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Eric Voegelin e as Religiões

Políticas: Verdade e
Representação (Parte I)
Qual seria o ponto de encontro entre a religião e a
política?
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Estado da Arte
10 de maio de 2019 | 13h00

por Pedro Damazio Franco


1. Não se mistura religião com política
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Todo mundo já ouviu a velha história: era uma vez, o ser humano vivia em
sociedades onde a religião e a política se misturavam em promíscuas
relações de poder. Nessas sociedades, o mundo político era regido pelo mito
e pela superstição. As pessoas se aglomeravam em torno de fogueiras,
templos e igrejas para contar histórias fantásticas de como o mundo, o
homem e a sociedade vieram a ser. Deuses, monstros e heróis habitavam o
imaginário de qualquer um que tentasse fazer sentido do mundo em que
vivia, e as instituições que se propunham a explicar a natureza dessas forças
misteriosas eram recompensadas com prestígio e poder. Assim teriam
nascido as religiões instituídas, que por tanto tempo teriam mantido nossos
ancestrais cegos à razão e à ciência. Mas tudo isso teria começado a mudar
na era moderna, quando o avanço da ciência leva o homem a questionar o
poder e prestígio da religião. Na medida em que a sociedade progrediu,
teríamos aprendido então a separar a ciência da superstição, o fato do mito,
a política da religião. Daí o surgimento do estado laico e da separação entre
estado e igreja – uma medida protetiva para manter os irracionalismos da
fé longe das instituições políticas que haveriam de ser regidas pelo
progresso da razão.

