exercidas nos sistemas
funcionais em sociedades avançadas com tal força que as autolimitações de suas
opções de ação tenham efeitos nos seus processos internos? É “subversivo” na medida
em que ataca os excessos de racionalidades autônomas; mas explode no mesmo
momento de sua dinâmica produtiva. Uma “constitucionalização híbrida” é necessária
no sentido de forças sociais externas – que não são somente os instrumentos de poder do
Estado, mas também decisões no processo legal e nos contrapoderes da sociedade civil
dos outros contextos, mídias, discussões públicas, protestos espontâneos, intelectuais,
movimentos sociais, ONGs ou sindicatos – aplicando tal pressão massiva sobre os
sistemas funcionais que as autolimitações internas são configuradas e se tornam
verdadeiramente efetivas.
Só é possível inventar, elaborar e fazer cumprir essas limitações por dentro da
lógica específica do sistema, e não de fora. A difícil tarefa de alinhar mutuamente a
função do sistema social e a sua contribuição para o ambiente em um nível
suficientemente alto só pode ser tentada por uma reflexão interna ao sistema, que pode
ser iniciada ou ordenada de fora, mas não pode ser substituída. Não há alternativa a não
ser a experimentação com a constitucionalização.
Pegando a constituição da economia como um caso exemplar, para inibir o
crescimento das compulsões patológicas, os estímulos para a mudança precisam gerar
uma contra-estrutura permanente que surta efeitos no circuito de pagamento até as suas
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mais finas capilaridades. Assim como as constituições do poder político são usadas para
limitar o poder, a mediação do sistema-específico precisa voltar-se contra si. Combater
o fogo com fogo; jogar o poder contra o poder; contrapor a lei à lei; lutar contra o
dinheiro com o dinheiro. Tal mediação pela autolimitação seria o critério real de
distinção da transformação através de uma constituição interna da economia e da
regulação política externa.
Candidatos para a constitucionalização capilar criariam ao menos três possíveis
esferas dos “comuns”, entendidas em uma perspectiva ampla.
1) Politização do consumidor: ao invés de serem considerados como já
dados, as preferencias individuais e coletivas são abertamente politizadas através do
consumo ativista, boicote, consumo crítico, ambientalista, litígios de interesse público e
outras expressões da sustentabilidade ecológica. Essa politização da ação econômica
representa uma transformação da própria constituição interna, tocando a área mais
sensível da circulação da moeda, notadamente, o desejo de pagar dos consumidores e
investidores. E isso se torna uma questão de importância constitucional ou, mais
precisamente, uma questão de efeitos horizontais de direitos constitucionais na
economia: como proteger a formação de preferencias sociais contra as suas restrições
através dos interesses corporativos.
2) Ecologização da governança corporativa: o que se busca aqui não é uma
nova ética na gestão, mas antes a transformação interna da estrutura da companhia,
compelida por pressões externas; uma transformação que limita as tendências ao
crescimento da especulação e das compulsões necessariamente associadas com a
emergência das estruturas corporativas modernas. As tradicionais formas de
participação dos trabalhadores na firma precisariam ser reconsideradas nas condições da
globalização para as novas formas de responsabilidade social e ecológica da produção
econômica.
3) Controle público do sistema monetário penetraria o arcanum da
constituição financeira global, como uma proposta de combate ao crescimento
excessivo. A droga viciante é a criação de dinheiro não físico (“fictício”) por bancos
comerciais. Atualmente, a relação entre o papel moeda criado pelos bancos centrais e o
dinheiro fictício criado pelos bancos comerciais é 20 para 80. Bancos comerciais
deveriam ser proibidos de criar dinheiro através do crédito disponível nas contas
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

correntes e, ao invés disso, deveriam ser limitados a oferecer empréstimos que seriam
baseados nas suas reservas existentes. É nesse sentido que o presidente dos EUA
Jefferson demandou já em 1813 “que o direito de emitir moeda deveria ser tomado dos
bancos e retornado para o povo”. Mas quem seria esse “povo” quando se fala em
moeda? Como a criação de moeda seria retornada ao povo? Depois de tudo que já foi
dito, a resposta só pode ser que a criação de moeda pertence à esfera pública, à esfera
dos comuns, que não é ao domínio do Estado. A criação de dinheiro fictício deveria ser
“dada de volta ao povo”; isso deveria se tornar a prerrogativa única das instituições
públicas, que não são as instituições estatais, os bancos centrais nacionais e
internacionais sob o controle democrático.
Essas três estratégias – politização da cidadania econômica, ecologização da
produção econômica e o retorno da criação da moeda ao público – participa em dois
impulsos antinômicos aos mercados globais constitucionalizados. De forma análoga à
análise de Karl Polanyi sobre as transformações da modernidade, existe um
“movimento duplo” de constitucionalismo transnacional: primeiro a expansão de
subsistemas é realizada através de normas constitutivas e, segundo, os turbulentos
conflitos sociais forçam sua inibição através de normas limitativas que criam uma esfera
de comuns no centro da economia.

3. Questão três: a nova lei global seria articulada por uma subjetividade diferente?

Eu apoio a crítica de A. Negri à propriedade privada na medida em que essa


propriedade é o maior obstáculo à formação de um sujeito coletivo que poderia articular
uma política comum. A questão difícil entretanto é como imaginar os novos contornos
de tal sujeito coletivo. De fato, o proletariado e o partido político como a vanguarda de
classe, para não falar da nação ou mesmo da raça, mostraram-se como um grave erro na
formação de sujeitos coletivos. Contudo, a filosofia liberal e a filosofia do sujeito, que
insistem no indivíduo humano como a única subjetividade no processo histórico,
também são inaceitáveis, na medida em que as duas compreendem erradamente a
transformação da sociedade na queda do feudalismo como uma ascensão do
individualismo. A multidão de A. Negri em relação com o comum transforma e
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questiona profundamente essa redução e revitaliza o sujeito coletivo contra o dominante


individualismo metodológico.
Entretanto, eu tenho duas objeções ao sujeito coletivo de A. Negri. A “multidão
em sua totalidade” como o novo ator coletivo não estaria ainda ligado ao tradicional
entendimento de coletividade (como se um número separado de seres humanos
pudessem ser unidos em uma nova comunidade)? Sob a minha perspectiva, a ideia de
um coletivo não pode ser revitalizada como um antônimo do individual. Atores
coletivos não consistem em indivíduos em união. Essas são formulações historicamente
desacreditadas. Uma comunidade não é criada nem na corporeidade de pessoas reais,
nem através de um consenso de suas consciências, mas somente através de sua
comunicação. Comunidades representam jogos linguísticos dinâmicos e vivos, não uma
unidade misteriosa de consciência e corpo – como pensadores organicistas como Gierke
sugerem, e que retornam hoje sob a roupagem de uma biopolítica e de uma
corporeidade. Como consequência, deve-se seguir o ponto de partida de A. Negri (mas
não os seus argumentos coletivistas seguintes), seu recurso aos jogos de linguagem e ao
costume de Wittgenstein, e expandir esse caminho para que os atores coletivos possam
ser identificados exclusivamente como anéis de uma cadeia comunicativa que tematiza
a si mesma e ganha capacidade de ação e de reflexão pelos seus próprios direitos e
através das suas próprias ferramentas, diferentemente da ação e reflexão dos seres
humanos individuais. Coletivos são configurações sociais comunicativas que não
podem ser identificadas com uma reunião/união de pessoas reais. Sem dúvida, a base
material das coletividades são mentes e corpos, mas isso não nos leva à mistificação
holística de A. Negri sobre o sujeito coletivo como uma unidade de corporeidade,
consciência e comunicação.
A outra objeção tem a ver com a fantasiosa onipotência da política. As energias
coletivas da sociedade não podem ser embrulhadas em um grande processo político ou,
nas palavras de A. Negri, “em uma autorregulação autônoma e ativa da multidão em sua
totalidade”. Sente-se aqui uma segunda mistificação holística do autor na retórica sobre
o comum. O potencial coletivo da comunicação da sociedade não existe na entidade da
unidade política em sua totalidade; ela desenvolve seu potencial específico somente
como uma multiplicidade de potenciais, energias e forças sociais altamente específicos.
Essa é a conquista histórica da especialização da mediação comunicacional – poder,
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conhecimento, dinheiro e amor. E somente nesses espaços especializados há o local de


uma nova subjetividade coletiva, local no qual diferentes subjetividades coletivas
constituem a si mesmas dentro de diferentes mundos de sentido/significado.
A auto-identificação de tais subjetividades coletivas se orienta na reflexão das
suas identidades sociais. Como os diferentes sujeitos coletivos definem autonomamente
sua relação com a sociedade como um todo, com os outros sujeitos coletivos e
individuais e também entre eles mesmos? Essa estrutura triádica da identidade social
torna visível sua conexão escondida com a tradição dos direitos subjetivos de autonomia
individual. A autonomia do indivíduo não era entendida como uma pura busca de um
interesse individual ou mesmo como uma vontade de autorrealização. Ela fincava a
relação constitutiva entre a responsabilidade individual para com a totalidade da
sociedade e também perante os outros, que não poderia ser imposta externamente, mas
apenas formulada pela via da internalização singular do mundo na autorreflexão
individual. Assim, é a duplicação da subjetividade, o ser humano individual e a cadeia
comunicativa que não devem e não podem ser fundidas em uma nova entidade. Essa
duplicação cria dois contextos de autonomia e responsabilidade independentes,
diferentes e paralelos. Eu sugeriria identificar a “commonwealth” (comunidade) em sua
dualidade de reflexão individual e social e em sua multiplicidade de centros de reflexão
comunicativos. As sociedades modernas não possuem ápice ou centro, e os comuns não
devem tentar tomar esse lugar. Tal multiplicidade de espaços públicos seria minha
perspectiva contrária à comunidade da “multidão em sua totalidade”.

4. Quarta questão: como a imaginação institucional se desenvolveria?

Novamente, possuímos um ponto de partida comum; a promessa de um futuro


repousa não em uma política institucional do Estado ou nas instituições da governança
global, mas na constitucionalização de processos espontâneos oriundos da sociedade
civil. Aqui, os conceitos de império, multidão e do comum têm de verdade um efeito de
liberação contra as concepções tradicionais estadocêntricas. Contudo, como eu disse, a
bifurcação começa quando compreendo a argumentação de A. Negri por uma
compreensiva e unificante politização da sociedade através do conceito de comuns,
enquanto que eu argumento estritamente pela constitucionalização pluralista, que requer
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

explicitamente a autonomia extensiva das diferentes esferas de racionalidade social.


Isso, contudo, levanta um questionamento crítico ao meu argumento. Isso não implica
que a sociedade se torne despolitizada dentro dessas pluralidades parciais? Dar conta
das múltiplas ordens jurídicas globais realmente requer ir além do pensamento
constitucional centrado na política? E, qual é o calor da constitucionalização sem a
democratização política?
Minha tentativa de resposta é que constituições sociais são fenômenos
paradoxais. Elas não fazem parte da constituição do sistema político na sociedade, mas,
ao mesmo tempo, são preocupações altamente políticas. O paradoxo pode ser resolvido
com a ajuda de uma dupla concepção do político. Esta é uma ideia muito difundida e a
diferença entre le politique (o político) e la politique (a política) é entendida de várias
maneiras (por exemplo, por Lefort, Badiou, Agamben), mas eu interpretaria o duplo
significado do político como segue. Primeiro, por "o político" entende-se a política
institucionalizada - o sistema político do mundo dos estados. Em relação a este mundo,
as sub-constituições sociais "vão à distância"; exigem ampla autonomia contra a
constituição da política internacional. E no que diz respeito à participação do sistema
político no processo das sub-constituições sociais, é necessária uma "restrição política"
particular. Em segundo lugar, o conceito indica o político na sociedade fora da política
institucionalizada. Indica, em outras palavras, a politização da própria economia e de
outras esferas sociais; a política de reflexão sobre a identidade social do sistema social
envolvido. A este respeito, as constituições sociais particulares são altamente políticas,
mas para além do Estado.
Quando leio o último capítulo de A. Negri e as três superfícies nas quais formula
demandas sobre um novo "governo", não encontro nenhum vestígio desse duplo
conceito de política; em vez disso, encontro um conceito totalizante do político em que
o que ele chama de "governo" supostamente constitucionaliza e regula todos os setores
da sociedade. Por que sou céptico em relação à ideia de A. Negri de que um novo
governo político, mesmo que seja fundamentalmente democrático, precisa regular as
estruturas fundamentais das sub-esferas sociais? Se é, em última instância, o maior
privilégio da multidão criar uma constituição para a sociedade, por que eu defendo a
autoconstitucionalização dos setores sociais e não as decisões coletivas da "multidão em
sua totalidade" para toda a sociedade? Novamente, a resposta tem a ver com as
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estruturas sociais básicas da modernidade. Elas tornam necessário redefinir a relação


tradicional entre representação, participação e reflexão. Na sociedade funcionalmente
diferenciada, o governo, mesmo um governo totalmente democrático no sentido de A.
Negri, não pode cumprir o papel de definir os princípios fundamentais de outras esferas
sociais sem causar uma desdiferenciação problemática – como na prática ocorreu nos
regimes totalitários do século XX. Na modernidade, a sociedade só pode ser
constitucionalizada de tal maneira que cada esfera da racionalidade atue reflexivamente
ao desenvolver seu próprio princípio constitucional para si mesma, e os resultados não
podem ser prescritos pelo "governo", seja o antigo ou um novo. A sociedade moderna
considera a participação e a representação como idênticas e, ao mesmo tempo, as anula.
Devemos resistir à ideia sedutora de que um coletivo político unificado representa a
sociedade e que nelas participam outras esferas sociais. Nenhum subsistema social, nem
mesmo a política democratizada, pode representar o conjunto da sociedade.
Certamente, há um papel importante para o processo político geral. Embora não
possa prescrever a constituição da economia e outros subsistemas sociais, pode produzir
impulsos constitucionais para eles. Se a política democrática exercer uma pressão
externa maciça para forçar mudanças em estruturas sociais fundamentais, em conjunto
com outros atores, particularmente os atores da sociedade civil – por exemplo, nas
capilaridades do ciclo de pagamentos da economia – seria uma divisão apropriada de
trabalho. Os sistemas sociais têm as melhores chances constitucionais quando podem
desenvolver suas próprias constituições à sombra da política institucionalizada.
No entanto, qual é o valor da constitucionalização sem uma democratização?
Muito pouco. A constitucionalização das instituições sociais só faz sentido se for
realizada por sua democratização interna. A legitimação democrática de diferentes
esferas sociais deve surgir em relação à sociedade como um todo – mas não precisa
passar pelos canais de um processo político totalizante, o que parece ser a visão de A.
Negri. Enquanto o constitucionalismo social mantém sua distância relativa com a
política institucionalizada e não vê grande potencial democratizador em uma
legitimação mais forte por meio de um processo político geral, a politização e
democratização da economia e de outros setores sociais está no topo de sua agenda.
Politizar um setor social significa desencadear processos intensos e conflituosos de
reflexão coletiva que lidam com as consequências sociais da extensão e da limitação de
57

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seu meio. A politização é realizada por "instituições colegiadas" no público em geral,


como grupos de cidadãos, ONGs, sindicatos, associações profissionais, universidades e
corporações. Uma política de reflexão reforçada é necessária dentro da economia e de
outras esferas sociais que, ao mesmo tempo, precisa ser apoiada por normas
constitucionais. Historicamente, a negociação coletiva, a participação dos trabalhadores
e o direito à greve permitiram novas formas de dissenso societário. Nos atuais regimes
transnacionais terão de ser desenvolvidas instituições de responsabilidade social de
organizações formais que desempenhem um papel semelhante. O constitucionalismo
social vê o seu ponto de aplicação onde quer que torne a existência de uma variedade de
"centros de reflexão" dentro da sociedade e, em particular, dentro das instituições
econômicas, no critério de uma sociedade democrática. Nesses centros de reflexão,
discute-se controversamente e finalmente se decide se, em uma situação concreta, as
compulsões de crescimento do setor social são excessivas ou não.
Se é verdade que “...os sistemas psíquicos e sociais devem desenvolver seus
próprios processos reflexivos de seleção estrutural – processos de pensar sobre o
pensamento ou de amar o amor, de pesquisar em pesquisa, regular a regulação, financiar
o uso do dinheiro ou dominar o poderoso” (Niklas Luhmann), então o
constitucionalismo social não pode se limitar ao Estado de direito e aos direitos
humanos. Sua preocupação primordial deve ser democratizar não só a política
institucionalizada, mas também democratizar todos os setores e todas as instituições da
sociedade. O caráter democrático de uma sociedade não depende apenas da democracia
nas instituições políticas (eleições gerais, referências, políticas participativas etc.), mas
sim da democracia de todas as instituições sociais.
Se isso fizer sentido, então o ponto crucial é este: seria um erro categórico
transferir instituições e procedimentos democráticos que foram desenvolvidos no
sistema político diretamente para outros setores sociais. Este foi um dos principais erros
de 1968. Todo mundo de sentido deve encontrar seu próprio caminho de
democratização. A democracia de poder-política, com sua divisão compulsiva do mundo
na distinção binária progressista/conservadora, prejudicaria a racionalidade adequada de
outras esferas sociais. Democratizar a acumulação de poder para as decisões coletivas
não pode ou mesmo deve ser o modelo nem para a constituição interna da investigação
científica e das universidades, nem para o processo judicial, nem para o setor da saúde,
58

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

nem para os meios de informação ou para a produção economia. O que é necessário, em


vez disso, é generalizar um conceito de democracia a partir das experiências da política
e depois reespecificá-la para as outras esferas da racionalidade. Esta seria a minha visão
da política dos comuns: não na totalidade da multidão, mas nos fragmentos de
policontexturalidade.
No caso do direito, a política eleitoral para os juízes ou o refere legislatif
(referente legislativo) seria o erro categórico. Em vez disso, a medida apropriada é
ampliar radicalmente o acesso à justiça e transformar o processo de litígio privado em
um local de deliberação pública no qual não apenas as partes mas os terceiros
interessados e o interesse geral são ouvidos, apontando para a direção correta porque
respeita a estrutura triádica interna do processo judicial. No caso da economia, isso
significaria transformar as tendências pós-fordistas de descentralização e
democratização funcional em verdadeiros processos de participação da coalizão
produtiva, criando o excedente monetário necessário para garantir as necessidades
futuras da sociedade.

5. Quinta questão: Onde estão as principais diferenças e convergências entre o


constitucionalismo social e a política do comum?

Vou tentar resumir aqui as principais diferenças e convergências entre as nossas


abordagens em três pontos. Primeiro, minha contra-categoria para os excessos do
“privado” não é o “comum”, mas o “público”. Com certeza, este não é o “público” do
Estado, do direito público e da política institucionalizada. Pelo contrário, é o “público
fora do Estado”, dentro da sociedade, dentro dos muitos campos chamados “privados”.
Enquanto o “comum” busca superar a alienação do privado por meio de atividades
coletivas e modos coletivos de atribuição, o “público” tende a fortalecer o espaço de
deliberação aberta e democrática, que encontra suas diferentes formas em cada campo
social. Sem dúvida, a propriedade comum tem um poderoso potencial, que foi
suprimido sob o domínio das políticas neoliberais de propriedade privada. Mas a
escolha entre diferentes atribuições de direitos de propriedade não pode ser decidida a
priori por razões teóricas em favor dos comuns, mas precisa ser governada por
processos de reflexão pública dentro de cada esfera da vida. Os processos de reflexão
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

democrática traçarão limites distintos em cada esfera de vida do que deve ser
legitimamente mantido privado (por exemplo, parte da vida íntima, excludente a outros,
etc.) e o que deve se tornar um empreendimento comum compartilhado por todos.
Em segundo lugar, o que eu chamo de policontexturalidade tem certas
semelhanças com a fragmentação de Império (2002) e Multidão (2004), mas, como
resultado de processos históricos de longa duração, é muito menos fluido e não pode e
não deve simplesmente ser superado por uma imposição política. Em vez disso,
qualquer transformação subversiva da modernidade que queira superá-la, mas
simultaneamente aproveitar suas potencialidades produtivas, terá como uma de suas
prioridades cultivar a policontexturalidade. Se A. Negri quer, como ele diz, construir
não só as ciências naturais e os conhecimentos técnicos (mas também os conhecimentos
sociológicos existentes), teria que considerar centralmente o que considero como os
diagnósticos mais importantes da sociologia da modernidade – as tradições que incluem
a divisão do trabalho de Emile Durkheim, o novo politeísmo de Max Weber, a
diferenciação funcional de Talcott Parsons e Niklas Luhmann, os champs sociaux
(campos sociais) de Bourdieu, terminando em suas formulações mais radicais na
policontexturalidade de Gotthard Günther e no différend (disputa) de François Lyotard.
Devo reafirmar que a policontexturalidade não pode ser identificada exclusivamente
com a diferenciação funcional que domina hoje. Ela é mais abstrata e abre o espaço para
novas diferenciações sociais que hoje testemunhamos parcialmente, incluindo a
multiplicidade de discursos identificados pelos pensadores pós-modernos e a variedade
de distinções culturais híbridas, modos da "altermodernidade" de A. Negri, como
resultado da dupla fragmentação da sociedade mundial. A policontexturalidade, em
minha opinião, não resulta apenas da fragmentação das estruturas de poder do Império,
como A. Negri tende a argumentar. Temos que levar a alta ambivalência da
policontexturalidade mais a sério. Desatando a dinâmica implacável e imprudente das
racionalidades especializadas – não só na economia capitalista, mas em muitos sistemas
funcionais –, reconhecendo como responsável pelas catástrofes da modernidade, pela
alienação dos indivíduos, pelos devastadores conflitos sociais e pelo desastre ecológico.
E, ao mesmo tempo, essa mesma policontexturalidade encarna as condições de
possibilidade para as promessas do siècle des Lumières e da modernidade: a libertação
da razão da repressão religiosa e política, a autonomia do Estado de direito contra o
60

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

poder político e econômico, a democratização do processo político e a sua proteção


contra a corrupção econômica e, por último, a concentração e a limitação do excedente
(mais-valia) social no domínio da ação econômica.
Terceiro, e finalmente, enquanto esses dois pontos levam nossos projetos em
direções diferentes, há vínculos, conexões abertas e convergências ocultas em muitos
outros aspectos que valeria a pena serem trabalhados em detalhes. O constitucionalismo
social e a política dos comuns argumentam contra o quietismo político de muitas
vertentes do pós-estruturalismo, contra o Gelassenheit (serenidade) e contra a espera
passiva de uma nova subjetividade. Ambos identificam o rosto de Janus da modernidade
capitalista – seu potencial autodestrutivo e produtivo – e veem em sua alta ambivalência
as chances de sua “subversão”. Ambos criticam a alternativa estéril do estadocentrismo
versus a propriedade privada, da divisão privado/público, e mudam o foco da atenção
para processos mais amplos na sociedade. Eles descartam as antigas subjetividades
coletivas (classe, vanguarda, nação, raça) e formulam ideias de uma nova subjetividade
na tradição dos jogos de linguagem e do cotidiano (práticas de vida) de Wittgenstein. A
subjetividade não aparece mais exclusivamente como a identidade do indivíduo auto-
refletido, mas como uma rede densa de eventos sociais em suas rupturas e repetições –
autopoiese do coletivo. Em sua crítica aos excessos da propriedade privada e sua
compulsão de crescimento subjacente, ambos defendem uma politização profunda dos
chamados setores privados da sociedade. Em contraste com as teorias contratuais da
sociedade, eles veem os conflitos sociais massivos como a força motriz, mas enfatizam
ao mesmo tempo a necessidade urgente de institucionalizar e constitucionalizar novas
dinâmicas políticas em todos os setores da sociedade. E, talvez o mais importante,
julgam o caráter democrático de uma sociedade não em termos de procedimentos
democráticos formais em políticas institucionalizadas, mas em processos de
democratização dentro de diferentes domínios da sociedade.
61

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

– )

orkers after the labor movement - The case of the (post) industrial region
of Setúbal Abstract

João Santos1

Resumo
A década de 80 foi marcada por um processo de desagregação do modelo industrial que
vinha a ser construído no Ocidente. oi também um período de fragmentação do mundo
operário na grande maioria dos países industrializados, onde o fordismo e o
keynesianismo revelaram os limites das suas potencialidades, abrindo caminho à
emergência de um novo regime de acumulação. Em Portugal, este período de
reestruturação foi também marcado pela integração na CEE, assim como pela recente
memória dos anos revolucionários de 1974-1975. Partindo do caso da região de Setúbal,
onde um movimento operário com fortes tradições de luta conviveu com uma profunda
crise industrial, pretende-se refletir acerca do processo de crise e reestruturação da
economia portuguesa nos anos 80, acompanhando o processo de recomposição operária.
Para tal, a história oral será uma peça central enquanto instrumento de inquérito ao
passado e ao presente em que este passado é recordado, permitindo aprofundar o
conhecimento sobre a subjectividade operária num quadro de composição,
decomposição e recomposição de classe.

Palavras-chave
desindustrialização; classe; memória operária; Setúbal.

Abstract
In general terms, the 1980’s were characterized by the disintegration of the industrial
model that had been built in the Western world up until then. This period was also one
of fragmentation of the working class as a whole in most industrialized countries, where
Fordism and Keynesianism revealed the limits of their potential by paving the way for
the emergency of a new regime of capitalist accumulation. In Portugal, this period was
also marked by the country’s accession to the European Economic Community (EEC)
and by the recent memory of the revolutionary years of 1974-1975. Starting from the
case of the region of Setúbal, where a working class movement with strong traditions of
struggle coexisted with a deep industrial crisis, it is intended to reflect on the process of
crisis and restructuring of the Portuguese economy in the 80s, following the process of
workers' recomposition. For this, oral history will be a centerpiece as an instrument of
inquiry into the past and present in which the past is remembered, allowing to deepen
the knowledge about the subjectivity of the workers within a framework of class
composition, decomposition and recomposition.

1
João Santos é licenciado em Ciência Política pelo ISCTE (2013) e Mestrando no curso de História
Contemporânea na FCSH-UNL, no âmbito do qual desenvolveu a sua dissertação sobre a região de
Setúbal e as profundas transformações industriais e de classe vivenciadas na década de 80.
62

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Keywords : deindustrialisation; class; working class memory; Setúbal.

Introdução

“Se você quer escrever uma dissertação sobre trabalhadores (de


fábrica), você deve ir ao segundo andar, ao departamento de
Arqueologia”

Gigi Roggero, Liberdade Operaísta

Trinta e seis anos depois da publicação do livro Adeus ao Proletariado (1982) de


André Gorz, a tradicional classe trabalhadora - que tem vindo a assistir ao seu declínio
material através de processos de desindustrialização, deslocalização para países com
mão-de-obra mais barata e automação da produção - voltou a fazer títulos de notícias na
sequência de eventos como o Brexit ou as eleições norte-americanas. Face a estes
eventos, ganhou redobrada oportunidade pensar os processos de desindustrialização e
recomposição da classe operária. Neste artigo pretende-se dar um contributo para trazer
a classe operária de volta à história e ajudar a compreender essas transformações que
começaram a dar-se no seu interior na década de oitenta.
Para empreender esse caminho, tomar-se-á como ponto de partida o processo de
desindustrialização na região de Setúbal entre 1979 e 1993 2, tendo um particular foco
nos estaleiros navais da Lisnave e da Setenave, uma vez que devido à dimensão e
também ao simbolismo inerente a estas duas empresas, pode-se certamente afirmar que
os estaleiros representam um significante quer para a história da industrialização em
Portugal quer para o movimento operário organizado. Em última instância –
salvaguardando as particularidades históricas e a própria dimensão material – podemos

2
A escolha do ano 1979 para iniciar esta investigação deve-se ao segundo choque petrolífero, que será
determinante na atividade e futuro dos estaleiros, assim como na vida destes operários. A data escolhida
para balizar um “fim” é por ser um momento de reconversão produtiva, em que se dá a abertura da
Autoeuropa, empresa produtora de automóveis e de alguma forma, exemplo expressivo do pós-fordismo
em Portugal. Desta forma, podemos considerar que 1993 representa um período de transição quer na
região quer na própria história da classe trabalhadora.
63

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

afirmar que a região de Setúbal e os estaleiros da Margueira e da Mitrena estarão para a


classe operária como estiveram Turim e a Fiat ou Detroit e a General Motors.
No entanto, esta reflexão acerca da reestruturação económica vivida em Portugal
nos anos 80 e que teve em Setúbal o ponto alto de tensão social, não pretende ser uma
simples reflexão sobre a história económica em sentido estrito mas sim uma reflexão
feita a partir da recuperação das histórias de vida de operários que trabalharam nestes
estaleiros e que neste período se encontram num quadro de decomposição e
recomposição de classe3.
Partindo do processo de resistência da classe operária neste período, pretende-se
aprofundar o conhecimento sobre a subjectividade operária que, como nota E.P.
Thompson, não sendo um objeto dado de antemão, se constrói a si mesma tanto quanto
é construída (1981, p.121). Em última análise, neste artigo pretende-se encontrar
respostas, ainda que incompletas, a algumas questões lançadas por Mario Tronti acerca
da classe operária neste período: existiu uma derrota operária? Em caso afirmativo, em
que términos, em que dimensões, com que efeitos? (2016, p. 425).

Um diálogo entre E.P. Thompson e o Operaismo

Apesar de ter perdido a sua centralidade no campo das ciências sociais e


humanas nas últimas décadas, a definição de operariado sempre ocupou a atenção de
muitos investigadores tornando uma análise d o conceito digna de vários trabalho s
exclusivamente sobre o tema. No entanto, é importante recuperar um debate que já via
as suas sementes lançadas na introdução do 18 de Brumário de Louis Bonaparte de Karl
Marx. Afirmava este que:
“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua
livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob
aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo
passado.” (1961, p.203)

Trata-se aqui da relação entre a agência e a estrutura, algo que irá atravessar toda
a historiografia acerca da classe operária, mas que teve provavelmente mais impacto no
debate despoletado pela publicação do livro de E.P. Thompson, A Formação da Classe

3
Entrevistaram-se 5 operários que trabalharam quer na Lisnave quer na Setenave. No entanto, uma vez
que este artigo é resultado de uma investigação de maior dimensão no âmbito de um mestrado, aqui as
histórias de vida serão inevitavelmente exploradas sem a mesma profundidade.
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Operária Inglesa (1987). É preciso recordar que este debate surge na década de
sessenta. É um período em que o estruturalismo se tornava hegemónico enquanto forma
de ler o mundo e ao mesmo tempo emergia aquilo que ficou conhecido como a nova
esquerda, uma corrente que estava longe de ser homogénea, trazendo consigo os
primeiros passos para uma viragem culturalista que sempre manteve uma relação
contraditória com a visão estruturalista desenvolvida por autores como Althusser.
No caso concreto da abordagem thompsiana, trata-se de um confronto direto
com essa visão. Como nota Alice Ingerson, as abordagens estruturalistas marxistas ou
não-marxistas sobre o conceito de classe tendem a dividir a classe em duas
componentes, uma de posição de classe e outra de consciência de classe (1981, p.865).
Desta forma os marxistas definem a posição de classe como sendo a relação entre as
pessoas e os meios de produção e os não-marxistas definem classe como grau relativo
na hierarquia de rendimentos e da instrução (ibid.).
Na obra já referida, Thompson visa distanciar-se dessas abordagens onde, como
o próprio afirma, existe a:
“(...) omnipresente tentação de supor que a classe é uma coisa (...) Supõe-se que “essa coisa”,
a classe operária, tem uma existência real, que se pode definir quase matematicamente — uns
tantos homens que estão numa determinada relação com os meios de produção. Com base
neste pressuposto, torna -se possível deduzir a consciência de classe que “essa coisa” tinha de
ter (...) se “essa coisa” estivesse convenientemente consciente da sua própria posição e dos
seus reais interesses. Há uma superstrutura cultural, através da qual este reconhecimento se
manifestaria por vias ineficazes (...) Se pensarmos que a classe é uma relação, e não uma
coisa, não podemos admitir isto (...) “ (1987, p. 10)

De facto, na obra de Thompson, o conceito de classe “entende-se como um


fenómeno histórico unificando um número de eventos aparentemente desconexos, tanto
na matéria bruta da experiência como na consciência”. Este não vê “a classe como uma
‘estrutura’, nem mesmo como uma ‘categoria’, mas como algo que acontece na
realidade (e que pode ser mostrado como aconteceu de fato) das relações humanas”
(ibid.).
Assim, para Thompson, o conceito de classe não é uma estrutura mas um
processo, ou seja, um conjunto articulado de práticas coletivas que ultrapassam o
domínio do económico, do político e do ideológico-cultural (Aguiar, 2011, p.32).
Esta valorização da subjetividade operária, contrariando uma abordagem em que
domina o primado da estrutura, não se absteve de merecer algumas críticas, criando um
aceso debate no seio dos historiadores marxistas inglese s próximos da visão
65

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

estruturalista4. Não havendo aqui o espaço necessário para discorrer sobre um debate
bastante vivo e complexo, importa-nos, no entanto, salvaguardar a importância que teve
a obra de Thompson. Ao resgatar a experiência humana da jaula de ferro da estrutura,
deu as ferramentas necessárias para que outros investigadores não só pensassem o
processo de formação dessa mesma classe mas também pensar o processo de desfazer-
se da classe operária no último quartel do século XX com o aprofundar da
desindustrialização no Ocidente (Garrucio, 2016, p.50). Como nota Roberta Garruccio,
Thompson abriu a porta para que não se descure a experiência operária e as expressões
da mudança social, permitindo olhar de forma crítica para a suposta desaparição da
classe operária, expressão que surge de forma sub-reptícia sugerindo o cancelamento
cultural de uma classe social, que em termos quer percentuais, quer absolutos mais do
que desaparecer se tornou invisível (ibid.).
Esta questão de transformação da classe operária, e não simplesmente o seu
desaparecimento permite-nos fazer manter o diálogo com outra corrente de pensamento
marxista que se começou a desenvolver em Itália nos anos sessenta e setenta, como é o
caso do operaismo. Como nota Antonio Negri, a questão da constituição era um tronco
comum entre o pensamento de Thompson e o trabalho teórico desenvolvido pelo
operaismo (2003, p.113). Na verdade, o conceito a que estes deram o nome de
“composição de classe”, parece-nos ser um complemento necessário à ideia de
“experiência ”, uma vez que prossegue o esforço de desenvolver criticamente a relação
entre a estrutura e a agência dos operários, acompanhando este desenvolvimento por
uma periodização de transformações no seio dessa mesma classe.
Segundo esta corrente podemos olhar para a “composição de classe” como uma
inversão do conceito (desenvolvido por Marx) de composição orgânica do capital. Este
conceito divide-se em duas dimensões: a composição técnica e a composição política,
dizendo a primeira respeito à questão mais objetiva, como é a posição dos trabalhadores
no processo produtivo, os métodos de produção, desenvolvimento tecnológico, entre
outros aspetos relacionados com o sistema produtivo e a segunda dimensão dizendo
respeito ao elemento subjetivo, à identificação das pessoas enquanto trabalhadores, a
aceitação ou não da disciplina patronal e também outros elementos, como crenças,
valores, práticas de resistência, de forma coletiva ou individual, e, claro, formas de
4
Para uma leitura mais aprofundada do debate que opôs a abordagem de E.P. Thompson à abordagem
estruturalista é de conferir: Perry Anderson, Arguments Within English Marxism, Verso, 1980.
66

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

organização (Roggero, 2016, p. 98-99).


Este conceito contribuiu de duas maneiras para inverter a hegemonia de um
estruturalismo mais ortodoxo. Não segue a ideia liberal do livre-arbítrio, antes pensando
a realidade a partir das forças e das relações produtivas que condicionam materialmente
os sujeitos (Negri, 1988, p. 105), mas ao mesmo tempo, olha para a classe operária
como sendo um sujeito dinâmico, composto por necessidade e desejos. Desta forma, o
sujeito operário seria constituído e constituinte e seria desta tensão que surgiria a
transformação do real.
Para além disso, a relação entre estes dois conceitos permite pensar a classe
operária inserida num processo dinâmico de decomposição e recomposição, tendo
obviamente em conta as particularidades históricas em cada momento. Assim, estes
autores olham para o “fazer-se” da classe operária não como um evento confinado a um
único período, mas antes como uma contínua relação entre o desenvolvimento
capitalista e as lutas operárias para o superar (Wright, 2002, p. 78).
Esta abordagem é particularmente visível na periodização feita por Antonio
Negri. Segundo este, podemos assistir a uma primeira fase de produção industrial que
antecede a total utilização dos regimes fordistas e tayloristas, fase definida pela figura
do operário profissional, um trabalhador altamente especializado e organizado
hierarquicamente na produção industrial. A segunda fase seria correspondente à
hegemonia do fordismo e taylorismo, definindo-se pela figura do operário-massa, um
trabalhador não-qualificado, que se desloca dos campos para as zonas industriais e é
colocado a trabalhar na linha de montagem, demonstrado, muitas vezes, a recusa do
trabalho e da fábrica. E por fim, a fase atual corresponderia ao pós-fordismo, com um
regime de produção informático, tendo como figura o operário social que se define em
grande medida pelo trabalho imaterial (Negri e Hardt, 2000).
Estes dois conceitos, o de experiência, desenvolvido por Thompson, e o de
composição operária, desenvolvido num contexto de investigação militante por um
conjunto variado de pessoas organizadas em torno do movimento operaísta, permitir-
nos-ão, por um lado repensar as transformações ocorridas na década de oitenta não
como um processo de fim de um sujeito, mas sim uma decomposição que desembocará
numa nova fase. E a par disto, sublinhe-se que o contributo thompsiano é essencial para
compreender esta decomposição a partir da experiência dos trabalhadores enquanto uma
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

relação historicamente determinada onde estes são sujeitos e não meros objetos ou
números.

O papel da história oral na recuperação da subjectividade operária

Como nota Joan Sangster, há muito tempo que a história oral e a classe operária
estão diretamente relacionadas (2013, p.1). Encontrando as suas vozes ausentes em
arquivos oficiais, a história oral revela a sua principal marca, a capacidade de dar voz a
estes grupos recuperando do vivido conforme concebido por quem viveu (Alberti, p.5).
No entanto, este também é um dos principais debates da historiografia e da sua
relação com a história oral. Serão as fontes orais suficientes por si só ou são apenas
auxiliares das fontes documentais? Importa aqui recuperar o contributo de Alessandro
Portelli; segundo este, as fontes orais têm uma forma e uma credibilidade distintas, que
residem exatamente na sua subjetividade, ou seja, por incluírem o erro, a imaginação, o
desejo, as fontes não só revelam a história acerca do que aconteceu, mas também o
significado da história e, dessa forma, o significado mais do que o “facto” é o que
caracteriza a história oral e a torna um mecanismo necessário para a história da
subjetividade (2008, p.14). Acresce ainda que as posições céticas face ao uso de fontes
orais e à sua validade ou objetividade para pensar o passado, acabam por ignorar a
contribuição da “viragem cultural” ocorrida nos anos 70 e 80, que contribuiu
decisivamente para refletir sobre as próprias fontes escritas utilizadas pelo historiador e
como estas não são espelhos transparentes que nos permitem acesso direto ao passado
(Cardina, 2016, p. 36).
Desta forma, com a história oral não se trata apenas de preencher lacunas,
comprovar ou ilustrar informações contidas em documentos escritos (Ferreira, 1994, p.
9). Ao salvar os sujeitos entrevistados da enorme condescendência da posteridade
(Thompson, 1987, p.123), valorizando as suas vivências e a sensibilidade dos mesmos
e, ao mesmo tempo negando, a memória enquanto terreno estanque e imóvel estimula-se
uma igualdade entre o investigador e o sujeito histórico dentro das suas desigualdades
socioculturais e estabelece-se uma relação de aprendizagem mútua e de práticas
intercambiáveis entre a cultura oral e a cultura letrada (Khoury, 2010, p.11). Trata-se,
portanto, de um método dialógico, em que, como nota Portelli, o conteúdo da fonte oral
68

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

depende largamente do que os entrevistadores colocam como questões, diálogos e


relações pessoais (1997, p.34).
Desta forma, a comunicação funciona de ambos os lados é que, para além das
escolhas do investigador, os entrevistados também tomam um papel ativo no processo,
estudando os entrevistadores que os “estudam” (Ibid. p.36). Assim, o resultado final da
entrevista é produto quer do narrador quer do investigador, o que coloca em causa, ao
mesmo tempo, a ideia de um discurso puro, como por exemplo seria o da classe operária
nos anos 70, discurso de que o historiador seria um mero veículo; o próprio papel do
historiador enquanto produtor do conhecimento histórico neutro, ou seja, no caso da
história operária, a história oral funciona como instrumento para recuperar a
subjetividade desses mesmos operários, equilibrando um terreno que é essencialmente
dominado por fontes “objetivas” como relatórios da polícia ou imprensa (ibid. p.37);
este método recentra a própria subjetividade do historiador no centro da produção
historiográfica, pois apesar do discurso ser produzido pelo entrevistado, nunca deixa de
ser controlado pelo historiador, que escolhe as pessoas a ser entrevistadas e contribui
para a moldagem do testemunho através das suas questões e reações às respostas (ibid.
p. 35).
Em suma, se obviamente se admite que a classe operária fala através da história
oral, esta também fala para o historiador, com o historiador e através do historiador,
colocando-o dentro da narrativa e tornando-o parte da história, interrompendo e
substituindo assim a imparcialidade reclamada pelos historiadores tradicionais (ibdi.
p.39).
Um último ponto a ter em atenção aquando da utilização da história oral como
método é a relação entre a singularidade do entrevistado e o coletivo que representa.
Como podemos pensar a classe operária a partir de biografias se as narrativas dos
entrevistados são construções e apropriações históricas feitas pelos próprios? (Costa,
2015, p.6). Como nota Khoury, existe uma relação entre o coletivo da história e a
experiência biográfica de cada um (ibid, p.12-13).
Assim, apesar da singularidade inerente aos relatos de memórias, estes são
impregnados de discursos sociais cristalizados na língua, cultura e nas práticas
cotidianas do sujeito como um todo. As narrativas são, simultaneamente, individuais e
sociais (Montenegro, 2007, p.117). No caso da classe operária, as enunciações de um
69

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

operário exibem as marcas acumuladas da multiplicidade de determinações objetivas


que pesam globalmente sobre o modo de vida operário, as quais, ao longo da história
singular e coletiva a que são submetidos todos os ocupantes de um mesmo lugar social,
cooperaram para moldar a pluralidade de traços que constituem a sua estrutura de
personalidade (Monteiro, 2013, p. 134)

O caso da região de Setúbal: O nascimento e a queda de uma região industrial

De uma forma geral, a década de 80 é marcada por um processo de


desagregação do modelo industrial e do mundo operário na grande maioria dos países
industrializados onde o fordismo e o keynesianismo revelam os limites das suas
potencialidades históricas, abrindo espaço à emergência de um novo sistema de relações
industriais, mesmo se é verdade que entre o velho e o novo se verificam continuidades
importantes (Lima et al; 1992, p.9). É uma década, que do ponto de vista político-
institucional, tem como ponto de partida a eleição de Margaret Thatcher em 1979 no
Reino Unido e de Ronald Reagan em 1980 nos Estados Unidos da América, acentuando
uma viragem neoliberal que vinha ganhando apoiantes no período anterior (Harvey,
2005, p.1). No caso português, um país semiperiférico saído recentemente de um
processo revolucionário, a década de oitenta representará aquilo que o sociólogo
Boaventura Sousa Santos define como a passagem complexa e contraditória do Estado
Paralelo para o Estado Heterogéneo. De uma primeira fase que permitiu que, mesmo
existindo uma base legal e institucional tipicamente fordista, fosse possível ao capital
privado reestabelecer as condições de acumulação (Santos, 1993, p.32), à entrada na
CEE, em que se deu a criação das condições para uma redução do distanciamento entre
o quadro institucional e as relações sócio-económicas. Respondendo positivamente à
emergência de um novo regime de acumulação, em que o Estado toma papel ativo ao
criar condições para a reconstrução de um novo setor monopolista industrial e
financeiro, tendo em conta as novas condições da economia- mundo e os novos moldes
de acumulação capitalista internacional (ibid. p.37).
Este processo será particularmente visível numa região tipicamente operária
como era a de Setúbal. Ali reuniram-se várias características: crise das indústrias
tradicionais, uma elevada taxa de desemprego, a implementação de novas indústrias, um
70

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

operariado com fortes tradições de luta e a aplicação de um programa de recuperação


económica, apoiado pela CEE (Lima et al; 1992, p.9).
No entanto, torna-se impossível compreender a grave crise económica e social
que afetou a península de Setúbal sem ter em conta a complexidade do processo de
industrialização desta região. Apesar do grosso da industrialização se dar a partir da
década de 60, a península de Setúbal sempre foi uma região privilegiada pelos diversos
tipos de indústria.
Se já nos séculos XVI e XVIII existia alguma indústria na região, no século XIX
começa a ganhar forma um verdadeiro desenvolvimento industrial. Este processo terá
uma explosão no período da Regeneração, permitindo que, aquando do início do século
XX, a Península de Setúbal fosse uma das regiões com maior diversificação sectorial a
nível nacional, integrando a cintura de concentração industrial que se começava a
configurar em torno de Lisboa (Soares, 2000, p.62).
No século XX, a região só volta a conhecer um desenvolvimento industrial mais
acentuado entre os anos trinta e quarenta. É neste período que, usufruindo do tímido
desenvolvimento industrial permitido no quadro do Estado Novo, a península vai
receber grandes empresas, como os estaleiros Parry & Son em Cacilhas, as oficinas da
CP no Barreiro e obviamente a C UF . Este processo de industrialização é claramente
caracterizado por atividades intensivas em capital e trabalho e que se baseiam em
economias de escala (Ibid. p.63).
Contudo, o verdadeiro salto industrial na península de Setúbal só ocorre com o
lançamento dos planos de fomento na década de sessenta. Desfrutando da “fase de ouro
do desenvolvimento industrial” (Lopes, 1998, p.84) em Portugal – que se deve em
muito à adesão à E TA e à “vitória” dos setores industrialistas sobre os agrários - a
Península de Setúbal logo no inicio da década de sessenta (período em que se encontra
em vigência o II Plano de Fomento) recebe os estaleiros da Lisnave que se vão sediar
em Almada, e a Siderurgia Nacional, que se vai sediar no Seixal, sendo estas as mais
relevantes a nível tecnológico, de capital investido e de mão-de-obra (Soares, 2000, p.
65).
Na década de setenta, os tipos de indústria diversificam-se, salientando-se a
chegada da indústria eletrónica através da Plessey AEP (telefones e centrais telefónicas),
com uma fábrica em Corroios; da indústria automóvel, que se concentrará
71

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principalmente no concelho de Setúbal através do Entreposto Industrial, da IMA e da


Movauto e, ainda, do ramo da celulose e papel e da construção e reparação naval, que se
vão também instalar no concelho de Setúbal, através da Socel e da Inapa, no primeiro
caso, e da Setenave no segundo (ibid. p.65).
Podemos pois ver que o processo de industrialização na península de Setúbal
acompanhou em grande medida os instáveis surtos de industrialização em Portugal,
tornando a península numa bolsa industrial que manteve uma complexa coexistência de
paradigmas tecnológicos, organizacionais e económicos no desenvolvimento das
estruturas industriais. Se numa primeira fase este surto – anos 50 e primeira metade dos
anos 60 – acompanhou a política de substituição de importações (como é o caso dos
adubos, aços e cimentos), numa segunda fase, aberta na década de setenta, a expansão
industrial virou-se a exportação, através da já consolidada indústria de construção e
reparação naval e, mais tarde, do setor da montagem automóvel, eletrónica e pasta de
papel, beneficiando em muito da abertura iniciada com a adesão à EFTA (Guerra, 1991,
p.848).
Este surto de industrialização que se inicia a partir da década de sessenta
acarreta uma outra transformação na região de Setúbal, relacionada com a imigração do
Alentejo para estas zonas industriais da península. Como nota Maria Teresa Rosa,
“Setúbal é, no contexto do país, um caso verdadeiramente excecional, pela constância
da atracão que exerce (...) ” (1998, p.30). Na verdade, a partir da década de 50, assiste-
se a um crescimento substancial da população, ultrapassando a média de crescimento
nacional. Entre a década de sessenta e setenta a população assiste a um crescimento de
3,24%, sendo que, entre a década de setenta e oitenta o crescimento populacional
encontra-se entre os 3,76%5. Esta imigração veio sobretudo do sul do distrito, à procura
de emprego nas grandes empresas que emergia m neste período e criando novos
problema s , especialmente relacionados com a forte dependência do mercado de
trabalho por parte destes trabalhadores, uma vez que 85,7% deles dependia totalmente
dos seu salários, não tendo outro tipo de rendimento que possibilitasse cobrir as
necessidades em tempos de crise económica.
Marcada pelas inconstantes apostas industriais em Portugal, a península de
Setúbal conheceu entre os anos sessenta e setenta um crescimento rápido do setor
5
Veja-se o documento oficial Operação integrada de desenvolvimento da Península de Setúbal: 1989-
1993. - [Lisboa]: Secretaria de Estado do Planeamento e do Desenvolvimento Regional, 1990.
72

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industrial, caracterizado pela instalação de empresas multinacionais, cuja atividade


industrial se especializa em setores muito dependentes do exterior, quer ao nível
energético e de matérias-primas quer ao nível do capital implantado, para além de ser
uma industrialização pouco diversificada, onde as quatro principais unidades de
produção concentravam, em 1984, 33% do emprego (Torres, 2001, p.43).
Estas questões serão cruciais para explicar a trajetória desta região ao longo da
década de oitenta, período que será um ponto de viragem. A nível internacional, a
década abre com os efeitos do segundo choque petrolífero de 1979. Mais do que uma
crise energética, o choque rapidamente criou uma recessão da economia europeia,
revelando as fragilidades da economia portuguesa (Lains, 2012, p.402). Os anos que se
seguem revelam um crescente défice da balança de transações correntes, fazendo com
que Mário Soares, primeiro- ministro do governo de bloco central, assinasse um
segundo acordo com o FMI, aplicando fortes cortes orçamentais e aumentos de
impostos. Vive-se assim o período das chamadas políticas de “estabilização”, cujo
principal objetivo era reduzir o défice da balança de transações correntes, uma política
essencialmente assente na travagem da economia (contração da procura global:
consumo e investimento) e não no aumento da produção (Torres, 1996, 86). Neste
quadro recessivo, o setor industrial, e em particular o setor metalúrgico e
metalomecânico da península de Setúbal, será completamente abalado, criando uma
situação económica e social insustentável a curto prazo.
Os efeitos da crise serão dramáticos na região encontrando-se também no centro
dessa crise os estaleiros navais da Lisnave e da Setenave. Fundadas em 1961 e 1971
respetivamente, estas empresas nascem num contexto económico internacional
favorável em que o fecho do canal do Suez e o agravamento da situação no Médio
Oriente leva a que a rota do Mediterrâneo feita pelos superpetroleiros fosse substituída
pela rota atlântica, o que levou a um aumento exponencial no volume de reparações por
parte da Lisnave (Varela, 2010, p.348) e a uma cada vez maior necessidade de dar
resposta ao mercado levando a que os acionistas da Lisnave projetassem também o
estaleiro da Setenave6. Nestes dois estaleiros formar-se-á uma cultura operária bastante
radicalizada que em 1969 dará início a um ciclo de lutas que terá como ponto alto o

6
Apesar da Setenave ter surgido como estaleiro complementar da Lisnave, o processo revolucionário de
1974/75 levará à nacionalização da primeira, criando assim uma bifurcação de caminhos entre estas duas
empresas que só voltarão a ser unificadas já na década de 90 com o processo de reprivatizações.