Essa narrativa propagada pelo Iluminismo europeu já se tornou familiar a


qualquer um que hoje se educa no interior daquilo que chamamos de
cultura ocidental. Ela não é contada em torno de fogueiras e templos, mas
proferida por mestres das nossas instituições de ensino e por sacerdotes da
nossa mídia de massa. É uma história cativante, sem dúvida. Ela apresenta
a humanidade como protagonista de um drama com episódios marcantes
onde as forças do atraso e do avanço se confrontam na arena histórica, e
seus símbolos hoje habitam o imaginário de muitos cidadãos modernos que
procuram fazer sentido do mundo em que vivem. Muitos dos que contam
essa história também são recompensados com prestígio e poder, e muitos
que a escutam também adquirem a noção de que as personagens que
aparecem nela – o irracionalismo da fé, o império da razão, o progresso da
ciência e etc – podem ser vistas como forças atuantes no mundo em que
vivemos hoje. É uma narrativa que oferece portanto instrumentos para
reconhecer os heróis e vilões no drama da vida real e também para
discernir, em muitas de nossas ações e opiniões, se estamos ou não do lado
certo da História. É essa narrativa que está implícita, de uma forma ou de
outra, sempre que procuramos encerrar um debate com a famosa frase:
“Não se mistura religião com política”.
Não procurarei dizer aqui que essa narrativa é falsa, ou que o estado laico
não seja de fato uma conquista preciosa das democracias liberais do
Ocidente – seria difícil negar que algo da narrativa iluminista é, de fato,
verdadeiro. Há no entanto alguns motivos para adotar um olhar mais
crítico a ela, e creio que alguns entraves no nosso debate político
contemporâneo podem ser esclarecidos no processo. Para começar,
qualquer um que acompanhe a crescente polarização ideológica no nosso
atual cenário político pode facilmente observar que não basta tornar o
estado laico para eliminar fanatismos e irracionalismos da vida pública.
Quem quer que já tenha debatido com um adepto de uma ideologia já teve a
impressão de que a religião não é a única força capaz de induzir a fé cega e
de impor obstáculos à razão humana. Qualquer um minimamente versado
sobre a história da modernidade sabe também que não só em nome de
Deus se rouba, mata e espolia – mas também em nome da razão, da ciência
e do progresso. Resta então a pergunta: teria algo escapado de vista na
cruzada iluminista para extirpar a religião da política? Poderiam certas
ideologias modernas também servir como válvula de escape para as
mesmas forças irracionais que tentávamos abolir com a instituição do
estado laico?
Essas perguntas não são inéditas. No século XX, o mundo inteiro se
horrorizou com a força destrutiva das ideologias de massa do nazismo e do
comunismo, e não foram poucos os que procuraram explicar esses
movimentos como uma canalização malfadada de impulsos
religiosos[1].Entre os pensadores que desenvolveram teorias do gênero está
Eric Voegelin (1901-1985), talvez o maior filósofo político do século XX.
Voegelin viveu em Viena durante os anos 30 e testemunhou de perto a
ascensão das ideologias de massa que flagelaram a Europa e o mundo.
Antes mesmo da chegada de Hitler ao poder, Voegelin já travava uma
batalha nas universidades europeias contra a corrupção intelectual que
permitiria a aceitação popular do nacional socialismo. Ele escreveria dois
livros contrariando as tresloucadas teorias raciais do nazismo, e um terceiro
livro chamado As Religiões Políticasonde tecia duras críticas à
corrupção espiritual das ideologias de massa. Não é de se surpreender que
Voegelin tenha entrado na lista negra da Gestapo e tido que fugir para os
EUA. Nas décadas seguintes à sua emigração, Voegelin continuaria
elaborando suas teorias sobre o ambíguo ponto de encontro entre a
ideologia política e a fé religiosa. Desde então, o termo “religiões políticas”
tem sido usado como um instrumento teórico sugestivo na análise dos
fenômenos políticos modernos. Hoje, no Brasil, o termo se populariza cada
vez mais – tanto através do recente lançamento das obras voegelinianas em
português quanto através dos exemplos diários de irracionalismo ideológico
que observamos nas nossas disputas partidárias.
Um dado curioso e frequentemente ignorado da biografia intelectual de
Voegelin, no entanto, é que ele próprio eventualmente abandonaria o termo
“religiões políticas” pois, de acordo com ele, o conceito de ‘religião’ não é
suficientemente preciso para descrever o problema em questão. Com isso
tocamos em outra qualificação necessária a se fazer na frase “não se
mistura religião com política”: o que, afinal, queremos dizer com a palavra
“religião” aqui? É comum que frases desse tipo – isso é, frases que
conseguem encerrar tantos debates com tanta facilidade – passem a ser
usadas como jargões empreendidos meramente para encerrar debates, sem
que se reflita apropriadamente sobre o que ela significa realmente. Muitas
vezes podemos esquecer, por exemplo, que nosso desejo de separar a
religião da política reflete acontecimentos relativamente recentes na
história do Ocidente, e que nosso conceito de “religião” deriva grande parte
de seu significado de uma tentativa bastante particular de distinguir o
religioso do não-religioso. Essa tentativa está atrelada à história intelectual
do ocidente moderno, e se deu em meio a uma disputa institucional entre o
estado secular moderno e as instituições eclesiásticas da Europa. Temos
que ter em mente então que grande parte da linguagem que se desenvolveu
sobre a disputa religião vs.política teria como objetivo não necessariamente
produzir conceitos científicos, mas demarcar os terrenos dessa disputa
institucional. É por isso que quando falamos que “não se mistura política
com religião”, normalmente queremos dizer que não se deve
misturar Estado com Igreja: os termos estão profundamente associados à
uma discussão relacionada às atribuições jurídicas das instituições
que representam a religião e a política, isso é, a igreja e o estado.
Voegelin procura nos lembrar, no entanto, que nem o Estado detém o
monopólio sobre o político e nem a Igreja detém monopólio sobre o
religioso – não podemos confundir instituições representativas com aquilo
que elas se propõe a representar. A instituição religiosa sem dúvida é uma
forma externa sem a qual a religião não poderia adquirir concretude social,
mas a religião em si não pode ser resumida apenas a isso. A religião está
também profundamente atrelada àquilo que motiva o ser humano
a expressar, através dos rituais, dos dogmas e das narrativas religiosas a
sua experiência do sagrado. É essa experiência que está na origem da
religião. Se quisermos então responder a pergunta se ideologias modernas
podem de fato adquirir um caráter de ‘religiosidade’, temos antes que
explorar os processos mais fundamentais através dos quais o ser humano
constrói a sua hierarquia de valores, sua visão de mundo e autojustificativas
existenciais. Explorando esses processos, talvez cheguemos a conclusão de
que tanto a religião quanto a política podem ser resultado de forças
fundamentalmente relacionadas através das quais o homem adquire a sua
concepção do sagrado.

2. Narrativas e verdades
Entre as maneiras mais fundamentais através dos quais o ser humano
constrói sua visão de mundo está, como vimos, a narrativa. Durante a
maior parte da história humana, a narrativa será o instrumento principal
através do qual a cultura exprime as suas noções do que é sagrado e
profano, certo e errado, justo e injusto. Já vimos também que, mesmo
removendo as mitologias religiosas da vida pública, o homem moderno
ainda cultiva a necessidade de expressar narrativamente a natureza do
mundo em que ele vive. Para justificar suas ações, suas devoções e
lealdades, não basta que o homem descreva o mundo objetivamente – ele
precisa recontá-lo narrativamente. O homem afinal não é um mero
observador passivo da realidade – ele é um seu participante ativo. Por mais
que possa se distanciar do mundo e jogar o jogo da objetificação, ele
eventualmente terá de fazer escolhas, agir sobre elas e assumir
responsabilidade por suas ações. Para que essa dimensão
fundamentalmente humana da realidade ganhe expressão e nos orientemos
dentro dela, precisamos então contar nossa própria história de modo que
ela faça sentido. Na medida em que procura recontar o mundo como um
drama no qual é um participante ativo, o homem adquire não somente um
mapa do mundo em que vive mas também um senso de identidade e a
noção de que ele é o protagonista da própria vida. As histórias que
contamos a nós mesmos são portanto uma parte essencial daquilo
que somos – e não à toa nos sentimos tão ansiosos ou até mesmo
“incompletos” cada vez que nossas narrativas axiomáticas cedem a ataques
ou perdem sentido. Quando defendemos as narrativas que acreditamos,
não estamos apenas firmando alianças político-sociais mas também (e
talvez principalmente) garantindo a integridade do nosso próprio senso de
identidade. Narrativas são portanto um instrumento primordial na
preservação da experiência de que somos participantes significativos no
drama do ser.
Voegelin sugere que a necessidade de interpretar a realidade como um
drama do qual participamos não se manifesta somente nos indivíduos, mas
também no nível da coletividade. Toda sociedade humana, diz Voegelin, é
incumbida da tarefa de criar uma narrativa desse tipo para se manter uma
comunidade coesa. Toda cultura cria, através das suas obras, narrativas e
símbolos, a imagem de um mundo ordenado – um cosmion, como chama
Voegelin. Na medida em que desenvolvem uma linguagem comum que se
tornem capazes de se comunicar uns com os outros, os membros de uma
comunidade passam a compartilhar esse cosmion e, portanto, a
experimentar suas vidas como ordenadas por uma narrativa abrangente
que explica, justifica e sacraliza a existência da comunidade e seus
membros. Uma comunidade se mantém coesa, portanto, na medida em que
essa orientação existencial se preserva como uma experiência socialmente
compartilhada, ou seja, na medida em que a narrativa é tida
como verdadeira por seus membros. Daí que, dirá Voegelin, uma sociedade
que cria um cosmion compartilhado se enxergará como representativa da
verdade da existência.
Algo mais deve ser dito sobre essa última frase. A noção de que uma
sociedade possa ‘representar a verdade da existência’ deve soar um pouco
estranha às nossas sensibilidades modernas, mas podemos clarificá-la com
alguns exemplos. Suponhamos que alguém diga – como é comum ocorrer
tanto no discurso popular quanto em colóquios acadêmicos – que ‘não
existe verdade’. Mesmo que o enunciador desta frase esteja convicto da sua
validade, isso não elimina de modo algum a questão da verdade da
existência. Dizer que não existe verdade e que tudo é relativo não
simplesmente liberta o sujeito do fato bruto da sua existência no mundo
real onde vivemos, agimos e assumimos responsabilidade por nossas
escolhas. Afinal, se para ele é verdade que não existe verdade, então é
verdade que ele deve viver como se não houvesse verdade. A narrativa
relativista portanto só pode ser tida como realmenteverdadeira se implica
uma realização existencial dessa verdade no sujeito que a toma como
verdadeira.
Se a questão ainda não está clara, um outro exemplo pode ajudar ainda
mais: suponhamos agora que uma sociedade se considere absolutamente
secular e pluralista, não admitindo ser guiada por nenhuma ‘verdade
absoluta’. De um modo ou de outro, essa sociedade ainda precisará se
constituir concretamente de modo a comportar a possibilidade de várias
verdades antagônicas conviverem harmoniosamente. Afinal, se é verdade
que não existe verdade absoluta pela qual se possa guiar uma sociedade,
portanto é verdade que deve se criar dispositivos institucionais concretos
para acomodar o almejado pluralismo de verdades. Em outras palavras, a
sociedade em questão deverá criar uma constituição que reflita a verdade
de que não existe verdade absoluta. De um modo ou de outro, a sociedade
secular pluralista também terá que se enxergar como representativa da
verdade (que não existe verdade) se deseja se constituir historicamente.