73

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biénio revolucionário de 1974/75 que derrubou a ditadura do Estado Novo e marcou


profundamente o sistema produtivo e a relação de forças na sociedade portuguesa7.
No entanto, os estaleiros a partir dos últimos anos da década de setenta são
assolados por salários em atraso, despedimentos e constantes reestruturações, o que
abrirá portas à reversão do quadro criado pelo processo revolucionário. Entre 1980 e
1994, os estaleiros da Lisnave e da Setenave em conjunto haviam perdido 10.636
trabalhadores.
Em 1989, dá-se a privatização da Setenave, passando o estaleiro a ser explorado
pela Solisnor (um consórcio entre a Lisnave, a Soponata e noruegueses da Barber
International, Wilhelmsen e Platou), e nove anos depois, já em 1998 os Mello8 compram
a Setenave ao Estado por 5 milhões de contos. No ano 2000, o estaleiro da Margueira,
onde se encontrava a Lisnave, é desativado, transferindo-se esta para a Mitrena, onde se
encontrava a Setenave antes da sua privatização.
Esta cronologia entre o choque petrolífero de 1979 e 1993 pode ser dividida em
dois momentos que não se encontram necessariamente separados. Um primeiro,
marcado por um conjunto de conflitos, que se articulam entre o confronto direto e um
clima de tensão nos estaleiros e um segundo momento que leva à chamada “paz social”
e à crise de um certo tipo de composição operária. A partir da memória dos operários
que viveram este período na primeira pessoa, tentarei na secção seguinte analisar, dentro
das limitações de espaço, estes dois momento que levaram a profundas as
transformações no seio deste corpo operário de fato de macaco e capacete que ocupou
um papel de destaque entre a década de sessenta e o início dos anos noventa.

A classe operária em recomposição

Em 1986 aquando de um seminário intitulado “Acreditar no futuro – saudar o


presente”, o então ministro do trabalho e segurança social do X Governo Constitucional,
Mira Amaral, afirmava que a região de Setúbal vivia “uma difícil transição entre aquilo
a que se convencionou chamar a Segunda Revolução Industrial e um novo modelo (...)

7
Uma vez que por limitação de espaço não é possível aprofundar os acontecimentos ocorridos no biénio
revolucionário veja-se o trabalho de Miguel Perez, Contra a Exploração Capitalista. Comissões de
Trabalhadores e Luta Operária na Revolução Portuguesa (1974-1975), Dissertação de Mestrado, 2008.
8
Uma das principais famílias da classe dominante portuguesa. Sendo que José Manuel de Mello era o
presidente do conselho de administração da Lisnave.
74

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designado por Terceira Revolução Industrial.” (1986, p.6) Tratava-se pois de uma
transição, passando de um modelo de indústria pesada para uma indústria ligeira, com o
uso de tecnologias de forma descentralizada contra processos de produção em massa
(idem). Segundo este, dever- se- ia passar de “um pequeno número de grande s
organizações para uma nuvem industrial móvel, flexível e inovadora” (ibid. p.19).
Esta nova semântica que contrapunha flexibilidade e inovação à rigidez e
massificação tornar-se-á hegemónica, permitindo aos empregadores fazer uma maior
pressão sobre o controlo do trabalho numa mão-de-obra que se encontrava enfraquecida
por duas crises selvagens de deflação (Harvey, 1991, p.147). Com o surgimento deste
“novo espirito do capitalismo”, dá-se uma transformação profunda na organização do
trabalho, através de formas como a polivalência, autocontrolo ou desenvolvimento da
autonomia (Boltanski e Chiapello, 2009, p.240). Desta forma foi possível transferir para
os assalariados o peso das incertezas do mercado (idem).
No entanto, a transferência não ocorrerá de forma pacífica. Se é verdade que os
anos oitenta são marcados por uma retomada ideológica do patronato, nos locais de
trabalho foram utilizadas técnicas bastante violentas para liquidar o contrapoder
operário que havia surgido com a revolução de abril (Telles, 2006, p.17).
De facto, este período pode ser pensado a partir de um processo que Marco
Revelli define como a passagem de uma ética da solidariedade, uma mistura de valores,
regras de vida, de memórias e certezas que fizeram a alma e a identidade do movimento
operário para uma “ética da sobrevivência” que alimenta o individualismo competitivo e
que, numa gestão supostamente racional da crise (1982, p.100), abrindo assim as portas
para a decomposição de uma determinada cultura operária, representada na figura do
operário naval. Como nota Cipriano P.9, um dos operários entrevistados:
“Houve um processo de desgaste e de tentar derrotar a malta através da fome,
não é... depois começou a haver despedimentos coletivos, começou a haver a
malta... numa fase, começou a haver uma situação que foi a abertura de
rescisões voluntárias. Portanto a saturação em determinada fase foi tanta que
de um dia para o outro... epá não digo de um dia para o outro, mas no prazo
de quatro, cinco dias, uma semana, na primeira leva de rescisões voluntárias
foram à volta de 2.000 pessoas. Quer dizer, é uma coisa... isso depois tem
influência na participação, na organização das pessoas”

Expressões como “desgaste”, “levado ao extremo” ou “vergar” tornam-se parte


do vocabulário destes operários e a necessidade de procurar outras soluções que não as

9
Entrevista com Cipriano P. no dia 16.03.2016.
75

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

organizadas no seio do movimento operário tornam-se frequentes. No entanto, se


começam a ser observáveis condutas individuais de caráter utilitarista, que se
manifestam através da aceitação dos processos de rescisão voluntária dos contratos de
trabalho (Rosa, 1988, p.54), também é verdade que a conflitualidade se manteve em
níveis elevados.
Vive-se de facto aquilo que James Scott refere como um testar de limites (2013,
p.264), em que os operários se encontram, por via dos salários e atraso e dos
despedimentos, num contexto em que o confronto aberto é pensado com prudência,
levando a que no quotidiano do estaleiro as tais formas infrapolíticas de resistência
ganhem vida. Um dos espaços onde isso é visível é o “desemprego”. Como recorda
Francisco T.10 outro dos operários entrevistados:
“ (...) a Lisnave tinha um refeitório onde o pessoal que estava no
“desemprego” ia para onde? Não ia para casa, numa primeira para um
refeitório, enchia. Quando a gente não tinha trabalho ia para o... era o
chamado desemprego, desemprego porque não tinha trabalho (...) havia
situações em que havia 100 ou 200, havia outras situações que havia lá
milhares por isso é que há uma fase nesse plano que era também para criar
aqui, mas no entanto o pessoal lá falava uns com os outros, estava
organizado, falava -mos uns com os outros, havia aqueles que jogavam às
cartas, havia aqueles que liam, havia aqueles que dormiam, e havia aqueles
que falavam, falava-se muito, então o patrão, nesta... digamos reorganização,
uma das reivindicações do patrão era pôr-nos em casa não é? (...). Ora, pa
havia muita malta ‘pa isso interessa, a cabecinha não funciona’, está lá fora
não está cá é logo meio caminho andado para não entrar essa é a primeira,
segunda não fala com os outros, não fala com os outros que estão mais
despertos para os problemas, para a política e as consequências e as saídas e
alternativas, está lá fora está desorganizado não é? (...)”

O refeitório enquanto espaço que recebia os operários que não tinham trabalho
ocupava aqui um papel quase semelhante ao das tabernas no século XIX enquanto
espaço social, de partilha de discursos anti-hegemónicos (Scott, 2013, p.176), onde se
“jogava às cartas”, “lia” e “falava-se muito”, ou seja, um espaço onde os operários se
podiam organizar dentro do próprio estaleiro no seu horário laboral. No entanto, assim
como os espaços de sociabilidade dos grupos marginais do século XIX, também aqui
houve uma “vigilância a partir de cima” (ibid., p. 179), que é recordada por rancisco
como uma forma de atomização imposta pela administração visando desorganizar os
operários.
Para além destas formas de discurso oculto, o estaleiro da Lisnave também se

10
Entrevista com Francisco T. no dia 10.04. 2016.
76

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

tornava palco de ações voluntaristas por parte de grupos informais de operários,


criando- se assim uma declaração aberta desse mesmo discurso oculto (ibid., p.269).
Como recorda Francisco:
“... a comissão de trabalhadores (CT) queria controlar tudo mas não
controlava neste período não controlava, eu muitas semanas eu e outros
juntávamos 20, 30, 40, 50 independentemente da CT à revelia da CT e eles se
aparecessem inclusive eram escorraçados por quererem controlar, a malta
entravamos no edifício da administração, e íamos lá aos gabinetes e o caraças
porque muitas vezes a administração não vinha para aí porque epa a malta
não tinha defesas tinha que ir lá era assim.”

Assiste-se assim a um ambiente de instabilidade, onde este tipo de ações sem


enquadramento por parte da comissão de trabalhadores e sem qualquer outra estrutura
formal se tornam parte do quotidiano no estaleiro. De alguma forma estas formas de
voluntarismo mais radical, que visava pressionar e até ameaçar diretamente
a
 administração, acabam por tornar-se uma “armas dos fracos”11 neste período mais
intenso da crise.
No entanto, estas não são as únicas formas de resistência por parte destes
operários. Outros eventos tradicionalmente enquadrados no campo político foram por
eles vividos intensamente e marcaram este período. Foram três os momentos de maior
conflito neste período: a greve geral de fevereiro de 1982, a greve de sete semanas na
Lisnave durante a qual se sequestrou um navio e, por fim, o bloqueio da ponte 25 de
Abril. Não havendo espaço para aprofundar o que ocorreu em cada um destes
confrontos ficam as palavras de Cipriano P. que sintetizam bem este período:
“Tu... tu a moral que saíste daquilo, mesmo que não... podendo não ganhar...
mas ganhaste uma coisa, que foi a dignidade das pessoas. “Epá estes cabrões
estão-nos a fazer isto mas a gente também lhes faz a vida negra”.

De facto, a derrota acabou por se consumar nos estaleiros mas, enquanto foi
possível, construíram-se várias formas de resistência como as que vimos, resistência
essa que se realizava já não só pelo salário ou pelas condições de trabalho mas também
pela dignidade sob ataque.
A segunda metade da década de oitenta é marcada por uma mudança na
resolução do conflito. Desgastados pelo prolongamento da tensão, salários em atraso e

11
Entenda-se aqui a expressão “arma dos fracos” no sentido algo variado que lhe atribui James Scott:
“Tenho em mente as armas comuns de grupos impotentes: arrastar o pé, dissimulação, falso cumprimento,
ignorância fingida, calúnia, incêndio criminoso, sabotagem, e assim por diante” in James Scott, Weapons
of the Weak: Everyday Forms of Peasant Resistance, Yale University Press, 1985, p. xvi.
77

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

consecutivos despedimentos as formas institucionais como é o caso do pacto do social


entram em cena. Não sendo algo que tenha surgido apenas na segunda metade dos anos
oitenta12, será o pacto social assinado em 1986 na Lisnave aquele mais marcou este
período. Assiste-se a uma tentativa de recuperar o conflito social para dentro do sistema
e torná-lo funcional. No entanto, se é verdade que estes processos visam a pacificação
da classe operária, trata- se sempre de um processo dinâmico e inacabado, o qual, mais
do que ser compreensível simplesmente enquanto “derrota” ou declínio, ganha em ser
visto como crise e decomposição. Como escreveu Antonio Negri num texto de final dos
anos 60:
“ Uma vez reconhecido o antagonismo, o problema é torna-lo funcional de tal
forma que previna um dos polos do antagonismo de se soltar para um ação
destrutiva (...) a classe operária deve ser controlada funcionalmente dentro de
uma série de mecanismos de equilíbrio que se irão ajustar dinamicamente de
tempos a tempos (...) O Estado está agora preparado para descer à sociedade
civil, para recrear continuamente a fonte de legitimidade num processo de
reajustamento permanente das condições de equilíbrio” (1988, p.7)

O processo que se seguiu à assinatura do pacto social na Lisnave alterou


radicalmente o terreno sobre o qual estes operários se moviam, alterando também a sua
condição e a sua configuração. O estaleiro que nos anos setenta representava um lugar
que dava significado e substância a estas existências individuais, o lugar onde se
encontrava não só a base do significado político mas também valores partilhados, vai
sendo desmantelado (Revelli, 1996, p.116), dando lugar a um espaço de
individualização e competição entre operários.
Este novo cenário desenvolve-se de duas maneiras. Por um lado, a maioria dos
trabalhadores entrevistados viram-se obrigados a criar pequenos negócios pessoais ou a
trabalhar em pequenas empresas no seguimento do seu despedimento, acabando por se
adaptar à rápida reconfiguração do território industrial, que substituiu a indústria pesada
pelos serviços e uma indústria com características pós-fordistas (o caso da Autoeuropa).
Por outro lado, deu-se uma profunda transformação no seio dos estaleiros, onde se
tornou dominante dualização dos assalariados. Como referem Boltanksi e Chiapello:
“As novas práticas das empresas conjugam seus efeitos para diversificar ao extremo a
condição salarial, inclusive entre o pessoal empregado num mesmo local, cujos
membros podem estar ligados a um grande número de empregadores e ser geridos

12
Já em 1983 havia sido assinado o primeiro pacto social na Setenave apesar de não ter o peso simbólico
do pacto assinado na Lisnave três anos mais tarde.
78

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

segundo regras diferentes em termos de salário, horários etc.” (ibid., p.254).


Este “novo espírito do capitalismo”, alicerçado essencialmente no outsorcing de
trabalhadores, deixa-nos assim perante “um mosaico de pessoas às quais se aplicam
tantos estatutos quantas são as empresas representadas no local de trabalho.
Encontramo-nos assim perante uma fase embrionária de passagem do sujeito
produtivo13 a este novo tipo de sujeito, por via daquilo que Maurizio Lazzarato
denomina como “construção do capital humano” (2006, p.3).
Como este nos diz,” capitalização é uma técnica que é suposto contribuir para
transformar o trabalhador em um fragmento do capital (“capital humano”), isto é, que
tem que garantir a sua forma de valorização ao gerir todas a suas relações, as suas
escolhas, os seus comportamentos de acordo com a lógica do rácio custo/investimento e
de acordo com a lei da oferta e da procura” (idem). Sendo ainda um processo algo
embrionário e contraditório neste período, estes trabalhadores viram-se obrigados a
fazer escolhas entre trabalhar ou reivindicar direitos; manter-se no seu posto de trabalho
ainda seguro ou ir trabalhar para um empreiteiro onde se ganha mais ou ainda, como no
caso de alguns trabalhadores entrevistados, entrar num mundo de pequenos negócios.
Esta nova lógica de competição que se construiu sobre os escombros das comunidades
operárias abre as portas a uma nova figura produzida numa sociedade vista como uma
empresa, a que se veio chamar de forma mais comum: empreendedor. Voltando ao nosso
ponto de partida, todo o conflito que se viveu na região de Setúbal e nos estaleiros da
Lisnave e da Setenave em particular encerrou-se no início da década de noventa com
um período de transição marcado pela inauguração da Autoeuropa e de um novo
conjunto de empresas e o nascimento de uma nova composição operária.

Considerações Finais

Partindo do conceito de composição operária e de experiência tentou-se de


alguma forma fugir a dois tipos de explicação e narrativa historiográfica: uma que

13
Como sugerem Pierre Dardot e Christian Laval na sua obra The New Way of the World – On Neoliberal
Society: “O sujeito produtivo foi o grande produto da sociedade industrial. Não se tratava apenas de uma
questão de aumentar a produção material. O poder tinha também que ser redefinido como essencialmente
produtivo, como parte da produção, cujos limites seriam apenas delimitados pelo impacto da sua ação na
produção. O correlato deste poder produtivo era o sujeito produtivo – não apenas o trabalhador mas o
sujeito que produz bem-estar, prazer e felicidade em todas as áreas de existência”, p. 287.
79

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olhava para este processo como se de uma modernização quase naturalizada se tratasse,
em que os custos humanos apesar de desagradáveis se tornaram necessários face à
racionalidade de mercado; e um outro tipo de explicação que olhava para esta questão
apontando à “traição” por parte das cúpulas sindicais, que teriam facilitado o
desmantelamento do corpo operário e a sua derrota.
Sem desvalorizar contributos que resultem destas duas narrativas
historiográficas tentou-se neste artigo trilhar um caminho no sentido da elaboração de
uma “história operária do capital” (nas palavras de Mario Tronti), tomando como
elemento chave os comportamentos da classe trabalhadora no seio das relações
capitalistas de produção (Noronha, 2004, p.33-53). Para tal, a história oral enquanto
metodologia aliada ao diálogo teórico entre E.P Thompson e a corrente operaista
permitiu compreender um duplo movimento. Por um lado, foi possível aceder ao relato
de um conjunto de fenómenos que de alguma forma deixaram aquilo que Richard
Sennett denomina como “as feridas escondidas” da classe operária (1972), sendo
possível inquirir a forma como todos estes acontecimentos ganham um significado e são
relembrados como dissolução de uma determinada composição operária e da sua
estrutura de sentimentos. No entanto, por outro lado foi também possível acompanhar
um outro movimento, neste caso, um movimento constitutivo de uma determinada
identidade que acabou por se manter no presente, apesar da experiência fragmentada do
pós-fordismo. O estaleiro e os processos conflituais ocuparam também um papel
agregador da comunidade operária tendo como peça central a dignidade, quando nada
mais restava.

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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

A travessia de Eder Sader: da grande tarefa aos pedaços de


experiência

The crossing of Eder Sader: from the big task to the fragments
of experience

Alexandre F. Mendes1

Resumo
O artigo busca apresentar a trajetória político-teórica do sociólogo brasileiro Eder Sader,
com ênfase nas inflexões que o autor realiza na direção de um pensamento que
acompanha os novos estilos de ação política dos personagens que entravam em cena no
Brasil, entre 1975 e 1985. Como conclusão, os conceitos do autor são prolongados para
pensarmos a atual crise política brasileira através de seis pontos distintos, que nos
indicam a necessidade de uma nova travessia.

Palavras-chave
sociologia; Eder Sader, sujeitos políticos, lutas sociais.

Abstract
The article seeks to present the political-theoretical trajectory of the Brazilian
sociologist Eder Sader, with emphasis on the inflections made by the author in the
direction of a thought that follows the new styles of political action of the characters
that emerged in brazilian scene between 1975 and 1985. As a conclusion, the concepts
of the author are prolonged to think the current Brazilian political crisis through six
distinct points, which indicate the need for a new exodus.

Keywords
sociology; Eder Sader, political subjects, social struggles.

Introdução

O resgate, através deste texto, da trajetória teórico-política do sociólogo


brasileiro Eder Sader possui um duplo significado: primeiro, é uma homenagem pelos

1 Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ.


84

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

75 anos de seu nascimento, completados, de forma quase silenciosa 2, em 07 de agosto


deste ano; segundo, na linha de reflexão deste Seminário, é uma tentativa de trazer para
a atualidade um tipo de abordagem – um olhar – que poderia nos auxiliar no
enfrentamento do fim do ciclo político iniciado, em 1988, na denominada “Nova
República”.
A vida de Eder Sader, como a de outros militantes políticos da sua geração, foi
atravessada por perseguições, exílios, sofrimentos e dilemas intermináveis. Ele assistiu,
no interior das agitações latino-americanas da década de 1960, ao progressivo
desmoronamento das utopias que marcaram a sua época e ao seu posterior
esfacelamento em uma miríade de fragmentos perdidos, dispersos e corroídos pela
confusão e pela violência dos acontecimentos.
E como ele resistiu? Como ele caminhou pela tormenta? A travessia de Eder é
marcada pela paulatina descoberta de que o tempo-longo de uma grande derrota pode
ser formado também por uma série de temporalidades intensivas e de “pedaços” de
experiências que permitem novas aberturas e possibilidades. Não nos referimos aqui a
uma descoberta arquimediana, através da qual a verdade vem à tona na forma de uma
solução redentora. Foi preciso fabricar, juntando retalhos, e com o empurrão de
múltiplas e descontínuas trajetórias de luta, as ferramentas que irão captar a emergência
de novos personagens que resistiam nas conjunturas mais adversas.
Da experiência de juventude no Brasil, ele herda a crítica ao projeto nacionalista
e industrializante do Partido Comunista Brasileiro e, ao mesmo tempo, a vivência do
impasse e das infinitas cisões entre as táticas de luta do pós-1964. Do Chile, carrega a
análise dos movimentos sociais urbanos, agrários e sindicais, o embate entre
reformismo e ação revolucionária, e a experiência de mais um golpe militar. Do novo
exílio na França, traz a organização de uma rede de solidariedade aos perseguidos
políticos do Cone Sul, o contato com as críticas europeias ao stalinismo, a herança das
barricadas de 1968 e a proximidade com as lutas autônomas italianas3.

2
Podemos citar, como exceção, o prêmio CLASCO Eder Sader instituído em 2014, que selecionou
artigos acadêmicos, publicando-os em 2016. Cf. TAVARES, A. et al. Movimentos populares, democracia
e participação social no Brasil [et al.]; prólogo de César Barreira. Ciudad Autónoma de Buenos Aires:
CLACSO, 2016.
3
Uma parte de sua biografia, utilizada no presente artigo, foi resumida no obituário escrito por Marco
Aurélio Garcia: Eder Sader – o futuro sem este homem, publicado em setembro de 1988. Disponível em:
http://www.teoriaedebate.org.br/materias/nacional/eder-sader-o-futuro-sem-este-homem?page=0,0 Acesso
em 04 de outubro de 2016.
85

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

De volta ao Brasil, com a anistia de 1979, realiza uma grande imersão na


constelação de atividades e agitações que marcaram o momento de abertura política: a
emergência do novo sindicalismo, os novos movimentos sociais, os debates nas
universidades, as atividades de mobilização para a fundação de um novo partido etc.
Eder Sader já havia retirado dos ombros o pesado fardo das “grandes tarefas”, marca da
sua prática política de juventude, e está pronto para encontrar as subjetividades
emergentes que farão parte da fase final de sua jornada.

Do POLOP ao início da autocrítica

Eder inicia a sua militância política em 1961 participando da formação da


Organização Marxista Revolucionária Política Operária (POLOP4) que, segundo
documento publicado na ocasião de um dos seus congressos, propunha “a formação de
um partido revolucionário marxista (...) como premissa da revolução socialista no País”,
colocando entre as suas tarefas prioritárias, “o problema prático da penetração orgânica
na classe operária” 5.
Coerente com as diretrizes da organização, Sader publica, em 1968, sob o
pseudônimo de Raul Villa, um artigo6 defendendo a urgência de uma ruptura com as
concepções reformistas da luta de classes e, diante da crise política brasileira, a
necessidade de amadurecer uma “esquerda revolucionária” que, segundo o autor,
avançava através da unidade entre a política do próprio POLOP e de uma significativa
dissidência que se operava no interior do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Esse processo de “amadurecimento”, que deveria culminar na formação de um
partido revolucionário leninista constituído como uma “vanguarda efetiva da classe e da
revolução”, dependia de outras duas condições: “a presença revolucionária no meio da
massa (...) com o fim de criar nas lutas diárias uma nova liderança nas fábricas” e “a

4
Sobre a POLOP, conferir: CENTRO DE ESTUDOS VICTOR MAYER. POLOP: Uma trajetória de luta
pela organização independente da classe operária no Brasil. Salvador: CVM, 2009. Disponível em:
http://centrovictormeyer.org.br/wp-content/uploads/2010/04/Polop-Uma-trajetoria-de-lutas.pdf Acesso em
04 de outubro de 2016.
5
Cf. MENDES, Eurico. O crescimento do movimento operário e as tarefas da vanguarda. In: Política
Operária, n. 06, 1963, p. 51.
6
SADER, E. A crise do reformismo e a formação do partido revolucionário. In: Revista Marxismo
Militante Nº 1, 1968, s/p. Utilizamos a versão disponibilizada em: http://centrovictormeyer.org.br/wp-
content/uploads/2011/03/A-crise-do-reformismo-e-a-forma%C3%A7%C3%A3o-do-Partido-
Revolucion%C3%A1rio.pdf Acesso em 04 de outubro de 2016.
86

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

deflagração e o desenvolvimento da guerrilha no campo” que teria a capacidade de


colocar “toda a luta política num nível superior e acelerará a mobilização nas cidades”7.
Durante a década de 1970, após duas experiências de exílio e derrota política
(Brasil e Chile), e logo após o fim trágico dos focos de luta armada que polvilharam
entre 1968-75, o sociólogo passa a publicar uma série de críticas à linha política da
POLOP e inicia uma profunda reavaliação das concepções defendidas na década
anterior.
O primeiro conflito público8 ocorreu durante a elaboração da revista Brasil
Socialista, que reunia militantes brasileiros exilados na Europa em decorrência do AI-5,
girando em torno do papel da “luta por liberdades democráticas” nas táticas
revolucionárias e a criação de uma plataforma política heterodoxa para a realização de
um enfrentamento contras as ditaduras da América do Sul. Uma das principais
lideranças da POLOP, Eric Sach, cujos pseudônimos eram Ernesto Martins, Eurico
Mendes ou Eurico Linhares, combateu com veemência aquilo que denominou de
“abandono prático de uma política para a classe operária” 9.
Eder Sader respondeu a acusação com uma extensa avaliação da história da
POLOP, afirmando uma crítica da guerrilha como “típica ingenuidade voluntarista”,
questionando a inegável generalidade e superficialidade das análises realizadas sobre a
formação social brasileira, o dogmatismo no debate sobre o caráter da revolução e das
tarefas do revolucionário e o que ele chamou de “pedagogia ideológica” proposta pela
organização sobre as concepções marxistas que, nos dizeres de Ernesto Marins,
deveriam: “ser levadas conscientemente para dentro da classe operária” 10.
De um ponto de vista mais amplo, o esforço de Eder Sader está inserido num
contexto de grande questionamento às formas de ação política imaginadas nos anos

7
Todas as citações em: Id. Ibidem.
8
Para uma resenha do debate: CORREA, Lucas Andrade Sá. Esboço para a análise de um debate no
exílio: O debate entre Érico Sachs e Eder Sader. In: Anais do VIII Colóquio Internacional Marx Engels,
2015. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2015/. Acesso em 04 de
outubro de 2016.
9
MARTINS, E. Post – Scriptum a “Como aprender – com quem aprender”. In: Revista Marxismo
Militante Exterior nº 1, 1975, p. 60.
10
SADER, E. Para um balanço da P.O. In: Revista Brasil Socialista nº 7, outubro de 1976, s/p.
Utilizamos a versão disponibilizada em: http://centrovictormeyer.org.br//wp-
content/uploads/2011/03/Para-um-balanco-da-PO.pdf Acesso em 04 de outubro de 2016.
87

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

anteriores, realizadas durante o exílio político11. Essas críticas se direcionam,


justamente, à luta armada, à desconsideração sumária das discussões sobre democracia,
à ausência da luta feminista nas análises que eram realizadas e ao vanguardismo
deslocado das lutas reais, que teria colaborado com a derrota política da esquerda
brasileira. No entanto, em boa parte das discussões na linha comunista, ainda prevalece
o desejo por um partido revolucionário que pudesse “orientar” as massas e a busca por
um sujeito que permanecia ausente do horizonte de lutas.
O autor também vive essas ambivalências e, embora crítico das abstrações do
dogmatismo, defenderá a ideia de uma vanguarda “propositiva” (e não professoral) que
deveria se juntar a uma organização unificada da classe que, no entanto, estava ausente
no país. No documento de 1976, podemos ler: “Na verdade, não temos no Brasil a bem
dizer, uma ‘organização majoritária da classe’ (...)”; “nós temos que ser os defensores
consequentes da unidade proletária a partir dos interesses imediatos e das lutas que
travamos” 12.

Quebrando muros teóricos: ciclo de lutas e transição

A transição de Eder é definitivamente operada quando irrompe a jornada de lutas


dos operários de São Paulo, que evidenciou um ciclo que estava em andamento entre
1970-1980. Através dele, Eder Sader pôde não só analisar, com lentes totalmente
renovadas, a constituição de novos sujeitos em luta, como reavaliar a própria
experiência política da década de 1970.
Ele se deparou com a multiplicação de lutas operárias que, a partir de práticas
que se constituíam de forma autônoma, conseguiam se deslizar tanto da tutela dos
sindicatos autoritários, como dos núcleos de militantes iluminados que pretendiam
dirigir os trabalhadores. Deixando-se conduzir pelas forças do novo movimento, Eder
abandona seu antigo dilema político – o problema de como estabelecer uma relação
entre vanguardas formuladoras, mas sem capacidade de ação, e massas potencialmente
ativas, mas sem capacidade de formulação – descortinando um caminho totalmente

11
Para uma resenha do debate, conferir: ROLLEMBERG, Denise. “Debate no exílio: em busca de
renovação”. In: RIDENTI, M; REIS FILHO, D. A. (Orgs.). História do marxismo no Brasil. Partidos e
movimentos após os anos 1960. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, v. 6, pp. 291-339.
12
SADER, E. Ibidem, 1976.
88

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novo.
Pela primeira vez, nos textos do sociólogo, verificamos que ele é capaz de
desenvolver uma análise da luta dos trabalhadores colocando-se de forma imanente a
todo processo. Assim, em artigo de 1980, escrito com Paulo Sandroni 13, através de
informações prestadas por militantes do ABC paulista, os autores afirmam que: “já entre
14
1974 e 1977, se desenrola uma grande variedade de ‘pequenas lutas difíceis’” . Essas
“pequenas lutas” (operação tartaruga, exigência de melhor alimentação, transporte e
limpeza nos banheiros, recusa de horas extras, pequenas interrupções da jornada de
trabalho), conseguiam driblar o forte esquema repressivo estabelecido pela ditadura
contra as greves e, ao mesmo tempo, teciam um fio de afirmação operária nas grandes
fábricas paulistas.
Os fios dessa “organização invisível”, expressão utilizada pelo operaísta
Romano Alquati, em suas pesquisas sobre as lutas na FIAT dos anos 196015, só
apareceram de forma explícita nas jornadas pela reposição salarial de 1977, quando os
operários reivindicam a devolução de perdas geradas por erros no cálculo dos índices de
inflação em 1973.
Em São Bernardo, o Sindicato dos Metalúrgicos realiza uma assembleia de dez
mil pessoas, e começa a organizar aquilo que os autores denominam de “sindicalismo
autêntico”, excluindo qualquer referência que não expressasse “o próprio interesse dos
trabalhadores”. Na conclusão do artigo, os autores defendem que um dos pontos de
destaque do movimento operário e sindical, que se iniciou naquele ano, foi a presença
de “traços de autonomia e independência tanto a respeito dos aparatos estatais quanto a
dos partidos de oposição e esquerdas tradicionais” 16.
Em 1986, Eder Sader realiza o esforço teórico de lançar as novas inquietações
para dentro da tradição marxista e da história do movimento operário. No livro
Marxismo e teoria da revolução operária17, o autor acerta as contas, no campo teórico,
com todas as formas de positivismo, racionalismo, determinismo e evolucionismo
presentes no pensamento marxista desde o séc. 19 e, no campo político, com as

13
SADER, E; SANDRONI, P. Luchas obreras y táctica burguesa en Brasil. In: Cuadernos Políticos, n.
26, México D.F.: Era, outubro-dezembro, 1980, pp. 51-63.
14
Id. Ibidem.
15
ALQUATI, R. Sulla FIAT e altri scritti. Milano: Feltrinelli, 1975, p. 190.
16
Todas as citações em: SADER, E; SANDRONI. Ibidem.
17
SADER, E. Marxismo e teoria da revolução operária. 2a edição. São Paulo: Ática, 1991.
89

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

tendências e práticas estalinistas, burocratizantes e autoritárias arquitetadas a partir do


séc. 20.
Enfrentando os impasses de seu tempo, o autor afirma que o ponto central da
crise da teoria revolucionária é que ela se propôs a definir uma tarefa a ser realizada
pela classe operária. E “tão pesado foi o fardo dessa missão que o proletariado
18
desapareceu nela” . Mas, enquanto o proletariado, em sua materialidade, desaparecia
nas “representações instituídas” da missão revolucionária, múltiplos pontos de
resistências e de práticas coletivas se espalhavam e davam vida a novos sujeitos em luta.
Para Eder, “mesmo a irrupção das greves de 1978, surgidas de fora das formas
19
consagradas de organização e discurso da esquerda, expressou esse divórcio” . Os
traços de autonomia identificados pelo autor, não só forjavam novas práticas e saberes
coletivos, alheios às concepções totalizantes da ortodoxia, como se relacionavam com
um amplo processo de politização do social que trouxe à tona a realidade de uma
pluralidade de sujeitos que recusavam as mesmas pretensões ordenadoras20.
Este “divórcio”, para Eder Sader, se traduzirá em duas formas distintas de
perdurar o marxismo. Através da bela passagem que encerra o livro, as consequências
definitivas dessa clivagem são explicadas:

De um lado, enquanto ideologia, sistema totalizador, pelo qual intelectuais


produzem a ‘ciência da História’ nas mais diferentes disciplinas e burocratas
da política ordenam a realidade onde agem. De outro, enquanto fonte de
elaboração que ajudam intelectuais a produzirem novos conhecimentos e
militantes de diferentes movimentos sociais a formularem seus projetos e
formas de ação. Só que, neste segundo modo, o marxismo não é mais a
totalização capaz de nos explicar o sentido de nossas ações. Isso cabe a cada
um de nós, em cada uma das aventuras em que nos engajamos. Essa é, talvez,
uma das ‘lições’ que os movimentos sociais recentes nos deixaram. 21

E é através do marxismo visto como fonte de elaboração e de criação de


pensamento e ação que Eder Sader analisará, em 1988, no seu último e mais relembrado
livro, Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos
trabalhadores da Grande São Paulo 1970-198022, o ciclo de lutas daquela década. Ele

18
Id. Ibidem, p. 55
19
Id. Ibidem, p. 56
20
Id. Ibidem.
21
Id. Ibidem, p. 57
22
SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena. Experiências e lutas dos trabalhadores da
Grande São Paulo 1970-1980. 4a edição. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
90

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

será descrito, não através da tentação de uma grande totalização, mas através dos
pedaços de experiência e da partitura comum escrita pelas aventuras, às vezes
titubeantes e contraditórias, dos sujeitos reais que, no cotidiano ou em novas
organizações, se engajaram em lutas concretas.

Um novo olhar sobre os personagens que entravam em cena

Para desenvolver este olhar, que sem dúvida é o traço mais penetrante do livro,
Eder opera um importante deslize das análises verticalmente “estruturantes” que
interpretavam as práticas sociais da época através de unidades causais-explicativas que
privilegiavam as “condições objetivas dadas” (a coerção do Estado militar, o
automatismo dos processos econômicos da acumulação capitalista, a alienação
ideológica etc.). Para Eder Sader, era preciso estilhar essas unidades para que a relação
entre as ações produzidas e a emergência de novos personagens irrompesse em sua
singularidade 23.
Por outro lado, se afastar da explicação objetivante não quer dizer retomar a
ideia de um sujeito absoluto, pleno de liberdade e senhor de todas as ações possíveis.
Realizando um panorama sobre o debate filosófico em torno do conceito de sujeito,
Eder tenta compreender como novos imaginários e práticas instituintes24 são possíveis
de serem articulados, mesmo que imbricados nas condições e estruturas já dadas. Nessa
linha, sujeito autônomo não é aquele que “seria livre de todas as determinações
externas, mas aquele que é capaz de reelaborá-las em função daquilo que define como
sua vontade” 25.

23
Id. Ibidem, p. 40
24
Conferir a seguinte passagem: “Com essas referências procurei pensar as alterações nas práticas
coletivas de trabalhadores, como reelaboração do imaginário constituído, através de novas experiências,
onde se produzem alterações de falas e deslocamento de significados. Por aí surgem práticas instituintes”
(Id. Ibidem, p. 46).
25
Id. Ibidem, p. 56. Vale comentar que o conceito de “vontade” não deixa de ser problemático por retomar
concepções clássicas de sujeito que pressupõem sua separação com relação às práticas sociais. Uma das
formas de contornar esse problema pode ser encontrada no conceito de “modos de subjetivação”,
desenvolvido por Foucault na última fase de seu pensamento, à qual Eder Sader não teve acesso. Sobre o
tema, conferir o preciso comentário de Judith Revel: “O termo ‘subjetivação’ designa, em oucault, um
processo pelo qual obtemos a constituição de um sujeito, ou mais exatamente de uma subjetividade. Os
‘modos de subjetivação’ ou ‘processos de subjetivação’ da existência humana correspondem a dois tipos
de análise. De uma parte, os modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos – o que
significa que há somente sujeitos objetivados, e que os modos de subjetivação são, nesse sentido, práticas
de objetivação; de outra, a maneira como a relação com si, estabelecida através de um certo número de
91

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Assim, o sociólogo reconhece que, se de um lado, os discursos – ou as “matrizes


discursivas tradicionais” - produzem os sujeitos e seus campos de ação, de outro, os
sujeitos produzidos são capazes de agenciar novas práticas e novos enunciados. Os
enunciados cristalizados numa cultura podem, portanto, sofrer deslocamentos,
reutilizações, torções, dispersões e serem atravessados por novos arranjos de
distribuição:

Constitui-se um novo sujeito político quando emerge uma matriz discursiva


capaz de reordenar os enunciados, nomear aspirações difusas ou articulá-las
de outro modo, logrando que indivíduos se reconheçam nesses novos
significados. É assim que, formados no campo comum do imaginário de uma
sociedade, emergem matrizes discursivas que expressam as divisões e os
antagonismos dessa sociedade 26.

Nesse sentido, a mobilização dos diversos sujeitos e a construção de novas


esferas de participação, através das comunidades eclesiais de base, do novo
sindicalismo e dos novos movimentos sociais, são interpretadas por uma leitura que
busca compreender as novas formas de expressão política a partir de um movimento
coextensivo de produção dos próprios sujeitos. Desse ponto de partida, Eder Sader
consegue descrever processos subjetivos de luta e organização social que estavam
“apagados” pelo objetivismo e pela incapacidade de representar as mudanças em curso
através da mecânica causal das análises tradicionais.
Encontramos uma boa demonstração da perspectiva desenvolvida, no capítulo
em que o autor descreve as lutas da Oposição Metalúrgica de São Paulo. Eder revela
que o acontecimento mais relevante da nova luta sindical não residia necessariamente
nas reinvindicações, que eram até clássicas (melhorias salariais, pagamento atrasados,
melhora nas condições de trabalho etc.), e sim na constituição de um “outro discurso”
sobre a classe operária, aquele que retoma a dignidade dos trabalhadores.
Uma profunda ressignificação dos espaços de encontro e de fala surgiu a partir
de pequenas lutas, quase insignificantes, mas que eram fundamentais na produção de
uma subjetividade que retomava o papel da autovalorização do trabalhador. Lutas pela
utilização de ônibus da empresa, pequenos boicotes no refeitório pela qualidade da

práticas, permite que ele se constitua como sujeito de sua própria existência”. REVEL, J (Org).
Dictionnaire Foucault. Paris: Ellipses, 2008, p. 128.
26
Id. Ibidem, p. 60
92

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

comida, a produção de um pequeno jornal que relatava as condições de trabalho, passam


a constituir, pouco a pouco, o tecido que produzirá um novo sujeito político: “é nesse
quadro que as lutas fabris são assumidas como momentos de autoafirmação de grupos
operários, que veem nelas o processo de sua constituição como sujeitos políticos” 27.
Outro exemplo marcante do deslocamento de abordagem efetuado encontra-se
na leitura realizada pelo sociólogo sobre a reconstituição dos espaços de encontro nas
franjas do poder coercitivo militar. Se a ditadura investia para desconstruir todo e
qualquer núcleo visível de participação social e atividade política, nas franjas da cidade
emergiam novas formas de discutir os problemas vividos pelos trabalhadores e pobres
da metrópole paulista:
Em salões de sinuca, terreiros, feira livres, botequins, salões de baile,
cabelereiras, pontos de ônibus, fliperamas, foram se reconstituindo espaços
de encontros, onde se trocavam informações sobre emprego, futebol, a novela
da TV, assim como sobre as escolas dos filhos, a excursão a Santos, sobre as
conquistas amorosas, a meningite, o Esquadrão da Morte, o incêndio do
Joelma, a construção do metrô, o quebra-quebra dos trens. Desse cruzamento
de falas e experiências foi se reconstituindo um novo espaço público. 28

As feiras, botequins, salões de beleza, pontos de ônibus, terreiros e fliperamas


formam, assim como no caso das pequenas lutas operárias, os espaços de encontro que
ajudarão a constituir “pedaços” onde “fluem novos significados coletivos que
29
expressam as interpretações formuladas sobre as condições de vida na metrópole” .
Ainda segundo Eder, nos espaços difusos da cidade, a retórica dominante, que
condenava a política como palco de interesses escusos, passa a ser reinterpretada pelos
explorados como possibilidade de cuidar dos assuntos referentes à vida na cidade a
partir de seus próprios interesses e experiências. E é nesse ambiente de aparente
conformismo e suposta alienação que “brotam os movimentos sociais a partir da metade
da década de 1970” 30.
Portanto, longe de buscar explicações que derivam de uma única e totalizante
lógica, apresentada como grande tarefa da crítica sociológica, Eder deseja compreender
o movimento que entrelaça discursos consolidados, aberturas para novos imaginários,
práticas sociais e processos de constituição de subjetividades políticas. Só assim torna-
se possível dimensionar a centralidade de experiências que, mesmo parecendo sem
27
Id. Ibidem, p. 250.
28
Id. Ibidem, p. 61.
29
Id. Ibidem.
30
Id. Ibidem.
93

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

importância, apontam para a formação de novos e potentes espaços de expansão do


político.

Um novo estilo de ação política

“Você trocou Lenin por Paulo reire!”. É com essa acusação, presenciada pelo
próprio autor e desferida contra um militante em 1980, que Eder Sader abre o capítulo
31
sobre o balanço teórico do “marxismo de uma esquerda dispersa” . O sucesso dos
métodos de educação popular, e sua predominância com relação aos clássicos da teoria
revolucionária (Lenin, Mao e até o fugaz Debray32), é percebido como a possibilidade
de abertura de “um lugar para a elaboração crítica e coletiva das experiências da vida
individual e social” 33.
Através de alguns depoimentos pessoais, o autor mostra o caminho realizado,
um pouco de forma intuitiva, por vários militantes de esquerda oriundos dos grupos
vanguardistas. Ele apontava na direção de um novo estilo de ação política, que tinha
como centro, não mais uma determinação abstrata da vontade em torno da revolução,
mas “vinculações políticas a partir de suas competências profissionais: advogados,
34
arquitetos, assistentes sociais, professoras” . Os relatos mostram que os militantes
“desgarrados” de suas organizações também encontrarão espaços de atuação nos novos
movimentos de bairro, nas comissões de moradores, nos grupos de fábrica, nos
movimentos sanitaristas, nas pastorais da Igreja Católica etc.
O encontro dessas trajetórias, que Foucault descreveria igualmente através da
35
figura do “intelectual específico” , com o processo material de produção de
subjetividade que se efetuava no interior do ciclo de lutas de 1970-1980, não apenas
exemplifica o que seria aquele “marxismo vivo”, utilizado como fonte de elaboração de
novos conhecimentos e práticas, mas também demonstra que as ações políticas

31
Id. Ibidem, pp. 167-178.
32
O autor cita referências que eram leituras “obrigatórias” para os militantes da década de 1960-70: “Mas
o fato é que, nessa ‘ida ao povo’, buscando ajudar num processo de fazer despertar a ‘consciência crítica’,
o método Paulo reire esteve mais presente que os escritos de Gramsci, ‘Que fazer?’, de Lenin, os
livrinhos de Mao ou a ‘Revolução na revolução’ de, de Debray, de meteórica carreira” (Idem, ibidem, p.
167).
33 Id. Ibidem, p. 169.
34 Id. Ibidem, p. 176.
35
Cf. OUCAULT, M. “Verdade e Poder”. In: OUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro:
Graal, 1979, p. 10.
94

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

desencadeiam vetores qualitativamente expansivos quando articuladas com as novas


temporalidades políticas produzidas pelos novos sujeitos.
Por isso, a constatação da centralidade das “pequenas lutas” no contexto das
experiências coletivas da Grande São Paulo, a importância dos temas relacionados ao
cotidiano dos trabalhadores, as “formas singulares de expressão” carreadas pelos novos
movimentos sociais, a valorização da “organização por elas mesmas” do Clube das
Mães, as pequenas rupturas das mulheres com relação ao ambiente fechado da unidade
doméstica, a capacidade do Movimento do Custo de Vida de levantar um problema
comum à maioria da população, a dignidade comemorada em cada pequena vitória no
interior da fábrica, os atos de solidariedade que rompiam com o vazio existencial do
conformismo diário, aparecem como uma multiplicidade de lutas que formam um
conjunto marcado por novos significados históricos:
E no entanto há uma novidade no significado dessas lutas no correr dos anos
70. Movimentações que antes podiam ocorrer de modo quase silencioso,
como se fossem a reiteração de um cotidiano onde ‘nada acontece’, passam a
ser valorizadas enquanto sinais de resistência, vinculadas a outras, num
conjunto que lhes dá a dignidade de um ‘acontecimento histórico’. Até
mesmo acontecimentos que antes poderiam ser vividos como expressão de
uma impotência sempre igual começam a ser vistos como lutas que se
inserem num movimento social36.

É este solo comum que garante uma proliferação de experiências organizativas e


afirmativas que se colocam em contraposição “às estruturas impessoais, aos objetivos
abstratos e às teorias preestabelecidas” 37. Segundo Eder, no campo dos trabalhadores da
fábrica, isso significou a invenção de um novo modo de valorizar as suas próprias lutas,
através da formação de grupos que, primando pela autonomia, não se recusavam a atuar
por dentro das estruturas legais e sindicais existentes.
Já no caso dos movimentos dos trabalhadores precários (donas de casa,
favelados etc.), excluídos do poder econômico de barganha, de direitos (sociais)
reconhecidos e de um trabalho estável, tratou-se de criar laços de solidariedade e
comunidade que não tinham como referência uma estrutura predefinida legalmente, e
contava apenas, ou com as ações pastorais difundidas no território, ou com a sua própria
capacidade de produzir auto-organização 38.
De qualquer forma, seja através da requalificação de institucionalidades já
36
EDER, S. 2010, p. 243.
37
Id. Ibidem, p. 194.
38
Id. Ibidem.
95

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

existentes, ou da invenção radical de novas práticas coletivas, essa contraposição


também reaparece na conclusão do livro, através da relação estabelecida entre a força
plural de expansão dos movimentos sociais e o poder instituído. Para o autor, os novos
sujeitos “expressaram tendências profundas na sociedade que assinalavam a perda de
39
sustentação do sistema político instituído” . Eles indicavam “a enorme distância
existente entre os mecanismos políticos instituídos e as formas de vida social.” E não
apenas de uma forma passiva. Os movimentos sociais se constituíram como os próprios
“fatores que aceleraram essa crise e que apontaram um sentido para a transformação
social” 40.
Dentro do marco das práticas instituintes que abrem um novo horizonte, as
experiências desses movimentos passariam a indicar que, no campo da representação
política, os partidos “já não cobrem todo o espaço da política e perdem sua substância
41
na medida em que não dão conta dessa nova realidade” . Para Eder, é a própria
compreensão daquilo que entendemos como “política” que se transformou, abrangendo
questões da vida cotidiana e novas formas de organização das práticas coletivas, “a
partir da intervenção direta dos interessados”. No que tange à reinvindicação por
democracia, os novos sujeitos não se limitariam ao sistema político tradicional, mas
conduziriam os seus desejos para “as esferas da vida social, em que a população
trabalhadora está diretamente implicada: nas fábricas, nos sindicatos, nos serviços
públicos e nas administrações de bairro” 42.

Derrota política, poder constituinte real e comum

Eder Sader encerra o livro com um olhar já externo ao ciclo de lutas, avaliando
as derrotas sofridas pelos novos movimentos sociais e afirmando, enigmaticamente, que
as suas promessas (consideradas por alguns como “ilusões”, “mistificações” ou “erros
de avaliação”) poderiam ser reatualizadas, já que estão “inscritas numa memória
coletiva” 43.

39
Id. Ibidem, p. 313.
40
Id. Ibidem.
41
Id. Ibidem.
42
Id. Ibidem.
43
Id. Ibidem, p. 315.
96

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Para entender o que o autor chama de “derrota”, é preciso ter em mente os seus
comentários num colóquio intitulado A constituinte em debate 44, realizado em maio de
1986, reunindo juristas e intelectuais de esquerda. O título sugerido pelo autor foi
“Poder constituinte e democracia no Brasil hoje”, e a intervenção se deu num contexto
geral de crítica do idealismo presente nas discussões sobre a elaboração de uma nova
Constituição.
Eder Sader concordou sobre a importância de se evitar a armadilha da abstração,
mesmo reconhecendo que uma Constituinte, inevitavelmente, lança os participantes
para um terreno propenso às idealizações. O ponto de partida que o autor utilizou para
qualificar materialmente o processo consistiu na proposta de examiná-lo à luz de um
“poder constituinte realmente existente” que, segundo o autor, seria a expressão das
lutas políticas em curso no Brasil e estaria efetuando transformações significativas no
marco da transição para a Nova República 45.
O problema seria que, apesar de fundamentais na derrota do Estado Militar, os
novos movimentos sociais não tiveram, naquele momento, êxito em se constituir como
uma força política apta a disputar as institucionalidades. Esse papel acabou sendo
exercido pelo MDB que, a partir de sua atuação parlamentar contra a ditadura, apareceu
como representante indireto das insatisfações e aspirações populares difusas. Ele
acabaria por reelaborá-las, sempre através de suas expressões particulares, como
pressupostos de uma vontade geral de democracia e de justiça social.
A derrota residiu na impossibilidade dos novos movimentos sociais de darem a
suas aspirações “uma voz própria” 46. Por isso, o desafio da Constituinte seria, primeiro,
impedir que o processo se transformasse na conclusão de uma transição política
realizada “por cima” e, segundo, construir as condições de democratização do próprio
exercício do poder constituinte. Assim, uma das batalhas mais importantes que se
configurava seria “alargar as possibilidades de intervenção da população no sistema
político” e “alargar vários direitos” que teriam vindo à tona nas lutas políticas dos anos
anteriores47.

44
FORTES, Luiz Roberto Salinas; NASCIMENTO, Milton Meira do. (Orgs.) A constituinte em debate:
colóquio realizado de 12 a 16 de maio de 1986. São Paulo: Sofia, 1987.
45
SADER, E. “Poder constituinte e democracia no Brasil hoje”. In: ORTES, Luiz Roberto Salinas;
NASCIMENTO, Milton Meira do. (Orgs.) A constituinte em debate (...), p. 200.
46
Id. Ibidem, p. 201.
47
Id. Ibidem.
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Um dos principais temas, segundo Eder Sader, elaborados, mesmo que


precariamente, pelos movimentos sociais, seria a relação entre público e privado. O
autor comenta, que, naquele momento, estava se consolidando a ideia de que o combate
ao Estado Militar demonstrava que a Nova República deveria apostar na ampliação do
âmbito privado em detrimento do público, evitando o retorno de um estado
intervencionista e autoritário. Escapando da dicotomia, Eder argumenta que a ditadura
militar foi um exemplo de como estado e mercado se retroalimentam e que a saída era
pensar uma democratização dos próprios recursos públicos, a partir do poder
constituinte real que se afirmava.
Por isso, a participação invocada por Eder Sader caminha lado a lado com uma
democratização mais radical do público, uma apropriação democrática do público-
privado que poderia reativar o papel dos novos movimentos sociais no contexto pós-
constitucional. Ao direcionar sua análise para o terreno que hoje denominamos de
comum, o autor tenta manter uma brecha aberta para que a produção de autonomia dos
movimentos sociais não fosse enclausurada numa ideia institucional de representação
política ou por um constitucionalismo de viés abstrato, através dos quais a perspectiva
autônoma seria tratada como ilusão típica de um momento pré-jurídico ou de transição.

Pensar com Eder Sader: seis notas sobre a atualidade

Quase três décadas se passaram após as reflexões de Eder Sader sobre a


emergência de novos sujeitos políticos e os dilemas apresentados na disputa pela
representação política e por condições de permanência de um poder constituinte real que
atuasse em prol da radicalização da democracia brasileira. A sensação é de
desmoronamento e perplexidade, tornando-se comum a afirmação de que a Nova
República, fundada pela Constituição de 1988, simplesmente acabou48.
Mas como qualificar este “fim”? Por que temos a impressão de viver o
esgotamento profundo de um ciclo? É aqui que a chave de leitura operada por Eder, e o
exemplo dos próprios dilemas políticos enfrentados em sua trajetória, podem nos ajudar
em muitas direções. No mínimo, precisaríamos realizar uma nova travessia, reunindo

48
A expressão é do filósofo Vladimir Safatle. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2015/03/15/a-nova-republica-acabou-diz-filosofo-vladimir-safatle.htm Acesso em 14 de outubro
de 2016.
98

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

“pedaços” de experiências vividas nos últimos anos, recusando o imobilismo dos velhos
personagens que não admitem sair de cena e buscando encontrar as novas subjetividades
que emergem no contexto da crise.
É do próprio léxico e dos problemas levantados por Eder Sader que alguns
elementos para futuras reflexões podem ser pontuados:
a) Autonomia: perceber a crise como o esgotamento da possibilidade de manter
em aberto uma dimensão instituinte que permita que os novos sujeitos políticos possam
continuar elaborando suas trajetórias e lutas através de uma “voz própria”, que na
verdade se articula polifonicamente com muitas vozes produzidas desde baixo. Os
últimos anos indicam que a realidade dos próprios movimentos sociais que surgiram na
década de 1980 pode ser vista como sintoma dessa crise. Incapazes de reelaborem suas
lutas através de novas práticas autônomas, acabam subordinados a governos,
burocracias ou instâncias decisivas cada vez mais externas aos problemas reais
enfrentados por seus integrantes;
b) Comum: a relação entre estado e mercado, como pressentia Eder Sader, foi
rearticulada através de novas formas de gestão que eliminaram qualquer forma de
participação ou de questionamento das decisões sobre projetos e investimentos. A
resposta brasileira à crise global de 2008 foi reforçar dinâmicas desenvolvimentistas
híbridas que mesclaram uma imposição estatal de grandes projetos, com novas formas
de privatização e empresariamento dos espaços comuns das cidades e das florestas. A
aposta de resgatar a mobilização produtiva “por cima” não só lançou o Brasil para uma
crise ainda mais profunda, como gerou um efeito de “rolo compressor” contra qualquer
tentativa de questionamento das decisões tomadas. Perspectivas alternativas como o
marco do bem viver ou de políticas do comum foram esquecidas ou atropeladas pela
utopia modernista de um “Brasil Maior”;
c) Novos personagens entram em cena: as novas mobilizações indicam que a
heterogeneidade que marca os movimentos sociais dos anos 1980, não só é estendida
por toda a dinâmica de funcionamento das metrópoles, como ganha contornos
irreversíveis. Nas análises Eder Sader, a separação entre esfera da produção
(sindicalismo) e esfera da reprodução (movimentos sociais) determinava características
distintas no conjunto das lutas sociais, mas também ensaiava o seu canto do cisne.
Atualmente, essa divisão perde o sentido, na medida em que a heterogeneidade do
99

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

trabalho precário passa a atravessar a própria esfera da produção e esta última, por sua
vez, se dilui cada vez mais na antiga esfera da reprodução, atingindo a vida como um
todo. Um novo sindicalismo social “autêntico”, que tenha a metrópole como base, só é
possível com a articulação de uma multiplicidade de sujeitos singulares que definem um
terreno comum de luta (ex: mareas na Espanha e luta contra a tarifa dos transportes no
Brasil). Uma compreensão da figura dos “indignados” é importante, não só para dar
carne a esta multiplicidade capaz de ações comuns, mas também para mostrar que as
lutas contemporâneas dependem de um tipo de cooperação que está para além, na
maioria dos casos, do que entendemos por “esquerda” e seus atores tradicionais
(movimentos, sindicatos e partidos);
d) Poder constituinte realmente existente: para além do idealismo e das
promessas não correspondidas do constitucionalismo, exasperado às ultimas
consequências na recente crise política brasileira, uma investigação das dinâmicas
constituintes dos últimos anos deve reconhecer que há um desejo transversal de
mudança que transborda e se volta contra todo o poder constituído existente. Este desejo
se condensou em múltiplas formas, ambíguas e contraditórias, em Junho de 2013.
Assim como na emergência dos movimentos sociais analisados por Eder, é preciso ter
em conta que o poder constituinte também é exercido através do conformismo, de uma
suposta atitude de “alienação política” e até por expressões aparentemente
conservadoras. O contexto atual parece indicar que o desafio reside na criação de
plataformas de ação onde estas manifestações possam encontrar ferramentas materiais
de transformação que apontem para caminhos de mais democracia, participação e
direitos;
e) A constituição de uma força política: no Brasil, o poder constituinte de Junho
de 2013, por enquanto, não foi capaz de organizar uma força política nova que possa
atravessar as institucionalidades com ventos de renovação. Ele foi canalizado apenas em
sua dimensão destituinte através de grandes operações policiais e judiciais que são
incapazes de constituir um terreno de radicalização democrática. Um dos motivos desta
mutilação foi a homogeneização das “aspirações difusas” que constituíram Junho
através de sua subordinação às figuras mórbidas de uma representação política que não
guarda mais qualquer relação efetiva com elas. A constituição de uma força política
através das experiências do ciclo de Junho se constitui como um enigma que diz
100

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

respeito à recuperação da autonomia das mobilizações sociais, à reinvenção da forma-


partido através da premissa, também comentada por Eder, de que os movimentos
transbordam e não são redutíveis aos partidos políticos (que deveriam assumir um
código aberto e renunciar às pretensões de totalização) e à necessidade de uma reforma
política que não seja forjada no interior de uma representação política em crise e que
tenha como centro as multiplicidades emergentes.
f) Autocrítica e dispersão da esquerda brasileira: se, no tempo de Eder, a
dispersão forçada da esquerda brasileira permitiu, de um lado, um movimento de
autocrítica (mesmo com toda a dramaticidade da situação) de seu vanguardismo anterior
e, nos caminhos intuídos por essa dispersão, um posterior encontro com novas lutas e
personagens, o momento atual exige, paradoxalmente, um deslocamento semelhante.
Um exílio que, mesmo sem precisar atravessar fronteiras geográficas, não deixa de se
configurar como um êxodo necessário. Um exílio, digamos, ontológico. Ele implica: a
recusa de novas lógicas objetivantes que impedem um olhar adequado sobre os novos
movimentos (por exemplo, derivando o vazio deixado por uma ausência de alternativa
da ascensão de uma “onda conservadora”); a recusa do falso conforto de uma “unidade
de esquerda” que, em vez de se constituir como contrapoder por dentro da crise, opera,
ao contrário, reforçando uma subordinação das mobilizações e das aspirações difusas à
agenda e aos formatos pré-determinados de suas decadentes figuras representativas, em
especial o Partido dos Trabalhadores (PT); um questionamento do imobilismo da
tradição organizativa que funda esta “unidade” para imaginar novas experiências de
ação comum e autônoma (movimentos em rede, sindicatos sociais, confluências
eleitorais e partidos de novo tipo); por fim, a recusa, como afirmou Eder, de todas as
“representações instituídas” que promovem o desaparecimento das subjetividades que
lutam e nos impedem de perceber os fios das novas organizações invisíveis que já estão
em atuação.
Seis pontos que indicam o mesmo movimento: dispersar, fazer uma nova
travessia, empreender um êxodo. E, quem sabe, durante a caminhada, nos pedaços de
experiência, encontrar os novos personagens que já estão em cena.

Referências
101

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103

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Maquinações
104

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

O significante vazio e a política hoje

The floating signifier and today´s politics

Roberto Andrés1

Resumo
A vitória de Donald Trump nas eleições de 2016 reacendeu o debate sobre o populismo,
embora não haja nenhum consenso sobre o significado do termo. Esse artigo busca
superar as generalizações empíricas que geralmente associam a ideia de populismo a
algumas práticas políticas, sem uma conexão teórica que dê sentido ao conjunto. Busca
entender o populismo como uma forma de articulação política, na linha do pensamento
de Ernesto Laclau, Chantal Mouffe, Francisco Panizza, entre outros. Faz uma retomada
histórica até o People’s Party, nos Estados Unidos do século dezenove, passando por
outras experiências populistas na Europa e na América Latina. Analisa ainda o novo
municipalismo espanhol e as eleições brasileiras de 2016, chegando à hipótese de que a
utilização da forma populista pode servir à superação de vícios políticos e à
radicalização democrática.

Palavras-chave
Populismo, política, democracia, municipalismo.

Abstract
Donald Trump's victory in the 2016 elections has reignited the debate over populism,
although there is no consensus as to the meaning of the term. This article seeks to
overcome the empirical generalizations that tend to associate the idea of populism with
certain political practices, without a theoretical connection that throws meaning over the
whole. It seeks to understand populism as a form of political articulation, following the
line of thought of Ernesto Laclau, Chantal Mouffe and Francisco Panizza, among other
authors. It proposes a historic inquiry, departing from the People's Party, in nineteenth
century America, and passing through other populist experiences in Europe and Latin
America. It also analyzes the new Spanish municipalism and the Brazilian elections of
2016, proposing that populism, understood as a form, can be used to overcome political
vices and democratic radicalization.

Keywords
Populism, politics, democracy, municipalism.

1
Arquiteto-urbanista, professor na UFMG, editor da revista Piseagrama. Colunista do jornal O Tempo,
tem artigos publicados em veículos como a revista Piauí, a Folha de São Paulo e o site Outras Palavras.
Co-organizador, com Fernanda Regaldo, do Guia Morador | Belo Horizonte.
105

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

“Hoje em dia é quase um clichê começar um artigo sobre populismo lamentando


a falta de clareza sobre o conceito e questionando sua pertinência na análise política.”
Assim Francisco Panizza, politólogo uruguaio e professor da London School of
Economics, inicia o livro Populism and the Mirror of Democracy, editado em 2005.2
Naquele momento, o crescimento dos partidos de extrema direita na Europa reacendia o
debate sobre o tema.
Uma década se passou e a falta de clareza prevalece. O assunto voltou à tona
com a aterradora eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, mas
não para por aí. Em 2017, populistas de direita tendem a liderar eleições na Holanda e
na França. Nos últimos anos, tiveram votações expressivas na Áustria, Hungria, Suíça,
Noruega e Reino Unido.
O populismo de esquerda também deu as caras na América com o crescimento
surpreendente de Bernie Sanders nas primárias do partido Democrata. Na Grécia, o
Syriza, partido tido como esquerda radical, passou de 3% dos votos para a maior força
política do país em dez anos. O Podemos, partido criado em 2014, tem hoje 20% dos
deputados na Espanha. Candidaturas cidadãs, aliadas ao Podemos, elegeram prefeitas
nas principais cidades do país em 2015.
O Movimento Cinco Estrelas, liderado pelo comediante Beppe Grillo, ganhou a
maioria dos assentos no parlamento italiano em 2013. Três anos depois, o partido obteve
67% dos votos nas eleições municipais em Roma e elegeu a prefeita Virginia Raggi. No
Brasil, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte acabam de empossar, como
prefeitos, um empresário e apresentador de TV, um bispo licenciado da Igreja
Evangélica e um cartola de futebol.
A conexão entre esses fenômenos raramente é bem tecida. O termo populismo
costuma ser definido pela listagem de uma série de conteúdos, sem, no entanto, que haja
uma conexão teórica que dê sentido à categoria – modo de abordagem que Panizza
chamou de “generalização empírica”. O populismo vira um balaio, que cada autor
preenche à sua maneira.
Dois artigos publicados recentemente na Revista Piauí apontam para
significados um tanto diversos. Para o professor emérito da USP, Ruy Fausto 3, o
populismo surgiria da combinação de líderes carismáticos e autoritários, clientelismo e
2
PANIZZA, Francisco (org.). Populism and the mirror of democracy. Londres. Verso Books, 2005.
3
FAUSTO, Ruy. Reconstruir a Esquerda. Em: Revista Piauí, 122, novembro de 2016.
106

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

um discurso de conciliação de classes. Para Jan-Werner Müller4, ele se daria


principalmente pela adoção de um discurso polarizado, pela distinção de um “povo
verdadeiro” e pelo anti-pluralismo. Não é a mesma coisa, o que faz com que o uso da
palavra não ajude a elucidar o fenômeno.
Por essas mesmas vias, o economista Peter Wiles logrou enumerar 5, na década
de 1960, 24 características definidoras do populismo. Chega-se a uma situação em que
todos são populistas – ou ninguém o é. Em What is populism?6 – livro que carrega, a
meu ver, um fardo já na pretensão do título – Müller intenta criar uma demarcação mais
precisa. Para o autor, a linha que define um populista seria a do anti-pluralismo. A partir
do momento em que um político se coloca como a “única alternativa”, ele passaria a
linha. E ganharia todas as outras características de brinde.
Chama a atenção o fato de que, para cada exemplo citado no livro, o balaio
populista fica mais ou menos cheio. Donald Trump não tem um partido construído em
torno da sua figura. Marine Le Pen não se caracteriza por uma política clientelista.
Partidos como Podemos e Syriza não desrespeitam o jogo democrático. E por aí vai.
Além disso, muitas das características atribuídas ao populismo podem ser (bem melhor,
inclusive) desenvolvidas fora dele. Veja-se o caso do pemedebismo no Brasil e sua
conexão profunda com o clientelismo, sem haver nele nenhum elemento da narrativa
polarizada anti-elites.
Há outra abordagem. Ao invés de tratar o populismo como uma lista de
conteúdos, podemos entendê-lo como uma forma de articulação política. A referência é
o argentino Ernesto Laclau e seu livro A Razão Populista7. Nessa linha, o populismo se
caracterizaria pela articulação política de demandas sociais não respondidas, canalizadas
em torno de um significante vazio, contra um inimigo claro ligado ao poder – a
monarquia, a casta política, o establishment, os marajás, etc.
Assim, o termo não deveria significar nada semelhante a “socialista”, “liberal”
ou “comunista”, mas apenas apontar a utilização, em algum momento, de um modo
flexível de persuasão para redefinir a ideia de povo e seus adversários. É a formulação
política do povo contra as elites que marcaria o populismo.

4
MÜLLER, Jan-Werner. Populistas. Em: Revista Piauí, 124, janeiro de 2017.
5
WILES, Peter. A Syndrome Not a Doctrine. Em: IONESCU, Ghita e GELLNER, Ernest. Populism: Its
Meaning and National Characteristics. Londres, 1969.
6
MÜLLER, Jan-Werner. What is populism? Filadelfia. University of Pennsylvania, 2016.
7
LACLAU, Ernesto. A Razão Populista. São Paulo. Editora Três Estrelas, 2013.
107

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Exemplos dessa narrativa abundaram nas praças ocupadas dos últimos anos.
"Nós somos os 99% e não vamos mais tolerar a exploração do 1%" era o slogan do
Occupy Wall Street. "Não somos de esquerda nem de direita, somos os de baixo e
vamos para cima", lia-se em cartazes no 15M espanhol. O nós contra eles é via de regra;
o que muda é a definição desses dois campos e do conteúdo político articulado em torno
do significante vazio.
Quando formulada pela direita, a equação ganha um vértice geralmente
xenófobo ou racista. O que era uma linha reta (o povo contra a elite) torna-se um
triângulo em que (1) o “povo verdadeiro” (os brancos, os verdadeiros americanos,
franceses, austríacos..) se insurge contra (2) as elites, que favorecem (3) alguma classe
social ou étnica que está "roubando empregos" ou gastando os recursos do Estado.
Nos momentos de crise, essa narrativa encontra e explora o lado pior das
pessoas. Semeia medo, desconfiança e intolerância, e costuma colher muitos votos. Mas
é preciso reconhecer que, para além de uma estratégia eleitoral bem sucedida, há aí um
mérito: o de se compreender e falar para os anseios reais de grande parte das pessoas,
capacidade que os progressistas têm perdido a passos largos.
Os contextos de erupção populista são muito bem apresentados em outro livro
recente – The Populist Explosion, do jornalista americano John Judis8 –, e têm relação
direta com crises econômicas. Na medida em que o dinheiro é um instrumento central
na ordem da vida capitalista, problemas como a hiperinflação imediatamente abrem
brechas na hegemonia vigente. Também geram fissuras crises políticas e partidárias,
escândalos de corrupção, mudanças sócio-culturais, extrapolamento da comunicação
política para a cultura de massas.
A conjunto das rachaduras dá a intensidade do momento populista, que Laclau
sumarizou na coexistência de uma pluralidade de demandas com a inabilidade do
sistema institucional de absorvê-las. Difícil não pensar no Brasil atual, a partir da fissura
exposta de junho de 2013. Reconstruir a esquerda pode ser uma tarefa heroica de longo
prazo, mas quem quiser evitar que o lobo saia da toca – nos termos do crítico T. J.
Clark, que coloca como principal papel da esquerda evitar os momentos históricos de

8
JUDIS, John. The Populist Explosion. Nova Iorque. Columbia Global Reports, 2016.
108

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

extrema violência9 – muito provavelmente terá que articular os sentimentos de


indignação frente às crises existentes e às que se avistam no horizonte.
Na segunda metade do século dezenove, após um período de expansão de
mercados e prosperidade, os Estados Unidos viveram uma grande crise. Dezenas de
milhares de empregos sumiram e bancos quebraram, levando com eles as atividades
dependentes de crédito – e o dinheiro de muita gente. A política liberal de não
intervenção na economia já não funcionava, mas a classe política do momento parecia
não saber construir outras respostas.
Os preços de produtos agrícolas no país caíram quase 70% de 1870 a 1890. No
entanto, as ferrovias, operadas por grandes monopólios sem regulação estatal,
mantinham tarifas impraticáveis. A maioria dos pequenos fazendeiros foi à falência.
Grandes empresas compravam as propriedades e empregavam mão de obra barata de
imigrantes chineses, japoneses, portugueses e italianos.
A quebradeira foi tão grande que, no Kansas, 45% das terras passou para as
mãos dos banqueiros. Revoltas irromperam, organizadas por Alianças de Fazendeiros –
associações nos moldes da maçonaria, masculinas, com reuniões secretas e alta
cumplicidade. Dentre suas reivindicações, estava a regulação das ferrovias e redução
das tarifas. Em outras palavras, aqueles fazendeiros sulistas e da grande planície
americana lutavam pelos vinte centavos. Na década de 1880, começaram a se aproximar
de entidades trabalhistas, e a coisa cresceu.
Assim surgiu o Partido do Povo (People’s Party), que em 1892 lançou candidato
à presidência. Seria a primeira experiência política populista, segundo John Judis, cujo
livro traz uma perspectiva histórica aprofundada das experiências populistas nos
Estados Unidos e na Europa. A pauta de reivindicações do novo partido incluía a
regulamentação de sindicatos, o controle da especulação fundiária e a expansão do
crédito público.
O Partido do Povo não era socialista, mas era anti-elites e articulava demandas
populares. O manifesto de lançamento nacional dizia do “fruto do trabalho de milhões
roubado para construir a fortuna de poucos”. Um discurso do senador Tom Watson na
ocasião lançava mão da hipérbole histórica, tão habitual para nós, ao afirmar que “nunca

9
CLARK, T. J. Por uma esquerda sem futuro. São Paulo. Editora 34, 2013.
109

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

antes na história do mundo se enfrentaram nas eleições as verdadeiras forças da


democracia e da plutocracia.”
Estreantes nas urnas, os populistas tiveram 8% dos votos e venceram em cinco
estados. Dois anos depois, chegaram a 10% dos votos, elegeram 4 deputados, 4
senadores e 465 deputados estaduais. Iam bem, mas foram engolidos pelo
bipartidarismo. Nas eleições de 1896, os democratas encamparam várias das pautas
populistas. O Partido do Povo acabou apoiando os democratas e foi perdendo relevância
eleitoral nos anos seguintes.
De todo modo, os populistas pautaram a política americana em diversos
momentos, fazendo com que republicanos e democratas assumissem suas propostas
quando se sentiam ameaçados. E inauguraram um método político para momentos de
crise, com seu modo de nomear o povo e as elites, articular a indignação e colocar
demandas reprimidas no centro do tabuleiro.
O populismo de direita é um fenômeno mais recente, que cresce nos Estados
Unidos a partir da década de 1960, com George Wallace. O discurso anti-establishment
passaria a se articular, então, pela triangulação que coloca a culpa no lado mais fraco de
algum grupo étnico. No caso de Wallace, o alvo eram os negros. Sua frase-slogan que
entrou para história é: segregação hoje, segregação amanhã, segregação sempre.
A Europa viveu o fascismo, em que elementos da narrativa populista deram o
tom a práticas totalitárias, expansionistas e anti-democráticas, mas não teve experiências
com partidos populistas democráticos, no modelo americano, até a década de 1970. Foi
nos movimentos anti-impostos desse período que surgiram partidos como a Frente
Nacional, na França e o Partido Popular, na Dinamarca.
Essas agremiações nasceram minúsculas, mas foram adquirindo robustez em um
momento pós bonança. Nas décadas seguintes à Segunda Guerra, a Europa combinou
crescimento econômico com expansão dos serviços públicos, gerando uma bolha de
bem estar. Nesse período, os países europeus receberam muitos imigrantes,
especialmente do norte da África e das colônias.
O problema aparece na hora de dividir o bolo. A partir da década de 1980 a
bolha europeia estourou, resultando em retração da economia, aumento da inflação e do
desemprego. Os imigrantes, que até então eram bem tolerados, passaram a ser vistos
110

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

como ladrões de empregos e beneficiários ilegítimos do estado de bem estar social, cuja
conta começava a não fechar.
Os primeiros partidos populistas na Europa eram tributários do fascismo (Le
Pen, o pai, afirmava que o holocausto foi uma nota de rodapé na história). Com o passar
dos anos, foram amenizando o discurso e se tornando viáveis eleitoralmente. Até
recentemente, as experiências populistas na Europa se resumiam à direita, o que faz
com que o termo entre os europeus seja associado a xenofobia, eugenia, racismo.
Na América Latina, populistas pipocaram na primeira metade do século 20,
geralmente articulando pautas trabalhistas. Nas últimas décadas, o fortalecimento de
governos de esquerda no continente teve que ver com a narrativa populista, em figuras
como Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia, os Kirchner na Argentina e
Rafael Correa no Equador. O que faz com que, diferentemente da Europa, por aqui
associemos populismo à esquerda.
A linha da história – e o excelente livro de John Judis – mostram que os
momentos populistas podem ser apropriados de maneiras muito diversas, por todo o
espectro ideológico. Suas pautas bombásticas podem ser a estatização de ferrovias
(People’s Party) ou a construção de um muro gigantesco na fronteira (Trump); o
preconceito étnico (Le Pen) ou a recuperação de casas hipotecadas (Ada Colau); o fim
dos marajás (Collor) ou a auditoria da dívida pública (Rafael Correa); a universalização
da saúde (Sanders) ou a taxação de grandes fortunas (Huey Long).
Em um artigo publicado no dia seguinte às eleições americanas10, Pablo Iglesias,
liderança do Podemos espanhol, apontava as semelhanças de seu partido com Donald
Trump: nenhuma do ponto de vista de conteúdo e todas do ponto de vista do momento
político. A crise de 2008, que empobreceu as classes médias e reduziu investimentos em
serviços públicos, segundo ele, provocou as rachaduras.
Os estrategistas do Podemos bebem na fonte das teorias políticas de Ernesto
Laclau e Chantal Mouffe, que constituíram uma vertente crítica ao consenso neoliberal
na política europeia a partir dos anos 1980. O Podemos talvez seja o primeiro partido
populista que surge da teoria, com lideranças formadas nas bibliotecas e universidades.
Quando Iñigo Errejón, hoje deputado e um dos fundadores do partido, é questionado

10
IGLESIAS, Pablo. Trump y el momento populista. Disponível em: http://blogs.publico.es/pablo-
iglesias/1091/trump-y-el-momento-populista/
111

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

sobre as razões do sucesso, ele costuma responder, com jeito de aluno caxias, que
"estudaram muito".
A teoria encontrou a prática e o marketing político. Os discursos do Podemos
são endereçados às maiorias sociais e evitam os jargões progressistas, visando, nas
palavras de seus articuladores, ocupar o centro do tabuleiro. Refutam a divisão política
no eixo esquerda-direita, argumentando que esse modo de narrar só interessa ao poder,
pois joga quem constrói alternativas diferentes para as bordas. Sua formulação é a dos
99%: os de baixo contra os de cima, la gente contra la casta.
Pela ênfase intelectual e no debate teórico, o Podemos acaba constituindo um
laboratório populista, em que as teorias desenvolvidas nas décadas passadas são testadas
de maneira consciente. As transposições e tensões entre teoria e prática aparecem no
encontro de gerações que foi a instigante conversa entre Iñigo Errejón e Chantal
Mouffe, publicada no livro Construir pueblo.11
Ali, Mouffe repassa sua crítica à pós-política do neoliberalismo, em que restaria
à disputa política nada mais do que “administrar o consenso”. A partir do momento em
que os principais partidos oferecem soluções parecidas, e quando essas soluções não
melhoram a vida das pessoas (e, no caso da Espanha, não conseguem responder à crise),
podem aparecer frestas na hegemonia.
Os populistas do Podemos souberam perceber esse momento e entender a
essência da política, que para Mouffe consiste na criação de um “nós” – o que implica
necessariamente na distinção de um “eles”. Além disso, atentam para o “papel dos
afetos coletivos na construção desse ‘nós’, assim como para a importância dos símbolos
e de oferecer alternativas”.
O comentário de Errejón sobre o tema poderia ser uma provocação aos autores
citados no início deste artigo: “Há uma ideia entre as forças de esquerda, bastante
equivocada, que entende que se você faz um discurso similar aos populistas de direita –
no sentido de popular – você está ajudando, abrindo caminho. Quando na realidade eu
creio que o que os ajuda é deixar todo esse terreno dos afetos coletivos livre para eles;
assim como outro terreno-chave, que é o da identificação nacional.”12

11
ERREJÓN, Iñigo; MOUFFE, Chantal. Construir Pueblo: Hegemonia y Radicalización de la
Democracia. Barcelona. Icaria Editorial, 2015.
12
ERREJÓn, Iñigo. Op. Cit. Pg 60
112

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Os discursos patrióticos e a lida com os “afetos coletivos” costumam assustar os


campos progressistas e levam às acusações de que o Podemos não seria a “esquerda de
verdade”. As lideranças do partido, formadas nos círculos da esquerda, dão de ombros,
dizendo que não fazem questão do rótulo. "Para nós tanto faz a esquerda, queremos
construir hegemonia popular", provoca Errejón13.
Se Podemos e Syriza mostram que a forma populista pode servir a uma política
republicana, comprometida com a verdade, não patrimonialista, esses partidos ainda
conservam práticas que acabam entrando em contradição com os próprios discursos,
como o alto grau de hierarquia, a centralização em poucas lideranças, a distância das
ruas, etc. Ao fim, acabam por, mais uma vez, querer representar o povo a partir de
poucas figuras fechadas em gabinetes.
A novidade de fato está no municipalismo espanhol, fenômeno tão potente
(provocou um terremoto eleitoral em 2015) quanto pouco compreendido (costuma-se
creditar as vitórias ao Podemos). As confluências cidadãs, como são chamadas na
Espanha, foram capazes de reativar a rede ativista do 15M espanhol para eleger
prefeitas de fora dos grandes partidos políticos em cidades como Madrid, Barcelona,
Valência, La Coruña, Oviedo, Santiago de Compostela, Zaragoza, Terrasa, Cádiz.
As candidaturas foram encabeçadas por mulheres que não têm a política como
profissão. Os formatos jurídicos utilizados foram desde grupos de eleitores (a
candidatura sem partidos, que não existe no Brasil) até partidos instrumentais, criados
somente para aquela eleição. Partidos orgânicos entraram nas coligações, mas não
protagonizaram. Os programas de governo foram construídos em assembleias abertas e
em plataformas na internet. As candidaturas se comprometeram com a redução de
salários e privilégios e com medidas de radicalização da democracia.
A tônica narrativa é a do nós contra eles, preenchida porém por elementos
cidadãos e urbanos, como ilustra o discurso da vereadora eleita de Málaga, Isabel
Torralbo:
Nós sim amamos esta cidade. Vocês são a miséria. Nós somos a alegria.
Vocês são o individualismo. Nós a coletividade. Vocês o poder, nós a
potência. Vocês os gabinetes fechados, nós a rua. Viemos dos centros sociais,
dos movimentos, das marés. Não somos políticos de profissão e não
aspiramos a fazer carreira. E isso os assusta. Somos o único grupo municipal
composto por gente de a pé, pessoas que nos impusemos um limite de salário
e de mandato para depois voltar a nossas profissões. Nosso único interesse é

13
ERREJÓn, Iñigo. Op. Cit. Pg 110
113

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

o bem comum, porque não somos um partido e não atendemos razões


partidárias ditadas desde Sevilha, Madrid ou Barcelona. Portanto, nada temos
a perder, nem cargos nem postos nem contratos nem posições de direção. E
ganhamos, de fato. Esta Prefeitura, hoje, começa a parecer-se com uma praça
das que vocês nunca pisaram.14

Há um salto qualitativo. A narrativa populista encontra uma prática política mais


coerente e de fato plebeia. O outsider deixa de ser uma liderança ou um oportunista que
logo se tornará insider e passa a ser uma pessoa comum que não quer a política como
profissão. A defesa dos interesses do povo deixa de ser uma retórica de gabinetes e vai
para as praças, em experimentos de radicalização democrática. A disputa de poder pelos
partidos, que tantas vezes instrumentaliza governos locais, vai para o segundo plano.
Esse municipalismo foi capaz de conectar duas vertentes teóricas pós marxistas
que geralmente não se bicam: aquela capitaneada por Mouffe e Laclau, que já tratei
aqui, e aquela referenciada na ideia de multidão, cujo principal expoente é o italiano
Antonio Negri. Em poucas palavras, pela ótica populista, falta aos teóricos da multidão
e do comum a articulação político-institucional que dê sentido e transformação real ao
momento; pela ótica da multidão, sobra dirigismo, decisão de cúpula e macro narrativas
nos esquemas populistas.
Os textos de Bruno Cava contrapondo Laclau a Negri no contexto da política
espanhola introduzem os argumentos da multidão15. Várias falas de Mouffe e Errejón na
conversa aqui citada oferecem os argumentos populistas. Um fight frontal pode ser
visto, em um vídeo na Internet, na conversa entre Pablo Iglesias e o próprio Antonio
Negri16: a cada vez que o líder do Podemos fala em ocupar o centro do tabuleiro,
articular o significante vazio, criar hegemonias populares, o professor italiano responde
com a importância de se criar contra-poderes, fortalecer as múltiplas construções
comuns, lembrar que existe vida fora das instituições.

14
TORRALBO, Isabel. Discurso de vitória eleitoral proferido em 13/6/2015. Tradução do Círculo da
Cidadania do Rio de Janeiro. Discurso completo em espanhol disponível em:
http://www.laopiniondemalaga.es/malaga/2015/06/13/discurso-ysabel-torralbo-malaga-
ahora/773558.html
15
CAVA, Bruno. O Podemos entre multidão e hegemonia: Negri ou Laclau?. Em: CAVA, Bruno e
ARENCON, Sandra. Podemos e Syriza: experimentações políticas e democracia no século 21. São Paulo.
Annablume, 2015.
16
Conversa entre Pablo Iglesias e Antonio Negri, programa Otra Volta de Tuerka. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=BOpTvdOXF9U
114

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

As confluências municipalistas exploraram ao limite a narrativa populista, o nós


contra eles, mas o fizeram a partir de uma construção múltipla, menos centralista,
baseada em redes ativistas e comunitárias. Preencheram o significante vazio com uma
prática política da multidão. Criaram hegemonia por ocupar o centro do tabuleiro, mas
também a partir das bordas, pelo protagonismo dos coletivos e associações, das muitas
minorias.
E ganharam as prefeituras. Em um ano de governo, a prefeitura de Madrid
logrou reduzir sua dívida em 20%, e ainda aumentar os investimentos sociais. Cortaram
um terço dos cargos comissionados, privilégios, carros fretados. Criaram um site para
decidir a destinação de 60 milhões de euros do orçamento municipal, que resultou em
uma agenda urbana avançada, em termos sociais e ambientais.
As gestões nas cidades espanholas têm sido muito diferentes dos governos
populistas da América do Sul e nada têm a ver com o que tende a ser, por exemplo, um
governo Trump. Conhecer essas experiências pode fazer bem a quem busca justiça
social e boa gestão pública, porque mostra que a articulação das indignações pode servir
também, quando levada a sério, à superação de vícios políticos.
Bartleby, o personagem de Herman Melville, era um escrivão gentil e
competente, até o dia em que passa a responder às solicitações do chefe com um
inusitado “prefiro não fazer”. O livro de Melville leva ao limite as consequências dessa
desobediência pacífica, mas não explica as razões profundas que teriam levado o
escrivão a praticá-la. Nos momentos de crise política e econômica, os Bartleby saem do
armário para as urnas (ou nem saem). Do cumprimento do dever cívico, passa-se ao
prefiro não votar. Pouco importa se os políticos, ou o chefe, esperneiam, conclamam,
ameaçam, berram em carros de som, distribuem milhões de panfletos.
Nas eleições brasileiras de 2016 aumentou o número dos que preferiram não
escolher ninguém. Em 10 capitais, abstenções, brancos e nulos superaram o primeiro
colocado no primeiro turno. Em outras onze, ficaram à frente do segundo colocado. No
segundo turno, o número total de abstêmios subiu de cerca de 26%, em 2012, para mais
de 32% em 2016.
Foi nesse contexto que ganharam as prefeituras de São Paulo, Rio de Janeiro e
Belo Horizonte figuras conhecidas por suas atividades na TV, na Igreja e no Futebol. O
que têm em comum João Doria Júnior, Marcelo Crivella e Alexandre Kalil? Mais do
115

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

que identificá-los com uma nebulosa “onda conservadora” – termo confortável para a
esquerda, na medida em que abdica da análise e da autocrítica subsequente – interessa
atentar para as diferenças de suas campanhas e contextos eleitorais.
Por sua história, Marcelo Crivella teria dificuldades em largar como um
candidato anti-sistema. Ex-ministro da pesca de Dilma Rousseff e ex-senador, o bispo
licenciado da igreja Universal já havia se candidatado ao Governo do Estado e à
Prefeitura do Rio uma pá de vezes. Sua vitória parece ter vindo da identificação de um
eleitorado evangélico somada à dificuldade dos seus oponentes de capturarem o
momento de crise.
O Rio de Janeiro registrou o maior índice de abstenções de todo o país no
primeiro turno: um quarto dos eleitores preferiu nem se dirigir às urnas. Outros 13%
foram, mas digitaram números que não tinham candidatos. No segundo turno, a soma de
abstenções, brancos e nulos cresceu para inacreditáveis 47% – quase metade dos
eleitores cariocas preferiu não escolher.
O recorde Bartleby e os resultados pífios dos partidos tradicionais mostram que
a vitória de Crivella foi o resultado de um vácuo. Marcelo Freixo, que havia conseguido
capturar o sentimento de indignação em 2012, em uma campanha muito mais precária,
não conseguiu vencer fora do eleitorado politizado de classe média.
Uma pena, porque o candidato do PSOL carioca reúne qualidades raras no
cenário político atual e sua campanha chegou a um patamar novo para o partido, com
ótimos vídeos, uso de tecnologias do ativismo digital e forte mobilização nas ruas. Mas,
como já foi dito, inclusive pelo próprio Freixo, pregou demais para convertidos.
O mote de campanha – “derrotar o PMDB no Rio” – é justificado, mas não
resultou em um significante vazio suficientemente amplo. Talvez porque essa
construção colocasse o candidato muito mais dentro do que fora do jogo político,
embora ele esteja fora de todos os esquemas da política tradicional. O equívoco do
slogan Vai ser desse jeito, bonito no jingle mas arrogante quando descontextualizado,
talvez mostre que a esquerda não está “perdida na floresta”, nos termos de Ruy
Fausto17, mas “se achando demais”, como provocou Bruno Cava18.

17
FAUSTO, Ruy. Op. Cit.
18
CAVA, Bruno. Entrevista concedida ao Instituto Humanistas Unisinos em 29 de novembro de 2016.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-entrevistas/562848-a-esquerda-precisa-de-um-impulso-
de-despressurizacao-entrevista-especial-com-bruno-cava
116

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

E se o mote fosse “derrotar os políticos tradicionais”? Se a proposta de montar


um secretariado técnico, sem indicações de partidos, adquirisse centralidade na
campanha? Se a luta que o deputado já trava contra super salários fosse explorada com
ênfase? Nesse caminho, sem abrir mão de um centímetro de suas convicções, Freixo
poderia ter sido o candidato outsider que o momento pedia.
No segundo turno, quando Globo e Abril passaram a publicar denúncias contra
Crivella, campanha do bispo inverteu a narrativa. Crivella começou a se colocar como
uma figura independente, contra a grande mídia e o poder político. Não deixa de ser
trágico que o genro de Edir Macedo tenha conseguido, para um público significativo,
construir uma imagem anti-sistema mais forte que a do combativo deputado do PSOL.
“Eu não sou político, sou empresário, gestor, trabalhador”. Nessa toada, era
como se João Dória Júnior não tivesse ocupado altos cargos nos governos de Mario
Covas e José Sarney, na década de 1980, ou como se sua atuação empresarial não usasse
e abusasse da política em tantos sentidos. Mas o mantra, repetido até a exaustão em sua
campanha à prefeitura de São Paulo, colou. Com dinheiro à disposição, ele saiu de 5%
das intenções de votos para uma vitória acachapante no primeiro turno.
João Doria foi o que tivemos de mais próximo a Donald Trump: um empresário
milionário, apresentador de TV, com um discurso que envolvia moral do trabalho e
destilação de ódios sociais. Ainda assim, Doria é um Trump muito ameno. Líder de uma
grande associação empresarial, ele não deriva para o racismo e a misoginia explícitos,
embora haja autoritarismo e violência simbólica em seus discursos.
Como um bom populista de direita, e sem nenhum interesse em combater a elite
da qual faz parte, Doria canalizou a indignação da população contra dois significantes
vazios: o Partido dos Trabalhadores e a desordem. Prometendo “varrer o PT de São
Paulo” e “acabar com o vandalismo”, o candidato do PSDB ganhou de lavada nas
periferias, em territórios onde o eleitorado havia dado ampla vitória a Fernando Haddad
em 2012.
Doria teve uma vitória histórica no primeiro turno, mas sua votação foi inferior à
soma dos nulos, brancos e abstenções. Mais de 3 milhões de eleitores paulistanos
preferiram ninguém. O mesmo ocorreu em Belo Horizonte, onde Alexandre Kalil, do
PHS, venceu as eleições de maneira inusitada, mas foi superado pelos votos Bartleby.
117

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Chegou a ser engraçado ver um cartola de futebol – profissão em que reina a


politicagem – ganhar a prefeitura da capital mineira com a bandeira “chega de
políticos”. Kalil, um empresário do ramo imobiliário, havia sido presidente do Atlético
Mineiro de 2008 a 2014, quando o clube teve bons resultados. O presidente era
conhecido por declarações polêmicas, entrevistas engraçadas e uma fala sincera com
certo carisma.
Poucos esperavam que sua candidatura à prefeitura fosse articular demandas
populares e de movimentos sociais, mas foi o que ocorreu – talvez por enfrentar o
PSDB, com um candidato conservador como João Leite. Em um de seus vídeos mais
virais, o candidato vai ao bairro onde reside uma funcionária de sua empresa, às 5h da
manhã, para “conhecer a realidade do transporte público dos trabalhadores”.
Sua campanha propôs abrir a caixa preta das empresas de ônibus – a pauta dos
movimentos anarquistas de 2013 na boca de um empreiteiro-cartola – e se comprometeu
também com ocupações urbanas, áreas verdes e bairros periféricos. Talvez estivesse de
olho nos votos destinados a PT e PSOL no primeiro turno (que somaram quase 13%),
mas o fato é que ele se elegeu com pautas de interesse coletivo. Resta saber se irá
cumpri-las.
No segundo turno, a campanha do PSDB tentou colar em Kalil a imagem de
petista. A resposta foi brilhante, é preciso admitir. Os vídeos da campanha de Márcio
Lacerda em 2008, em que Aécio Neves aparece ao lado de Fernando Pimentel, do PT,
foram utilizados como resposta. O jogo de poder daqueles que até outro dia eram
aliados e agora se enfrentavam foi exposto como politicagem. Os padrinhos, que até
outro dia traziam votos, foram utilizados para tirar votos do adversário.
Nos debates, Kalil chegou a mandar Aécio e Pimentel “pro inferno” e afirmar
que era preciso focar o debate nos problemas da cidade: metrô, educação, saneamento.
“Ninguém transfere voto. Esses caras viraram lepra”, sentenciou. Sua sinceridade
derivou para o obsceno, no sentido colocado por Rodrigo Nunes em um ensaio recente:
o de “deixar de se esforçar para parecer respeitável nos velhos moldes e chamar as
coisas pelo nome”19. Também o obsceno é somente uma forma, na qual cabem diversos
conteúdos.

19
NUNES, Rodrigo. A vitória da obscenidade. Caderno Ilustríssima, Folha de São Paulo, 2016.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/12/1837803-como-2016-levou-o-
indizivel-ao-estrelato.shtml
118

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Antes de terminar, valeria passar pela experiência do Muitas | Cidade que


Queremos, movimento que lançou candidaturas à câmara municipal de BH pelo PSOL.
Uma experiência menor, mas significativa no contexto: elegeu duas vereadoras, sendo
uma delas a mais votada da cidade, por um partido que nunca tinha chegado a um terço
do quociente eleitoral na capital e que tem apenas outros dois vereadores em todo o
estado de Minas Gerais.
Participei do movimento e posso dizer que, a 45 dias das eleições, não se tinha a
menor ideia de como conseguir algum dinheiro, não havia equipe, tampouco
planejamento de campanha. O partido não tinha recursos nem infraestrutura. A eleição
foi um exercício de política free style, regado a improviso e voluntariado.
Mas havia amadurecimento político e um exercício de cidadania. O movimento
vinha há 18 meses debatendo as possibilidades de ocupar as instituições. Resultou no
lançamento de doze candidaturas à câmara de vereadores, com maioria de mulheres,
representatividade de negros, além de contar com a primeira transexual e a primeira
indígena a se candidatarem na cidade. Essa busca pela representatividade de corpos foi
um dos pilares da construção. Os outros eram a radicalização democrática e a redução
de privilégios dos políticos.
Quando escolhemos o slogan Outra política é possível, pessoas no grupo se
incomodoram com a similaridade com a nova política, de Marina Silva, e com a anti-
política de Kalil. Outros argumentaram que praticávamos outra política de fato, e que
era preciso perder o medo de dizer. A esquerda costuma ter um certo pânico moral com
os significantes vazios populistas, mas entendo que foi uma boa escolha. Até porque,
como no municipalismo espanhol, havia ali um preenchimento coerente. As pessoas
eram outras, os compromissos eram outros: redução de salários e privilégios, mandatos
abertos, política cidadã e não carreirista.
As candidaturas compartilharam recursos e materiais. A principal peça gráfica
era um folder desdobrável com doze pessoas que disputavam o mesmo cargo, o que
seria impensável na política tradicional. #VotouEmUmaVotouEmTodas foi a hashtag
para essa candidatura coletiva.
Áurea Carolina, a candidata mais votada do grupo e das eleições, foi a figura que
capturou os desejos de mudança. Tem trajetória de luta, carisma, comprometimento e
capacidade de mobilização, e fez por merecer a votação. Mas talvez o coletivo só tenha
119

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

conseguido ter um alcance tão grande porque construiu de fato a ideia de uma outra
política, conseguindo furar a bolha da classe média esclarecida.
Furar a bolha talvez seja o maior desafio de propostas cujo principal meio de
comunicação são as redes sociais. Aqui não foi diferente e duas ações tiveram um papel
particularmente importante nesse sentido. A primeira foi firmar em cartório
compromissos de redução de privilégios. A ideia parecia ingênua, porque as propostas já
haviam sido divulgadas, mas teve boa cobertura da imprensa local e acabou por ampliar
o público.
A segunda foi um vídeo, que foi ao ar a uma semana das eleições, em que cada
candidata – o coletivo usa o feminino para a generalização – pedia voto para outra,
numa demonstração de desapego e coletividade. A peça viralizou e teve centenas de
milhares de visualizações. A grande repercussão do ato em cartório e do vídeo mostram
como o significante vazio outra política pode deixar de ser um mero slogan e adquire
consistência quando há uma verdade por trás.
A bolha estourou. Na última semana, quando um grande mutirão de panfletagem
voluntário ocupou as ruas da cidade, a maior parte do público já conhecia as
candidaturas. Duas vereadoras foram eleitas com pouquíssimos recursos, sendo o PSOL
o partido com menor gasto entre os que elegeram na capital.
Trago essa história não por proselitismo, mas para mostrar, com ajuda das
experiências espanholas e gregas, que o momento de crise pode ser abordável por quem
busca justiça social, boa gestão, aprimoramento democrático. Em uma entrevista
recente, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad afirmou que a disputa no país nos
próximos anos será entre a direita e a extrema-direita.20 Pode até ser, mas a perspectiva
de Haddad ignora as construções para além do PT e parece incapaz de imaginar a
utilização da narrativa populista pelas esquerdas.
Talvez fizesse bem aos campos progressistas deixar de ver o populismo como a
“sombra da democracia e um constante perigo”, como sugeriu Müller em seu livro, e
passar a mirá-lo, nas palavras de Panizza, como um “espelho no qual a democracia pode
se enxergar em detalhes, com verrugas e tudo mais, e entender suas virtudes e falhas”.
Isso não quer dizer fazer nenhuma concessão para demagogia, autoritarismos e

20
HADDAD, Fernando. Entrevista ao jornal Folha de São Paulo em 21/11/2016. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/11/1833961-disputa-sera-da-direita-com-a-extrema-direita-
afirma-haddad.shtml
120

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

clientelismos, mas entender de onde vem sua força e poder enfrentá-los a partir do
campo mais promissor para o embate nos momentos de crises.
A velha política brasileira já compreendeu o momento e vai tentar eleger, nas
próximas eleições, outsiders de dentro. O PTN, partido cujo presidente estadual em
Minas foi recentemente afastado do seu mandato de vereador por denúncias de
enriquecimento ilícito, mudou seu nome para (nada menos que) Podemos. O PTdoB
deve se transmutar em Nova Democracia. Essas siglas fisiológicas com novas
roupagens podem ter chances em eleições como as que vêm aí. Mas isso não é o pior. A
eleição de um novo Collor ainda pode sair barata, frente à possibilidade –real, Trump
vem nos lembrar – da indignação popular cair no colo de um Bolsonaro nos próximos
pleitos.
Deixar esse terreno livre para reafirmar a importância da política com P
maiúsculo, dos partidos tradicionais e fazer um discurso moral contra os populistas – o
que só os beneficia, pois reforça sua imagem de outsiders – pode parecer valente, mas
talvez seja abandonar a partida para não sujar o uniforme, porque o campo está
enlameado. Como coloca Chantal Mouffe, “o discurso antiestablishment pode ser
articulado de várias maneiras e por isso é muito importante não abandoná-lo às forças
da direita. No caso da Grécia é evidente que se não houvesse existido o Syriza, o partido
neonazista Amanhecer Dourado teria tido melhores resultados.”21

21
MOUFFE, Chantal. Op. Cit. Pg 60.
121

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Interpretar as manifestações de junho de 2013?

Should the demonstrations of june 2013 be interpreted?

José Antonio Rego Magalhães1

Resumo
Neste artigo, questiono a ideia adquirida de que as manifestações de junho de 2013
estejam aí para ser interpretadas. Gostaria de mostrar que, quando a sua análise se
resume a esse gesto, ela deixa passar uma dimensão essencial do funcionamento desses
eventos, da sua função política: a crítica radical, imediata e performativa da esfera da
representação conforme ela se apresenta em um dado momento. Nesse sentido, ao
relacionar as manifestações à crise da representação, a maneira interessante de fazê-lo
não é dizer que as manifestações se referem à crise da representação como sentido a ser
transmitido. O que uma manifestação desse tipo faz é, na sua intervenção concreta,
obrigar certas instituições a fazer a experiência da crise da representação, deixando-se
alterar por ela. Tratarei da relação entre as manifestações de 2013 e duas esferas em que
elas foram objeto de interpretação. Em primeiro lugar, dos veículos de imprensa e, em
segundo, dos intérpretes acadêmicos/intelectuais que se dedicaram à tarefa de traduzir a
“mensagem” das manifestações, definir seu “sentido” etc.

Palavras-chave
junho de 2013; manifestações; violência; representação.

Abstract
In this paper, I question the received idea that the demonstrations of june 2013 in Brazil
should be interpreted. I would like to show that, when their analysis is restricted to that
gesture, it ignores an essential dimension of those events, of their political function: the
radical, immediate and performative critique of the sphere of representation such as it
presents itself in a given moment. In this sense, in linking those demonstrations to the
crisis of representation, the interesting way to do it is not to say that the demonstrations
refer to the crisis of representation as a meaning to be transmitted. Rather, what a
demonstration of that kind does is, in its concrete intervention, force certain institutions
to go through the experience of the crisis of representation, and thus be altered by it. I
will discuss the relation between the 2013 demonstrations and two spheres in which
they were the object of interpretation. First the press, and then the academic/intellectual
interpreters who undertook the task of translating the “message” of the demonstration,
defining their “sense” etc.

1
Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro
122

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Keywords
June 2013; demonstrations; violence; representation.

1. Introdução

Uma vez consolidado o processo de impeachment da (agora ex-) presidente


Dilma Rousseff, chamado por muitos de “golpe parlamentar”, parece vigorar um amplo
consenso, no campo político progressista brasileiro, de que as manifestações de junho
de 2013 marcaram a “ascensão do fascismo” no Brasil e, assim, configuraram o “ovo da
serpente”, que viria a se consolidar no “golpe” de agosto de 2016. Nesse sentido, o que
aconteceu em 2013 aparece como fechado para balanço. Acreditamos saber o que
aconteceu em junho de 2013 e por que aconteceu. E pior: acreditamos que o que
aconteceu foi obviamente um mal, e que, se em algum momento pareceu que algo
produtivo poderia se originar daquelas movimentações, isso veio a se provar uma
esperança ingênua.
Por outro lado, já à época em que a maioria das opiniões à esquerda eram
simpáticas aos acontecimentos de junho, parecia haver uma tendência impensada a ver
as manifestações de rua como algo que pedia interpretação. Perguntava-se “Qual a
interpretação mais correta desse acontecimento?”, “Qual a mensagem das ruas?”, ou, no
máximo, “Como interpretar o que acontece?” Em qualquer dessas perguntas, porém, já
estava dada, implicitamente, a noção de que o que acontecia precisava ser interpretado.
Que o verbo privilegiado aí era “interpretar”, e não qualquer outro.
Na contramão dessa suposição irrefletida, a pesquisa de que este texto se
origina procura mostrar que as manifestações de junho de 2013 – como, aliás, quaisquer
manifestações (em um certo sentido da palavra que ficará claro mais adiante), ou pelo
menos as da geração pós-2011 (convocadas pela internet, sem lideranças e organização
claras, difusas, múltiplas) – não estão aí simplesmente para ser interpretadas, e que,
quando a sua análise se resume a esse gesto, ela deixa passar uma dimensão essencial do
funcionamento desses eventos, da sua função política: a crítica radical, imediata e
performativa da esfera da representação conforme ela se apresenta em um dado
momento.
123

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Essa constatação tem a ver com a noção, proposta por Walter Benjamin (2011),
e recuperada recentemente por Giorgio Agamben (2004; 2010), de “puro meio” – uma
forma de ação humana que não é nem um fim em si mesma, nem um meio dirigido a um
fim, mas um puro meio que se libera de qualquer relação de finalidade.
Em “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”, Benjamin
(2011) escreve que a linguagem como puro meio manifesta-se a si mesma. Se
pensarmos, a partir daí, que uma manifestação manifesta-se a si mesma, e que portanto
ela tem uma dimensão de puro meio, então podemos pensar que, nessa dimensão, a
manifestação não se refere a nenhum significado transcendente, que careça de ser
recuperado na interpretação, mas apenas se mostra, e mostra-se justamente enquanto
irredutível à esfera da representação.
Nesse sentido, ao relacionar as manifestações – como frequentemente é feito –
à crise da representação, a maneira interessante de fazê-lo não é dizer que as
manifestações se referem à crise da representação como sentido a ser transmitido. O que
uma manifestação desse tipo faz é, na sua intervenção concreta, obrigar certas
instituições a fazer a experiência da crise da representação, deixando-se alterar por ela.
Neste artigo, tratarei da relação entre as manifestações de 2013 e duas esferas
(que, cada uma à sua maneira, podem ser consideradas privilegiadas) em que elas foram
objeto de interpretação. Colocarei, assim, a questão de qual foi o papel, em primeiro
lugar, dos veículos de imprensa e, em segundo, dos intérpretes acadêmicos/intelectuais
que se dedicaram à tarefa de traduzir a “mensagem” das manifestações, definir seu
“sentido” etc. Usarei aqui, como paradigma para a discussão, alguns textos incluídos na
compilação “Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do
Brasil”, organizado pela editora Boitempo, um dos livros mais difundidos, na sequência
a junho de 2013, sobre o assunto.

2. Os meios e seus fins

Maria da Glória Gohn (2014, p.72) ressalta que a mídia escrita, a TV, o rádio e a
internet foram, em junho e na sequência, “muito mais que veículos de transmissão dos
acontecimentos”. Esses órgãos condicionaram o próprio desenrolar das manifestações,
seja noticiando-as com destaque, em manchetes diárias, divulgando convocações, seja
124

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

transmitindo-as em tempo real. Essas instâncias, porém, não serviram apenas para
capturar os acontecimentos e reduzi-los a uma dada interpretação, embora isso seja em
grande medida a sua função. Elas também foram espaço privilegiado para a
desestabilização simbólica operada pelas manifestações. Bucci (2015, p.438) lembra
que, se por um lado “a exploração do olhar social [pela mídia] como força constitutiva e
força produtiva da significação da imagem permitiu o estabelecimento de signos como
manifestantes pacíficos em oposição a vândalos”, ela por outo lado “resultou na
construção de auras românticas associadas a certos figurinos, em especial os black
blocs, e catapultou, em reação imediata, a adesão das multidões às passeatas” quando
mostrou, ainda que contra a própria narrativa, a brutalidade da repressão policial contra
manifestantes aparentemente pacíficos.
Qual dessas dimensões predomina? É verdade que, por um breve momento, os
meios de comunicação tradicional serviram para canalizar a energia das manifestações
com uma força que hoje ainda parece exceder a capacidade das redes sociais
horizontais. Mas isso, de certo modo, não passou de um curto-circuito que pôde ser
resolvido em pouco tempo. É claro que a transmissão da imagem dos black blocs serviu
para inflamar o espírito revolucionário do público, ainda que a mídia a veiculasse com
clara reprovação, o que leva Bucci (2014, p.412) a levantar a questão se “as câmeras
não idolatraram aquilo que, nos microfones, os apresentadores rejeitaram”.
Por outro lado, a mesma mídia demorou muito pouco para pôr em ordem o
aparato interpretativo necessário para domesticar as manifestações, instrumentalizando
a imagem dos próprios black blocs nesse intuito. Vários autores comentam a “clivagem
entre ‘pacíficos’ e ‘baderneiros’” (Rolnik, 2013) estabelecida, a partir de um dado
momento, pelo discurso midiático. “A tela que nos apresenta as manifestações encontra
dividida”, observa Silvia Viana (2011, p.57), “de um lado, imagens verde-e-amarelas, de
outro, cenas vermelhas”. “Desde que depurada dos vândalos, a passeata torna-se
aceitável” (Secco, 2013, p.72). Por isso mesmo, é claro, faz-se inofensiva. Cabe atentar
aqui para o uso do termo “passeata”, em lugar de “protesto” ou “manifestação”.
Com efeito, a manifestação meramente legítima torna-se uma passeata, um
simples passeio. Um grupo de cidadãos no exercício legítimo do seu direito de
manifestação não tende a trazer nenhuma interrupção no fluxo de auto-reprodução do
direito. A demanda legítima expressa aí já faz parte do mundo do direito. Não força as
125

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

suas formas. A manifestação perde o seu potencial de promover uma ruptura no ciclo do
direito, de desestabilizá-lo ou de suspendê-lo. A manchete do jornal O Estado de São
Paulo, “Violência nos atos ofusca movimentos pacíficos” (Manso, 2013, grifos meus) é
representativa. No texto, porém, após se referir ao “desafio que as forças de segurança e
de imprensa estão enfrentando” para lidar com a violência nas manifestações, a matéria
curiosamente deixa escapar que a mesma violência “vem se consolidando como a forma
mais eficiente de fazer reverberar os protestos que passariam em branco se ocorressem
pacificamente”.
Bucci (2015, p.416) afirma que a “operação semântica insistente” dos noticiários
em “tachar os black blocs de vândalos, contrapondo-os aos demais, designados de
manifestantes pacíficos” tinha como propósito “prevenir e educar os novatos em
passeatas, para que não enveredassem para a pancadaria”. Me parece, contudo, que há
uma inteligência ainda mais profunda e interessante nessa operação, ainda que ela
funcione sem consciência. Ela não é de mão única, no sentido de condenar os
“vândalos” e legitimar os “pacíficos”, mas de mão dupla. De um lado, os “vândalos”,
manifestantes cujas demandas não são evidentemente legítimas, ou que exercem alguma
violência (física ou não) externa aos fins do direito, ameaçando deslocar suas estruturas,
têm sua relação com o direito anulada através de uma operação que estabiliza e define
sua violência como não tendo nada a ver com o direito. Do lado oposto, a passeata dos
“pacíficos” não oferece nenhum desafio ao estado presente do direito, despida de
qualquer elemento de força que pudesse suspender, temporariamente, as estruturas
interpretativas que definem direitos e não-direitos.
Vista assim, a violência interpretativa promovida pela mídia, ao operar a
clivagem entre “legítimos” e “vândalos”, não fez menos do que separar e isolar os dois
elementos que, em sua discussão da “Crítica da Violência” de alter Benjamin, Jacques
Derrida admite como duas dimensões da desconstrução: de um lado, a violência
jurídica, legível mas incapaz de decidir, de outro, a violência pura, ilegível mas
decisiva, no sentido de permitir uma suspensão temporária do direito. Qualquer das
duas violências, operada essa separação bem definida, torna-se incapaz de transformar o
direito. A cisão promovida pela mídia consegue pôr em marcha um dispositivo de
interpretação que desarticula o potencial da manifestação de alterar o direito. Ela separa
126

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

a comunicação como discurso domesticado e a ação como pura destruição, de uma


forma que anula a potência do acontecimento como tal.
É claro que a separação entre “pacíficos” e “vândalos” não é o único mecanismo
que foi operado a fim de domesticar as manifestações. Um grande exemplo, em que
diferentes instituições aparecem agindo em concerto, é o dos fatos que se seguiram à
morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido por um rojão no dia 6 de fevereiro de
2014. Sobre os dois manifestantes mascarados registrados em vídeo passando e
colocando o rojão, o delegado Maurício Luciano de Almeida, da 17ª Delegacia de
Polícia do Rio de Janeiro logo sentencia através da imprensa: “Não tenho a menor
dúvida de que os dois agiram com a intenção de matar quando lançaram o artefato
explosivo” (Ramalho, 2014). Discurso semelhante é reproduzido pela maioria dos
órgãos da grande mídia, muito embora o próprio vídeo da cena, reproduzido à exaustão
na televisão e na internet, deixe evidente a impossibilidade de que o trajeto feito pelo
artefato pirotécnico pudesse ter sido determinado de antemão – o que mostra o poder
que tem uma moldura interpretativa, mesmo sobre a imagem nua.
A partir de então o fato é instrumentalizado2 pelas autoridades e a mídia como
forma de criar uma “temporada de caça aos black blocs” (Barón, 2014) nas
manifestações pós-junho que vinham adentrando 2014, ano da Copa do Mundo.
Ademais, como noticia El País (Rossi; Bedinelli, 2014), “a morte de Andrade ocorre nas
vésperas da votação de um projeto de lei3 que define o crime de terrorismo no país”, que
poderia servir para enquadrar manifestações e movimentos sociais. As tentativas
relativamente explícitas das autoridades brasileiras de enquadrar manifestantes como
terroristas, de modo a resguardar a segurança do megaevento da FIFA, renderam críticas

2
O jornal El País noticia que “o falecimento do profissional da TV Bandeirantes atingido por um
explosivo no Rio representou uma inflexão na forma como o Estado lutará contra a violência do
movimento black bloc” (Barón, 2014). Segundo a matéria, “os grupos violentos, que inclusive chegaram
a contar com o apoio e a compreensão de parte da população brasileira durante a eclosão das
manifestações em junho [...], parecem ficar cada dia mais sós em sua cruzada particular contra a Copa do
Mundo, os aumentos do transporte, o sistema educacional vigente, a corrupção e, definitivamente, essa
maionese que chamam ‘sistema’”.
3
O Projeto de Lei 728 de 2011, de autoria de Romero Jucá, senador pelo estado de Roraima, viria
“tipificar como terrorismo o ato de destruir ou explodir meios de transportes ou qualquer bem público ou
privado, com a pena máxima de até 30 anos" (Rossi; Bedinelli, 2014). Segundo sua ementa, o projeto
“define crimes e infrações administrativas com vistas a incrementar a segurança da Copa das
Confederações FIFA de 2013 e da Copa do Mundo de Futebol de 2014, além de prever o incidente de
celeridade processual e medidas cautelares específicas, bem como disciplinar o direito de greve no
período que antecede e durante a realização dos eventos, entre outras providências”. Ele terminou sendo
rejeitado em 12 de novembro de 2014.
127

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

da parte de organismos voltados à defesa dos direitos humanos como a Anistia


Internacional, que lançou um relatório afirmando que “ao abranger também os delitos
contra a propriedade, [a legislação] suscita a preocupação de que seja [usada] para
processar manifestantes que cometam atos de vandalismo”4 (González, 2014). El País
noticia que, para Romero Jucá, senador que propôs a lei, “é importante que [ela] seja
aprovada antes da Copa do Mundo”. “Este é justamente o ponto de oposição”, adiciona
a matéria: “acredita-se que o projeto de lei é de interesse da FIFA, assustada diante das
manifestações constantes que vêm ocorrendo no país”.
Diante desse tipo de manobra institucional orquestrada, voltada a deslegitimar
manifestações posteriores a junho e a favorecer o endurecimento da repressão estatal,
cumpre ressaltar a importância das iniciativas de mídia livre, por exemplo Coletivo
Carranca, Mídia Independente Coletiva (MIC) e Coletivo Mariachi. Há ainda o caso
especial do coletivo Mídia NINJA, cuja relevância em 2013 foi grande, mas que, com o
tempo, foi passando a atuar cada vez mais claramente como um departamento “jovem”
de marketing partidário, trocando o calor das ruas pela reprodução de memes e hoaxes
ligados à política tradicional. De todo modo, as organizações de mídia livre
conseguiram, em 2013, disputar com a imprensa tradicional a produção de narrativas
sobre os acontecimentos de junho e subsequentes, chegando a apresentar-se,
especialmente nos momentos mais iniciais de junho, como principal meio de
transmissão de conteúdo sobre as manifestações (Gohn, 2014).
Esses dispositivos de representação, que poderiam ser chamados contra-
hegemônicos, são especialmente interessantes pelo seu caráter interpretativo mínimo,
isto é, pelo fato de que, enquanto as transmissões da mídia tradicional tendem a incluir
comentários e recortes que oferecem um quadro interpretativo bem delineado aos
conteúdos, a mídia livre tende a deixar fluir a informação de forma mais crua, por
exemplo através do streaming de vídeo direto da manifestação, ou da divulgação de
pequenos clipes nas redes sociais que, embora selecionados, não costumam vir
acompanhados de comentário. Esse tipo de transmissão mais imediata – embora, é

4
A Anistia Internacional expressou seu descontentamento através de um ato conjunto em Roma, Haia,
Santiago do Chile, Assunção, Brasília e Madri. No protesto, vários ativistas vestidos como árbitros
mostravam um cartão amarelo às autoridades brasileiras. O referido relatório fala em uma “estratégia de
medo” reforçada pela possibilidade da presença do Exército na contensão de manifestações durante a
Copa do Mundo. Ele ainda qualifica a atuação da polícia em manifestações como “violenta e abusiva” e
ressalta que, apesar do número de incidentes violentos de que se teve conhecimento, não houve nenhum
agente processado. (González, 2014)
128

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

claro, nunca desprovido de algum grau de parcialidade – tende a favorecer a


possibilidade de que outras interpretações, diferentes daquelas determinadas pelas
instituições políticas ou midiáticas tradicionais, possam se desenvolver em torno dos
acontecimentos, sem sobredeterminá-la excessivamente de antemão.

3. Guerra de interpretações

Raquel Rolnik (2013, p.8) abre sua apresentação ao volume Cidades Rebeldes
comentando o editorial de um periódico francês, que ela descreve como exemplo da
“ladainha do fundamentalismo neoliberal, apontando o elevado custo do trabalho, a alta
carga tributária e a corrupção como os responsáveis pelo grande descontentamento
manifesto nas ruas”. Sem dúvida uma crítica pertinente, na medida em que a abordagem
em questão parece preocupada antes em projetar seus próprios axiomas no
acontecimento interpretado do que em perguntar-se sobre esse acontecimento.
Abordagens desse tipo parecem partir do seu ponto de chegada, tomando por evidente
aquilo que deveria aferir, isto é, o que dizem as “vozes das ruas”. A sua crítica é
pertinente.
Logo em seguida, contudo, Rolnik faz referência a uma “guerra de
interpretações das vozes rebeldes” e enaltece a “bela e forte tentativa de interpretação”
das manifestações de junho empreendida pelos pensadores reunidos na compilação.
Coloca-se, assim, uma questão importante: Como garantir que interpretações pela
esquerda, como as compiladas em Cidades Rebeldes, não padeçam do mesmo vício, isto
é, que não imponham sobre os acontecimentos um vocabulário pré-pronto que traga
consigo suas conclusões interpretativas? Ademais, posto o que foi discutido até aqui,
não se trata simplesmente de rejeitar interpretações simplistas, impositivas ou
equivocadas do fenômeno em questão mas, antes disso, de colocar a questão se um
acontecimento dessa ordem demanda interpretação, se sua interpretação é possível ou
desejada, e em primeiro lugar o que significa interpretar uma manifestação.
O intérprete é aquele que descobre o sentido por trás de algo. Interpretar um
fenômeno implica em que seu sentido não se dá obviamente, que é preciso descobrir o
seu sentido oculto. Como foi visto ao longo deste trabalho, a interpretação, em sentido
estrito, está do lado do direito, da linguagem como instituição e da garantia forçada de
129

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

um vínculo entre significante e significado. O que é interpretar uma manifestação, se


tomarmos tanto o verbo quanto o substantivo ao pé da letra? Se aquilo que meramente
se manifesta difere daquilo que relaciona-se como meio a um fim, a manifestação seria
então, por definição, aquilo que não representa nada, que não se refere a nada, que não
simboliza ou significa nada (nenhuma ideia, nenhum conceito, nenhum sentido), mas
apenas manifesta a si mesmo.
É claro que esse não é o único sentido da palavra “manifestação”, e que não é
preciso tê-lo em mente ao usar a expressão como sinônimo de “protesto”. Não obstante,
a reflexão concerne à questão que importa aqui, isto é, em que medida faz sentido falar
em interpretar uma manifestação. Afinal, não seria uma manifestação de rua algo cujo
sentido é evidente? Em outras palavras, não estaríamos errados em procurar mais atrás
ou mais fundo um sentido para além do que claramente se dá a ver? Não deixamos,
assim, de vê-lo? Uma manifestação de rua, no sentido etimológico da palavra, é uma
coisa óbvia. Ela está ob via, ou seja, de frente à rua, e é impossível não vê-la. Mais que
isso, é impossível ignorar seus efeitos, pois sua natureza é tão material e concreta
quanto poderia ser – a passagem torna-se impossível. Sua apresentação é a forma
concreta e palpável da aporia, do não-caminho, isto é, daquele ponto em que, segundo
Derrida (2005) afirma em Força de Lei, se dá qualquer desconstrução.
Cabe levantar aqui a questão se não há pelo menos certos aspectos das
manifestações que não têm nada a ver com o plano daquilo que pode ou deve ser
interpretado. Diante dela, seria interessante levar em conta uma distinção instrumental
entre a manifestação e o protesto. Essa distinção, que é estabelecida aqui para fins de
raciocínio, corresponde àquela discutida por Derrida (2005), em Força de Lei, entre a
dimensão legível mas indecidível da violência jurídica e a dimensão ilegível mas
decisiva da pura força. A manifestação é por definição ilegível, mas é decisiva, se
impõe, enquanto o protesto deve ser legível pelo seu destinatário, mas não decide por
ele. Seguindo ainda o paralelo, a dimensão do legível pertence ao mundo do direito, ao
passo que a dimensão ilegível é absolutamente externa ao direito.
Para Derrida, ambos aspectos da violência são indispensáveis à desconstrução.
O protesto permite a participação em uma hermenêutica do direito que é essencial para
qualquer negociação que procure transformá-lo. Já a manifestação é capaz de gerar a
suspensão desse aparato hermenêutico, sem a qual a transformação em questão é
130

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

impossível. Procurarei, tendo em mente essas considerações, analisar algumas das


produções teóricas mais simpáticas aos acontecimentos de junho, para verificar em que
ponto elas de fato os favorecem, e em que pontos, ao contrário, correm o risco de
domesticá-los.

4. Agendas

Rolnik (2013, p.8) continua a já mencionada introdução afirmando que “os


autores desta coletânea apontam várias agendas como o epicentro do terremoto”. Não é
preciso, é claro, nos apressar a condenar essa iniciativa, que é necessária. Como foi
visto, não basta que haja um acontecimento se não somos capazes, em alguma medida,
de traduzi-lo em discursos e erguer, a partir dele, instituições. Ainda assim, uma
vigilância muito especial é necessária no momento dessa tradução. Em especial, desse
trecho específico, interessam aqui as expressões “agenda” e “epicentro”.
Toda agenda pertence, é claro, à ordem do calculável. O agendado, o que se
agenda, é projetado com data e hora específicas. É, portanto, da ordem do futuro, e não
do porvir; do antevisto, e não do que irrompe. Uma agenda não é senão um quadro de
referência pré-estabelecido do futuro. Nenhum acontecimento, no sentido estrito, pode
ser, portanto, agendado. Uma descrição das agendas de um movimento só pode incluir
aquilo que já se conhece, nunca o que traz de novo. O mesmo vale para a expressão
“pautas”, usada5 como sinônimo de “agendas”. Pautar alguma coisa não é senão impor
sobre ela uma regra. Pauta é um papel regrado, ou o molde com que se regra esse papel,
um regulamento, um modelo, ou ainda um rol, uma lista, uma relação. Pautar um
movimento é, portanto, impor sobre ele uma normatividade, normatizá-lo e normalizá-
lo a partir de uma autoridade.
Há ainda a noção de epicentro. A ideia de centralização, como Derrida (1967c)
mostra, por exemplo, em “Estrutura, Signo e Jogo”, traz consigo a conotação
estruturalista de uma organização forçada do jogo de significantes. É preciso traduzir o
acontecimento na linguagem, (Derrida, 2002) mas a imposição demasiado rápida de um
centro, reduzindo desde logo a novidade do acontecimento àquilo que pode ser
conhecido, medido ou normalizado traz, como sugeriu Žižek (2012a), a ameaça do
5
Lincoln Secco (2013, p.72), por exemplo, introduz uma distinção entre “pauta popular” e “pauta de
massas”, que será discutida em seguida.
131

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

“clinch” dos discursos já estabelecidos, não dando tempo para que o acontecimento, por
assim dizer, encontre a sua própria linguagem.
Mesmo Gohn (2014, p.142) ressalta que “o grande problema” da abordagem de
muitos pensadores sobre os acontecimentos de junho “é o fato de considerarem os
jovens e as manifestações como um todo, um bloco homogêneo”. Para ela, muitos
autores “fazem uma leitura com os óculos de uma dada abordagem e, como não
encontram os elementos dessa abordagem nas manifestações, descaracterizam-nas”.
Nesse sentido, seria preciso evitar produzir interpretações simplesmente
marxistas ou simplesmente “de esquerda”, da mesma forma que deve-se evitar produzir
interpretações neoliberais ou “de direita” sobre o que aconteceu. Em qualquer dos casos,
o que se perde na tradução é justamente “a eventualidade do evento” (Derrida, 2005).
Seria preciso produzir, digamos, interpretações juninas dos acontecimentos de junho, ou
pelo menos deixar que qualquer “marco teórico” que se utilize para traduzi-los seja, em
alguma medida, afetado e deslocado por eles de formas imprevisíveis. Não
simplesmente submeter junho a uma interpretação marxista, mas submeter o marxismo
a junho – da mesma forma que, como disse Caetano Veloso em uma entrevista, há
menos interesse em pensar o que seria um Brasil civilizado do que em pensar o que o
Brasil faria com a ideia de civilização.
O próprio espectro que assombra não só a Europa, mas toda discussão política
contemporânea – o chamado “espectro político” – não passa de mais uma instituição
cujas distinções, pautadas entre “direita” e “esquerda”, estão, a qualquer momento,
sujeitas a ser deslocadas por um acontecimento.

5. Pautar a manifestação

Lincoln Secco (2013, p.72) traça, em sua contribuição para Cidades Rebeldes,
uma distinção entre “pauta popular” e “pauta de massas”.
O que ele chama de “pauta popular” é aquela organizada “de baixo para cima”
nos dias iniciais das manifestações de junho, entre as quais a questão da tarifa do
transporte era central. Já a “pauta de massas” é a “que veio de cima para baixo”, isto é,
o conjunto das demandas difusas e mais moralizantes, voltadas especialmente à questão
da corrupção, que foram menos o produto de qualquer articulação entre agentes nas
132

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

próprias manifestações do que elaborações interpretativas introduzidas pelos meios de


comunicação. Secco afirma que “a linguagem de cima é apelativa como a publicidade”,
ao passo que “a de baixo assemelha-se ao jogral, escolhido pelo MPL em contraposição
ao tradicional uso de carros de som e palanques”.
A distinção é interessante e iluminadora. Em especial, ela cumpre a importante
função de expor a violência interpretativa exercida pelos meios de comunicação,
discutida na parte inicial do presente texto, através do grande aparato institucional de
que dispõem, ao pautar “de cima para baixo” os protestos.
Ao mesmo tempo, sua abordagem da chamada “pauta popular” parece
demasiado inocente quanto à sua própria violência, à sua própria autoridade. É claro que
há uma diferença entre a forma como o MPL pauta as manifestações e como a grande
mídia o faz, na medida em que o movimento em questão é interno à agência das
manifestações, além de se organizar da buscando a horizontalidade. O que parece
escapar, contudo, ao intérprete acadêmico, é que o enquadramento de certos conteúdos
como “pauta popular” não se dá por si mesmo. Ordenar e classificar esses conteúdos,
bem como instituir uma distinção entre tipos de pautas (implicando uma diferença de
legitimidade) está longe de ser possível, da parte de um observador externo, como uma
operação neutra e não-violenta. Por mais “populares” que sejam certas pautas, sua
classificação como tal por qualquer observador dependerá sempre de um exercício de
conhecimento como poder da parte deste, sob a sua autoridade.
Secco (2013, p.72) acerta ao chamar a atenção para o fato de que “apesar de a
maioria dos jovens manifestantes usar a internet para combinar os protestos, os temas
continuam sendo produzidos pelos monopólios de comunicação”. Ao mesmo tempo,
resta a questão: Quem está autorizado a “produzir” esses temas? É possível que o
formato das manifestações como as temos visto impossibilite, por uma carência, por
assim dizer, de meios de produção adequados, que elas próprias produzam sua
linguagem, pelo menos no curto prazo. Nesse caso, talvez não haja outra alternativa a
não ser estender aos intelectuais (“orgânicos” ou não), o papel de produzi-los, isto é, de
“pautar” a manifestação, de estabelecer suas “agendas”. Mas é sempre importante
lembrar, antes de mais nada, que esse exercício de conhecimento e representação não
difere, em sua natureza, do desempenhado pelos próprios veículos de imprensa.
133

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

É possível que sobre a negociação entre essas duas necessidades – de um lado,


a de conservar o espaço criativo das manifestações; de outro, criar discursos
institucionais a fim de articulá-las em alguma medida – não haja nada que possa ser dito
de antemão. Trata-se de decisões econômicas e estratégicas que deverão ser tomadas a
cada vez, diante das circunstâncias contingentes. Ao mesmo tempo, a consciência da
inevitável violência dessa operação deve ser ressaltada, para que a vigilância necessária
não deixe de acompanhá-la, o que seria pressuposto de uma relação ética com a
alteridade que se manifesta.

6. Antipartidarismo

Um dos exemplos mais marcantes de como certas interpretações, mesmo vindas


da esquerda, são capazes apagar a possível novidade sob uma classificação
preconcebida é a sua rígida condenação a um certo “antipartidarismo”6 que surgiu nas
manifestações.
Secco (2013, p.72) toma por evidente que “aqueles que expulsaram as
esquerdas das ruas” – ou seja, os grupos que reagiam violentamente às bandeiras de
partidos – eram um mero produto da “doutrinação” midiática, isto é, de uma ideologia
imposta “de cima para baixo”. Rolnik (2013, p.11) não demora em classificar o mesmo
fenômeno como “fascista”. Essa interpretação parece ter sido comprada imediatamente
pela maioria da esquerda, muito embora haja um grau de consenso de que “a
democracia representativa está em crise” (Gohn, 2014, p.64), bem como de que essa
crise da representação e da legitimidade das instituições guarda relação importante com
o advento das manifestações.
Não estaria essa esquerda se apressando em suas conclusões? É claro que a
tendência “antipartidária” em questão foi confusa e talvez mal direcionada em seus
alvos. A violência contra manifestantes com bandeiras, considerada em si mesma, é
problemática. Mas interpretar essa violência mais ou menos extraviada como uma
evidente versão do fascismo é descabido – e não apenas pela banalização inconsequente

6
No dia 17 de junho de 2013, representantes de partidos políticos foram impedidos de levantar bandeiras
em São Paulo ( igueiredo, 2014b). Gohn (2014, p.42) escreve que “todas as bandeiras partidárias [eram]
rejeitadas nas manifestações, gerando inclusive tumultos” em torno dos que insistiram em desfraldá-las,
que “eram hostilizados”.
134

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

do termo. Que a rejeição aos partidos seja uma característica do fascismo não significa
que haja algo essencialmente fascista em toda e qualquer rejeição à representação
partidária. Afinal, se os mesmos intelectuais e acadêmicos diagnosticam uma profunda
crise da representação, por que presumir que esse repúdio à representação só pode ter
sido produzido “de cima para baixo”, pela mídia? Mídia essa que, aliás, foi outra
instância de representação rejeitada enfática – e mesmo violentamente – pelos
manifestantes de junho.
Vladimir Safatle, antes mesmo de 2013, já clamava:

Podemos não saber o que vai acontecer no futuro, que tipo de nova
organização política aparecerá, mas sabemos muito bem onde acontecimentos
não ocorrerão. Com certeza não nas dinâmicas partidárias. Você tem uma
força de pressão enquanto está fora do jogo partidário. Quando entrarmos
nele, tal força diminui. Então, conservem este espaço! (Safatle, 2012b, p.55)

Uma violência muito intensa se manifesta, de forma ainda precária e sem um


programa propositivo, mas ela parece colidir com tudo aquilo que procura representá-la
de alguma forma. Partir imediatamente para conhecê-la em termos de alguma teoria é
procurar representá-la por outros meios e barrar a possibilidade do novo.
Talvez reconhecer que algo aí acontece, e que ainda não sabemos o que
significa – a relação traçada por Idelber Avelar (2014) entre os acontecimentos de junho
e a canção “Ballad of a Thin Man”, de Bob Dylan, não poderia ser mais iluminadora –
seja, pelo menos por enquanto, mais interessante. O que talvez não queiramos ver e
relutemos em aceitar é que não podemos facilmente determinar que aquilo que irrompe
nos protestos pertença ao campo político da esquerda ou da direita. Daí pode vir tanto a
radicalização da democracia e da justiça quanto o mal radical, o “pior”, o retorno à
ditadura. Dar espaço para que isso permaneça, em alguma medida, indecidível é fazer
uma aposta no acontecimento, e é a sua única chance, mas implica sempre em um
grande risco.
Não se pode esperar uma revolução previsível, com manual de instruções ou
mapa. Revoltar-se é, como sugere o título do livro de Žižek (2012b), sonhar
perigosamente. Por isso mesmo, é necessária muita atenção. É preciso, digamos, sonhar
de uma maneira vigilante.
135

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

7. Conclusão

Para concluir, não parece excessivo frisar que, não se trata, aqui, de pretender
um acesso direto ao acontecimento, sem a mediação de discursos. Sempre haverá
discursos que serão produzidos sobre qualquer acontecimento novo, e o nosso
conhecimento sempre se dá por meio desses discursos.
Ainda assim, é preciso cuidado, na medida em que esses discursos ameaçam
suplantar a novidade do acontecimento as formas de uma velha linguagem. Essa
novidade só poderá ser traduzida, em alguma medida, na invenção de uma nova
linguagem, e essa invenção demanda demora, em oposição ao ímpeto imediato de
reduzir o acontecimento à linguagem já posta. É talvez uma tarefa que, antes de caber
aos cientistas políticos, caberá aos poetas. E, acima de tudo, àqueles que, na presença e
no trabalho dos seus corpos, construírem as novas formas do que se manifesta.
Ademais, repetindo aquilo que foi dito na introdução, sempre haverá uma
esfera que excederá a toda e qualquer interpretação, a toda e qualquer linguagem. E, ao
excedê-la, se colocará como uma barreira, uma aporia concreta, obrigando a esfera da
representação a se deixar afetar e, assim, reconfigurar-se a cada vez.
Em um momento em que, talvez mais do que nunca, as instituições
responsáveis pela representação no Brasil se mostram em crise – não apenas as da
democracia representativa, mas também da mídia e inclusive dos pensadores que
estariam responsáveis por fornecer propostas para pensar o que está por vir –, não se
trata aqui de voltar a 2013 para fornecer mais uma possível interpretação desse
acontecimento, segundo a qual seu verdadeiro sentido tem a ver com a crise da
representação, mas sim de recuperar a potência desse acontecimento no agora, como
crítica concreta da representação.

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138

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Renda Universal: para nutrir a vida fora da colmeia

Universal Income: feeding life outside the hive

Bruno Cava1

A história do capitalismo pode ser dividida em três fases. De início, foi formiga,
depois abelha e finalmente vespa. Primeiro, a fase do capitalismo mercantil, baseado na
acumulação de riquezas. O seu principal representante foi o burguês avaro e diligente, o
homem previdente que poupa e investe com parcimônia, como retratado nas pinturas
românticas de austeras famílias burguesas ou no ideal de ascetismo que, para Max
Weber, moldou o espírito protestante do capitalismo. Depois dele, veio o capitalismo
industrial, fundado na produção. À semelhança da sociedade das abelhas, a fábrica se
torna o lugar para a coletivização disciplinada do trabalho, o lugar em que o capitalismo
integra as várias capacidades humanas e técnicas, os diferentes fatores de produção,
segundo uma linha de montagem com começo, meio e fim, como os alvéolos da
colmeia. No capitalismo industrial, a acumulação deixa de ser entesouramento, mero
conceito estático, para depender da exploração do trabalho e de um ciclo que se realiza
no tempo. O capital se põe em movimento e o processo se completa apenas ao final de
um giro, que vai da produção ao consumo, do investimento ao lucro. Na teoria, a
modernidade industrial entronizou o sonho da colmeia produtivista, organizada por uma
razão calculada de cima a baixo. A realização histórica desse sonho apiforme se deu por
duas vias distintas. Por um lado, pelo mercado estadocêntrico guiado por uma ética
virtuosa do trabalho, que culminou no operário superprodutivo da União Soviética e nos
campos de trabalho forçado do socialismo real. Por outro, pelo estado mercadocêntrico,
guiado pela concepção racionalista do liberalismo clássico, como na fábula de
Mandeville em que o entrechoque de abelhas que perseguem o próprio interesse privado
é o que catalisa a competitividade e a eficiência da economia como um todo,
convergindo por uma força invisível no bem coletivo. Em ambos os casos, é o trabalho

1
Blogueiro e professor de cursos livres fora da instituição universitária, é coeditor da revista Lugar
Comum, autor com Alexandre F. Mendes de A Constituição do Comum (Renavam, 2017). Participa da
rede Universidade Nômade e Kinodeleuze.
139

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

coletivo – em sua versão stakhanovista ou no consórcio de self made men – que propele
produtivamente a sociedade.
Por fim, chegamos ao terceiro e atual estágio, o capitalismo cognitivo,
apoiado principalmente no desejo e não na produção. Não mais a ética parcimoniosa da
poupança e diligência dos capitalistas puritanos, nem o produtivismo
desenvolvimentista da lógica da colmeia, mas a capacidade de produzir e atravessar
subjetividades. Agora, o capital se desloca do chão de fábrica e dos uniformes cinzas
para o colorido da produção de imagens, de formas de vida, de estéticas de existência.
Tempos em que os executivos de ponta se destacam pela criatividade e pelo estilo, as
empresas mais famosas adotam uma moral antiburguesa (contra o poupador austero,
pelo gozo, pelo fun) e começam a assemelhar-se, cada vez mais, com as vanguardas
artísticas do século XX. O design, a publicidade, as mídias, as bolsas de valores, a
moda, a produção dos saberes, a mobilidade, a indústria do prazer, da celebridade, da
diversão – tudo isso vem a primeiro plano, tornando-se a base fundamental por meio do
que funciona a nova economia. É o fim dos esquemas binários que opõem um setor
produtivo, geralmente industrial, enquanto infraestrutura dura, a um setor financeiro e
de serviços que viria depois, somente como expressão daquela, “somente”
superestrutura. Tempos em que o agitprop dos militantes panfletários do começo do
século passado dá lugar aos coletivos transversais de produtores culturais, coworkers,
designers, publicitários, arte-ativistas e ambientalistas.
Como Deleuze e Guattari já escreviam em 1972 em seu Anti-Édipo,
agora o desejo reside na infraestrutura e toda a economia política é economia libidinal,
sem mediações. Nem formiga nem abelha, mas vespa e orquídea. A vespa é um animal
geralmente muito solitário que habita grandes exteriores como praias, desertos,
matagais. É um animal errante e avesso à vida socializada com semelhantes. Em alguns
casos, durante toda a sua existência, a vespa não entra em contato com nenhum outro
semelhante. Apesar disso, algumas espécies se relacionam frequentemente com outras
criaturas, por vezes muito diversas. E nem sempre essa relação está associada ao ciclo
de produção e reprodução da própria vespa. Uma dessas relações não utilitárias, que
chamou a atenção de Felix Guattari – um exemplo caro para os movimentos LGBT –, é
a que a vespa e a orquídea estabelecem entre si. As abelhas cooperam com as flores no
regime ecológico do mutualismo, ou seja, há benefício para ambos os lados da
140

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

cooperação, seja com o pólen, seja com o néctar. Já a vespa e a orquídea mantêm uma
relação noutros termos. A orquídea produz uma imagem do órgão sexual da vespa que,
ao excitar-se, efetivamente transa com a flor. Do ponto de vista da vespa, não há
benefício para a reprodução da espécie. A vespa faz sexo com a orquídea por puro
prazer. Trata-se aí, não de uma cooperação intraespecífica entre iguais voltada à
produção ou reprodução, mas de uma cooperação interespecífica entre diferentes,
movida pelo desejo. Peço ao leitor que guarde essa imagem.
No capitalismo mercantil, a luta era diretamente uma revolta contra a
apropriação de corpos, bens e recursos pelo capitalista. Já no capitalismo industrial,
quando a dominação se confunde com a organização do trabalho, a luta se orienta pela
reapropriação do produzido e das condições de produção. Nessa fase do capitalismo, a
dinâmica do poder opera por meio da formação do lucro, que é dado pela dedução entre
o total produzido pelo trabalho coletivo e a fração remunerada aos trabalhadores a título
de trabalho, ou seja, o salário. O salário mede, assim, a força do operariado em opor-se
à exploração capitalista. A margem de lucro é condizente, por outro lado, com o estado
da relação de força entre um e outro. As táticas operárias, nessa lógica, variam entre o
bloqueio da produção, visando a inverter a chantagem ao trabalho, até a tomada violenta
do poder, a fim de assumir o governo da colmeia. O bloqueio da produção, em geral,
procede pela greve, a sabotagem, a ocupação da fábrica. Já a tomada do poder procede
pela auto-organização dos trabalhadores em sindicato e partido, com o fito de construir
uma instância política de contrapoder operário para, dadas as condições, fazer um
assalto ao poder. Por consequência, a distinção entre reforma e revolução consiste na
distinção entre uma luta pela melhoria das condições de partilha entre lucro e salário e
uma luta para tomar os meios de produção e, eventualmente, abolir a distância social
entre quem domina e quem é dominado. O objetivo final, então, é racionalizar a
produção segundo uma harmonia iluminista: de cada um segundo as capacidades, a cada
um segundo as necessidades. Historicamente, um dos problemas mais recorrentes se
liga ao fato de que, para traduzir-se no plano político e tomar de assalto a colmeia, a
força revolucionária se vê na contingência de forjar um Indivíduo Coletivo (a
vanguarda, o partido, o estado, o líder). Dessa operação problemática emergiram, ao
longo do século XX, tanto a reprodução em escala ampliada das mazelas tradicionais do
individualismo (o partido sempre tem razão, o estado não pode ser contrariado, tudo
141

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

gira ao redor do líder) quanto o esmagamento do que existe de libertário no conceito de


individualidade (o direito à diferença, a privacidade, o impulso dissidente).
No capitalismo cognitivo, produto das contradições e antagonismos que
nos trouxeram ao século XXI, a dinâmica do poder não está mais concentrada no lucro,
segundo a dedução do sobretrabalho em relação ao trabalho total. A própria produção
deixou de ser o modelo da organização social, de modo que a colmeia se dissolveu. A
lógica do desejo precisa operar nos grandes exteriores, pois assim é capaz de criar muito
mais do que uma colmeia bem disciplinada. Se a fábrica foi a unidade produtiva
fundamental em que o capitalista podia regrar o trabalho e obter o lucro, agora, ela viu
explodirem os seus muros e se derramou pelo tecido social, uma metrópole de fronteiras
borradas, onde a própria vida é investida como usina. Contrariamente à lógica
produtivista, onde vale a divisão entre trabalho produtivo e improdutivo, entre economia
real e economia “fictícia”, agora o supérfluo, o prazeroso, o cuidado, o saber, o falso, a
cultura, a estética, tudo passa a ser produtivo e objeto de uma captura capitalista. É
nesse além-formigueiro e além-colmeia – no mundo heterogêneo habitado por vespas,
orquídeas e outros seres transversais – que o lucro capitalista devém rentismo. A
diferença entre um e outro se dá em que, na lógica do lucro, o capitalista organiza a
produção dispondo os semelhantes para cooperar de maneira intraespecífica (a classe
trabalhadora), para então se apropriar de uma quantidade de trabalho coletivo e (o resto
é remunerado como salário). No rentismo, por sua vez, o capitalista não organiza mais a
produção desejante, se vendo obrigado a captar-lhe do exterior, a posteriori. É por isso
que se diz que o capitalismo hoje funciona por “extração”, pois extrai um mais-valor de
fluxo do jato de riqueza gerado pela cooperação interespecífica de diferentes, quer dizer,
de “fora da colmeia”, na metrópole-usina. Não é que a lógica industrial da produção
racionalmente mensurável tenha sido absolutamente extinta, mas sim que teve destituída
a hegemonia social que antes possuía, submetida que está à lógica pós-industrial do
desejo, cuja “medida da desmedida” será dada, doravante, pelas finanças.
Mas como funciona essa exploração “de fora”, com indivíduos dispersos
por redes heterogêneas e relações por assim dizer ecológicas, no ambiente entre-
espécies? O capitalismo cognitivo funciona pela captação do que, segundo o seu próprio
ponto de vista, é chamado de “externalidade positiva”. A externalidade positiva nada
mais é do que o excedente gerado pela cooperação transversal de que o capitalismo
142

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

passa a se apropriar, sem a ter sequer organizado. A artimanha consiste em sequestrar a


externalidade positiva que nós produzimos. Essa operação essencialmente de captura
assume muitas modalidades diferentes, mas elas convergem quanto ao resultado de
atrelar o valor das ações no mercado financeiro à capacidade de colar imagens, mundos,
confiança às marcas das empresas. Veja o caso do Facebook, uma empresa especializada
em engolir toda uma dinâmica de interações e convivências, online e offline, que ele
próprio não produz nem organiza, a tal ponto que não mais navegamos na internet como
na década de 1990. Na verdade, não entramos mais na internet: entramos direto no
Facebook e está próximo o dia em que não teremos sequer de entrar nele, estaremos
perpetuamente conectados em regime 7/24. Ou, outro exemplo, quando uma empresa de
telefonia praticamente fornece o aparelho, a preços baixos ou mesmo gratuitamente,
contentando-se em captar os fluxos de rendimento decorrentes do uso. Com isso, a
telefônica capitaliza a intensidade de nossas conexões, o quanto interagimos, a força de
nossos contatos profissionais, amizades, amores. Algo semelhante ocorre quando, por
meio de feedbacks fornecidos pelos usuários, colaboramos com o aperfeiçoamento de
softwares, sites e outros produtos. Ou, ainda, quando alimentamos inadvertidamente os
diversos algoritmos que nos mapeiam sem cansar os perfis de interesse e consumo, que
integrados em big datas servirão para otimizar o marketing global de cada um e dos
vários arranjos híbridos que compomos. No capitalismo hoje, é como se vivêssemos
iniludivelmente sob um grande modulador do desejo, um enorme sintetizador de
paixões sempre à espreita para maximizar a captura da vida comum.
A lógica “fora da colmeia” do capitalismo cognitivo não para por aí e vai
além do que se poderia imaginar, porque já é o cerne de praticamente todas as empresas.
O leitor veja o caso da Uber, uma empresa que, praticamente sem nenhum suporte
físico, explora diretamente um fundo virtual composto de desejo de mobilidade e de
autorrealização como empreendedor, encurtando a níveis ridículos a oferta e a demanda,
levando a eficiência do transporte na metrópole a um grau inédito. O horizonte disso é a
uberização tendencial de todos os serviços, a própria franja da desintermediação como
core business para as próximas décadas. Algo, aliás, que já vem se esboçando na
Amazon Turk, um mercado virtual que pode servir para lidar com qualquer tipo de
demanda, além de criar novas. E não seria o Tinder um protótipo para a uberização da
sexualidade? O outro lado do fenômeno da captura é que as externalidades negativas
143

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

precisam ser postas para fora da empresa, descoladas de sua imagem, esconjuradas
como um desvalor que não lhe diz respeito. Digamos, o Facebook não pode deixar
transparecer a sua dependência pelo trabalho precário de funcionários na África ou
América Latina; a marca de roupa deve desencarregar-se da fração da cadeia produtiva
ramificada por sweatshops do Sudeste Asiático (ou bolivianos em confecções de São
Paulo); a Amazon tem de lidar com a logística povoada de precários e subempregados;
empresas como Monsanto, Thyssenkrupp ou Vale do Rio Doce devem a todo o
momento empenhar-se, por meio de lobby político, táticas de desinformação e um
batalhão de advogados, em desincumbir-se da responsabilidade pelos passivos
ambientais, sociais e biogenéticos que nos legam por onde passam, terceirizando o
problema; e por aí vai.
Como lutar nessas condições sem recair na nostalgia das abelhas
operárias e seus hexágonos disciplinares? Como transpor o amor das vespas e das
orquídeas para as lutas? Se não funcionamos mais como abelhas na colmeia, como
ficam as lutas “fora da colmeia”? Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que passam
pelo desejo. Qualquer segregação entre desejo e política ou economia já é, de partida,
uma estratégia falida. Em segundo lugar, nos grandes exteriores do capitalismo
cognitivo, não se pode mais falar num limite claro entre capitalismo e anticapitalismo,
entre subjetividade capitalista e subjetividade antagonista. Os limiares se alargam e tudo
se torna mais difícil de distinguir, não se admitindo mais categorias normativas que
antes eram vigentes, até certo ponto, na luta interna à colmeia. Menos do que a noite,
onde todos os gatos são pardos, a pós-modernidade é uma espécie de lusco-fusco, de
cromatismo em que tudo passa a ser estratégia, limiar, nuance. Falar na disseminação do
capitalismo para fora da fábrica – de maneira que agora está realmente em tudo e em
toda parte, em extensão e profundidade – não significa ecoar teses do fim da história ou
assumir que sejamos todos capitalistas, que tenhamos sido totalitariamente subsumidos.
Significa, em vez disso, que habitamos um limiar de contornos borrados, que nossa
própria autoconstituição passa por uma constante transigência de gradientes e limiares.
Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, sugerem que deixemos de nos inspirar
pela imagem do jogo de xadrez, típica das revoluções da modernidade, onde os
adversários se contrapõem num espaço estriado em casas, com peças de valor bem
definido e quantificado, e passemos a olhar para o go chinês, com todas as sutilezas do
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

espaço liso de seu tabuleiro. É nesse deslocamento do xadrez para o go, então, que o
próprio rentismo – o próprio dinheiro – pode ser repensado como um terreno de batalha.
Num ambiente tão saturado e incerto, talvez seja necessário aprender a traiçoeira
paciência mandarim. Para, assim, ingressar na luta pela própria moeda e assumir a
ambivalência de deter, usar o dinheiro, fruí-lo. É no espaço pós-moderno do capitalismo
cognitivo, “fora da colmeia”, que a renda universal e incondicionada assume o lugar
estratégico central, o que antes cabia à luta produtivista do trabalho coletivo, à luta do
assalariado, do partido operário e do grande sindicato. A pauta da renda universal não se
confunde com a redução assistencialista, pois o caso não é somente remediar a miséria
para reconduzir o trabalho improdutivo a condições mínimas de produtividade, o
excluído ao mercado – como teorizado por economistas neoliberais. Também não é o
caso de simplesmente distribuir riqueza por meio da transferência de renda, como se
esse fosse o seu propósito, uma justiça social cada vez mais igualitária até atingir a
utopia capitalista de reabsorção da sua contradição interna na forma de um grande
conselho acionário, em que todos são detentores dos meios de produção. Nem
assistencialismo nem distributivismo, mas linha de fuga em relação ao capitalismo
cognitivo, linha de fuga para outro lugar.
Há, portanto, uma diferença grande de abordagem dentro da discussão
teórico-política da renda universal hoje. Na realidade, as forças políticas do próprio
capitalismo começam a aprofundar-se nesse debate, diante da ressurgência de
populismos nacionalistas e neossoberanistas que ameaçam o seu projeto de
globalização. O caso não é abraçar ou rechaçar o tema em função dessas ingerências,
mas requalificá-lo, não deixar que o sequestrem. Não queremos decerto tomar o
programa da renda universal do ponto de vista do contexto do capitalismo cognitivo,
como ajuste fino para restabelecer a normalidade da exploração. Mas, sim, tomá-lo
enquanto problema das lutas, para as lutas. Isto é, estamos falando da renda universal e
incondicionada, pensada e promovida de maneira inseparável de uma ecologia desejante
que nos dê condições de lutar para que possamos viver como vespas e orquídeas. Uma
renda que seja a pedra angular para o funcionamento pleno da liberdade e mobilidade –
ou seja, libertação e mobilização –, que a metrópole já contém em estado nascente, mas
cuja realização permanece frustrada pela captura das externalidades positivas,
concomitante à socialização das negativas.
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Grosso modo, podemos divisar três abordagens para o tema da renda


universal. A primeira é a dos nostálgicos da colmeia, quando a transferência de renda
não passaria de uma porta de saída para o que seria a verdadeira economia real, o
trabalho produtivo, ou seja, o pleno emprego do assalariado. Essa abordagem já vimos
circular no Brasil quando o Programa Bolsa Família (PBF) – talvez o mais próximo que
existe no mundo em termos de transferência de renda em escala continental – passou a
ser colocado em segundo plano, em relação ao projeto desenvolvimentista de fortalecer
a indústria para gerar empregos e aumentar o PIB através da industrialização. Esse
projeto, por sinal, fracassou em seus próprios termos. Uma segunda modalidade,
neoliberal e próxima da anterior, seria acolher a renda universal como um programa
meramente acessório, apêndice ao funcionamento da economia real, voltado somente
àqueles abaixo do limiar de pobreza e com valores módicos, suficientes apenas para
reintegrá-los à cadeia de competitividade e à incansável autoformação própria do
capitalismo cognitivo. A renda universal estaria associada, dessa maneira, à formação do
capital humano necessário ao funcionamento do neoliberalismo.
Finalmente, a terceira modalidade, genuinamente radical, é fazer da
renda universal o alfa e o ômega para as lutas nas condições “fora da colmeia”, à altura
dos desafios e potencialidades com que nos deparamos na globalização do século XXI.
Essa última modalidade se desdobra, pelo menos, em três fatores norteadores. O
primeiro deles consiste em assumir que a luta pela renda universal atravessa e
potencializa todas as demais lutas, uma vez que preenche de condições objetivas e
subjetivas a fuga das capturas, a eficácia das estratégias, a força dos tensionamentos
internos. A renda universal configura, desse modo, o suplemento utópico que confere a
uma ecologia de movimentos a capacidade de mobilizar-se para além da fragmentação
entre categorias de emprego, estratificações da cidade e os diversos estriamentos sociais
e raciais, incrustados no metabolismo do capitalismo. Utópico, aqui, não quer dizer
modelo ideal, mas carga de paixão revolucionária. Não pode ser modelo, pois a luta da
renda universal só pode ser feita com as lutas existentes e não por cima delas, como se
fosse uma tábua de salvação sobre as cabeças de nossos salvadores na política. Nesse
sentido, a luta da tarifa zero já é – ou pode ser – um fragmento real para a luta da renda
universal, uma vez que se orienta pela reconquista da mobilidade, acelerada até ser
reposta como mobilização da cidade. Não seria a pauta da tarifa zero uma reconquista
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

das condições subjetivas de viver a metrópole e escapar das capturas do transporte


coletivo, dos gargalos urbanísticos, dos labirintos de mediações entre estado e mercado?
Dentro da perspectiva ecológica, a luta da tarifa zero se liga transversalmente, como a
vespa e a orquídea, não só à renda universal, mas ao ciclismo, à flanagem, à
psicogeografia do urbano e das rotas interurbanas. Isso não significa, de jeito nenhum,
uma luta retrógrada pela estatização homogeneizadora e seus modelos, isto é, pela volta
à colmeia de semelhantes, mas sim por ir mais a frente, acelerar os processos de
estilização da vida, de mobilização e mesmo o de uberização, até virá-lo ao avesso.
Como não pensar, a partir das transformações que estamos vivendo, uma reengenharia
antagonista das redes, a possibilidade de um autogoverno do acesso e gestão do fundo
virtual criativo que a metrópole exala em sua interconexão e transversalidade?
O segundo fator norteador da renda universal pensada radicalmente se
refere ao quantum do valor da remuneração, pois existe um determinado ponto da
elevação do direito em que a quantidade se converte em qualidade, a transferência
quantitativa em mudança qualitativa. Estamos falando num adicional de 200 ou 300
reais por mês somente nalgumas condições muito específicas, ou numa renda de 2 ou 3
mil reais mensais para todos? Para Yann Moulier Boutang, que promove na França a
renda universal e incondicionada a partir de uma articulação entre academia e política,
na medida em que um determinado batente é ultrapassado, produz-se um desbloqueio de
energias produtivas represadas e criam-se novos circuitos de alta intensidade, o que
impele a transição entre o Capitaloceno e o que o economista batizou de Multidãoceno
(multitudocène). Na proposta alinhavada por Yann junto com os verdes no Parlamento
francês, o sistema da renda universal dependeria de uma reforma tributária que passasse
a funcionar a partir de uma “taxa pólen”, parente distante da antiga CPM brasileira,
mas pensada como imposto único, aplicável sobre todas as transações financeiras. Se o
PBF, de estrutura burocrática relativamente leve e desembaraçada, pôde funcionar na
escala e profundidade em que funcionou, num país mais pobre e continental como o
Brasil, não é absurdo pensar um aprofundamento e alargamento do programa na direção
assintótica da renda universal, partindo dos mais pobres.
Por último, o terceiro fator, o mais decisivo, diz respeito à renda
universal organizada como ecossistema das externalidades positivas, ou seja, uma
ecologia de movimentos, uma mundivivência transversal das diferenças, uma espécie de
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

“mais-vida” no Comum (Common). No capitalismo industrial, as lutas do trabalho


coletivo conseguiram arrancar uma renda coletiva na forma do “salário social”,
construindo ao seu redor um sistema de instituições de proteção que ficou conhecido
como welfare. No capitalismo cognitivo, quando o produtivismo cede a vez a uma
economia do desejo e o capital passa a nos expropriar por meio da captura e extração, é
preciso que as lutas e mobilizações atinjam o kairós dos tempos para criar instituições
outras – o que alguns economistas, dentre os mais envolvidos com o ciclo global de
lutas, vêm chamando de commonfare. A renda universal é justamente para que as
externalidades positivas – outro nome para o excesso desejante que nos constitui –
possam escapar do constrangimento permanente com o que somos submetidos à
precariedade, à insegurança permanente, à depressão e à paranoia, nos permitindo
reunir, além disso, condições para lutar para que as empresas arquem com os custos
sociais e ambientais de suas próprias externalidades negativas. O que está em questão é
mais do que uma mera condição mínima de vida, é liberdade de viver nos grandes
exteriores, numa economia transversal inseparável de uma ecologia (i.e.,
interespecífica), é abrir um terreno de autovalorização do desejo que escapa, foge para
armar-se, se põe em êxodo. Para lutarmos sem a nostalgia pelo amor velho do Indivíduo
Coletivo (o partido, o estado, o líder). Para construirmos um máximo existencial. Para
vivermos e amarmos como vespas e orquídeas.

Referências

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accumulazione. Carocci: 2007.

Bernard Guibert. The Ecological Justification of Basic Income. In Revue Multitudes, n.º
8, 2002.

Gilles Deleuze, Felix Guattari. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: ed. 34, 2011 [1972].
___. Mil Platôs. Vol. 3. Rio de Janeiro: ed. 34: 1995 [1980].

Giuseppe Cocco. Biorrenda e mobilização produtiva. In Le Monde Diplomatique Brasil,


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___. KorpoBraz: por uma política dos corpos. Rio de Janeiro, Mauad: 2015.

Maurizio Lazzarato. Guaranteeing Income: A Policy for Multitudes. In Revue


Multitudes, n.º 8, 2002.

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Philippe Van Parijs. Basic Income: A simple and powerful idea for the twenty-first
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Yann Moulier-Boutang. Le capitalisme cognitif: la nouvelle grande transformation.


Paris: ed. Amsterdam, 2007.
___. L'abeille et l'économiste. Paris: Carnets Nord, 2010.
___. Pour un revenu d’existence de pollinisation contributive. inancé par une taxe
pollen. In Revue Multitudes, nº. 63, verão de 2016. http://www.multitudes.net/pour-un-
revenu-dexistence-de-pollinisation-contributive-finance-par-une-taxe-pollen/
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Arte, mídia e cultura


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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Reflexões acerca da autoria no design:


notas sobre o nascimento do autor
e as origens do direito autoral

Reflections on authorship in design:


notes on the birth of the author
and the origins of copyright

Carolina Noury Azevedo1


Jorge Lucio de Campos2

Resumo: A noção de autor surge a partir do nascimento da de indivíduo, quando a ideia


do sujeito ganha uma importância tal que passa a se tornar indispensável à identificação
do criador do texto. O objetivo deste artigo é lançar algumas luzes tanto sobre o
conceito de autoria e o surgimento histórico da figura do autor e do direito autoral
quanto sobre suas manifestações no contexto do design.

Palavras-chave
Autor. Autoria. Direito autoral. Design. Design gráfico.

Abstract: The notion of author arises from the birth of the notion of the individual, at
the same time that the idea of the subject gains such importance that it becomes
indispensable to the identification of the creator of the text. The purpose of this article is
to shed some light on both the concept of authorship and the historical emergence of the
figure of author and copyright as well as its manifestations in the context of design.

Keywords
Author. Authorship. Copyright. Design. Graphic design.

Considerações preliminares

Antes de identificar o momento em que surge no ocidente a figura do autor, é


preciso compreender como se deu o nascimento do indivíduo. Para Michel Foucault
(1996), o homem é uma invenção da modernidade. De acordo com Roberto Machado

1 Aluna do Programa de Pós-Graduação em Design (Doutorado) da Escola Superior de Desenho


Industrial (ESDI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora do Instituto INFNET.
2 Doutor e Pós-Doutor em Comunicação e Cultura (História dos Sistemas de Pensamento) pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor da graduação em Desenho Industrial e do Programa de
Pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Design da ESDI/UERJ.
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

(2000), ao afirmar que o homem é uma invenção recente, o pensador francês teria sido
influenciado pela constatação nietzschiana da “morte de Deus” (NIETZSCHE, 2008).
Assim, a autoridade divina e da Igreja é transferida para o homem que passa a ser objeto
de seu próprio saber.
Portanto, a noção de autor surge a partir do nascimento do indivíduo, quando a
ideia do sujeito ganha uma importância tal que passa a se tornar indispensável à
identificação do criador do texto. Desta forma, o objetivo deste artigo é lançar algumas
luzes sobre o surgimento histórico da figura do autor e do direito autoral e suas
manifestações no campo do design.
A identificação do autor dos textos nem sempre foi uma necessidade, pois este
era considerado um veículo de transmissão da palavra inspirada por Deus. "O escritor é
o escriba de uma Palavra que vem de fora e que o habita. É sobre esse modelo
evangélico que será, durante muito tempo, concebido e representado o gesto do criador,
inspirado e sagrado" (CHARTIER, 1999, p. 28).
A partir do momento em que surgem textos que transmitiam ideias contrárias às
doutrinas políticas e religiosas da época, surge a necessidade de identificar a autoria da
obra. Portanto, a autoria do texto nasce com a intenção de condenar e punir os escritores
de textos transgressores, ou seja, surge com a transgressão do discurso. Foucault (1992)
chama essa censura e interdição dos textos de "apropriação penal do discurso", o que
justificava a destruição dos livros e a punição não só dos autores como também de seus
editores e leitores.

Ele [o discurso] foi historicamente um gesto carregado de riscos, antes de ser


um bem extraído de um circuito de propriedades. E quando se instaurou um
regime de propriedade para os textos, quando se editoram regras estritas
sobre os direitos do autor, sobre as relações autores-editores, sobre os direitos
de reprodução, etc. [...] é nesse momento em que a possibilidade de
transgressão que pertencia ao ato de escrever adquiriu, cada vez mais, o
aspecto de um imperativo próprio da literatura (FOUCAULT, 1992, p.14-5).

Na modernidade busca-se identificar não apenas o nome do autor como também


a explicação da obra pela ótica de quem a produziu, ou seja, procura-se saber os
detalhes da vida de quem escreveu, seus traumas, decepções, tudo aquilo que o levou a
produzir determinada obra (LÉVY, 2011). "Procurar dados do escritor e atribuir um
dono ao texto constituem maneiras de garantir uma suposta verdade do que se lê"
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

(IDEM, p. 63). Desta forma, a autoria funciona como um instrumento de controle do


discurso.
Tratar da autoria em textos escritos não se refere apenas ao escritor, mas também
de se atribuir identidade e autoridade ao texto. Se, antes da invenção dos tipos móveis
de Gutenberg, os livros eram escritos à mão pelos escribas, de modo que cada cópia era
diferente das outras, com a invenção da imprensa houve uma padronização desses textos
que atribuiu autoridade à palavra escrita.
A imagem do autor enquanto autoridade só começou a ser discutida no final dos
anos 1960 a partir dos escritos de Roland Barthes e de Foucault. Tais obras foram
fundamentais para a construção do pensamento acerca da autoria no design,
principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra.
“A morte do autor”3 de Barthes e “O que é um autor”?4 de Foucault foram
escritos em um período em que a teoria da literatura buscou se afirmar como ciência e
são textos fundamentais para compreender a noção de autor. Apesar de se referirem à
questão da autoria no texto literário, são o ponto de partida para a discussão do tema
também em outras áreas.
O ensaio de Barthes foi escrito em 1968, ano de intensas manifestações
estudantis em diversas partes do mundo. Na França, estudantes tomaram a Universidade
de Nanterre, reivindicando melhores condições de ensino.

Não é difícil compreender a inclinação ideológica de seu gesto, bem como a


vinculação que estabelece entre a figura autoral e a imagem de um tirano. Seu
manifesto é fruto de um momento coletivo de grande élan revolucionário.
Não por acaso, ele está entremeado de expressões que apontam para um
mesmo universo conotativo: o autor é o dono de um Império muito poderoso,
diz Barthes. Portanto, a autoria é considerada sinônimo de autoridade,
aprisionamento, restrição, centralização, e contra ela operam termos como
“destruição”, “apagamento”, “desligamento”, “afastamento” e
“dessacralização” (GAGLIARDI, 2012, p. 48).

Barthes (2004) proclama a morte do autor e o nascimento do leitor,


argumentando que uma obra literária é construída a partir de escritos anteriores. Nesse
caso, a linguagem se torna mais importante que o autor, pois pode produzir múltiplos
significados para o texto em vez de um único sentido. Sem a presença do autor, o leitor

3 Ensaio integrante do livro O rumor da língua, publicado no Brasil em 1988 pela Brasiliense.
4 Conferência publicada originalmente no Brasil em 2011 no livro Ditos e escritos III: estética: literatura
e pintura, música e cinema pela Forense Universitária.
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

vira o protagonista da história; é ele quem decide o significado das palavras que
compõem o texto.
Entretanto, argumenta que o texto é um campo neutro em que há a dissolução do
sujeito, com a perda da sua identidade e ausência da sua voz. Utilizando como exemplo
a narrativa de uma personagem da novela Sarrasine, de Honoré de Balzac (1799-1850),
Barthes divaga sobre a origem daquela voz que fala e afirma que

Jamais será possível saber, pela simples razão de que a escritura é destruição
de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse
oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o preto-e-branco em que vem se
perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve (BARTHES,
2004, p. 57).

Ao destruir a voz da origem, ele confirma a anulação do sujeito e a perda da


identidade anunciando, desta forma, o início da escrita. Apesar de decretar a morte do
autor no final dos anos 1960, esse fantasma ainda reina sobre nós. Através da figura do
autor, da sua história, gostos e paixões, buscamos as explicações das obras como uma
espécie de confidência (BARTHES, 2004).
Ele, porém, nos alerta que a tentativa de decifrar um texto se torna inútil, uma
vez que "dar ao texto um Autor é impor-lhe um travão, é provê-lo de um significado
último, é fechar a escritura" (BARTHES, p. 63).
Um texto é composto por um conjunto de escritos anteriores, de origens
diferentes, reunindo uma multiplicidade de significados que se encontram não no autor,
mas sim no leitor. Barthes (2004) afirma que "o leitor é o espaço mesmo onde se
inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a
unidade do texto não está na sua origem, mas no seu destino" (IDEM, p. 64).

Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras, a produzir
um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a 'mensagem' do
Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se
contestam escritas variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um
tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura (BARTHES, 2004, p.
62).

Desta forma, escritor e leitor assumem o mesmo patamar, sendo ambos


produtores do texto. Porém, para que aconteça o "nascimento do leitor", é preciso haver
a "morte do Autor". "Para devolver à escritura o seu futuro, é preciso inverter o mito: o
nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor" (BARTHES, p. 64).
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Já a conferência de Foucault, publicada em 1969, um ano após Barthes decretar


a morte do autor, nos leva a questionar a importância de quem fala. Em resposta a
Barthes, Foucault alerta para o fato de que o autor não morreu e seu espaço se mantém
preservado através da noção de obra5 e da noção de escrita6.
O nome do autor não se refere ao indivíduo propriamente dito, mas ao tipo de
discurso que é construído segundo determinadas regras, ou seja, à sua produção
discursiva. Logo, a noção de autor, longe de ser um nome próprio ou de se referir à
identidade tradicional do indivíduo, remete a uma função: a função-autor.
Foucault destaca algumas das dificuldades criadas ao se fazer uso do nome do
autor. A primeira delas é que o nome do autor é um nome próprio que, além de possuir
uma função indicativa equivale também a uma descrição. "A ligação do nome próprio
com o indivíduo nomeado e a ligação do nome do autor com o que ele nomeia não são
isomorfas nem funcionam da mesma maneira" (FOUCAULT, 1992, p. 11).
Atribuir um nome ao autor de um texto permite classificar o discurso agrupando
um certo número de escritos, delimitando-os, opondo-os a outros e até mesmo
excluindo deles alguns textos. Para Foucault, atribuir o nome do autor a diversos
escritos indica uma relação dos textos entre si, caracterizando um certo modo de ser do
discurso. O nome do autor "manifesta a ocorrência de um certo conjunto de discurso, e
refere-se ao status desse discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura"
(IDEM, p. 13).
Para apontar o autor de um texto, ele relata que a crítica literária se baseou na
mesma maneira utilizada pela tradição cristã para autenticar seus escritos, validando-os
mediante a santidade do autor:

a homonímia não basta para identificar legitimamente os autores de várias


obras: indivíduos diferentes puderam usar o mesmo nome. O nome como
marca individual não é suficiente quando se refere a tradição textual. Para
fazer atuar a função-autor é necessário que haja: 1. um nível constante de
valor; 2. uma coerência conceitual ou teórica; 3. uma unidade estilística; e 4.
um momento histórico definido (IDEM, p. 17-8).

5 Foucault questiona a noção de obra e sua relação com o autor. "A teoria da obra não existe, e aqueles
que, ingenuamente, tentam editar obras, falta uma tal teoria e seu trabalho empírico se vê muito
rapidamente paralisado (...) A palavra 'obra' e a unidade que ela designa são provavelmente tão
problemáticas quanto a individualidade do autor" (p. 8).
6 A escrita deveria permitir a ausência do autor, mas ela acaba afirmando dois princípios: o religioso e o
crítico. A escrita representa em termos transcendentais "o princípio religioso do sentido oculto (com a
necessidade de interpretar) e o princípio crítico das significações implícitas dos conteúdos obscuros (com
a necessidade de interpretar)" (p. 10).
155

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Desta forma, não basta atribuir um discurso a um indivíduo para fazer atuar a
função-autor, ela é resultado de uma operação mais complexa. A crítica moderna
utilizaria os mesmos critérios definidos por São Jerônimo, ao localizar a noção de
autoria no interior da própria obra.

A autoria no design

Tanto “A morte do autor” quanto “O que é um autor”? se referem principalmente


ao texto escrito e não especificamente a outras linguagens. No entanto, podem ser úteis
para pensar o campo do design. Antes de apresentar a discussão acerca da autoria nesta
área, primeiro faz-se necessário definir o termo “autor”, para evitar os riscos da falta de
clareza e da persistência das contradições.
Juliana Martins (2010), em sua dissertação de mestrado intitulada Autoria:
conceitos e valores no campo do design faz um levantamento dos significados e
sinônimos da palavra na visão do senso comum e, em seguida, propõe uma análise
sociológica do termo. Na visão do senso comum sobre o termo "autor", ela apresenta as
definições de diversos dicionários, além de seus sinônimos. Estas indicam que um autor
é considerado como tal quando realiza ou produz algo utilizando sua capacidade
intelectual. Entretanto, originar algo nem sempre envolve uma atividade totalmente
intelectual e, neste caso, "sua capacidade mental fica apenas subentendida como um
dom, um poder, ou um elemento de valor que caracteriza o seu processo produtivo, o
seu processo criativo" (MARTINS, 2010, p. 13).
Ao atribuir a ação de criar/inventar/descobrir algo a uma pessoa, surge outro
aspecto da definição do termo “autor”: identifica-se um responsável pela ação e tal
responsabilidade está associada à ideia de posse. Esses aspectos de responsabilidade e
de posse revelam o caráter uno, individual do termo, ou seja, o autor é único. Essa
característica pode ser identificada na definição dada pelo dicionário Houaiss:
"indivíduo responsável pela criação de algo".
Na análise realizada por Martins, os termos "inventor" e "criador" aparecem em
alguns dicionários como sinônimos de "autor". Ao definir o termo “inventor” como
sendo "aquele que cria algo novo, original", aquele dicionário reforça a ideia de
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

unicidade do autor através da noção de singularidade, além de se referir, mais uma vez,
à sua capacidade intelectual.
Assim como "inventor", o termo "criador" também ratifica a ideia de
singularidade, bem como da capacidade intelectual do autor. Porém, surge um novo
elemento: o religioso. Ao definir o termo "criador" como "Deus"; "que possui força
criadora suprema e que, nesse contexto, teria criado tudo que existe"; ou "aquele que
deu origem a tudo que existe (diz-se de Deus)", os dicionários ressaltam o caráter
religioso do criador e definem o autor como sendo alguém com poderes e características
semelhantes a Deus (MARTINS, 2010).
A questão da autoria na visão do senso comum é baseada na individualidade do
sujeito e no seu poder de criação. Já a visão sociológica vai contra essa posição do senso
comum, visto que o homem é um indivíduo histórico imbuído de crenças e valores
sociais. Sendo assim, o processo de criação não pode ser um ato individual já que as
condições sociais influenciam nesse processo. Deste modo, podemos dizer que a autoria
é coletiva não se tratando o resultado dessa criação como um poder único e singular.
Tal questão no design começou a ser discutida nos Estados Unidos no período
pós-moderno,7 através de autores como Michael Rock, Rick Poynor, Ellen Lupton e
Anne Burdick. Em “The designer as author”, Rock corrobora os discursos de Barthes e
Foucault e também nos alerta para o fato de que a teoria acerca da autoria pode
contribuir para reforçar noções conservadoras e subjetivas baseadas no talento
individual. Por isso, ele (2015) nos leva a refletir sobre o que significa para um designer
ser chamado de autor e ressalta a complexidade dessa prática, que envolve métodos
artísticos e comerciais, individuais e colaborativos.
Rock nos chama atenção para a semelhança na relação entre o trabalho do
designer e o do diretor de cinema. Assim como este, o designer, muitas vezes, também
trabalha de maneira colaborativa, dirigindo a atividade criativa de outras pessoas.
Pensando na questão de como tornar um trabalho colaborativo como o de um artista

7 De acordo com Fredric Jameson (2000), o início da pós-modernidade está relacionado ao surgimento da
nova fase do capitalismo avançado, multinacional e de consumo. Para o autor, o termo pós-moderno não
deve ser utilizado para descrever um determinado estilo, mas sim como uma forma de relacioná-lo com o
surgimento de uma nova ordem econômica, a do capitalismo tardio, em que já não é mais possível a
criação de um estilo novo, uma inovação estilística. Como tudo já foi criado, através do pastiche
passamos a imitar o passado havendo uma revisitação constante ao modernismo. Porém, esse rearranjo do
original se dá de forma acrítica, através apenas da imitação pela imitação. Com isso passou-se a valorizar,
cada vez mais, os diferentes estilos e repertórios.
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

único, o cineasta François Truffaut lançou em 1955 na revista francesa Cahiers de


Cinema, o movimento teórico Política dos autores8 que tinha o objetivo de reconfigurar
a teoria crítica do cinema. Sendo assim,

a solução foi adotar critérios que permitissem definir quais diretores seriam
considerados autores. A fim de estabelecer o filme como um trabalho de arte,
a teoria do autor deu ao diretor − até então um terço da trinca criativa − o
controle total de todo o projeto (IDEM, p. 239).

O crítico americano Andrew Sarris aponta três condições para que os diretores
possam ingressar no seleto grupo dos autores: 1) devem demonstrar expertise técnica; 2)
devem apresentar uma assinatura estilística capaz de ser perceptível após alguns filmes;
3) mostrar consistência de visão subjetiva através da escolha dos projetos e do
tratamento cinematográfico.
É fácil se identificar com duas das condições apontadas por Sarris: proficiência
técnica e assinatura estilística, porém apenas virtuosismo técnico e estilo não elevam
ninguém à categoria de autor. A dificuldade em estabelecer a autoria está justamente na
terceira categoria, ou seja, identificar a visão subjetiva do designer.
Em Abaixo as regras: design gráfico e pós-modernismo, Poynor (2010) também
localiza a discussão sobre a autoria no design no período pós-moderno e defende as
argumentações de Barthes em relação à morte do autor e ao nascimento do leitor,
ressaltando a ideia de que os designers oferecem mecanismos para que cada leitor
desenvolva sua própria interpretação, em vez de impor uma única leitura. Cada vez
mais, os designers buscam imprimir um estilo próprio como uma forma de assinatura
tornando possível identificar sua autoria. Com isso, ele nos alerta para a possibilidade
de os criadores tornarem-se o centro das atenções, afirmando sua presença e
importância, mesmo quando ainda há a crença de que os designers devam expressar a
mensagem de um cliente de forma neutra.
Para ele, o ato de criar nunca pode ser um ato completamente neutro, uma vez
que envolve incluir algo ao projeto. "Até certo ponto é impossível que um design não
seja baseado em gosto pessoal, entendimento cultural, crenças sociais e políticas e

8 A Politique des auteurs procurava justificar o caráter artístico do cinema desvinculando-o da ideia de
ser uma diversão para as massas. François Truffaut não considera o filme uma obra coletiva e, por isso,
deve ter apenas um único autor "fazendo com que roteiristas, músicos, diretores de fotografia, produtores
e todo o arsenal de profissionais que constituem o universo de uma produção fílmica não passem de
auxiliares inteiramente subordinados" (TORRES, 2012, p.3).
158

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

profundas preferências estéticas" (IDEM, p. 120). Além disso, os designers alegam que,
para um melhor desempenho, precisam reescrever o briefing dos clientes e, ao mesmo
tempo, necessitam da aprovação dos seus pares.
Até os anos 1980, poucos profissionais cogitavam atribuir uma autoria gráfica à
sua prática. A expressão "designer como autor" ganhou força a partir dos anos 1990 e
teve Bruce Mau como uma referência dessa ideia (IDEM). Parodiando o texto de Walter
Benjamin, “O autor enquanto produtor”,9 Mau propõe ocupar o papel inverso de "o
produtor como autor". O objetivo de Mau, segundo Weymar (s/d),

era colocar seu design acima do campo onde o conteúdo se desenvolve e daí
defende um design menos fragmentado no sentido da divisão de trabalho
onde o designer se encarregue também da pesquisa e do aprimoramento das
ideias de criação.

Conforme a questão da autoria foi sendo discutida, mais a escrita passou a se


tornar um elemento essencial no reconhecimento do autor. De acordo com Mau, para
que o designer seja considerado um autor é preciso que se envolva plenamente com o
conteúdo. Quando ele não tem o controle do texto, atribuir-lhe uma autoria seria
questionável, pois determinar a forma final de um texto é considerado um aspecto
relevante para a produção de significado. Porém,

a centralidade da forma e da superfície na cultura pós-moderna e uma crença


mcluhanesca em que é o meio e não a mensagem específica que faz
diferença, contribui para a ideia dos designers de que o design merece uma
atenção maior e incentiva a visão de que o estilo em si é uma forma de
conteúdo suficiente (POYNOR, 2010, p. 128).

Anne Burdick defende a ideia de que no design, o verbal e o visual são


inseparáveis e se relacionam de maneira intrínseca, ou seja, "quando as palavras se
materializam na forma de tipografia, os significados da 'escrita' e do 'design' não podem
ser separados" (POYNOR, 2010, p. 127). Desta forma, tanto o designer quanto o
escritor compartilham a responsabilidade sobre a produção de significado.
Entretanto, Burdick ressalta que atribuir autoria ao designer pode sugerir uma
forma de poder na medida em que há uma tentativa de controle das áreas do processo
editorial. "Como autores, os designers percebem que, apesar de algumas influências que

9 De acordo com Sequeira (2010), "um dos princípios defendidos seria o modo como forma e conteúdo
estão intrinsecamente ligados na produção de significado. Assim, no exemplo do livro, tratando o escritor
da parte do conteúdo e o designer da parte da forma, ambos partilhariam a autoria do objeto final" (s/p).
159

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

emanam do domínio da imagem visual e da forma tipográfica, controlar as próprias


palavras e, portanto, a maior parte da mensagem, é uma arma poderosa" (McCARTHY,
apud POYNOR, 2010, p. 128).
Já Ellen Lupton questiona a utilidade da autoria para a prática do design
contemporâneo e retoma o conceito de Benjamin ao propor o "designer como produtor".
Nesse modelo, o designer encontra oportunidades para assumir o controle dos meios de
produção tecnológicos e o compartilha com o público leitor, dando a ele o poder de ser
tanto produtor quanto consumidor de significado" (IDEM, p. 146).
Marcia Fortunato afirma que a autoria se manifesta de forma diferente
dependendo do tipo de produção (pintura, música, filme, fotografia, etc.) em função do
universo de criação de cada um deles que utilizam procedimentos de produção
específicos.

As possibilidades de autoria sob cada um desses sistemas [pintura, música,


cinema, desenho etc.] podem ser diversas, na medida em que se altera o
status material do discurso: produzir uma obra sobre a materialidade de um
livro, ou de um quadro, ou de uma peça musical, certamente supõem
procedimentos de autoria distintos, que levem em conta as possibilidades
materiais de composição (FORTUNATO, 2003, p. 38).

Ao longo da história do design editorial brasileiro, a preocupação com o projeto


gráfico do livro e com a construção de uma identidade visual nem sempre foi uma
constante entre os editores. Podemos dizer que, somente a partir do início do século XX,
o mercado livreiro passou por uma revolução estética trazendo uma qualidade gráfica e
visual a este produto.10
Muitas vezes nos referimos a determinados livros somente pelo autor do texto.
Entretanto, o livro é um produto constituído não apenas por um conteúdo (textual ou
imagético que vão compor os cadernos), mas também pela forma. Se pensarmos que
não podemos dissociar forma e conteúdo na produção de significado, o livro é um bom
exemplo de múltipla autoria onde escritor, fotógrafo e/ou ilustrador e designer
trabalham juntos na produção de um resultado único.
Com as transformações ocorridas no papel do editor, seus interesses se voltaram
mais para questões econômicas de modo que o designer passou a ocupar algumas de

10 Em matéria publicada na revista Valor de 10 de abril de 2015, Luiz Schwarcz, editor da Companhia
das Letras, comenta que "os livros se transformaram em um produto e não existe vergonha alguma nisso
(...) O editor tem que fazer um bom produto, mas é um produto." (p. 22).
160

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

suas atribuições. Victor Burton acredita que o designer muitas vezes assume também o
papel do editor

quando você tem uma reedição de um livro, o autor evidentemente vai


receber de novo, o fotógrafo envolvido também vai receber de novo, mas na
cultura editorial brasileira até agora, o designer gráfico não tem mais direito a
nada. Você tem livros que fazem razoável sucesso editorial e acredito que
participa desse sucesso porque, no mínimo, criou a cara daquele produto. [...]
eu acho que realmente em muitos casos, como os livros de arte, a gente é um
pouco coautor sim. Isso é uma luta que a gente deveria encarar. Na Europa e
nos Estados Unidos, as editoras são mais organizadas, mais profissio-
nalizadas. O papel do editor lá fora é muito mais ativo do que aqui no Brasil
que te entregam um texto geralmente mal organizado, um bando de imagens
e vire-se. Então, realmente o designer se torna um colaborador. Se você for
observar bem, o crédito do design gráfico na França, Alemanha, EUA é muito
discreto, mas porque o editor é muito presente. No Brasil, se dá crédito, mas
se paga pouco. Acho que o crédito acaba sendo uma espécie de consolo. E
não é isso que se quer. O que se quer é uma remuneração correta e sobretudo
papéis bem definidos. Aqui os papéis são muito misturados. As editoras ainda
são muito amadoras nesse sentido (BURTON, 2013).

De acordo com Lupton (2011), ao desempenhar também a função do editor, o


designer assume uma posição privilegiada, uma vez que tem o controle de todas as
etapas de construção do livro, desde o domínio do texto, da imagem, do projeto gráfico
até ao da produção final. Se, por um lado, essa dupla função permite que o designer
desenvolva projetos integrados ao conteúdo do livro, pelo outro não há uma
remuneração por esse segundo exercício.
O fato do livro ser um produto de múltipla autoria em que se pode ter diversas
pessoas trabalhando sobre um mesmo projeto, muitas vezes sem nem sequer
dialogarem, pode acarretar em um projeto gráfico sem unidade entre as partes do livro.
Acreditamos que a autoria está vinculada a uma ideia de projeto, ou seja, quando forma
e conteúdo de alguma maneira se relacionam.
Parece que, com o advento da tecnologia, o designer foi perdendo o domínio das
etapas do processo de produção do livro. Com a chegada dos softwares de editoração
eletrônica houve a fragmentação do trabalho levando a uma perda da compreensão e
domínio do todo. Acreditamos que essa alienação acirrada pela fragmentação do
trabalho também enfraquece a própria noção de autoria.

Considerações finais
161

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

O historiador francês Roger Chartier, especialista em história do livro e da


leitura, explica nos primeiros capítulos da obra A aventura do livro: do leitor ao
navegador (1999) como surgiu a figura do autor-proprietário e o direito do autor.
Para ele, o papel do editor sofreu, desde o seu início nos anos 1830, algumas
modificações, ligada que foi a uma atividade tanto intelectual quanto comercial de
busca textos e autores e de controle do processo. Indo desde a impressão da obra até a
sua distribuição, sua atividade acabou por se equiparar com a dos autores dos textos, o
que frequentemente tornou a relação com eles um pouco delicada.
De acordo com Bragança (2000), o foco do editor é no texto original. Seu
conhecimento é mais voltado para o mercado de bens culturais, o que vai determinar sua
linha de atuação no momento da seleção de originais. Ele é movido por interesses
econômicos e culturais e, geralmente, sente-se com responsabilidades políticas diante da
sociedade, ou seja, ao mesmo tempo em que está preocupado com a venda dos seus
títulos, sua linha editorial costuma seguir suas crenças ideológicas. Nesse modo de
edição podemos destacar a atuação de Monteiro Lobato, Caio Graco Prado, Carlos
Lacerda e Ênio Silveira, editores, respectivamente, da Monteiro Lobato & Cia, da
Brasiliense, da Nova Fronteira e da Civilização Brasileira.
O sucesso do trabalho do editor está ligado à sua inventividade pessoal e, em
alguns casos, ao apoio do Estado e à criação de novos nichos de mercado. Chartier não
tem dúvida em apontar Hachette, Larousse e Hetzel, por um lado, e Gallimard e
Flammarion, pelo outro, como os grandes editores dos séculos XIX e XX,
respectivamente. Porém,

as transformações do capitalismo editorial, contudo, originaram


reagrupamentos, criaram empresas multimídia, de capital infinitamente mais
variado e muito menos pessoal, e provocaram um certo enfraquecimento
desse vínculo que unia a figura do editor e a atividade de edição
(CHARTIER, 1999, p. 53).

Chartier identifica ainda outras duas atuações anteriores à do editor, entre os


séculos XVI e XVIII: a do livreiro-editor e a do impressor-editor ou gráfico-editor. A
atuação do livreiro-editor se dá basicamente na livraria ou a partir dela. O foco do seu
trabalho está no domínio do comércio e dos interesses do mercado buscando sempre
obter lucro para a empresa. Seu foco é descobrir as necessidades e demandas do
mercado para lançar autores e obras esperadas pelo público (BRAGANÇA, 2000).
162

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Nesse sentido, podemos citar a atuação de Baptiste Louis Garnier, um dos mais
importantes editores brasileiros do século XIX que esteve à frente da livraria Garnier
Frères, e de Francisco Alves, fundador da livraria homônima, que teve um importante
papel na edição do livro didático no Brasil.
Já o impressor-editor ou gráfico-editor detém o conhecimento das técnicas de
impressão, desde a fundição do tipo até a impressão do texto. Seu local de trabalho é
nas oficinas gráficas e, por ser proprietário dos meios de produção, consegue negociar
financiamentos e empréstimos a banqueiros ou investidores interessados em sua
produção, lhe ficando assegurada a função de editor (IDEM). Nesse sentido, podemos
igualmente citar a atuação de Silva Serva, fundador da primeira oficina tipográfica da
Bahia em 1811, e de Francisco de Paula Brito, fundador da Imperial Typographia Dous
de Dezembro em 1850.
No Brasil, a palavra editor surge no dicionário em 1813. Vocábulo de origem
latina, seu significado está associado ao movimento de “dar à luz” e “publicar”. No
dicionário Aurélio da língua portuguesa, “editor” é:

4. O responsável pelo ato de publicar textos de qualquer natureza, estampas,


partituras, discos, etc. 5. O responsável pela supervisão e preparação de
textos especializados numa publicação que abrange assuntos diversos 6. O
responsável pela editoração; editorador.

Chartier (1999) explica os privilégios de publicação na Inglaterra e França. A


partir do século XVI, na Inglaterra, os livreiros-gráficos de Londres, ao adquirirem o
direito de registrar um manuscrito, concedido pela comunidade, ganhavam o privilégio
da exclusividade de editá-lo e reeditá-lo indefinidamente.
Já na França, esse privilégio era concedido pela monarquia e o prazo de
exclusividade de publicação de um título podia variar entre cinco e quinze anos. Porém,
a monarquia permitia que esses privilégios fossem renovados quase que
indefinidamente, de modo que nenhum outro livreiro ou gráfico tivesse o direito de
publicar o mesmo título.
Essa perpetuação de privilégios concedidos pelo sistema corporativo inglês ou
pelo sistema estatal francês aos grandes livreiros-editores acabou difundindo a
falsificação, tornando-a uma atividade econômica essencial para o mercado europeu. O
objetivo era descentralizar o domínio das edições e incluir os livreiros-editores das
províncias no mercado dos novos lançamentos.
163

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Teoricamente, a entrada dos livros falsificados no reino é proibida, mas eles


são introduzidos no país por diferentes caminhos e através de alianças com
livreiros de província que por eles se interessam. Não tendo que pagar o
manuscrito nem o privilégio, os falsificadores podem vender o livro a um
melhor preço. É assim quem, entre o século XVI e a época das Luzes, a
falsificação de livraria tornou-se, pouco a pouco, uma atividade econômica
muito importante (IDEM, p. 57).

Com a propagação das falsificações no século XVIII, um grupo de autores e


editores se reuniu na Alemanha para tentar definir uma propriedade literária que valesse
para além dos limites do Estado e protegesse os livreiros-editores e também os próprios
autores, já que estes cedem seus manuscritos àqueles que os transformam em livros
(IDEM).
Os direitos de publicação, praticamente perpétuos, dos manuscritos adquiridos
pelos livreiros-editores só não gerou a revolta e a luta dos autores, pois havia uma
resistência em considerar as composições literárias como mercadorias, como, de fato,
eram. Os livreiros compravam os manuscritos por uma quantia ínfima e lucravam com a
venda dos exemplares publicados. Ao autor do texto restava apenas alguns exemplares
suntuosamente encadernados (IDEM).
Essa situação permaneceu até o século XVIII, quando os livreiros-editores (e
não os próprios autores) decidiram defender seus privilégios (seja no sistema inglês ou
no francês), pois, ao ceder o manuscrito a um editor, o autor do texto continuava sendo
"detentor de uma propriedade imprescritível sobre as obras que exprimem seu próprio
gênio" (p. 49). Isso fez com que os editores, ao comprarem esses textos se tornassem
seus donos, dando origem à figura do autor-proprietário. "O livreiro-editor tem interesse
nisso, pois, se o autor se torna proprietário, o livreiro também se torna, uma vez que o
manuscrito lhe fora cedido! É este caminho tortuoso que leva à invenção do direito do
autor" (IDEM, p. 64).
O que era considerado objeto de propriedade (copyright) dos livreiros e gráficos
era o manuscrito da obra. Entretanto, para ser comercializado ele precisava ser
transformado em livro que, de acordo com Chartier, era o objeto que "se aplicava o
conceito de right in copies, isto é, direito sobre o exemplar, sobre o objeto" (IDEM, p.
67).
A partir do início do século XVIII, os Estados europeus, principalmente na
Inglaterra e na França, tentaram regular o direito do autor e acabar com essa garantia
164

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

eterna de propriedade de uma obra e de sua publicação pelos livreiros e gráficos


buscando, assim, proteger o autor e o público. Para Chartier, "proteger o autor supõe
que algo seja reconhecido de seu direito: impõe-se a ideia de ver as composições
literárias como um trabalho; a retribuição desse trabalho é legítima, justificada" (IDEM,
p. 66).
A partir desse momento, tentou-se também acabar com aquela ideia de que os
livreiros e gráficos possuíam a propriedade tanto sobre o manuscrito da obra quanto
sobre o exemplar, sobre o objeto livro. Buscou-se atribuir essa propriedade somente ao
texto e não ao objeto que o suporta. Desta forma, entendemos que, desde então, o livro
passou, portanto, a carregar um duplo caráter de mercadoria, um referente ao
manuscrito e outro ao objeto em si. Nesse sentido, tem-se o escritor como autor do texto
e o designer como autor do artefato.
Como a revolução estética no mercado editorial brasileiro se deu recentemente,
no início do século XX, momento em que as editoras passaram a se preocupar mais com
os projetos gráficos dos livros procurando criar uma unidade entre as estruturas do livro,
as pesquisas referentes à autoria no design editorial ainda são isoladas.
Chico Homem de Melo, em palestra realizada no 3º Congresso Internacional de
Design da Informação, em 2007, relata sua experiência no mercado editorial brasileiro,
em especial na produção do livro didático. Ao apontar as dificuldades na produção de um
livro didático, como a ausência de interlocução entre os atores do processo editor-autor-
designer devido a uma radical fragmentação do trabalho, Melo defende que o
aprimoramento deste tipo de livro se dará através da participação plena do designer desde
o início do processo de produção, podendo este ter uma maior liberdade de intervenção.
A produção de um livro didático é um ponto de partida que deve ser pensado e
repensado ao longo de todas suas etapas. Para tanto, é necessário que uma nova
configuração na relação entre editor-autor-designer. O "aprimoramento [do livro didático]
virá das editoras que ampliarem o papel do designer, e que compreenderem a
possibilidade de ele se tornar um coautor do livro" (MELO, 2009).
Ana Luisa Escorel (2004) faz uma crítica às sociedades que dissociam o
resultado final do processo de produção, o produto, do trabalho do designer e que ainda
limitam seu desempenho e muitas vezes desconhecem sua função. A autora ressalta
165

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

ainda a importância de reconhecer a autoria do designer em diversas áreas, inclusive no


design editorial, uma vez que seu trabalho faz parte do processo de feição do produto.
De uma forma geral, percebemos que as discussões que envolvem a autoria no
design gráfico ressaltam uma valorização da subjetividade, característica típica do
campo da Arte.

Referências

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167

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

O estar-junto como processo comunicacional: A produção de vínculo a


“L 8!” em Belém (PA)

To be-together as a communication process: The production of social bond


through the “ reedom to 8” movement, in Belém (PA)

Luciana Gouvêa1

Resumo
Este artigo analisa a mobilização social denominada “Liberdade ao 8!”, rede de contra-
informação e manifestações em defesa dos proprietários do 8 Bar, detidos ilegalmente
pela Polícia Militar, em Belém (PA), em junho de 2015. O movimento se pautou no
estar-junto (MAFFESOLI, [1992] 2005) como uma forma de refutar a representação
negativa exibida nos veículos midiáticos hegemônicos da cidade, especialmente no
jornal Diário do Pará. As problemáticas contidas neste artigo foram analisadas à luz das
teorias de Michel Foucault ([1979] 2006), Muniz Sodré (1971), Guy Debord ([1967]
2006), Günther Anders ([1956] 2007), Vilém Flusser (1985) e Michel Mafesoli ([1992],
2005).

Palavras-chave
Imagem; vínculo; estar-junto; mobilização social

Abstract
This paper analyzes a social mobilization called “ reedom to 8!”, a counter-information
network and mobilization in benefit of the “8 Bar” owners, illegally arrested by the
local Police, in Belém, State of Pará. The movement is sustained by the be-together
concept (MAFFESOLI [1992] 2005) as a way to deny the negative representation
shown in the hegemonic media, specially the Diário do Pará newspaper. The issues
presented in this paper were analyzed under the thought of several authors, such as
Michel Foucault ([1979] 2006), Muniz Sodré (1971), Guy Debord ([1967] 2006),
Günther Anders ([1956] 2007), Vilém Flusser (1985) and Michel Mafesoli ([1992],
2005).

Key-words
Image; social bond; be-together; social mobilization

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação de Comunicação da Universidade Paulista (PPGCOM-


UNIP), com a orientação do Prof. Dr. Jorge Miklos. Integrante do Grupo de Pesquisa Mídia e Estudos do
Imaginário, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e
Jornalista.
168

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"Ninguém ama aquilo que não conhece, nem defende aquilo que não ama. É preciso
conhecer para amar e amar para defender"
Juraci Siqueira2

No dia 25 de junho de 2015, uma quinta-feira, às 13h22, o Portal Diário do Pará


noticiava a prisão de João Paupério de Sousa, de 28 anos, e Karllana Cordovil de
Carvalho, 25, proprietários do 8 Bar, localizado no bairro do Reduto, em Belém (PA). O
público majoritário do estabelecimento era de homossexuais, artistas visuais, estudantes
universitários e intelectuais de pensamento político de esquerda. O casal foi enquadrado
por tráfico de drogas, pois a Polícia Civil, ao fazer a busca no bar (onde também
residiam), teria encontrado 44 papelotes de pasta base de cocaína e cédulas de dinheiro
cuja soma seria de aproximadamente R$ 1.200. O episódio resultou na exposição de
ambos como suspeitos deste crime nos principais veículos de comunicação da cidade3,
tendo sido publicados seus dados pessoais, como nome completo, endereço e fotografias
de rosto.
Entre todas as coberturas jornalísticas do fato, a de maior relevância foi a da
seção “Polícia” do Portal Diário do Pará. A ilegalidade da detenção unida à falta de
provas contra os acusados e a forte suspeita de um flagrante forjado por parte dos
policiais envolvidos na ação motivaram o arquivamento definitivo do inquérito4. No
entanto, a cobertura jornalística do informativo em conjunto com a prisão realizada de
forma arbitrária desencadeou na formação da mobilização social “Liberdade ao 8”!,
uma rede de manifestação e informação que envolveu o público do bar, amigos,
familiares e colaborou no esclarecimento dos fatos.
Neste artigo pretendemos, a partir de análise documental e bibliográfica,
explorar como pode ser descrito o processo comunicacional empreendido pelo

2 Poeta e cordelista paraense nascido em 1948.


3 A prisão de João e Karllana foi noticiada no Portal Diário do Pará e no G1 Pará ainda no dia 25 de
junho, mesmo dia do acontecido. No dia seguinte, foi noticiado também pelo PORTAL ORM, assim como
pelas versões impressas dos jornais O Liberal e Diário do Pará. O Diário do Pará foi o único a reproduzir
as fotografias dos acusados tanto no portal como em seu jornal impresso.
4 Em uma atualização do caso, o Portal G1 Pará, informou que “A defesa do casal informou que entrou
com representação junto à Corregedoria da Polícia Civil em julho de 2015. Procurada pelo G1, a Polícia
Civil informou, em nota, que o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) instaurado na Corregedoria
está em fase de finalização de relatório. A decisão dos integrantes da comissão será submetida à
apreciação dos delegados. O PAD poderá resultar em sugestão de penas administrativos, que vão desde a
repreensão, suspensão até a demissão. A polícia não divulgou a previsão para a conclusão do processo”
(16/04/2016).
169

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

movimento “Liberdade ao 8!” e quais foram os seus percursos de formação e de ação


frente ao discurso da mídia hegemônica local.
Para realizar o estudo, fizemos a leitura de 21 reportagens jornalísticas de
repercussão local e nacional que trataram do assunto, sendo elas: 2 do Diário do Pará,
10 do blog Jornal Pessoal, 1 da revista eletrônica VICE, 2 do Brasil Post, 5 do Portal G1
Pará e 1 do Portal ORM. Utilizamos também informações da página do Facebook
“Libertem Karllana e João”5. A análise crítica do estudo foi concebida a partir das obras
de Michel Foucault ([1979] 2006), Muniz Sodré (1971), Guy Debord ([1967] 2006),
Günther Anders ([1956] 2007) e Michel Maffesoli([1992] 2005).

O vício discursivo da imprensa

A prisão do casal está longe de ser um caso factual e isolado em Belém. A partir
do ocorrido, o Governo do Estado através da PM intensificou a perseguição a artistas e
passou a obstruir a liberdade de reunião de opositores que trabalham com iniciativas
culturais consideradas “marginais”. Entre 2015 e 2016, ocorreram casos emblemáticos
de perseguição a coletivos culturais e a eventos independentes, como por exemplo, a
Batalha da Dorothy Stang, roda de rima realizada no bairro da Sacramenta, em Belém,
que sofreu sucessivas tentativas da PM de embargar o encontro de MCs6, mesmo que a
organização estivesse recebendo auxílio financeiro do Ministério da Cultura através do
prêmio Hip Hop 2014, dispondo de autorização da Prefeitura para o funcionamento do
soundsystem até 22h30 às sextas-feiras, e pago todas as licenças exigidas pela Secretaria
Municipal de Meio Ambiente (Semma).

5
Link da página: https://www.facebook.com/8livre/?fref=ts.
6 No dia 22 de Agosto de 2015, policiais militares obrigaram os organizadores a encerrar o evento 30
minutos mais cedo, alegando o barulho excessivo do soundsystem. No dia 29 de agosto de 2015, o grupo
que promove o encontro se manifestou em sua página no acebook: “O Coletivo Cultural, ontem
apresentou a Carta de Autorização da SEMMA (...) agora o argumento é que falta Autorização da DPA -
Divisão de Polícia Administrativa, e presença da Guarda Municipal. Na verdade sabe-se muito bem que a
questão vai muito além de "autorizações" e processos burocráticos, e mais um fator de abordagem
"viciada", "estigmatizada", "preconceituosa", "exclusiva" com as culturas, artistas e artes de/e nas ruas,
nas praças, nos bairros, nas "periferias", e que contribuem para a cidadania, para o exercício dos direitos
humanos e culturais de um amplo e diverso público, de forma protagonista e livre”. FONTE:
https://www.facebook.com/pg/batalhadorothystang/posts/?ref=page_internal.
170

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

O caso 8 Bar, porém, adquiriu repercussão midiática nacional e internacional7 e


suas motivações ainda permanecem obscuras. O viés essencialmente ideológico da
detenção dos proprietários foi também observado na reportagem “Liberdade para a
Resistência: O caso do 8 Bar e Bistrô”, publicada pelo portal Post Brasil do dia 30 de
junho de 2015:
Nas mobilizações organizadas pela soltura e comprovação de inocência de
Karllana e João foram criadas documentações audiovisuais, atos e manifestos
escritos nos quais se atesta a perseguição ideológica refletida na prisão dos
dois. O 8 é considerado por seus frequentadores um espaço afirmativo de
construção política. As pessoas que ali circulam não se integram às elites do
estado e não vivenciam os espaços urbanos de presença real e partilha pelas
balizas do consumo e do descarte. O 8 é um local de resistência no mundo
público. Sua gente atua em diversas frentes de ação social no Pará e fora dele
- em causas indigenistas, feministas, em lutas contra o racismo, pela
educação e pela diversidade de gênero (dentre outras pautas, evidentemente)
(AMORIM, 2015).

Na sentença que inocentou o casal e determinou o arquivamento do inquérito


policial, expedida no dia 29 de junho, apenas quatro dias após a prisão, o juiz Flávio
Sanchéz Leão, da 1ª Vara de Inquéritos e Medidas Cautelares de Belém, criticou a
atuação dos policiais e ressaltou ainda que os advogados de defesa provaram que os
dois vinham sendo assediados por agentes de segurança pública, pois eles haviam
protocolado pessoalmente em outras ocasiões denúncias à Corregedoria da Polícia,
registrando as abordagens ilegais dos mesmos, tal como tentativas de extorsão,
conforme se lê no pedido de relaxamento de prisão, que determinou a soltura imediata
dos réus:
Deve ser aduzido que a Defesa fez juntar documentação que prova que o
casal de pessoas presas já vinha denunciando às corregedorias de policial
civil e militar a tentativa de extorsão por parte de policiais praticada contra os
presos e contra o estabelecimento comercial. Não é comum que um traficante
de droga se exponha voluntariamente diante da polícia, inclusive recorrendo
ao órgão correcional da mesma, como fizeram o casal de presos. Caso
tivessem em depósito drogas entorpecentes, tal atitude só iria garantir que se
chamasse a atenção dos policiais sobre o local. Portanto, esta circunstância,
torna incoerente a versão de que fosse o estabelecimento comercial um ponto
de tráfico de drogas (SANCHÉZ LEÃO, 2015).

O mesmo documento determinava ainda a soltura imediata dos suspeitos. Isto é,


podemos inferir que o noticiário local foi precipitado ao acusar veementemente os
proprietários do bar. Usamos a palavra “veemência”, pois identificamos que ao menos

7 O caso repercutiu no Post Brasil, portal VICE, TVI e Jornal de Notícias (ambos de Portugal). João é
cidadão português, despertando o interesse da mídia daquele país pelo acontecimento.
171

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

na esfera midiática, não houve nenhuma chance de defesa para os acusados. Desta
maneira, podemos admitir que o Portal Diário do Pará, o primeiro a noticiar, negou a
posição de fala aos detidos ou a quem pudesse ter apresentado uma versão diversa da
instituição policial, conferindo assim a ambos um ar grotesco, pois se comunica apenas
pela sua imagem distanciada.
O grotesco, por se tratar de algo que deve ser apartado do social, desperta a
curiosidade, assim levando o leitor a consumir as suas notícias. Para Muniz Sodré
(1971, p. 39), o grotesco “é o mundo distanciado, daí a sua afinação com o estranho e o
exótico”:
Cada organização das relações de produção engendra uma atmosfera
psicossocial própria, que se destina a perpetuar o seu tipo específico de
relações humanas. A cultura de massa – frisamos: essencialmente política – é
hoje o grande médium da atmosfera capitalista. No caso do brasileiro, ela é
também o espelho que reflete o id e os demônios das nossas estruturas
(SODRÉ, 1971, p. 39).

Nesta concepção, vemos que a construção do grotesco cria uma atmosfera


psicossocial para atender primeiramente a interesses mercantis utilizando da estratégia
discursiva de um mundo distanciado. Para Debord ([1967] 2006), esta é a principal
consequência do surgimento do espetáculo, que se trata de “uma relação social entre
pessoas mediada por imagens” (2006, p.14). Na visão do autor, o efeito de isolamento
dos grupos sociais é facilitado pela mídia que se apresenta como um centro aglutinador
de informações, opiniões e de ligação com a realidade do outro – como se apenas fosse
possível reconhecer as qualidades do outro a partir da exposição midiática.
Ainda sobre o tema, Gunther Anders ([1956]2007) nomeia este processo de
construção midiática de caráter predicativo da notícia, “ela oferece apenas o preparado,
que se chama predicado” (ANDERS, p.48).
O que se lhe dirige é algo que na notícia já está expressamente feito, para ele
trabalhado e preparado; e é neste estado de preparação que o é remetido (...).
A notícia não põe outra coisa à disposição do destinatário que não isso. Ou
seja, ela orienta-o, mesmo antes que ele possa fazer seu próprio juízo, a partir
de uma escolha; ou seja, ela estabelece para ele um limite fixo; ou seja,
prepara-o. (ANDERS, 2007, p. 47).

Ao oferecer apenas o predicado, levando o espectador a formar pré-julgamentos


e premissas, o efeito que esta mídia produz é novamente um distanciamento entre os
atores que compõe a sociedade. Anders (2007) compara a produção midiática e serviços
como o gás, fornecimento de água e a eletricidade. Mas neste caso, a principal
172

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

especialidade da mídia seria a fabricação e ordenamento da realidade. Nas palavras do


autor, que constrói uma crítica ao modelo de preparação da notícia, “quem quer saber o
que existe lá fora, precisa se dirigir até sua casa, onde os acontecimentos
‘encomendados para contemplação’ já esperam por ele como a água encanada na
torneira. Como poderia ele do lado de fora, no caos da realidade, estar em condições de
extrair alguma coisa real com mais do que um significado local?” (ANDERS, 2007, p.
33).
Desta forma, ao reforçar que apresenta um discurso do “real”, estratégia esta
adotada por jornais, TVs, portais de notícia de maior abrangência, estimula que se
acredite na importância, necessidade e eficiência das atuações policiais. O tratamento
noticioso dado a estes suspeitos – mesmo que posteriormente a inocência deles tenha
sido atestada pela Justiça – facilita a disseminação da sensação de insegurança tão cara
ao controle policial, como descreve Foucault (2006):
A sociedade sem delinquência foi um sonho do século XVIII que depois
acabou. A delinquência era por demais útil para que se pudesse sonhar com
algo tão tolo e perigoso como uma sociedade sem delinquência. Sem
delinquência não há polícia. O que torna a presença policial, o controle
policial tolerável pela população se não o medo do delinquente? (...) Esta
instituição tão recente e tão pesada que é a polícia não se justifica senão por
isto (FOUCAULT, 2006, p. 138).

Desta forma, os sujeitos acusados são objetificados na construção do discurso


midiático contra a delinquência, alimentando ainda mais essa estrutura discursiva já
definida e que precisa apenas de novos textos e imagens produzidos de forma
padronizada para ser alimentada. A respeito de como a fotografia atua especificamente,
Villém lusser (1985), no texto “ ilosofia da Caixa Preta”, faz uma crítica sobre como a
imagem modela os seus receptores:
Estes reconhecem nela forças ocultas inefáveis, vivenciam concretamente o
efeito de tais forças e agem ritualmente para propiciar tais forças. Exemplo:
em fotografia de cartaz mostrando escova de dente, o receptor reconhece o
poder da cárie. Sabe que é força nefasta e compra a escova a fim de passá-la
ritualmente sobre os dentes, conjurando o perigo (espécie de sacrifício ao
“deus Cárie”, ao Destino). Certamente, pode recorrer ao léxico sobre o
verbete “cárie”. Isto apenas confirma o mito, não importa o que diz o texto, o
leitor comprará a escova. Está programado para tanto. (FLUSSER, 1985,
p.32).

De mesma forma que o autor utiliza o exemplo da cárie, a partir da exposição


das imagens e dos dados íntimos dos acusados, o leitor passará a acreditar que há uma
ameaça real a partir da exposição destes sujeitos objetificados.
173

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Em sua pesquisa “Narrativas Imagéticas da Violência: Dramatização da Morte


na mídia impressa da Amazônia Paraense”, Sérgio do Espírito Santo Ferreira Junior
(2015) descreve como o Diário do Pará aborda o tema criminalidade em suas páginas.
De acordo com o autor, o estilo narrativo da publicação reproduz essencialmente
lógicas de relatos policiais. Assim, privilegia a Polícia Militar e a Polícia Civil como
fonte principal ou exclusiva. Nos textos jornalísticos do Diário do Pará analisados pelo
pesquisador, há a exposição de acusados, excesso de valoração negativa do indivíduo,
com designações como “vagabundo”, “bandido”, “elemento”, e também há a vinculação
da ideia de origem da violência a espaços periféricos, espaços de pobreza. Em conjunto
com as fotografias que reforçam o estereótipo do ser “marginal”, se realiza o processo
de composição da narrativa e difusão de representações sobre a violência (FERREIRA
JÚNIOR, 2015, p.215).
Em diálogo com as ideias acima, podemos destacar que as imagens foram
produzidas pela Assessoria de Imprensa da Polícia Civil, mas reproduzidas pelo Portal,
privilegiando assim a entidade como a sua única fonte de informação. É necessário
destacar que a liberdade de imprensa não está isenta de responsabilidade e
comprometimento com a apuração dos fatos, que no caso citado foi falha, tendo em
vista que não houve a preocupação imediata do veículo em apurar a notícia sob todas as
perspectivas, e esta foi facilmente desmentida posteriormente.

O estar-junto

Neste contexto de falta de diálogo do cidadão com os veículos midiáticos, os


apoiadores do Bar e do casal passaram a buscar estratégias de representação que não
fossem pensadas a partir e para as instituições legitimadoras como as corporações
midiáticas. O propósito era adotar formas de se produzir contra-informação8 e narrativas
descentralizadas que abordassem os fatos sob outras perspectivas.

8 No artigo “Comunicação Alternativa em rede e difusão contra-hegemônica” (2008), Denis de Moraes


define a Comunicação Alternativa em rede, com base na noção definida pelo Fórum de Mídias da
Argentina (2004): “Atua como uma ferramenta para a comunicação no campo popular, sem deixar de lado
a militância social, ficando implícito que jornalistas e comunicadores devem estar dentro do conflito,
sempre com uma clara tendência a democratizar a palavras e a informação”. ONTE: Ver referências
bibliográficas. Consideramos aqui que nem sempre o comunicador é, necessariamente um profissional ou
aquele que reporta à mídia. Um sujeito atuante no conflito tem a função potencial de comunicar, podendo
ou não atuar como tal.
174

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

A partir da página “Libertem Karllana e João”, criada no acebook, houve a


interlocução das mobilizações “Liberdade ao 8!” com os meios de comunicação da
cidade. O “Liberdade ao 8!” gerou matérias jornalísticas durante a prisão do casal, mas
a repercussão midiática foi considerada um atravessamento e não uma finalidade. O
grupo, que se formou para produzir e difundir informações sobre o caso, assim
alardeando a inocência do casal, não estava interessado em somente em conseguir um
direito de resposta9 nas publicações, tampouco em fazer lobby para a publicação de
matérias de caráter positivo ou esclarecedor. Ou seja, a disputa que se instalou pela
posição de fala não ocorreu no espaço midiático, mas se deu a partir do estar-
junto10,ação social esta que vamos analisar com maior detalhamento na parte final do
artigo. É preciso deixar claro que o movimento “Liberdade ao 8!” surgiu originalmente
no território físico (FIGURA 1), no encontro presencial, diante do bar, portanto, vemos
aí um modelo de comunicação motivado primeiramente pelo vínculo afetivo e pela co-
presença.
Figura 1: Fachada do Bar – FONTE: Google Imagens

9 Direito regido pela Lei nº 13.188/15. FONTE: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-


2018/2015/Lei/L13188.htm.
10 Estar-junto, na definição de Maffesoli, são relações sociais pautadas pelo prazer e pelas afinidades.
Sobre o assunto, ele escreve em seu livro a Transfiguração do Político – A tribalização do mundo (1992):
“É tempo de acordarmos de nossas sonolências dogmáticas. Em particular das que nos impedem de ver
que se as civilizações são mortais, o estar-junto, por sua vez, parece perdurar no tempo. Banalidade
certamente, mas convém leva-la a sério, pois isso pode incitar-nos a compreender a única, possivelmente,
lei irrefutável da vida social: a que dá conta do vaivém incessante estabelecido entre o instituído e o
instituinte. Processo bastante simples da desagregação das estruturas sociais, cujos elementos, parcial ou
totalmente, originarão uma forma nascente” (p. 67).
175

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

É possível analisar também que o “Liberdade ao 8!” foi pautado na sensação de


injustiça, tendo em vista a representação negativa que a mídia local impôs a João e
Karllana. Na visão de Michel Maffesoli (1996), a sensação é um “fator de relação
social” que vai culminar nas “emoções comuns”:
Esse processo obriga-nos a ultrapassar a clássica cesura estabelecida entre o
viver e o pensar ou o viver e o agir. Do mesmo modo, a ação política não
pode continuar a existir, senão quanto ligada aos substratos da sensibilidade
que a fundamentam (MAFFESOLI, 1996, p. 87).

Conforme é exposto no fragmento acima, os substratos de sensibilidade são o


que dão sentido para a ação política e também para a ação comunicativa 11. Não
defendemos que o grupo social deve se fechar em si e viver para si e os seus eventos,
reproduzindo novamente o efeito sectário promovido pelo espetáculo. Defendemos
apenas que eles prescindem de instituições legitimadoras, uma vez que estes
agrupamentos estão ligados mais a uma experiência sensível que se aproxima do
fenômeno descrito por Maffesoli do que a uma busca por visibilidade midiática ou
reconhecimento social.
Além de ter reunido centenas de pessoas em torno desta causa, da libertação de
João e Karllana e a possibilidade de continuação das atividades do bar 12, o “Liberdade
ao 8!”conseguiu sensibilizar interlocutores de grande influência social, como o

11 Muniz Sodré comentou o tema em entrevista para a revista Pensamento Comunicacional Latino
Americano (PCLA), da Universidade Metodista (SP), em 2001: “Muitos dizem que a comunicação não
tem objeto. Eu acho que tem. Para mim hoje é claro. Isso é, na verdade, o assunto do meu próprio livro a
ser lançado pela Editora Vozes e que tem sido tema das minhas aulas e pesquisas nos últimos dois anos,
que é uma teoria da comunicação. Eu acho que o objeto da comunicação é a vinculação social. É como se
dá o vínculo, a atração social, como é que as pessoas se mantêm unidas, juntas socialmente”. FONTE:
http://www2.metodista.br/unesco/PCLA/revista9/entrevista%209-1.htm.
12 Após o ocorrido, o espaço foi fechado por iniciativa dos proprietários no dia 11 de outubro de 2015.
Os ex-frequentadores do 8 Bar se encontram em um evento chamado “Matando a saudade”, que ocorre na
travessa Piedade, em frente ao local que foi invadido pela polícia. O organizador do evento é o ex-gerente
do espaço. Atualmente, o encontro está em sua 9ª Edição (em fevereiro de 2017). Karllana e João se
mudaram para a cidade do Porto, em Portugal, pois têm medo de retaliações dos policiais envolvidos no
caso. FONTE: http://www.outros400.com.br/urubuservando/3896. Acesso em 09 de junho de 2016.
176

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

jornalista Lúcio Flávio Pinto13. Ele fez uma cobertura jornalística diária sobre o caso no
blog do Jornal Pessoal, que é um dos veículos de maior credibilidade na cidade de
Belém. No dia 26 de junho, o jornalista publicou informações adicionais sobre o caso
que até então tinham sido desconsideradas pela grande mídia, como o fato de que os
proprietários já terem relatado sofrer perseguições da polícia, dois anos antes quando
policiais fizeram revistas sem respaldo oficial alegando excesso de barulho apesar de o
bar estar regularizado (PINTO, 2015).
Conforme apurou Lúcio Flávio Pinto, o conflito entre os proprietários do 8 Bar e
a polícia ocorria desde o seu primeiro ano de funcionamento, em 2013. Apesar de ter
todas as licenças e alvarás em dia, o bar foi obrigado a mudar de endereço no início de
2014, por determinação do Departamento de Polícia Administrativa da Polícia Civil
(PC-DPA), que se recusou a emitir a renovação de alvará para a permanência do
estabelecimento na rua Rui Barbosa, no Centro de Belém, seu primeiro endereço. A
principal alegação da diretoria do DPA era de que os vizinhos haviam denunciado o bar
pelo Disque-Denúncia, por excesso de barulho – a veracidade do argumento nunca
poderá ser atestada, uma vez que as ligações para o órgão são anônimas.
Ressaltamos, porém, que o perfil dos frequentadores do 8, que consideravam o
bar um ponto de encontro para o planejamento de manifestações culturais e eventos
polêmicos14 – a maioria deles contra a política cultural do prefeito Zenaldo Coutinho e

13 Vencedor de quatro prêmios Esso e um Wladimir Herzog de Direitos Humanos pelo conjunto da sua
obra em 2012 (na ocasião foram premiados ele e Alberto Dines, editor do Observatório da Imprensa). De
acordo com levantamento do portal Jornalistas & Cia. (2014) é o 75º jornalista brasileiro mais premiado
do país. Foi pioneiro ao escrever a primeira reportagem especial sobre o território amazônico para um
veículo nacional, a revista Realidade (1971). Ex-correspondente do jornal O Estado de São Paulo, o
jornalista atualmente comanda o Jornal Pessoal, iniciativa independente que já dura 28 anos. O Jornal
Pessoal, assim como a perseguição dos latifundiários e políticos paraenses contra o repórter, já virou
matéria nos jornais Le Monde, Whashigton Post, New York Times e Corriere de La Sierra. Lúcio Flávio
também é autor de 21 livros sobre a Amazônia.
14 Para protestar contra a falta de políticas culturais na cidade e ainda para promover a visibilidade
LGBT, o 8 Bar abrigava o evento “Viada Cultural”, cujo nome é inspirado na Virada Cultural de São
Paulo. Mesmo sem o bar, os produtores continuam a realizar a festa, que agora é itinerante e chegou a sua
9ª edição no final de 2016. Além disso, em uma ação mais polêmica ocorrida em maio de 2015, apenas
um mês antes do casal ser preso ilegalmente, o Solar da Beira, prédio histórico abandonado situado no
Complexo Ver-o-Peso, foi ocupado por artistas. A ocupação que exigia a reforma e a transformação do
Solar em um espaço cultural durou cerca de 2 semanas. Os manifestantes se retiraram pacificamente,
depois de longas negociações com a Prefeitura de Belém. A gestão municipal não aprovou o ato,
chegando a ameaçar os participantes com força policial ostensiva no dia 19 de maio, como relatou o
jornalista Lúcio lávio Pinto no blog do Jornal Pessoal: “Esse grupo transformou o Solar num espaço
cultural contestador e crítico. Por ironia, a atenção que atraiu foi a da repressão. Uma força tarefa
municipal, com a participação de guarda fortemente armada, tentou retirá-los no dia 19 para lacrar o
prédio ou devolvê-lo ao seu desmazelo característico dos últimos anos”. É interessante observar que,
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

do governador Simão Jatene (ambos do PSDB) – pode ter contribuído para a


perseguição por parte dos agentes de segurança pública, que não se dava apenas pelas
tentativas de extorsão, mas também pelas abordagens policiais abusivas15.
O estabelecimento, por mais que estivesse regularizado quanto às suas licenças e
funcionasse dentro do que prevê a legislação (respeitando o horário de funcionamento
determinado pela Prefeitura Municipal e ainda utilizando um aparelho contador de
decibéis no interior do bar), era tratado pelas instituições como uma questão policial e
política desde que abriu as portas. O bar funcionava como um território de formação de
discursos, ideias e afetos. Ali, circulavam não só representantes dos movimentos
minoritários, como jornalistas, advogados e artistas. Formava-se uma intelectualidade
de base apta a construir sua própria fala e suas próprias imagens.
Os abusos de autoridade policial que vinham ocorrendo nos últimos anos e o
tratamento do fato pela mídia após a prisão dos dois, gerou a revolta de familiares,
amigos e frequentadores do 8 Bar. Um núcleo ativista se formou no mesmo dia 29, pela
noite, para criar estratégias e manifestações que pudessem colaborar na liberação do
casal. Ainda na noite do dia 29, foi realizada uma intervenção artística no bar, na qual o
grupo fixou cartazes e faixas que denunciavam a ação da polícia (Figuras 2e 3).

Figuras 2 e 3: Cartazes produzidos pelos defensores do bar na noite do dia 29 e capa do


Jornal Pessoal (15/10/2015).

mesmo que o Ocupa Solar não tenha influenciado na ação policial, todo o núcleo-duro da ação era
frequentador do 8 Bar. FONTE: https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2015/05/21/1305/.

15 Em pelo menos duas ocasiões a Polícia Militar buscou flagrante no bar: No dia 26 de outubro de 2013
e no dia 14 de outubro de 2013. As ações policiais foram filmadas e podem ser vistas no canal
www.youtube.com/OitoBar.
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

No dia seguinte, sexta-feira, foi criada a página no acebook “Libertem Karllana


e João”, que reuniu 4.694 pessoas na rede social ao longo do processo de mobilização
até o anuncio do fechamento definitivo do bar, ocorrido em outubro e noticiado pelo
Jornal Pessoal (Figura 3) com uma charge e reportagem de capa. A ideia era alimentar a
plataforma com informações, depoimentos, desenhos e fotografias que mostrassem
Karllana e João em momentos alegres e de afeto (Figura 4), para contrapor às imagens
publicadas no Diário do Pará.

Figura 4: Ilustração publicada na página “Libertem Karllana e João”.


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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Na mesma sexta-feira, ocorreu uma manifestação na qual foi realizado o


minidocumentário “Liberte o 8” (2015), que obteve quase 50 mil visualizações na rede
Youtube. Na ocasião, ficou estabelecido que o bar abriria ao público, mesmo sem a
presença dos proprietários, e que abrir seria uma forma de promover um encontro
cultural e político que daria prosseguimento à denúncia da prisão ilegal e também com a
venda de cerveja, arrecadando recursos para pagar os advogados, que se voluntariaram
na defesa do caso – naquele momento ainda não se esperava o arquivamento do
processo.
De acordo com Michel Maffesoli (1996, p.50), as organizações sociais se dão
basicamente pelo vínculo afetivo. Para ele, “é a partir de emoções, paixões, afetos
específicos, que vamos, a partir de então, pensar e organizar o elo social”. Na visão do
teórico, o território que partilhamos com a tribo se configura em um espaço social vital
de autonomia específica (que não existe e nem cria consciência de si a partir de
instituições), que “constitui o ideal comunitário da socialidade pós-moderna16”
(MAFFESOLI, 1996, p.54).
E estes territórios partilhados com o grupo “nos dispomos a defender, às vezes
violentamente”, pois eles atuam como uma matriz onde o viver junto encontra a sua
expressão natural. Para Maffesoli (1996, p. 54), estes pequenos grupos imediatos ou
pequenas coletividades são entidades espontâneas, anteriores a um nível mais racional
de organização, e que constituem o próprio fundamento de todo o estar-junto. Conforme

16 O autor nos explica a escolha do termo pós-modernidade: “É para descrever a continuidade na


complexidade que muitas vezes utilizarei o termo organicidade, a saber, o que mantém juntos elementos
contrários e até opostos. Daí, a referência ás noções de pós-moderno ou pós-modernidade. Eu disse
noção, com o que isso pode ter de provisório, ou simplesmente de prático, para descrever o que está
sucedendo aos diversos valores que se impuseram progressivamente. Sem entrar num debate estéril sobre
a própria noção, a pós-modernidade seria essa mistura orgânica de elementos arcaicos e de outros um
pouco mais contemporâneos” (1996, p.14).
180

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

argumenta o sociólogo, estas coletividades não procuram mais uma utopia longínqua,
abstrata e estritamente racional, mas uma fragmentação em pequenas utopias
intersticiais vividas, bem ou mal, no dia-a-dia, aqui e agora.
Ao analisar a produção de vínculo no interior destas pequenas coletividades no
qual se fundamenta o estar-junto, é preciso ter em mente que o agrupamento em questão
não pretendia se converter em um movimento social permanente, com atribuições e
missões definidas, isto é, se institucionalizar. A reunião era tão-somente pela vontade de
evidenciar a inocência dos acusados, que eram seus amigos, e retomar o espaço de
convivência que era o bar. Porém, ainda que do ponto vista sociológico o estar-junto
seja o fenômeno mais evidente, isso não deixa de apresentar consequências políticas
práticas, quais sejam a libertação do casal e as retratações na grande mídia.
Para isso, os freqüentadores criaram o movimento para apresentar a sua versão
dos fatos, pois não tiveram espaço na grande mídia, e para trocar informações sobre o
processo judicial em andamento – estabelecendo, porém, um sistema de comunicação
informal e diverso, no qual foi possível produzir e divulgar conteúdos compatíveis com
o propósito do núcleo em meio a manifestações festivas e lúdicas. Com o fechamento
do bar, o movimento de caráter efêmero também se dissolveu.
A ação “Liberdade ao 8!”culminou na construção deste sistema comunicativo
temporário baseado em criação de vínculos, laços de amizade e solidariedade, que
lançou mão da linguagem do documentário, de cartazes, das artes visuais, das
fotografias e de tambores17 para se fazer transmitir a sua mensagem, de que Karllana e
João eram inocentes e vítimas de abuso por parte da autoridade policial e que o 8 Bar
era um espaço político de resistência, de troca de afetos e portanto, deveria permanecer
aberto.
Todas estas formas de comunicação, que possuem linguagens diversas, podem
ser tão técnicas quanto o próprio texto jornalístico ao sustentar os seus pressupostos e
discursos predicativos – mas não quando o estar-junto, ação que dá vida ao espaço
social, é a mola propulsora dos encontros que se realizam em prol da busca de outras
formas de se mobilizar e conviver; aí, imperam o vínculo e os afetos.

17 No dia 27 de junho de 2015, durante a manifestação cultural e abertura do bar, os frequentadores


fizeram uma “batucada” – Festa que envolve instrumentos de percussão, danças e cantorias do folclore
popular e da Música Popular Brasileira (MPB).
181

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Referências (bibliografia)

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FLUSSER, Villém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Editora Hucitec, 1985.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder.São Paulo: Editora Paz e Terra, 2006.

MAFESSOLI, Michel. No Fundo das Aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.

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<http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2015/06/policia-apreende-drogas-e-prende-donos-
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Referências (imagens)

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https://www.google.com.br/maps/uv?hl=pt-
BR&pb=!1s0x55141500dc5de4b:0x40b181d64e9d0f98!2m5!2m2!1i80!2i80!3m1!2i20!
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BNr94l1klKI/VX4pvJG5U5I/AAAAAAAAAC0/g45iRap7q8klsCWZ8VXGOi3tzrZbz
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Tráfico de Drogas em Belém do Pará. São Paulo, 30/06/2015. Revista VICE.
184

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

<https://www.vice.com/pt_br/read/karllana-e-joao-bar-8-belem-para> .Acesso em
09/06/2016.

MATERIAL AUDIOVISUAL
Liberdade ao 8. Autoria desconhecida. Belém, 26/06/2015. (7m00).
<https://www.facebook.com/8livre/?fref=ts>. Acesso em 10/06/2016.
185

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Navegações
186

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Sete teses sobre direitos humanos: parte 2

Costas Douzinas1

Tradutores
Daniel Carneiro Leão Romaguera2, Antonio Henrique Pires dos Santos3Fernanda Frizzo
Bragato4 e Manoel Carlos Uchôa de Oliveira5

Nesta edição, será publicada a tradução das últimas três teses sobre Direitos
Humanos de autoria de Costas Douzinas, denominou-se de “Parte 2” a reunião dos
textos: “ (5) Despolitização”; “ (6) Desejo”; “ (7) Cosmopolitismo, igualdade &
resistências”. As “Seven Theses on Human Rights” foram publicadas originalmente no
site da Critical Legal Thinking. No presente escrito, os textos traduzidos estão dispostos
integralmente em sequência, no intuito de preservar o formato de publicação original.
Quanto as quatro primeiras teses, estão publicadas na edição de nº 48, 2016.2, da
Revista Lugar Comum.

1
Costas Douzinas é professor de direito e diretor do Instituto de Humanidades de Birkbeck, na
Universidade de Londres. Também é professor visitante nas Universidades de Atenas, Paris, Tessalônica e
Praga. Traduzido ao português, tem publicado O fim dos direitos humanos (Unisinos: 2009).
2
Doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-RIO e Mestre em Jurisdição e
Direitos Humanos pela UNICAP/PE, membro dos Grupos de Pesquisa Jurisdição Constitucional,
Democracia e Constitucionalização de Direitos, Pós-colonialidade e Integração Latino-Americana e
Teoria Crítica do Direito. E-mail: danielromaguera@hotmail.com.
3
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Mestrando em Ciência Política
pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Bolsista FACEPE. E-mail: antonio.hps26@gmail.com.
4
Mestre e Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, com período de estágio
doutoral na
University of London (Birkbeck College) (2009) e pós-doutorado na University of London (School of
Law - Birkbeck College) (2012). Atualmente é professora do Programa de pós-graduação e graduação em
Direito da Unisinos e Coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos.
5
Doutorando no PPGCJ-UFPB. Professor Assistente I na Unicap. E-mail: manoel.cuo@gmail.com.
187

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Sete Teses sobre Direitos Humanos: (5) despolitização 1

Tese 5: Nas sociedades capitalistas avançadas, os direitos humanos despolitizam a


política.

Os direitos formam o terreno em que as pessoas são distribuídas entre


governantes, governados e excluídos. O modo de operação do poder é revelado se
observarmos quais pessoas são agraciadas ou privadas de quais direitos em qual lugar
específico e momento. Nesse sentido, os direitos humanos escondem e afirmam a
estrutura dominante de um período tanto quanto ajudam a combatê-la. Marx foi o
primeiro a perceber a natureza paradoxal dos direitos. Os direitos naturais surgiram
como um símbolo de emancipação universal, mas foram ao mesmo tempo uma arma
poderosa nas mãos da classe capitalista em ascensão, assegurando e naturalizando as

1
Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado na página da “Critical Legal
Thinking” no dia 31 de maio de 2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/05/31/seven-
theses-on-human-rights-5-depoliticization/
188

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

emergentes relações dominantes econômicas e sociais. Eles foram usados para retirar do
desafio político as instituições centrais do capitalismo, como a religião, a propriedade,
as relações contratuais e a família, proporcionando assim a melhor proteção possível. As
ideologias, os interesses privados e as preocupações egoístas aparentam ser naturais,
normais e vocacionadas ao bem público quando encobertos pelo vocabulário dos
direitos. Como disse Marx, de forma inigualável, “liberdade, igualdade, propriedade e
Bentham”2.
Os direitos humanos inicialmente foram vitórias históricas de grupos e
indivíduos contra o poder do Estado, mas ao mesmo tempo promoveram um novo tipo
de dominação. Como Giorgio Agamben argumenta, eles “simultaneamente prepararam
uma inscrição tácita, mas crescente, da vida dos indivíduos dentro da ordem estatal,
oferecendo assim uma base nova e mais terrível para o mesmo poder soberano do qual
eles queriam se libertar”3. No capitalismo tardio, com seu regulamento biopolítico
proliferante, a multiplicação sem fim de direitos paradoxalmente aumentou o poder
investido nos corpos.
Se os direitos naturais clássicos protegiam a propriedade e a religião tornando-as
"apolíticas", o principal efeito dos direitos hoje é despolitizar a própria política.
Permitam-me introduzir uma distinção fundamental na filosofia política recente entre a
política (la politique) e o político (le politique). De acordo com Chantal Mouffe, a
política é o terreno da vida política rotineira, da atividade de debater, dos lobbys e das
negociatas que são realizadas ao redor de Westminster e Capitol Hill4. O “político”, por
outro lado, refere-se à forma pela qual o laço social é instituído e concerne às fendas
profundas da sociedade. O político é a expressão e articulação da irredutibilidade do
conflito social. A política organiza as práticas e instituições pelas quais a ordem é
criada, normalizando a co-existência social no contexto do conflito fornecido pelo
político.
Esse antagonismo profundo é o resultado da tensão em meio ao corpo social
estruturado, onde cada grupo tem seu papel, sua função e seu lugar, e o que Jacques
Rancière chamou de "a parte de nenhuma parte”. Os grupos que foram radicalmente

2
Karl Marx, Capital, Volume One (Harmondsworth: Penguin, 1976), 280
3
Giorgio Agamben, Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life (Stanford University Press, 1998), 121.
4
Chantal Mouffe, On the Political (London: Routledge, 2005), 8–9.
189

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

excluídos da ordem social; eles são invisíveis, estão fora do senso estabelecido do que
existe e é aceitável. A política própria irrompe somente quando uma parte excluída
demanda ser incluída e devem mudar as regras de inclusão para se alcançar isso.
Quando possuem sucesso, um novo sujeito político é constituído, em excesso ao grupo
de grupos hierarquizado e visível, e uma divisão é colocada no senso comum pré-
existente5.
Qual é o papel dos direitos humanos nessa divisão entre a política e o político? A
demanda de direitos reforça mais do que desafia os arranjos estabelecidos. O requerente
aceita o poder estabelecido e as ordens de distribuição e transforma sua reivindicação
política em uma demanda de admissão à lei. O papel da lei é transformar as tensões
sociais e políticas em um conjunto de problemas solucionáveis regulados pelas leis e
entregá-los aos especialistas da lei. O requerente de direitos é o oposto do
revolucionário das primeiras declarações, cuja tarefa era mudar o arranjo geral da lei.
Nessa medida, suas ações abandonam o compromisso inicial de direitos, de resistir e de
se opor à opressão e à dominação. Os sujeitos “excessivos”, que representam o
universal de uma posição de exclusão, foram substituídos por grupos sociais e
identidades em busca de reconhecimento e redistribuição limitada.
Na nova ordem mundial, as reivindicações de direitos dos excluídos são
enclausuradas por meios políticos, jurídicos e militares. Migrantes econômicos,
refugiados, prisioneiros da guerra ao terror, os sans papiers, habitantes de
acampamentos africanos, esses “humanos de um só uso" são a precondição
indispensável aos direitos humanos, mas, ao mesmo tempo, são as provas vivas, ou
melhor, mortas, de sua impossibilidade. As lutas bem-sucedidas de direitos humanos
sem dúvida melhoraram a vida das pessoas pelos rearranjos marginais das hierarquias
sociais e redistribuições não ameaçadoras do produto social. Mas seu efeito despolitiza
o conflito e remove a possibilidade de mudança radical.
Podemos concluir que as demandas de direitos humanos e suas lutas trazem à
superfície a exclusão, a dominação e a exploração, e também a inescapável contenda

5
Jacques Rancière, Disagreement. trans. Julie Rose (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1998);
“ ho is the Subject of the Rights of Man?” in “And Justice for All?” Ian Balfour and Eduardo Cadava,
special issue, eds., South Atlantic Quarterly, 103, no. 2–3 (2004), 297.
190

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

que permeia a vida social e política. Mas, ao mesmo tempo, escondem as raízes
profundas da contenda e da dominação ao enquadrar a luta e a resistência em termos de
remédios legais e individuais, que, se bem-sucedidos, levam a pequenas melhorias
individuais e ao rearranjo marginal do edifício social.
Podem os direitos humanos reativar uma política de resistência? A ligação
intrínseca entre direitos naturais, transcendência (religiosa) e radicalismo político abriu
essa possibilidade. Ela ainda está ativa em partes do mundo não integralmente
incorporadas pelas operações biopolíticas de poder. Mas é só isso. A metafísica de nossa
época é a desconstrução da essência e do significado, o fechamento da divisão entre o
ideal e o real, a sujeição do universal ao particular dominante. A globalização
econômica e o monolinguismo semiótico estão realizando essa tarefa na prática; seus
intelectuais apologistas o fazem na teoria. O dever político e moral da crítica é manter
aberta a fenda e descobrir e lutar pela transcendência na imanência.
191

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Sete Teses sobre Direitos Humanos: (6) Desejo 1

Tese 6: Nas sociedades capitalistas avançadas, os direitos humanos funcionam como


estratégias para a publicização e legalização do (insaciável) desejo individual.

As teorias liberais, de Immanuel Kant a John Rawls, apresentam o self como


uma entidade solitária e racional, dotado de características e direitos naturais e com o
controle total de si mesmo. Os direitos à vida, à liberdade e à propriedade são
apresentados como parte integrante do bem-estar da humanidade. O contrato social (ou

1
Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado na página da “Critical Legal
Thinking” no dia 03 de junho de 2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/06/03/seven-
theses-on-human-rights-6-desire/
192

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

sua atualização heurística pela "posição originária") cria sociedade e governo, mas
preserva esses direitos e os torna obrigatórios para o governo. Os direitos e os atuais
direitos humanos são pré-sociais, pertencem aos seres humanos precisamente porque
são seres humanos. Nós usamos esse patrimônio natural como ferramentas ou
instrumentos para enfrentar o mundo exterior, para defender os nossos interesses e
perseguir nossos planos de vida.
Essa posição é fortemente contrastada pela dialética hegeliana e marxista,
hermenêutica e psicanálise. O self humano não é uma entidade estável e isolada que,
uma vez formada, vai para o mundo e age de acordo com motivos e intenções pré-
estabelecidos. O self é criado pelas interações constantes com outros, o sujeito é sempre
intersubjetivo. A minha identidade é construída em diálogo contínuo e luta por
reconhecimento, na qual os outros (tanto pessoas como instituições) reconhecem certas
características, atributos e feições como meus, ajudando a criar minha própria noção de
self. A identidade emerge dessa conversa e luta com os outros, que segue a dialética do
desejo. A lei é uma ferramenta e efeito dessa dialética; os direitos humanos reconhecem
o papel constitutivo do desejo.
A ideia básica de Hegel pode ser colocada de forma simples. O self é distinto e
também dependente do mundo externo. A dependência em relação ao não-Eu, tanto o
objeto quanto outra pessoa, faz com que o self perceba que ele não é completo, mas
carente e constantemente conduzido pelo desejo. A vida é uma luta contínua para
superar a estranheza da outra pessoa ou coisa. A sobrevivência depende de ultrapassar
essa divisão radical do não-Eu, mantendo a sensação de unicidade do self2.
A identidade, portanto, é dinâmica, sempre em movimento. Estou em diálogo
contínuo com os outros, numa conversa que modifica os outros e redesenha minha
própria autoimagem. Os direitos humanos não pertencem aos seres humanos e não
seguem os ditames da humanidade; eles constroem os seres humanos. Um ser humano é
alguém que pode reivindicar com êxito direitos humanos e o grupo de direitos que
determina o quão "humano" nós somos; nossa identidade depende da quantidade de
direitos que podemos mobilizar com sucesso nas relações com os outros. Se este for o
caso, os direitos devem estar vinculados a funções e necessidades psicológicas

2
Costas Douzinas, “Identity, Recognition, Rights or hat Can Hegel Teach Us About Human
Rights?” Journal of Law and Society 29 (2002), 379–405.
193

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

profundas. Do alto da dialética hegeliana, passemos ao muito mais obscuro território da


psicanálise freudiana.
Jus institutare vitam, a lei constitui a vida, diz uma máxima romana. Para a
psicanálise isso permanece verdade. Nós nos tornamos independentes e sujeitos falantes
quando inseridos na ordem simbólica da linguagem e da lei. Mas esta primeira
"castração simbólica" deve ser suplementada por uma segunda que nos faz sujeitos
legais. Ela nos introduz no contrato social, deixando para trás a vida familiar de
proteção, amor e cuidado. A ordem simbólica nos impõe as exigências da vida social.
Deus, Rei ou o Soberano atuam como pais universais, representando um poder social
onipotente e unitário que nos coloca na divisão social do trabalho. Se, de acordo com
Jacques Lacan, o nome do pai nos faz sujeitos falantes, o nome do Soberano nos
transforma em sujeitos legais e cidadãos.
Esta segunda entrada na lei denega, como a castração simbólica, a totalidade
percebida de intimidade familiar e a substitui por reconhecimentos parciais e direitos
incompletos. Os direitos, por sua natureza, não podem atingir a totalidade da pessoa. Na
lei, uma pessoa nunca é um ser completo, mas uma persona, ritual ou máscara teatral,
que esconde seu rosto sob uma combinação de direitos parciais. O sujeito legal é uma
combinação de direitos e deveres sobrepostos e conflitantes; eles são a bênção e a
maldição da lei. Os direitos são manifestações de desejo individual, assim como
ferramentas de integração social. Seguindo a divisão lacaniana padrão, os direitos têm
aspectos “simbólicos”, “imaginários” e “reais”. A função simbólica nos coloca na
divisão social do trabalho, na hierarquia e na exclusão, o imaginário nos dá uma (falsa)
sensação de totalidade e o real rompe os prazeres do simbólico e as falsificações do
imaginário. A Psicanálise oferece a explicação mais avançada sobre o constitutivo e
contraditório trabalho dos direitos.
A função simbólica dos direitos esculpe a personalidade jurídica e traz as
pessoas para a independência, longe da intimidade da família. Leis e direitos constroem
uma estrutura formal que nos dá um lugar em uma matriz de relações estritamente
indiferentes às necessidades ou desejos das pessoas de carne e sangue. Os direitos legais
oferecem o reconhecimento mínimo de humanidade abstrata, de equivalência formal e
de responsabilidade moral, independentemente das características individuais. Ao
mesmo tempo, colocam as pessoas em uma grade de papéis e funções distintas e
194

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

hierarquizadas, proibições, direitos e exclusões. Os direitos sociais e econômicos


adicionaram uma camada de diferença à semelhança abstrata; eles reconhecem gênero,
raça, religião e sexualidade, em parte movendo o reconhecimento da igualdade abstrata
da humanidade para as diferentes qualidades, características e predicações. Os direitos
humanos podem prometer a felicidade universal, mas sua existência empírica e
aplicação dependem de genealogias, de hierarquias de poder e de contingências que
alocam os recursos necessários ignorando expectativas e necessidades. O sujeito legal
que os direitos e deveres constroem se assemelha a uma caricatura do self humano real.
Sua face foi substituída por uma imagem de estilo cubista; o nariz sai da boca, os olhos
salientes nas laterais, testa e queixo estão invertidos. Projeta-se um objeto
tridimensional em uma tela plana.
A integridade do self negada pela ordem simbólica dos direitos retorna no
imaginário. Os direitos humanos prometem o fim do conflito, a paz social e o bem-estar
(a busca por felicidade foi uma promessa inicial da Declaração de Independência
americana). Uma sociedade de direitos oferece um lugar ideal, um palco e um
suplemento para o ego ideal. Como um homem de direitos, eu me vejo como alguém
com dignidade, respeito e respeito próprio, em paz com o mundo. Uma sociedade que
garanta direitos é um bom lugar, pacífica e próspera, uma ordem social feita para o
indivíduo que está em seu centro. Um sistema legal que protege os direitos é
racionalmente coerente e fechado (Ronald Dworkin chama de "rede sem costura"),
moralmente bom (ele tem princípios e as consequentes respostas "certas" para todos os
problemas “difíceis”) e pragmaticamente eficiente.
O domínio imaginário dos direitos cria um vínculo imediato,
visualizado/pintado/visto como uma imagem e imaginado entre o sujeito, o seu ego
ideal e o mundo. Os direitos humanos projetam uma fantasia de completude, que une
corpo e alma em um self integrado. É um self belo que se encaixa em um mundo bom,
uma sociedade feita para o sujeito. A completude antecipada, a integridade futura
projetada que sustenta a atual identidade é no entanto inexistente e impossível, e, além
disso, difere de pessoa para pessoa e de comunidade para comunidade. Nossa
identificação imaginária com uma boa sociedade aceita muito facilmente que a
linguagem, os signos e as imagens dos direitos humanos são (ou podem tornar-se) a
nossa realidade. As pessoas afirmam que o direito ao trabalho existe uma vez que está
195

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

escrito na Declaração Universal, nos Pactos Internacionais, na Constituição, na lei e nos


pronunciamentos de políticos. Bilhões de pessoas não têm comida, emprego, educação,
ou atendimento a saúde – mas esse fato brutal não enfraquece a afirmação do ideal. A
substituição necessária da materialidade por sinais, das necessidades e desejos por
palavras e imagens faz com que as pessoas acreditem que a mera existência de textos e
instituições legais, com pouco desempenho ou ação, afeta e completa seus corpos.
O imaginário promovido pelos entusiastas dos direitos humanos apresenta um
mundo feito para minha proteção, em que a lei encontra (ou deve e vai atender) meus
desejos. Essa identificação feliz com o sistema social e jurídico é baseada em um falso
reconhecimento. O mundo é indiferente ao meu ser, a minha felicidade ou as minhas
angústias. A lei não é coerente ou justa. A moralidade não é o negócio da lei e a paz é
sempre temporária e precária, nunca perpétua. O estado de eu zein ou bem-estar, o ponto
final dos direitos humanos, é sempre diferido, sua promessa postergada e seu
desempenho impossível. Para as classes médias, sem dúvidas, os direitos humanos são
direitos de nascimento e patrimônio. Para os desafortunados do mundo, por outro lado,
são apenas vagas promessas, suportes falsos para oferecer obediência, com sua entrega
permanentemente frustrada. Como o céu do cristianismo, os direitos humanos
constituem um horizonte recuado que permite que as pessoas suportem humilhações e
subjugações diárias.
O imaginário dos direitos está substituindo gradualmente a justiça social. As
lutas pela descolonização, os movimentos de direitos civis e contracultura lutaram por
uma sociedade ideal baseada na justiça e igualdade. Na era dos direitos humanos, a
busca pelo bem-estar material coletivo deu lugar à gratificação individual e à
necessidade de evitar o mal. O imaginário dos direitos vai à exaustão quando transforma
imagens em “realidade”, quando cláusulas legais e termos substituem comida e abrigo,
quando as palavras de doninhas se tornam a feição e a garra do poder. Os direitos
enfatizam o indivíduo, a sua autonomia e o seu lugar no mundo. Como todas as
identificações imaginárias, eles reprimem o reconhecimento de que o sujeito é
intersubjetivo e de que a ordem econômica e social é estritamente indiferente ao destino
de qualquer indivíduo em particular. De acordo com Louis Althusser, a ideologia não é
"falsa consciência", mas é feita de formas de vida, de práticas e de experiências que
reconhecem erroneamente o nosso lugar no mundo. É “a relação imaginária dos
196

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

indivíduos com suas condições reais de existência”. Nesse sentido, os direitos humanos
são ideologia em seu ponto mais forte, mas muito diferente daquela de Michael
Ignatieff3.
Finalmente, a operação simbólica e imaginária dos direitos encontra seu limite
no real. Nós circulamos em torno do vórtice do real: a falta no núcleo da subjetividade
tanto faz com que os nossos projetos falhem como cria o impulso para continuar o
esforço. Quando fazemos uma demanda, não só pedimos para que o outro satisfaça uma
necessidade, mas também que nos ofereça amor sem reservas. Uma criança que pede
pelo seio da mãe precisa de comida, mas também pede atenção e amor da mãe. O desejo
é sempre o desejo do outro e significa precisamente o excesso de demanda sobre a
necessidade. Cada vez que a minha necessidade de um objeto entra na linguagem e
endereça ao outro, há a exigência por reconhecimento e amor. Contudo, essa demanda
por totalidade e reconhecimento irrestrito não pode ser satisfeita pelo grande Outro (a
linguagem, a lei, o Estado) ou por outra pessoa. O grande Outro é a causa e o símbolo
da falta. A outra pessoa não pode oferecer o que o sujeito não tem porque ela também
está em falta. Em nosso apelo para o outro, nós nos deparamos com a falta, uma falta
que não pode ser suprida nem totalmente simbolizada.
Os direitos nos permitem expressar nossas necessidades pela linguagem ao
formulá-las enquanto demandas. A reivindicação de direitos humanos envolve duas
demandas endereçadas ao outro: um pedido específico em relação a um aspecto da
personalidade ou do status do requerente (tal como ser deixado em paz, não sofrer
violação de sua integridade física e ser tratado de forma igualitária), mas, além disso,
uma demanda muito mais ampla de ter uma identidade completa reconhecida em suas
características específicas. Quando uma pessoa de cor alega, por exemplo, que a
rejeição de um pedido de emprego configura uma negação de seu direito humano a não
discriminação, ela faz duas afirmações relacionadas, mas relativamente independentes.
A rejeição é, simultaneamente, uma negação injusta da necessidade de emprego do
candidato e uma violação da sua identidade mais ampla. Cada direito, portanto,
relaciona a necessidade de uma parte do corpo ou da personalidade com o que excede a
necessidade, o desejo do reclamante ser reconhecido e amado como uma pessoa inteira
e completa.
3
Michael Ignatieff, Human Rights as Politics and Ideology(Princeton and Oxford: Princeton University
Press, 2001).
197

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

O sujeito dos direitos tenta encontrar o objeto perdido que irá preencher a falta e
transformá-lo em um ser integralmente completo no desejo do outro. Mas esse objeto
não existe e nem pode ser possuído. Os direitos oferecem a esperança de que o sujeito e
a sociedade possam se tornar um todo: “Se apenas aos meus atributos e características
fosse conferido reconhecimento legal, eu seria feliz”; “Se ao menos as exigências de
dignidade humana e igualdade fossem plenamente aplicadas, a sociedade seria justa”.
Mas o desejo não pode ser preenchido. Os direitos se tornam um suplemento fantástico
que estimula, mas nunca sacia o desejo dos sujeitos. Os direitos sempre provocam mais
direitos. Eles levam a novas áreas de reclamações e reconhecimento que sucessivamente
se provam insuficientes.
Hoje os direitos humanos se tornaram a marca de civilidade, porém seu sucesso
é limitado. Nenhum direito pode me dar o pleno reconhecimento e o amor do outro.
Nenhuma declaração de direitos pode completar a luta por uma sociedade justa. De fato,
quanto mais direitos são introduzidos, maior a pressão para que se legisle mais, para que
os aplique melhor, para transformar a pessoa em um coletor infinito de direitos e a
humanidade em um mosaico interminavelmente proliferante de leis. A lei continua a
colonizar a vida e o mundo social, enquanto a espiral sem fim de mais direitos,
aquisições e posses alimenta a imaginação do sujeito e domina o mundo simbólico. Os
direitos se tornam a recompensa pela falta psicológica e impotência política. Direitos
plenamente positivados e os desejos legalizados extinguem o potencial de autocriação
dos direitos humanos. Passam a ser o sintoma de um desejo que tudo devora - sinal do
Soberano ou do indivíduo - e ao mesmo tempo a sua cura parcial. Em uma virada
estranha e paradoxal, quanto mais direito temos, mais inseguros nós nos sentimos.
Entretanto, há um direito que está intimamente ligado com o real de desejo
radical: o direito à resistência e à revolta. Este direito está perto da pulsão de morte, da
chamada reprimida de transcender as distribuições da ordem simbólica e os prazeres
gentis do imaginário, para algo mais próximo de nosso destrutivo e criativo núcleo
interior. Assumir riscos e não desistir de seus desejos é a chamada ética da psicanálise.
A resistência e a revolução são seus equivalentes sociais. Da mesma forma que o real
198

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

impossível e repudiado organiza a psique, o direito de resistência forma o vazio no


coração do sistema de direito, protegendo-o da esclerose e da ossificação4.
Nós podemos concluir que os direitos versam sobre reconhecimento (simbólico)
e distribuição (imaginária); exceto que há um direito à resistência/revolta.

4
Costas Douzinas, “Adikia: On Communism and Rights,” in The Idea of Communism Costas Douzinas
and Slavoj Žižek eds (London: Verso, 2010), 81–100. Also available on Critical Legal
Thinking: http://criticallegalthinking.com/2010/11/30/adikia-on-communism-and-rights/
199

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Sete Teses sobre Direitos Humanos: (7) Cosmopolitismo, igualdade &


resistência 1

Tese 7: Por um cosmopolitismo por vir (ou a ideia de comunismo).

László Moholy-Nagy (1927)

Contra a arrogância imperial e a ingenuidade cosmopolita, devemos insistir que


o capitalismo neoliberal global e os direitos humanos para exportação fazem parte do
mesmo projeto. Os dois devem ser desacoplados; os direitos humanos podem contribuir
pouco para a luta contra a exploração capitalista e a dominação política. A sua
1
Tradução do texto de autoria do Professor Costas Douzinas publicado na página da “Critical Legal
Thinking” no dia 13 de junho de 2013. Link de acesso: http://criticallegalthinking.com/2013/06/13/seven-
theses-on-human-rights-7-cosmopolitanism-equality-resistance/
200

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

promoção pelos Estados ocidentais e humanitários os transforma em um paliativo: útil


para uma proteção limitada dos indivíduos, mas que pode enfraquecer a resistência
política. Os direitos humanos podem retomar o seu papel redentor nas mãos e
imaginação de quem os remete à tradição de resistência e de luta contra os pregadores
do moralismo, da humanidade sofredora e da filantropia humanitária.
A igualdade liberal como princípio regulador falhou em fechar a lacuna entre
ricos e pobres. Equidade deve se tornar um pressuposto axiomático: as pessoas são
livres e iguais; igualdade não é o efeito, mas a premissa da ação. Aquilo que denega esta
verdade simples gera um direito e dever de resistência. A equidade de direitos legais
constantemente apoiou a desigualdade; a igualdade axiomática (cada pessoa conta como
uma em todos os grupos relevantes) é a fronteira impossível da cultura de direitos. Isso
significa que a assistência à saúde é devida a todos que dela precisam,
independentemente dos meios; os direitos de residência e trabalho pertencem a todos
que se encontrem em qualquer parte do mundo, independentemente da nacionalidade; as
atividades políticas podem ser livremente realizadas por todos, independentemente da
cidadania e contra as proibições explícitas da lei de direitos humanos.
A combinação do direito à resistência e igualdade axiomática projeta uma
humanidade em oposição ao individualismo universal e ao fechamento comunitário. Na
era da globalização e da mundialização, sofremos de uma pobreza de mundo. Cada um
de nós é um cosmos, mas já não temos um mundo, apenas uma série de situações
desconexas. Cada um é um mundo: um nó de eventos passados e histórias, pessoas e
encontros, desejos e sonhos. Este é também o ponto de ekstasis, de se abrir e afastar,
imortais em nossa mortalidade, simbolicamente finita, mas com imaginação infinita. Os
capitalistas cosmopolitas prometem nos fazer cidadãos do mundo sob uma soberania
global e uma humanidade bem definida e terminal. Esta é a universalização da falta de
mundo, o imperialismo e o empirismo nos quais todo cosmopolitismo recai.
Contudo, não devemos desistir do impulso universalizante do imaginário, do
cosmos que arranca a polis, que perturba toda filiação e contesta toda soberania e
hegemonia. A resistência e a igualdade radical mapeiam o domínio imaginário dos
direitos que é estranhamente próximo da utopia. De acordo com Ernst Bloch, o presente
prenuncia um futuro que ainda não é, e que, acrescenta-se, nunca será possível. A
projeção futura de uma ordem em que o homem não é mais um “ser degradado,
201

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

escravizado, abandonado ou desprezado” liga as melhores tradições do passado a uma


poderosa "reminiscência do futuro"2. Isso perturba o conceito linear do tempo e, como a
psicanálise, imagina o presente na imagem de um belo futuro prefigurado, o qual, no
entanto, nunca virá a ser. Nesse sentido, o domínio imaginário é necessariamente
utópico e não-existente. No entanto, este não lugar ou este nada são a base da nossa
noção de identidade, da mesma forma que a utopia ajuda a criar uma noção de
identidade social. Nós redescobrimos na Tunísia e na Praça Tahrir, na Puerta del Sol de
Madri e na Praça Syntagma de Atenas o que vai além e contra o cosmopolitismo liberal,
o princípio do seu excesso. Esta é a promessa do cosmopolitismo por vir - ou a ideia de
comunismo3.
O cosmopolitismo por vir não é o terreno das nações, nem uma aliança de
classes, embora seja desenhado a partir do tesouro da solidariedade. A insatisfação com
a nação, com o Estado e com o inter-nacional vem de um vínculo entre singularidades, o
que não pode ser transformado em essência de humanidade, nação ou Estado. O cosmos
por vir é o mundo de cada um único, de qualquer um; a polis, o infinito encontro de
singularidades. O que me liga a um palestino, a um migrante sans papiers ou a um
jovem desempregado não é pertencer à humanidade, à nação, ao Estado ou à
comunidade, mas um vínculo que não pode ser contido nas interpretações dominantes
da humanidade, do cosmos, da polis ou do estado.
A lei, princípio da polis, prescreve o que constitui uma ordem razoável, ao
aceitar e validar algumas partes da vida coletiva, enquanto proíbe e exclui outras,
tornando-as invisíveis. A lei e os direitos são o elo da linguagem com as coisas ou seres;
nomeiam o que existe e condenam o resto à invisibilidade e à marginalidade. Enquanto
decisão formal e dominante sobre a existência, a lei carrega um enorme poder
ontológico. O desejo radical, por outro lado, é a saudade do que foi banido e declarado
impossível pela lei; o que confronta catástrofes passadas e incorpora a promessa de um
futuro.
O axioma da igualdade e o direito à resistência preparam sujeitos militantes na
luta permanente entre justiça e injustiça. Esse estar junto de singularidades em

3
Ernst Bloch, Natural Law and Human History trans. J.D. Schmidt (Cambridge Mass.: MIT Press, 1988),
xxviii.
202

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

resistência é construído aqui e agora, com amigos e estranhos, em atos de hospitalidade,


nas cidades de resistência, Cairo, Madri, Atenas.
203

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Por uma nova compreensão de cidade: o poder comum de agir e as


histórias de vida de Mangueira

Lúcia Ozório1

Resumo
Buscamos uma nova compreensão da cidade que trabalha pela centralidade das
periferias, com novos modos de resistência, novas formas de antagonismos em que um
poder comum de agir na cidade marca um processo em que se evidencia a biopolítica.
As concepções de Antonio Negri sobre o comum, inspirado em Michel Foucault e Gilles
Deleuze, contribuem para compreender a resistência como biopotência. A história oral
de vida em comum, como dispositivo de pesquisa, aprofunda esta perspectiva refletindo
sobre uma memória comum como crítica em ato à violência contra as diferenças.
Buscamos dar formas a subjetividades, terreno fundamental das lutas políticas, que se
aliem às urgências de um comum no presente. As experiências de vida como diferentes
modos de ser, estar e agir no mundo enriquecem esta discussão.

Palavras-chaves
Cidade; comum; biopolítica; subjetividade; história oral de vida em comum.

Résumé
Nous cherchons une nouvelle compréhension de la ville qui travaille pour la centralité
des périphéries, avec de nouveaux modes de résistance, de nouvelles formes
d´antagonismes dans lesquels un pouvoir commun d´agir marque un processus mettant
en évidence la biopolitique. Les conceptions d`Antonio Negri sur le commun inspirées
de Michel Foucault et Gilles Deleuze contribuent à comprendre la résistance comme
biopuissance. L´histoire orale de vie en commun, comme dispositif de recherche,
approfondie cette perspective réfléchissant sur une mémoire commune comme critique
en acte à la violence contre les différences. Nous cherchons à donner des formes aux
subjectivités, terrain fondamental des luttes politiques, qui s´allient aux urgences d´un
1
Pesquisadora do laboratório Experience, França - Universidades Paris 8 e Paris 13-Nord); Laboratório
Lipis - Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social, PUC. Membro do GT Psicologia
Comunitária – Anpepp E-mail: lozorio@gmail.com
204

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

commun au présent. Les expériences de vie comme différents modes d´être, d´agir dans
le monde enrichissent cette discussion.

Mots – clés
Ville; commun; biopolitique; subjectivité; histoire orale de vie en commun.

Ano de 2003 – “[...]“A gente vai contar as histórias das rezadeiras, das criadoras de
porco, das verdureiras (....). A gente vai contar as histórias da gente daqui. A
Mangueira está precisando disso.”
(Celso, morador da comunidade da Mangueira. In: Ozório, 2016: 31).

Ano de 2010 – “... comi o pão que o diabo amassou com o rabo” ...”. Tinha dia que a
minha tia não tinha nada pra dar pra gente, a gente comia só o pó do fubá cozido na
água... Sem sal, sem tempero, sem nada... Hoje, tem arroz, tem feijão, tem às vezes uma
carne,..”
(D. Mena, moradora da comunidade da Mangueira. In: Ozório, 2012).

Introdução

Este artigo se inspira nas pesquisas que realizamos com a comunidade de Mangueira
no Rio de Janeiro, desde 2003 (Ozório, 2014; 2016). Interessamo-nos por um poder
comum de agir na cidade, em mutação, uma política do comum, considerando a história
oral de vida em comum como nosso dispositivo de trabalho. Na cidade em devir se há
um combate a ser travado, seu alvo principal é a polaridade ordem/desordem. Trata-se
de combate ao regime identitário da cidade partida, o do asfalto – favela, o que não
implica buscar uma pulverização generalizada da cidade, nem muito menos ideários de
cidade - asfalto com opiniões prontas de cidade, imagens a priori, clichês que querem a
discriminação e criminalização das periferias. Diríamos que uma nova compreensão da
cidade trabalha pela centralidade das periferias, ou melhor, pela compreensão das
cidades sempre se fazendo, com novos modos de resistência, novas formas de
antagonismos num processo em que se evidencia a biopolítica. Como diz A. Negri
(2010: 208), movimentos de liberdade não podem estar separados da metrópole que “...
nasce da construção e reconstrução que a cada dia ela opera sobre si mesma e de si
205

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

mesma.”. Nestes movimentos o autor releva o comum, trazendo uma compreensão da


cidade com seus novos modos do viver e do agir – comuns.
São muitas as forças que atravessam a cidade em devir. Neste artigo, voltamo-
nos para as vozes – histórias, forças da comunidade de Mangueira (Ozório, 2016). Nesta
comunidade, um comum, potência que trabalha, movimenta a cidade, através de vozes
múltiplas, diversas, que engendram / se engendram, se expressam (Calvino, 1990;
Ozório, 2008). São vozes – histórias que maquinam por cidades - mundos em que não
se perdeu tanto a solidão – um último reduto de dignidade - quanto a vida social. Não se
trata de cidades – mundos em que o que restou é o individualismo da sociedade de
massas.
Neste artigo, buscamos registrar estas vozes da cidade que fala/age de várias
maneiras. Relevamos diferentes experiências de vidas dos moradores de Mangueira, no
Rio de Janeiro, modos de ser, estar, agir relatados através das suas histórias tecidas em
comum. Caminhamos por regiões fecundas entre história e história oral e história oral de
vida, em comum e comunidade e interculturalidade e cidade. São vozes-histórias que
dão formas aos desejos da cidade, multiplicando demandas, espessando indignações,
esmiuçando caminhos que permitam enxergar o que possa parecer opaco ou impossível
(Calvino, 1990; Pelbart, 2013) .
Registramos uma inquietação: como fazer para que a cidade possa reinventar
suas coordenadas de enunciação e dar formas a subjetividades que se aliem às urgências
de um comum no presente? (Ozório, 2016; 2014; Delory- Momberger &Niewiadowski,
2009). Esta inquietação convida a que nos adentremos na problemática da biopotência
que atravessa o entendimento do comum que discutimos neste artigo, ou seja, de um
poder comum de agir que prioriza o poder da vida, o poder político que esta tem de (se)
criticar, de construir, de transformar (Negri, 2003).
Face a uma globalização como perda de mundo, como imundo, in-mundo,
imundialização, como diz Nancy (2002), as histórias de vida dos moradores de
Mangueira abrem-se à multiplicadade dos mundos possíveis, ou melhor, à criação de
mundo, proliferação ontológica e axiológica, transvaloração de todos os valores. Temos
acesso à alma do morro, realidade partilhada bem distante das representações que
criminalizam e discriminam as periferias.
206

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Alguns chamariam isto de um comunismo, imanente, terreno da biopolítica,


sempre em construção, em que se percebe que embora o capital explore a vida, a
atividade humana, na sua potência, como trabalho imaterial e agenciamento de
singularidades maquina pela construção do comum (Negri, 2011:199-213).

O comum como potência produtiva

Inspiramos-nos para desenvolver nossa cadeia argumentativa em textos de


Antonio Negri. Percebemos no pensamento negriano um Foucault e um Deleuze
problematizados, embora mantenha alianças com estes numa abordagem transformadora
de mundo. Referimo-nos ao contexto biopolítico trabalhado por Negri que denota a
crise de categorias políticas de análise em torno do conceito capitalista e burguês de
poder. Tomo aqui as interrogações de Negri: “Pode-se pensar que a liberdade, a
singularidade, a potência se dão como diferenças radicais com o poder?” (Negri, 2006:
24).
A idéia de uma biopolítica acompanha a passagem do moderno ao pós-moderno
e a reversibilidade de seus efeitos. A saída da modernidade implica em que percebamos
que não apenas há uma submissão real ao capital mas também a construção de uma
resistência desde seu interior. Para Negri as análises de Deleuze e Foucault rompem
estas grades de pensamento. É “...entre Foucault e Deleuze que se dá a passagem da
margem ao centro do bloco do biopoder e que a resistência tornou-se uma força
ontológica.” (Idem: 35). A biopolítica é uma tentativa de construir o pensamento a partir
de modos de vida, individuais e coletivos, levando-se em conta a potência dos processos
de subjetivação que se agenciam a partir destes modos de vida.
Para Negri, Foucault deu um passo decisivo para a compreensão da biopolítica
como processo ativo que coloca em cena a produção de subjetividades capazes de
transformar não só os sujeitos nas suas relações com o poder mas consigo mesmos.
Foucault colocou em evidência um regime que tomava por objeto a vida da qual ele –
poder - se ocupava, gerindo-a, administrando-a. Em Foucault, o poder passa a ser
compreendido como um campo de poder que atravessa a sociedade. E se se trata de um
poder sobre a vida, implica também numa resistência desta a ele. Mas Deleuze como diz
Negri aprofunda esta problemática trabalhada por Foucault, periodiza as fases de
207

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

relação entre o biopoder e a biopolítica – desde a disciplina até o controle - tornando


mais claro que se há um poder sobre a vida, há também um poder da vida, na sua
potência de criar, de existir dos modos os mais diversos.
Negri quando fala do poder que a vida tem, fala de biopotência, instaurando
novas condições de um processo de antagonismo em que estão presentes forças
antagonistas do poder, da resistência, do capital e da liberdade. Este processo investe o
mundo de submissão real ao capital e o presente nos quais a resistência e a liberdade
como fundamentos materiais são um trabalho vivo, e como tal implicam numa produção
de subjetividades. O capital exige muito de quem o produz, consome sua subjetividade.
Afeta seus desejos, sonhos, vontade, produz crises, formata seus modos de ser, estar,
sentir, viver. Há uma busca de adaptação ao mercado que pulveriza, vampiriza. Mas
nestes modos de vida há vida, há a própria vida que virou um capital, como diz Negri,
um novo “valor de uso” no interior do poder (Negri, idem: 35). O autor restabelece a
determinação ontológica da resistência, já que paradoxalmente, é nesta circulação de
poder, que processos de subjetivação, de resistência e insubordinação podem acontecer.
Nestes processos novos modos de ser, estar, sentir, novas inteligências, novas ternuras
trabalham por germinar outros mundos. (Guattari, 1992; Deleuze e Guattari, 1980).
Afinal, são muitos mundos, não?
Importante remarcar o que Negri (2006; 2003) chama de vida, que não deve ser
confundida com interpretações afeitas a um vitalismo positivista ou materialista. A vida
não porta um “fora”, mas como potência é vida que deve ser vivida desde “dentro”,
desde os processos de subjetivação.
Uma das formas de resistência a formas de formatação de vida é o comum. Este
como potência produtiva presente se revela como compromisso cotidiano, cuja práxis,
como força e circulação de necessidades singulares se constrói na vida, sobre a
necessidade para a produção. Como pressuposto ontológico se abre às descontinuidades
e potências do processo real, desconstruindo uma certa compreensão do comum como
substância, homogeneidade, interioridade, identidade. O comum como heterogeneidade
traz no seu bojo uma rejeição à lógicas identitárias, essencialistas, abrindo um horizonte
de possibilidades, de reaprender o mundo segundo o registro da criação, de apostar no
mundo desde a perspectiva das periferias. Com a heterogeneidade tem-se a liberdade
para misturar o que estiver disponível e improvisar linguagens as mais diversas.
208

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Segundo Negri (2003), o comum diferencia, marcando sua aversão à


compreensões homogeneizantes que acabam produzindo confusões e indiferenciações
ambíguas. O comum porta assim a problemática da diferença. Nele pode-se localizar
um trabalho em que as diferenças, num campo de multiplicidades não buscam o
universal, a totalidade, mas, ao contrário, regeneram as singularidades. Se nele pode-se
antever a hegemonia de determinadas forças e formas institucionalizadas, percebe-se
também uma espécie de novo vigor de outras forças e formas que apostam mais na
invenção. E como práxis, é processo que não se julga pelo resultado final, mas pela
qualidade do seu curso e pela sua potência. Trabalha através de agenciamentos, os mais
inusitados, e como rede de agenciamentos porta uma continuidade aberta que se opõe às
densificações do controle (Negri, 2006; Ozório, 2007; 2008).
O comum nos convida a pensar na problemática da diferença e seus nexos
sócio-políticos. Interessante esta compreensão do comum que leva em conta as
diferenças. Como um “reservatório” de heterogênese, porta linhas de fuga, resistências e
sua potência de criação. Deleuze inspira Negri, na sua tentativa de exaltar a diferença
contra a repetição, de afirmação da singularidade contra a abstração universal (Negri:
2006: 127)
Adentramo-nos na discussão da biopotência, sustentando uma atividade do
comum que atravessa o real e produz suas composições que marcam diferenças,
afirmam singularidades apesar dos diversos graus de colonização ao capital, existentes.
Estas composições trabalham por uma reinvenção da liberdade no interior das condições
pós-modernas de dominação com suas insistências na reprodução de relações de poder.
Podemos então dizer de um jogo de tensões em que linhas de liberdade bem como de
dominação cadenciam um processo em que as diferenças que dele fazem parte buscam a
produção de novas subjetividades.
Importante compreender a produção de subjetividades como composições do
comum, nas suas linhas de fuga. Quando falamos de linhas de fuga não nos referimos à
fugir de algo mas de se fazer de outro modo, de se maquinar outros modos existenciais,
pautados nas experiências de vida que se agenciam. Nestas linhas de fuga pode-se
localizar a intensidade da experiência fenomenológica como criadora da diferença
ontológica. A diferença, fulgurante, como diz Negri (2006) afirma sua capacidade de
resistência, afirmando a biopolítica, mostrando que é possível não estar
209

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

irremediavelmente capturado nas malhas do poder. A resistência precede o poder, é


primeira, ontologicamente. Há aqui um vetor ético que revigora a alma, a potencializa.
O princípio identitário de subjetivação é driblado, deixa-se de lado a história do
reconhecimento social a todo custo. Temos acesso a uma diversidade de formas de vida,
com a produção da existência-resistência às malhas cerradas da sociedade de controle.
Pode-se dizer de outro modo: tem-se acesso à diversas criações de vida, à muitas
invenções.
Interessante contrapor o comum ao princípio identitário. Problematizamos um
tema do político e enfrentamos um problema ontológico. Por que? Segundo Negri, este
problema se situa na relação entre diferença e criatividade. E é a resistência que permite
a relação destes dois termos (Negri, 2006:131). A passagem da diferença à criatividade
se dá pela resistência ao poder. Ou seja: temos a biopotência contra o biopoder. A
diferença como resistência forja novas subjetividades. A diferença é compreendida
como um modo de resistir ao poder. E o comum é produto destas diferenças que se
articulam, de modo mutante.

O poder comum de agir: histórias orais de vida em comum, histórias da cidade

Faz-se necessária uma abordagem metodológica da biopolítica. Para tal


utilizamos a compreensão de dispositivo aqui entendido como uma estratégia de
resistência, o que implica uma alternativa para cada solução que emerge. Daí supor-se
uma matriz conflitual como variante metodológica, numa abertura às potências
constituintes de todo campo de trabalho.
No início deste artigo registramos duas falas-acontecimentos dos moradores de
Mangueira. São momentos de suas histórias de vida, narradas em comum no Papo de
Roda, nosso dispositivo de trabalho de pesquisa com histórias orais de vida em comum
na comunidade de Mangueira (Ozório, 2004; 2006; 2012). Retomamos Deleuze (1990)
no texto ¿Que és un dispositivo?, que nos ajuda a explorar a compreensão da riqueza do
nosso dispositivo Papo de Roda. Deleuze identifica o trabalho de Foucault como uma
filosofia dos dispositivos e ressalta uma aversão de Foucault pelos universais, pelo
eterno em favor da criação. Trata-se de uma composição de muitas linhas, não apenas
uma. Isto quer dizer que com ele podemos ir pelos caminhos os mais diversos, e que é
210

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

difícil saber onde se vai chegar. Esta compreensão de dispositivo dá ideia da sua
complexidade e permite que se o utilize para que se tenha acesso à riqueza do comum,
de seus processos em constante desequilíbrio, no aqui e agora da experiência-
resistência.
É oportuno marcar que o Papo de Roda é demandado num momento difícil
desta comunidade, em que seus moradores enfrentavam uma conjuntura político-social
local e no Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2003, complexa, violenta (Dutra, 2003;
Araújo, 2003; Ozório, 2007). O número de pessoas mortas em confronto com a polícia
neste ano aumentou em cerca de 50%, assim como o número de cadáveres encontrados
foi de 40% (Theophilo, 2003) com o Programa Tolerância Zero implementado pelo
Estado.
A fala de Celso, morador de Mangueira, registrada no início deste artigo, acontece
neste momento, e marca uma diferença-resistência da comunidade. O desejo de contar
histórias de vida comumente, de fazer conhecer as histórias da comunidade, foi um
modo que Mangueira encontrou para resistir à violência a que estava sujeita. Foi um
modo de enfrentar a discriminação e a criminalização da pobreza que atravessam seu
quotidiano. O Papo de Roda, dispositivo proposto, favorece o acolhimento desta
diferença-resistência manifestando um querer comum : as histórias dos moradores de
Mangueira serão contadas por eles mesmos, para o lugar, para a cidade, para o mundo.
Celso provoca o comum na cidade ao desejar disseminar as histórias de vida das
rezadeiras, das criadoras de porco, das verdureiras de Mangueira. Explicita um
entendimento de comum como práxis na medida em que o alia à experiência de vida
comunitária.
No início deste artigo, também registramos a narração de D. Mena, outra
moradora de Mangueira, que habita próximo a um lugar peculiar desta comunidade
chamado Buraco Quente. A comunidade da Mangueira é campo da diversidade e como
tal, tem muitos territórios, com diversos nomes, nomes acontecimentos como diriam
Deleuze e Guattari (1980), que guardam uma sintonia com a vida do lugar. Pois
Mangueira é comunidade com muitas comunidades. Quando faz este relato, no Papo de
Roda, sua irmã, que a escutava, D. Esmediária, lembra que D. Mena faz um trabalho
com as crianças da Mangueira do Amanhã.
...Mena é diretora da Mangueira do Amanhã, um movimento na
comunidade que congrega quase duas mil crianças que se
211

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

reúnem dentro do espaço da Escola de Samba .... (Esmediária


In: Ozório, 2016)

Mena acrescenta: “...É muita criança! E com as mães e os pais


que trazem as crianças, a quadra fica assim (faz um gesto para
dar ideia da quantidade de pessoas)... Colocamos as crianças pra
sambar e ensaiar... É muito bonitinho! As crianças
pequenininhas até seis anos... É legal porque evolui as crianças...
Tem criança que foi da Mangueira do Amanhã, já é compositor,
é passista adulto... Tem uns que estão viajando. É uma Escola
mesmo!” Mena, In: Ozório, 2016: 116)

Mena e Esmediária contam uma história diferente da que se quer oficial, um


modo de mostrar os modos da biopotência acontecer. Do “pão que o diabo amassou
com o rabo” que Mena conheceu - relato no início deste artigo - justo pertinho do
Buraco Quente, lugar quente da comunidade com suas insurgências as mais diversas ao
Estado tolerante às desigualdades da violência do capital, Mena conta sobre uma
composição singular de experiências que faz com a comunidade da Mangueira,
compartilhada com as crianças da cidade, pois Mangueira do Amanhã tem crianças de
vários lugares da cidade e não só de Mangueira. Trata-se de uma diferença – resistência
aos modelos identitários de cidade partida. Na Mangueira do Amanhã, asfalto e favela
como diferenças maquinam pelo comum na cidade. Mena trabalha nestas maquinações e
nos ajuda a compreender o que é uma Escola.
O agir em comum de Celso, Mena e Esmediária adquire uma singularidade, com
seus relatos no Papo de Roda. São lutas potencializadas através da narração em comum
que nele acontecem. São muitas as linhas de enunciação que se convocam no Papo de
Roda. Através das narrações em comum, linhas de força insistem em fazer frente aos
Programas Tolerâncias Zeros do Estado que querem anular a potência da comunidade.
Sabemos que a história das comunidades pobres no Rio de Janeiro tem sido atravessada
pelas mais diversas faces do biopoder Tolerância Zero e não só o de 2003. E sabemos
que por estranhos caminhos estas resistências vão do pão que o diabo amassou à
biopotência da Mangueira do Amanhã.
O Papo de Roda, espaço-tempo criado pelo lugar para agenciar as experiências -
resistências - histórias de vida de Mangueira, porta o caráter local da crítica de que fala
Foucault (1982:169), espécie de produção comum que alia autonomias, vidas que
insistem-resistem sem preocupação com os sistemas constituídos.
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

O Papo de Roda dá acesso a uma singularidade das histórias orais de vida em


comum. O momento da narração das histórias de vida, faz-se oralmente, comumente,
afirmando como diria Portelli (2000) a potência da história oral como alternativa crítica
no século XXI. Um comum que anima o processo de narração, favorece alianças entre
as diferenças ali em jogo que exercem uma crítica em ato ao silenciamento da diferença
(Portelli, 2000; Foucault, 1982).
Diz-se de alianças entre diferenças que ali acontecem, que mostram que a
aliança não é da ordem do imaginário, das correspondências, dos caracteres, dos
modelos, das cópias, das descendências, da evolução (Deleuze e Guattari, idem: 291-
292). A aliança é da ordem da heterogeneidade, é trabalhada pelo comum como
potência produtiva. E as vidas narradas em comum se aliam, estabelecendo relações
singulares entre “vidas precárias” e “experiências estéticas de vida”, que animam o
contexto biopolítico pós-moderno.
Importante marcar esta particularidade das histórias orais de vida em comum: o
comum que anima o processo da narração das histórias, ao levar em conta o Outro como
diferença, afirma um tecido dialógico, sem hierarquias, sem hipertrofias ou
indiferenciações ambíguas. A narração em comum favorece emergências críticas, que
fazem suas cartografias. Não se sabe onde vão chegar. Foucault (1982) quando analisa
seu trabalho de pesquisa compreende-a como portadora do caráter local da crítica, na
medida em que se interessa pelos que foram “ sepultados, mascarados em coerências
funcionais ou em sistemas formais” ( oucault, 1982:169). Podemos falar de uma
insurreição de vidas-saberes no Papo de Roda, de vidas que se narram, agem,
enunciando um saber histórico das lutas (Idem: 170) dos moradores de Mangueira, que
ali emergem e vão por aí.
A narração em comum pode ser entendida como um modo de resistir. Nela
explicitam-se forças e formas de poderes, residuais, não confiscados pelo Estado,
nômades, na afirmação de um comum que aponta para novas subjetividades que se
gestam. Uma forma de memória, comum, se faz, ficção do presente, no ato da narração.
Importante este entendimento de memória como ficção do presente, que serve ao
combate, favorecendo emergências que tomam por base acontecimentos significativos
desta comunidade, das vidas de seus moradores, e prolifera. Diferentes modos de vida
se convocam mutuamente, num jogo sútil de resonâncias e distâncias, problematizando
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

a vida que se inventa nas histórias narradas em comum. Celso, Esmediária e Mena
afirmam a minoritária história, descontínua e em fragmentos, que se faz em lugares năo
oficiais.
Uma outra cultura vai proliferando, ao optar por certas perspectivas estético-
culturais das riquezas das fontes populares da narratividade em comum. Nela não há
pretensão à perfeições, à estabilidades, à formalidades, ao reinado da razão. As alianças
entre as vidas que se contam, constroem a estética do comum, uma cultura que nas suas
dispersões mostra que quem conta pode se encantar, pode encantar, pode se
potencializar com as grandezas do ínfimo, com o voo da coruja, com as insignificanças,
as ignoranças. A potência de um calor vivo cadencia a narração em comum e releva o
partilhar a vida, não a subtração de vida.
Isto nos autoriza pensar num comum – experencial- cultural que se faz, num
exercício de um certo agorismo, afinal traz-se para a praça pública - comunidade,
cidade – uma experimentação: uma comunização de vidas, outras mundovisões -
culturas que sem pretenderem a verdade acenam para outros espaços-tempos da política:
a política do comum e seu poder comum de agir. A insureição de vidas postergadas à
uma zona de silêncio é práxis da perspectiva heterobiográfica (Delory-Momberger e
Hess, 2001; Ozório, 2004a; 2007; 2007a) das histórias orais de vida, com o potencial
que têm de resistir e provocar desterritorializações. Na cultura do comum que se faz
vislumbramos novos processos de subjetivação. A revalorização do saber das pessoas,
saberes locais, regionais, histórias deixadas de lado explicitam o saber histórico das
lutas (Foucault, 1982).
A experimentação de vida que Mena e mais de duas mil crianças com seus pais
fazem com Mangueira do Amanhã maquinam por novas subjetividades na cidade. Mena
com seu saber, sem se importar com o saber da erudição, faz-narra uma história da
cultura do samba.
“É muito bonitinho! As crianças pequenininhas até seis anos... É legal porque
evolui as crianças (...)É uma Escola mesmo!” (Mena In: Ozório, 2016: 115-116).
E as crianças estão no mundo, ela conta. Este fragmento da história de Mena traz
a magia da aliança, faz aparecer humores, sorrisos, cores, gestos que apostam que novas
ternuras aliadas à novas inteligências são possíveis. Estes afectos circulam, vão por aí, e
nos instigam: como produzir espaços-tempos que favoreçam subjetividades na sua
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

potência de conexão e criação? Trata-se de inquietação que tanto nos faz pensar no
paradoxo de viver comumente e suas insurreições-experimentações, como pensar a
cidade pelo contato-tensões-cultura, testemunhos de um tempo e de modus vivendi no
tempo que cuidam das cidades, daquelas que podem vir a ser (Calvino, 1990).
Sabe-se que no modelo identitário da cidade partida, favela e asfalto, em lados
antagônicos, são estimulados a reproduzir modelos da cidade - asfalto que deixam de
lado a riqueza que as periferias portam. A intervençao nesta dicotomia aponta para uma
operação de subjetivação que encoraja a práxis do comum no mundo contemporâneo e
faz pensar no que diz Foucault (1982) sobre a historicidade de nossos dias, muito
beligerante. Uma aliança entre asfalto e favela pode acontecer, posição singular que não
é um nem é o outro, que trabalha e aponta para algo que pode começar a acontecer. Um
comum que se faz neste processo mostra a importância dos interstícios das cidades,
transitórias, aquelas, como diz Calvino (1990), que insistem em dar forma aos seus
desejos, uma viabilização do trânsito em mão dupla entre o plano virtual das
intensidades e o plano atual das formas.
Negri, num dos seus livros, que inspira este artigo, Fábrica de Porcelana (2006)
releva o termo fábrica, ou seja, forjar conceitos que possam dar conta de um processo de
transformação em marcha no mundo pós-moderno. O comum é um destes conceitos. Por
outro lado, releva na construção do comum tanto a presença de um sopro comum que
revigora, mas também uma espécie de tempestade que agita nossas existências, nos
fragiliza, coloca nossos desejos em estados derrisórios (Negri, 2006: 15). Poder-se-ia
pensar no cuidado-insistência que se deve ter na construção do comum, porcelana,
potência animada pelas diferenças? É instigante pensar a porcelana como potência, é
provocador pensar o comum como processo mutante de diferenças que se convocam,
que provocam sutilezas no seu trato. Como este autor diz, cabe a nós liberdades de
movimento para fazermos com que este grande vento, com suas faces múltiplas, se
pareça a uma brisa de primavera que nos revigora (Idem: idem).
Celso, Mena e Esmediária numa liberdade de movimentos, com seu poder comum
de agir, narram em suas histórias, uma singular sensibilidade para com as diferenças,
exercem a práxis por uma centralidade das periferias como política do comum no
mundo contemporâneo.

Referências
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217

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

O Comum: um ensaio sobre a revolução no século 21

The Common: An Essay on the Revolution in the 21st Century

Christian Laval e Pierre Dardot

Tradução: Renan Porto1

Resumo
O artigo traz reflexões sobre a emergência do conceito de comum entre movimentos
como o das ocupações 15M e Gezi Park como resposta à crise da representação política.
Contudo, hoje o conceito não deve ser interpretado de acordo com sua origem grega e
sim como um princípio de lutas que questionam a oposição entre o Estado e o mercado,
isto é, que questiona a posição que faz do Estado o que nos defende das forças do
mercado. Com efeito, nas últimas décadas, o Estado sofreu transformação que o levam,
com freqüência, a um protagonismo neoliberal. Diante deste quadro, é preciso por um
lado evitar entender o comum no sentido restrito de bens comuns e, por outro,
desenvolver um direito do comum como um novo tipo de direito de uso, onde
apropriações se distinguem dos usos proprietários e levem a criação de instituições do
comum. Essas, por sua vez podem romper com sistemas políticos oligárquicos
interligados a interesses econômicos dominantes, em suma, promover uma revolução no
sentido de “reinstituição da sociedade”.

Palavras-chave
Comum; direito do comum; direito de uso; crise da representação; democracia
participativa.

Abstract
The article brings reflections on the emergence of the concept of common among
movements such as the 15M occupations and Gezi Park in response to the crisis of
political representation. However, today the concept should not be interpreted according
to its Greek origin but as a principle of struggles that question the opposition between
the State and the market, that is, that question the position that makes of the State the
one that defends us from market forces. Indeed, in the last decades, the state has
undergone transformations that often lead to a neo-liberal protagonism. In this context,
it is necessary, on the one hand, to avoid understanding the common in the narrow sense
of common goods and, on the other, to develop a right of the common as a new type of
right of use where appropriations differ from proprietary uses and that leads to creation
of Institutions of the Common. These, in turn, can break with oligarchic political

1
Renan Porto, ensaísta, poeta e bacharel em Direito pela Universidade de Uberaba,
pesquisador associado à rede Universidade Nômade.
218

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

systems interconnected with dominant economic interests, in short, can promote a


revolution in the sense of "reinstitution of society."

Key-words
Common; Right of the Common; Right of use; Crisis of representation; Participatory
democracy.

Nosso ponto de partida é que o comum é um princípio de atividade política


constituído pela atividade específica da deliberação, julgamento, decisão e a aplicação
de decisões. Contudo, essa, que é a mais completa definição que nós apresentamos no
início do nosso livro¹, não pretende ser universal, trans-histórica e independente das
condições temporais e geográficas. Em termos etimológicos (cum-munus, literalmente
‘co-obrigação’ e ‘co-atividade’), a intenção não é certamente sugerir que hoje o comum
sempre carregue o mesmo significado. Em Aristóteles, o comum (koinōn) é o que
resulta da atividade de agregação, que é o que constitui a cidadania, uma atividade que
implica a rotação de deveres ou a alternância entre os que governam e os que são
governados. Hoje, com um novo e singular tipo de energia, o movimento das praças
(15M, Gezi, etc) tem enriquecido esse conceito com novas demandas.

O comum como um princípio das lutas

Essas demandas envolveram um questionamento radical da democracia


‘representativa’, que autoriza um número limitado de pessoas a agir e falar em nome da
grande maioria. Ao mesmo tempo, esses movimentos têm desenvolvido demandas em
torno da preservação dos ‘comuns’ (commons) (especialmente espaços urbanos). O
comum nos parece ser o princípio que literalmente emergiu de todos esses movimentos.
Portanto, não é algo que nós inventamos; isto surgiu das lutas correntes como seu
princípio interno. O termo adquiriu assim um significado completamente novo, aquele
da ‘democracia real’, para o qual a única obrigação política legítima não decorre da
adesão a uma determinada comunidade, por mais amplo que isso possa ser, mas da
participação nessa mesma atividade ou nas tarefas que a constituem. Não deve haver
equívoco sobre a nossa proposta: embora o capítulo preliminar do nosso livro ofereça
uma ‘arqueologia do comum’, nós não tivemos intenção de interpretar toda a história
humana através dessa arqueologia, no estilo das ‘grandes narrativas’ que caracterizam a
nossa modernidade. Nosso objetivo foi muito diferente; foi mostrar que desde o início o
219

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

comum assumiu um significado que não poderia ser reduzido a ‘estatal’, até ser
sequestrado e adulterado tanto pelo Estado quanto pela teologia. Mas isso não significa
que a sua ‘redescoberta’ hoje seja um retorno a suas origens grega e romana. Trata-se de
outra coisa: definir uma alternativa política positiva à razão neoliberal orientada pela
competitividade.
Tal alternativa nos permitiu sair da dualidade entre propriedade pública/estatal
versus propriedade privada. Por muito tempo, a esquerda tem vivido sob a ideia de uma
oposição entre o Estado e o mercado que fez do Estado a melhor defesa contra a
ofensiva das forças do mercado. Essa oposição, junto com a estratégia que cria, é
totalmente uma coisa do passado. Há trinta anos, o Estado tem sofrido uma profunda
transformação, que fez dele um verdadeiro protagonista neoliberal. Está, ele próprio,
sujeito à lógica empresarial, e, enquanto Estado-empreendedor, ou “Estado
corporativo/empresarial”, age como um parceiro das grandes multinacionais na
coprodução de novas formas internacionais. A famosa fórmula de Marx de que o
governo não é mais do que um comitê executivo para gerir os negócios da burguesia
está largamente ultrapassada agora, não porque seja uma definição ultrajante; ao
contrário, porque fica aquém da realidade de hoje, em meio à crescente hibridização
entre Estado e mercado. O paradigma estatista precisa ser impiedosamente
desconstruído se quisermos trabalhar na reconstrução da esquerda. O Estado é inclusive
menos do que um instrumento que poderia ser usado por ‘projetos políticos’, como se
fosse o caso de direcioná-lo para outros fins. Pelo contrário, o Estado é impõe a sua
própria lógica sobre aqueles que nutrem a ilusão de sua transformação possível, quando
se está imerso num ambiente de luta contra o capitalismo neoliberal.
Aqui vemos tudo que separa o comum, entendido nesse sentido, do Estado e do
Público. O Estado/Público repousa sobre dois requisitos completamente contraditórios:
por um lado, garantir o acesso universal aos serviços públicos; por outro, dar à
administração estatal o monopólio da gestão desses serviços e reduzir seus usuários a
consumidores, enquanto são excluídos de qualquer forma de participação na gestão. É
justamente essa divisão entre ‘funcionários’ e ‘usuários’ que o comum tem de abolir.
Em outras palavras, o comum pode ser definido como o público não-estatal, que
garanta o acesso universal através da participação direta dos usuários na administração
dos serviços. Uma de nossas ‘propostas políticas’, na terceira parte do livro, é a
220

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

transformação dos serviços públicos em instituições do comum. Isso significa que esses
serviços não pertencem ao estado no sentido de o Estado ser proprietário ou mesmo o
único gestor. Para realizar esse tipo de transformação, é necessário quebrar com o
monopólio da administração estatal de modo a garantir verdadeiro acesso universal a
esses serviços. Portanto, os usuários não devem ser considerados como ‘consumidores’,
mas como cidadãos participando lado a lado dos funcionários nas deliberações e
decisões concernentes a eles próprios.

O comum e os comuns

Como podemos ver, nós estamos entendendo o comum no sentido de um


princípio político e não no sentido de um atributo naturalmente intrínseco a certos tipos
de ‘bens’. Entender a expressão ‘bens comuns’ num sentido literal leva, primeiro, a
estabelecer uma classificação de bens (bens privados, bens públicos, bens comuns) de
acordo os critérios relacionados à sua natureza inerente. Essa abordagem, que pode
apenas acabar reificando o comum, foi sistematizada por uma específica política
econômica, antes de ser retomada por juristas. No entanto, nesse propósito, se
precisaram introduzir critérios externos à mera natureza das coisas, a fim de distinguir
bens comuns de bens públicos. Por exemplo, a Comissão de Rodotà definiu bens
comuns de acordo com a sua relação com direitos fundamentais e o desenvolvimento
humano. Porém, começar com a classificação de bens conduz igualmente a um
desmembramento do comum, que vai distinguir os bens comuns entre naturais, do
conhecimento, genéticos ou biológicos etc. O comum (como um princípio) é então
confundido com aquilo que é comum (como um atributo ou característica de certas
coisas).
Nossa abordagem, similarmente, rejeita as teses de uma ‘produção espontânea
do comum’ que é ao mesmo tempo a condição e resultado do processo de produção
(análogo à dinâmica expansiva das forças de produção encontrada numa certa vertente
do marxismo). Idealizando a autonomia do trabalho imaterial na era do ‘capitalismo
cognitivo’, essas teses não reconhecem os atuais mecanismos operativos de
subordinação do trabalho ao capital. Além disso, e isso é sem dúvida o seu maior
221

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

defeito, não reconhece a diferença irredutível entre produção e instituição: a produção


deve ser espontânea, enquanto a instituição é necessariamente uma atividade consciente.
É por isso que nos esforçamos para distinguir entre o comum como um princípio
político – que não deve ser instituído, mas aplicado, – e os comuns que sempre são
instituídos dentro e através dessa aplicação. O ponto essencial é que os comuns não são
‘produzidos’ ou ‘instituídos’. É por isso que somos muito relutantes em aceitar a noção
de ‘bens comuns’. Parece-nos que o raciocínio deveria ser o inverso: todo comum que é
instituído é um bem, mas nenhum bem é por si comum. É preciso cuidar para não
confundirmos um bem no sentido ético e político (agathon) e um bem no sentido de
uma aquisição que pode ser trocada e vendida (ktesis). Todo comum é um bem no
sentido ético e político, mas apenas na medida em que não é uma aquisição. Uma vez
instituído, um comum não é alienável; a partir de então ele se instala na esfera de coisas
que não podem ser apropriadas. Isto significa que ele escapa da lógica proprietária em
qualquer de suas formas (privada ou estatal).
Nós sustentamos que um comum é instituído através de uma práxis específica
que chamamos ‘práxis instituinte’, que não se refere a um método geral para instituir
um tipo de comum. Precisamos estar atentos aqui para a noção controversa de
‘instituição’. Uma tradição sociológica inteira tentou reduzir a instituição ao que é
instituído sem realmente levar em conta a dimensão da atividade instituinte. Além disso,
uma crítica política muito difundida na esquerda nos anos 1960 e 1970 identificou a
instituição com um aparato de poder que coage os indivíduos que ‘entravam’ a
pertencer-lhe. Essa crítica não problematizou a dimensão originária do que institui, que
parece tão fundamental para nós. Na verdade, instituir nem é institucionalizar no sentido
de tornar oficial, consagrar ou reconhecer após o fato que existiu bem antes (por
exemplo, no nível de um hábito ou costume) nem criar do nada. É precisamente recriar
com, ou com base em, o que já existe, portanto dadas as condições independentemente
de nossa atividade. Nesse sentido, não há modelo de uma instituição nem pode haver
capaz de servir como um padrão para uma práxis instituinte. Cada práxis tem de ser
entendida e executada in situ ou in loco. Por isso, pode-se, e até deve-se falar de ‘práxis
instituintes’; no plural. Para reestabelecer um serviço terminado previamente num
hospital psiquiátrico após uma discussão com os cuidadores e pacientes, se cai na
categoria de uma práxis instituinte, mesmo que seja na de ‘micropolítica’ em oucault.
222

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

Mas instituir um banco de sementes para fazendeiros ou designar um sítio cultural para
uso comum enquadra-se na mesma categoria. Essas são práticas que preparam e
constroem a revolução como uma ‘auto-instituição da sociedade’.

O direito do comum como um novo tipo de direito de uso

Nós podemos tirar conclusões nos tempos do Direito. De fato, nós pensamos que
a instituição dos comuns envolve um conflito opondo o direito do comum ao antigo
direito de propriedade e que esse conflito entre dois direitos é o conflito fundamental de
nosso dia. O direito do comum é um direito do que difere do antigo direito de uso
coletivo fundado em costumes antigos. Quer consideremos o uso como um simples uso
fora da lei (comer, beber, viver em uma casa etc), quer como um direito coletivo surgido
do costume (o direito de colheita ou de usufruto), o uso é sempre entendido por ser a
ação de usar uma coisa externa com o objetivo de satisfazer necessidades vitais; usar
como ação implica certo tipo de relação com as coisas externas que frequentemente
inclui consumo, que é a destruição das coisas em questão (abuso, em latim, quer dizer
uma consumação completa). Mas, pode-se igualmente dizer em inglês ‘usar com’, com
outra pessoa, com uma pessoa particular, etc. Nesse caso, se trata de agir ou conduzir-se
de certo modo com os outros, na medida em que haja uma relação ativa com os outros
que é significativa, longe de qualquer relação com coisas externas que teria como meta
a destruição completa, isto é, a consumação. Nesse novo sentido, o uso toma o
significado de supervisão, manutenção e preservação. Podemos então sublinhar a
diferença entre o antigo e o novo direito de uso.
A primeira diferença apreciável com o velho direito envolve a natureza do
objeto que é usado. No direito do comum, o uso não está relacionado a uma coisa
material externa, mas ao que nós chamamos de comuns (no plural). Os comuns não são
‘coisas em comum’ (res communes). Certamente, coisas em comum não são nada (o
adágio res nullius primo occupant² não se aplica a elas). Mas a limitação dessa categoria
inerente ao direito romano é que corta as coisas da atividade. O conceito de comuns
enfatiza as construções institucionais através das quais a conexão entre as coisas e a
atividade do coletivo que se encarrega delas vem à tona. Assim, há comuns de diversos
tipos a depender do tipo de atividade dos protagonistas que instituem eles e os
223

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

mantenham vivos (rios comuns, florestas comuns, produções comuns, sementes


comuns, conhecimentos comuns, etc). Um rio comum não é um rio; é a conexão entre
esse rio e o coletivo que cuida dele. Consequentemente, inapropriável não é apenas o rio
entendido como coisa física, mas também o rio na medida em que se realiza por certa
atividade, e assim também a própria atividade em si. Nesse sentido, o conceito de
‘comuns’ quebra com a polaridade sujeito/objeto, a polaridade de um objeto oferecido
por ser tomada em exclusividade pela primeira pessoa (como na relação entre o dominus
e o res), uma polaridade que é tão recorrente em uma tradição jurídica e filosófica.
Nesse sentido, o uso cujo eixo é o direito do comum pressupõe como sua
condição de possibilidade um ato consciente de instituição, exatamente o que nós
chamamos de ‘práxis instituinte’. Por isso, não pode ser confundido com o direito
consuetudinário, que reduz as práticas à perpetuação inconsciente e à transmissão de
costumes. Os comuns estão acima de todos esses problemas de instituição e governo.
Ao contrário da teoria da propriedade como um ‘pacote de direitos’ que faz do direito
consuetudinário um direito dentre outros, dissociado do direito de administração e
decisões, o uso dos comuns é inseparável do direito de decidir e governar. A práxis que
institui os comuns é a prática que os mantém e lhes dá vida e assume total
responsabilidade pela sua conflitualidade através da coprodução de normas. De fato, a
lógica de agrupamento não deve ser confundida com a busca por unanimidade,
harmonia e consenso como algo absoluto. Ao invés disso, ela procura superar os
conflitos através da coprodução de normas e não através da abolição imaginária de
conflitos que são necessariamente uma parte de toda vida coletiva. Esse ponto precisa
ser enfatizado: conflito não é ruim por si; ele não é de modo algum a semente da guerra
civil; pelo contrário, ele é seu antídoto desde que tenha uma expressão institucional.
Sob essas condições faz sentido falar do uso de um comum, isto é, falar sempre
do uso de um comum particular? A noção de ‘uso administrativo’ emprestada de Paolo
Napoli permite um entendimento melhor da diferença entre uso como uma ação de fazer
uso de uma coisa externa e uso como a supervisão e preservação de um comum (deve
ser lembrado que ministrare, do que é derivada a administração, significa antes de tudo
‘servir’ e não ‘aproveitar-se de’). Na verdade, não se usa um comum como se faz uma
coisa, porque um comum não é uma coisa, mas uma relação de um coletivo com uma ou
diversas coisas. O uso administrativo contrasta com a relação de um proprietário com
224

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

sua coisa. A noção de ‘apropriação’ deve ser clarificada para evitar alguma confusão.
Há pertencimento-apropriação quando alguém se apropria de uma coisa para si mesmo e
exclui qualquer outra relação de pertencimento que envolva a mesma coisa, e
destinação-apropriação, em que uma coisa é particular para certo objetivo. Aqui
também há um risco de equívoco: o que está em questão não é a apropriação do comum
para o que ele se destina, mas apropriar-se da conduta dos membros do coletivo. O
objetivo é garantir, através de normas de uso coletivo, que o comportamento de
apropriação predatória não desvie do objetivo de uma específica destinação social em
comum. Em outras palavras, o objetivo é regular o uso do comum sem precisar fazer-se
seu proprietário, isto é, sem conceder a si o poder de dispor dele como seu dono
supremo.
A pluralidade dos comuns coloca a questão de sua coordenação através da
construção de instituições em comum, daí a ideia de uma federação de comuns sócio-
profissionais a depender do tipo de objeto pelo qual os diferentes comuns são
responsáveis. Não há comuns que sejam puramente profissionais, apenas comuns sócio-
profissionais que devem absorver neles mesmos sua própria relação com o resto da
sociedade. O exemplo da Itália é unicamente instrutivo nesse ponto. Nápoles é um
laboratório político do comum, não só por causa da sua experiência na gestão
participativa da água, mas também por causa da importância assumida por várias
‘ocupações’ (dentre elas, a ocupação do Asilo Filangieri, que tem sido convertido em
um espaço voltado a atividades culturais). Contudo, essas experiências podem ser
vividas apenas se elas promovem a demanda de autogestão em todos os níveis, inclusive
na coordenação dentre os comuns.

Revolução e a instituição de democracia política

Essa demanda por autogestão não é outra coisa senão a demanda por democracia
política, que tem prevalecido em todas as esferas da vida social. Ela impede qualquer
tecnocracia ou “expertocracia” (grifo nosso: governo dos especialistas) na medida em
que tem de tornar a participação de todos como regra.
‘Democracia Real’ é uma questão de instituir. Esta é a essência do que nós
gostaríamos de dizer. O que não devemos subestimar é a dificuldade de inventar novas
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

instituições que funcionem explicitamente no sentido de impedir a apropriação por uma


minoria, de proibir a deturpação de suas propostas e também de prevenir a ‘ossificação’
de suas normas. A experiência em andamento do Barcelona em Comú, na Catalunha, é
exemplar. A vitória eleitoral não deve ser deixada de fora do que a precedeu e a tornou
possível – muito trabalho nos bairros por quatro anos, especialmente na área de
moradia, que tornou possível acumular as condições que permitiam o estabelecimento
de uma lista eleitoral independente. Um movimento de massa, uma sequência de
mobilizações, e confrontos múltiplos e contínuos transformados em formas políticas
inventivas que convertera a democracia interna num princípio operativo, evitando
qualquer tentativa, mesmo tentativas internas, de restabelecer uma hierarquia vertical
com o pretexto da maior eficiência (uma tentação a que alguns líderes do Podemos têm
se rendido). Através de todos esses experimentos, a questão prática tem sido colocada
numa ligação entre a construção ‘aqui e agora’, começando com as condições
existentes, de novas formas de relação e atividades, e a transformação geral da
sociedade. Seu ponto em comum é a ruptura que eles têm introduzido com todo um
sistema político oligárquico, completamente interligado com os interesses econômicos
de um grupo social dominante. Contudo, o seu valor insubstituível é ter demonstrado
que é impossível combater o ‘sistema’ sem ao mesmo tempo inventar, no nível prático,
novas formas de sociedade e política.
É essa dimensão inventiva do movimento que consiste hoje no fenômeno mais
surpreendente – a definição de uma sociedade desejável não está escrita em lugar
algum, em nenhum programa, que não é a propriedade de um partido nem o monopólio
de uma vanguarda. Nesse sentido é que esses movimentos podem ser considerados
profundamente ‘autônomos’, isto é, no sentido etimológico do termo; através dos seus
atos, eles demonstram a necessidade de reinstituir toda a sociedade de acordo com a
lógica do comum. É por isso que nós dizemos que esses movimentos são
revolucionários, por repor ao termo ‘revolução’ o sentido mais preciso de ‘reinstituição
da sociedade’. Em nossa opinião, isso não indica que uma manifestação violenta ou uma
insurreição sejam equivalentes à revolução. Revolução envolve outra coisa. O sentido
revolucionário dos movimentos contemporâneos não está baseado no modo de ação que
eles adotam, eleitoralmente ou de outra forma, e nem mesmo na pura consciência do
objetivo final buscado. Em vez disso, tem a ver com transformar a resistência
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

persistente e corajosa de amplos setores da sociedade às políticas de austeridade em


vontade e capacidade de transformar as próprias relações políticas, em ir da
representação à participação. Isso é o que significa unir a demanda do comum ao seu
maior ponto de expressão.
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Resenha
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O que são nossos amigos?

resenha do livro Aos nossos amigos: crise e insurreição, Comitê Invisível (2015,
download em https://we.riseup.net/assets/262783/AosNossosAmigos2014.pdf)

Gigi Roggero1

O que são os nossos amigos?

Aos nossos amigos é um livro que merece ser lido. Em parte, para estudar o que
os autores dizem, em parte, os leitores, reais ou potenciais, que o leem. Mas a quem o
livro apela, afinal? A resposta está contida no título, sem dúvida, um título certeiro: aos
amigos. São os amigos de um “partido” invisível e disperso, imaginário e despido de
organização. Na verdade, que refuga a própria organização. É um partido que emerge
onde haja insurgência, “onde a época se incendeia”, que mergulha onde prevaleça uma
calma aparente, no momento em que se volta a falar em “baixo entusiasmo da ‘gente’
para lançar-se numa batalha que se sente perdida por antecipação”. O livro fala aos
amigos concretos e virtuais desse partido: àqueles que já o são, para reforçar a sua
convicção, àqueles que podem vir a sê-lo, oferecendo-lhes argumentos fascinantes para
tal.
A linguagem é adequada à tarefa, às vezes culta, às vezes coloquial, entremeada
de várias referências filosóficas, explícitas ou implícitas, e com numerosas citações dos
amigos do partido, que falam a partir da matéria viva das lutas no Egito ou na Grécia.
Os alvos polêmicos são frequentemente escolhidos com cuidado, os principais são a
esquerda e os anarquistas, ou melhor, o sentimento profundo de derrota de que a
primeira é portadora, bem como as lamúrias ideológicas dos últimos. Mais problemático
do que isso nos parece ser, em diversos aspectos, o sentido conferido à crítica do

1
Militante e copequisador de lutas e movimentos a partir de Bolonha, na Itália,
participante dos ciclos de lutas na universidade (Edu-Factory) e dos precários no sul da
Europa, autor de vários livros, como La produzione del sapere vivo (2009) e Elogio
della militanza (2016). Seu livro La misteriosa curva della reta di Lenin está
correntemente em tradução pela editora Autonomia Literária, com publicação prevista
para 2017.
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presente, embora ele seja coerente com uma tonalidade geral de fundo que o livro
transpira.
Repassaremos rapidamente os pontos de acordo e nos delongaremos, em vez
disso, nos problemas que encontramos. O objetivo desta resenha não é, de fato, fazer
um simples comentário, mas contribuir para uma discussão militante e coletiva, clara e
produtiva. Também os nossos amigos, pensamos, compartilham desse mesmo propósito.

Dentro do apocalipse duradouro

O texto se move de modo frenético através do tempo e do espaço. Londres, Sidi


Bouzid, Atenas, Gaza ou Clichy-sous-Bois, Argentina, Guadalupe, Québec, China ou
Estados Unidos. Ele mata no peito a atualidade e a coloca para deslizar ao longo da
crônica. O ano da Comuna de Paris (1871) surge como um relâmpago para a seguir ser
contraposto ao movimento no global; os índios aimarás do Altiplano, os militantes do
IRA e os black blocs se revezam em indicações e avisos; por vezes, o mundo inteiro se
alisa, aplaina-se e as distâncias se encurtam e mesmo se anulam. O risco é terminar
numa espécie de liquidificador da história 2.0, em que os conhecimentos se tornam
líquidos e os processos políticos dissolvidos em abstrações de tweet.
Apesar disso, quando põem em foco a crítica do presente, os nossos amigos nos
indicam pistas e trilhas com reflexões significativas. Nos dizem, por exemplo, duas
coisas relevantes a respeito da relação entre crises e movimentos, a partir de 2008. A
primeira coisa é que a crise é um modo de governo. A sua duração indefinida não
significa um enfraquecimento automático de nosso inimigo. Ao contrário, o uso
capitalista da crise hoje consiste em transformar a impossibilidade de saída num
elemento estável que reforça o comando sobre o presente. Quem fica esperando pelo
colapso do capitalismo se confundiu de filme. E, acrescentamos, permanecerá iludido
nessa miragem também quem sonha com uma relação linear entre desenvolvimento da
crise e desenvolvimento das lutas, ao fetichizar uma raiva espontânea que, existente em
si própria, seria um dado sociológico aberto a algum posterior direcionamento político.
A segunda afirmação do livro para raciocinarmos é que, nos últimos anos, aconteceram
insurreições porém sem revolução. Pois, de fato, não corresponde à verdade o quadro
pintado pelas informações oficiais, que expõe a cena de uma sólida pacificação de
230

Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

revoltas pontuais e erráticas, incomunicantes entre si. Todavia, apenas constatar o fato
não é suficiente. Com efeito, quem foi derrotado não foi a democracia, um rótulo
geralmente etiquetado do exterior de toda insurgência de movimento. Quem foi
derrotado na verdade foi a revolução pela própria democracia. Nesse sentido, quem
segue invocando a primeira impede a perspectiva da segunda.
Longe de estarmos posicionados num momento decisivo de ação revolucionária,
então, a crise é um estado de exceção permanente, um apocalipse duradouro. No lugar
das lentes da economia política, afloram seguidamente no livro os instrumentos e as
mensagens de uma teologia política. O apocalipse deve ser entendido, ao contrário,
como já tendo ocorrido, porque o anúncio contínuo de sua chegada iminente apenas
serve para normalizar os meios repressivos aptos em combater quem busque subverter o
existente. A crise como oportunidade deveria por isso ser substituída pela catástrofe
como oportunidade. Porque há vida na catástrofe, dizem-nos os nossos amigos. Ou
melhor, a catástrofe é o espaço de onde se libertam a auto-organização e as
comunidades de solidariedade. Dizer isso não é uma coisa particularmente nova, há um
filão que defende a mesma linha já há bastante tempo, muito libertário e muito
americano, até chegar aos episódios dos furacões Katrina (2005) e Sandy (2012).
Porém, aqui vale uma observação importante, não podemos cair na retórica do “ser da
necessidade”, da figura da falta que imediatamente convoca quem poderia preencher o
vazio. Disso, decorre uma crítica pontual às ideologias associativistas e cooperativistas,
explícitas ou implícitas, que atuam dentro dos movimentos na crise. Porque elas
terminam por reproduzir a separação entre o ser da necessidade e quem se pressupõe
represente-lhes as demandas, o que reduz o primeiro a um ator passivo e o segundo a
um prestador de serviços. Esses não são uma alternativa ao capitalismo, como
sustentam os nossos amigos, mas apenas uma alternativa para a própria luta. Este
realmente é um tema contraditório e ambivalente, difícil de ser contornado somente com
uma crítica à ideologia, e que não pode ser nem afastado, nem nele ficarmos amarrados.
Em seguida, é preciso distinguir a prática que cria uma nova ligação social
potencialmente antagonista das meras receitas burocráticas, que reproduzem
setorizações e separações do ser da necessidade, preparando-o à representação. É
preciso contornar o perigo de converter o mero atendimento das necessidades em
finalidade política, o que neutraliza o que as necessidades portam de subversão, de
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

potencial para a socialização das possibilidades de luta. Nessa passagem para a luta,
acrescentamos, o ser da necessidade se torna sujeito do conflito, e os pobres devêm
classe.

Nós e eles

“Não é a fraqueza da luta que explica a evaporação de toda perspectiva


revolucionária; é a ausência de perspectiva revolucionária crível que explica a fraqueza
das lutas”. Aqui não podemos deixar de ouvir os ecos de Lênin: sem teoria
revolucionária não pode haver movimento revolucionário. Vejamos agora em que
consiste essa perspectiva.
Têm razão os nossos amigos ao pontuar que não se mede a radicalidade de uma
manifestação pelo número de vitrines quebradas, e têm uma razão igual e óbvia em
fazer pouco caso de apelos abstratos à não-violência absoluta. Ainda outra vez,
anarquistas e esquerda — como formato político e da mente — são os principais alvos
da polêmica. “A verdadeira questão para os revolucionários — continuam — é aquela
de fazer crescer as potências vivas de que participam, organizar os devires
revolucionários para se alcançar, afinal, uma situação revolucionária”. Ok, é portanto
revolucionário o que causa efetivamente as revoluções… Mas, então, onde procurar os
embriões das potências vivas, as condições de possibilidade dos devires
revolucionários? E aqui as coisas se simplificam para os nossos amigos ao mesmo
tempo que se complicam para nós.
No livro, na tonalidade política que o anima, reaparecem continuamente o “nós”
e o “eles”, o amigo e o inimigo. Isto é absolutamente correto enquanto ponto de vista e
como objetivo, mas extremamente problemático se esse “nós” e esse “eles” devam ser
imaginados como pertencimentos espontâneos ou simples frutos de escolhas
individuais. O que motiva realmente o “nós” a sê-lo? Com base na leitura,
responderíamos: o desejo de insurreição. Nada ou quase nada, no entanto, nos é dito
sobre como e onde se forma esse desejo.
Em consequência, de uma parte, existem os revolucionários em comum, de outra
parte, a obra da contrainsurreição. É como se no meio não houvesse nada. “There is no
such a thing as society”, sustentava Margaret Thatcher; não existe mais uma
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

“sociedade” a ser destruída nem convencida, repetem os nossos amigos. O problema é


que com isso desaparecem as composições sociais e de classe, as relações de produção e
de exploração, a especificidade dos tempos, dos lugares e das contradições. É como se
os espaços existentes entre a insurreição e a contrainsurreição estivessem estofados de
massas intermináveis de zumbis, como aparece na Hollywood do capital. O mundo é
assim achatado na luta entre guardas e ladrões, os punitivistas aplaudem os primeiros,
os revolucionários se identificam com os segundos. As subjetividades são desse jeito
simultaneamente exaltadas e esvaziadas. Existem sempre e não existem nunca.
Arriscam serem transformadas em significantes vazios, que os revolucionários deveriam
simplesmente preencher, atraindo-os para o seu próprio lado, ao revelar-lhes como é boa
a alegria do comum (que, em sua conotação objetivamente positiva, se torna apenas
outro nome para o que os marxistas chamavam de “consciência de classe”).
“Onde quer que haja conspiração: nos átrios dos condomínios, na hora do café,
nos fundos do kebab, nas baladas, nos amores, nas prisões.” Pode até ser verdadeiro do
ponto de vista fenomenológico, mas isso é pouco útil do ponto de vista político. Permite
sem dúvida comentar as insurreições que acontecem, mas não antecipa as que podem vir
a acontecer. E é exatamente aqui, na antecipação daquilo que ainda não é, que se coloca
a ação do militante revolucionário. Para buscar agarrar a tendência e desdobrá-la num
sentido diferente. “Nós não a esperávamos, mas a organizamos”, dizia Romano Alquati
a quem lhe perguntava se deviam esperar a explosão das lutas operárias nos anos ’60.
Por mais que esteja em toda parte, de fato, a “conspiração” não se move num espaço
liso e homogêneo: existem diferenciais de potência que não estão determinados
meramente pela hierarquia capitalista, mas antes de tudo pelas possibilidades de lutas,
de atacar o inimigo. Existem lugares e tempos historicamente determinados onde se
constroem os processos de conflito e eventos de ruptura.
O próprio Alquati, quando realizava copesquisa na Fiat, falava de uma
“organização invisível”, através do que os operários se comunicavam, fermentavam as
lutas, articulavam-lhe os tempos, bloqueavam a fábrica. Dali nascia a greve “a gatto
selvaggio”, que era imprevisível, portanto incontrolável a partir de uma mediação
reformista. A ação acontecia por meio de um rodízio de táticas, métodos, tempos e
lugares, e não reivindicava nada. Aquele era o ponto mais avançado da não-colaboração
operária. A tarefa de uma organização política, dizia Alquati na época, não era planejar
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

de maneira predeterminada o “gatto selvaggio”, porque dessa forma se correria o risco


de torná-lo assimilável e domesticável pelos patrões. A organização deveria, ao
contrário, contribuir para intensificar o “gatto selvaggio”. Essa organização invisível,
essa “espontaneidade organizada”, se constituía através de um processo material, num
lugar e num tempo determinados, recheada de operários específicos e comportamentos
peculiares. Encontraremos outros exemplos comuns, em condições todavia particulares,
e com formas de expressão diversas. Aquele não era um dado a-histórico, a luta não
constituía um ato de fé. Em muitos lugares e em muitos tempos o processo não chegou a
acontecer, ou se aconteceu o fez em formas totalmente outras.
Diversamente, no livro, temos a impressão que, dando por certa a existência da
conspiração, se renuncia a pesquisar-lhe concretamente os traços e as condições de
possibilidade. Ao dizer que “está por toda parte”, se arrisca dizer em nenhuma. Nos
parece, noutras palavras, que falta aí não apenas a copesquisa das lutas, como aliás falta,
ou pelo menos é insuficiente, um pouco em todos os lugares: o próprio problema da
copesquisa, isto é, o problema de como a subjetividade se transforma em
contrassubjetividade. Sem explicar esse processo de transformação, que também é um
processo de antecipação, aposta política e tentativa de virar a tendência, a subjetividade
termina reduzida a significante vazio. Conspira sempre, mas não comparece nunca em
carne e osso, em suas especificidades espaciais e temporais, em suas formas de
aceitação e recusa, em suas diferentes formas de potência concreta e virtual. O resultado
é que se assemelha mais ao espírito santo que baixa do que a um sujeito revolucionário.
Combate-se em nome deste vazio, arriscando de imaginar-se como o seu invisível
representante na terra.

Desmercantilizar o desejo

Se Marx abandonado a si próprio corre o perigo de ficar preso no círculo


fechado da lógica do capital, Lênin separado de Marx se torna vontade despida de
materialismo, ruptura sem processo. A perspectiva se encarna nas lutas ou então não
passa de pura anunciação. Se aconteceram insurreições sem revolução, como
corretamente dizem os nossos amigos, seria uma autoconsolação atribuir a culpa
exclusivamente aos corrompidos e traidores. Que fique claro, os pretensos “gerentes de
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

movimento” existem — e como! Eles proliferam e são daninhos e os nossos amigos


fazem bem em espicaçá-los. Mas pensar que o único problema seja a existência de
traidores e corrompidos significa pecar pela autorreferencialidade, imaginar um mundo
em que existam apenas duas espécies, revolucionários e contrarrevolucionários. O
ponto, ao contrário, é que os revolucionários precisam se esforçar para entender o que
existe no “entre”: a colher as formas de recusa, a romper os níveis de aceitação, a tentar
antecipar as explosões, a colocar-se à altura delas quando acontecem, e a compreender o
que sobra depois que passam. A transformar então o que está no meio numa “situação
revolucionária”.
Vista desta perspectiva, a polêmica entre poder constituinte e poder destituinte
perde a consistência, porque quando um e outro são tomados enquanto separados, nada
podem nos dizer. Essa contraposição excludente nos foi, de fato, legada pela própria
contrarrevolução, isto é, pelo pós-moderno. A nossa tarefa consiste em quebrá-la, não
tomar posição dentro dela, sob a pena de legitimar-lhe o campo discursivo. Então, se a
crítica ao abuso retórico do “constituinte” nos parece convincente, temos porém a
impressão que se lhe opor simplesmente o seu molde virado, isto é, o “destituinte”, nos
faça permanecer no interior do mesmo problema, na mesma contraposição vazia. Numa
perspectiva revolucionária, não existe um para sem um contra, assim como um contra
contém necessariamente um para.
Deslocar essa falsa dicotomia é que vai nos permitir conferir nitidez ao vértice
ciclotímico imposto pelo capitalismo contemporâneo, ou “cibernético”, como definido
no livro, numa polêmica em comum ante a tecnofobia anarquista e a tecnofilia marxista.
Na crise, os sujeitos ondulam continuamente entre euforia e depressão, os movimentos
assim como os mercados financeiros. Isto vale, sobretudo, para as novas gerações, o
principal campo de experimentação para a produção de uma subjetividade da crise,
continuamente colocada na parede para escolher entre aceitação e niilismo, entre
expectativas decrescentes e atitude no future. Uma “felicidade” e um “desejo” que não
rompam essa dialética não passam de mercadorias, inclusive quando furtadas dos
supermercados ou adquiridas gratuitamente em nossa comunidade militante. O
comunismo é um movimento real, não um presente do desenvolvimento capitalista, nem
um oásis que criamos no meio do deserto. O ponto não é tornar desejáveis as formas de
vida da comunidade militante, ilhazinhas nas redes ou obchinas do século 21: também
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

elas quando se percebem como mundos separados, aprofundam uma marginalidade


inteiramente funcional à governance capitalista. O ponto é que se torne desejável a
transformação das próprias condições de vida, a conquista coletiva da liberdade e
autonomia. Porque não existe alegria sem luta pela alegria, e não existe luta pela alegria
sem organização da luta.

Conquistar o desconhecido

Um livro como este dos nossos amigos dialoga com frações significativas da
composição jovem e metropolitana, exprimindo-lhe parcialmente os problemas e o
desejo de alternativas, as possibilidades antagonistas e a ambivalência das paixões.
Exprime também o pensamento do imediato em sua dupla face: de um lado, a
reapropriação do “aqui e agora” contra as correntes do passado e as utopias do futuro,
do outro lado, é fruto do colapso da temporalidade histórica, a sua fagocitose num
presente sem fim, sem genealogia e sem perspectiva. No imediato se perde aquilo que é
primeiro e aquilo que vem depois, ou seja, a possibilidade de antecipar e a necessidade
de sedimentar. O contrário do imediato não é a mediação, mas o projeto, que se
alimenta continuamente da relação entre construção de processo e salto em frente.
A ordem do discurso dos nossos amigos está entre outras coisas colocada em
tensão com tantas experiências territoriais e metropolitanas que nos levam adiante. No
interior desses percursos, tentam escapar da dialética entre local e global,
desestruturando-lhes os termos, a fim de arrancá-los da logística do capital e, por
conseguinte, imaginar a conexão entre planos com diversas consistências. Não
simplesmente enraizando-se no território, mas produzindo-o. Pois é aí que afloram os
problemas materiais, rasgando o véu das soluções retóricas. Aqui há tanto trabalho
político a ser feito, para os nossos amigos e para todos.
Há então, de qualquer modo, uma atitude de fundo da parte dos nossos amigos
que compartilhamos, independentemente das expressões concretas que ela assume: é a
disponibilidade ao desconhecido. Isto que antes de qualquer coisa deve ser recusado é o
que já conhecemos: a miséria da condição presente. A guerra e a barbárie futura não
podem ser sacadas como armas de chantagem, porque a guerra e a barbárie as sofremos
todos os dias. O conhecido é que nos dá medo. Para derrotar esse medo devemos
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Revista Lugar Comum n.º 49 – outuno de 2017

predispormo-nos ao desconhecido. Não para estetizá-lo ideologicamente, mas para


conquistá-lo concretamente. Ainda nos servem tanto esforço e tanta disciplina para
respirarmos juntos, coletivamente, o ar da autonomia.

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