Não desejo entrar na questão se tal forma institucional é viável ou se é


realmente possível um indivíduo viver como um cético-relativista em
sentido estrito. Com esses exemplos procuro apenas ilustrar que, no mundo
real em que seres humanos agem e assumem responsabilidade pelo que
fazem e dizem, tanto a forma institucional concreta de uma sociedade
secular pluralista quanto a vida concreta de um cético-relativista servem
como representações concretas daquilo que é tido como efetivamente
verdadeiro pela sociedade ou pelo indivíduo em questão. Se
compreendermos essa noção básica, compreendemos também um dos
princípios fundamentais da teoria voegeliniana da representação, que cabe
ser esclarecida a seguir.

3. Representação existencial
O conceito de “representação” é normalmente usado na ciência política
moderna para se referir ao que Voegelin chama de representação
constitucional, isso é, a ideia de que autoridades eleitas devem representar
a vontade do povo que os elegeu. Voegelin alerta no entanto que esse
conceito de representação deve ser distinguido e complementado por outro.
Isso porque não basta para um governo que deseja preservar sua
autoridade ser apenas constitucionalmente representativo, mas ele deve
também ser representativo no sentido existencial de realizar a ideia por trás
da instituição. Governos – sejam democráticos, autoritários, monárquicos
ou de qualquer outro tipo – não dependem apenas do funcionamento
estável de suas instituições basilares. Eles dependem da manutenção de
um cosmionsimbólico que abriga tanto o indivíduo quanto a sociedade em
uma narrativa onde ações simbólicas se orientam por um papel a ser
desempenhado no grande drama do ser. É somente quando o homem
enxerga a sua ordem política como integrada de forma harmoniosa na
ordem do ser, diz Voegelin, que o governo será tida como representativo.
Voegelin enfatiza portanto que arrogar o conceito de “representatividade” a
um tipo particular de articulação institucional “é um sintoma de
provincialismo político e civilizacional. E provincialismos desse tipo,
quando obscurecem a estrutura de realidade, podem se tornar
perigosos.”[2] Esse perigo pode se manifestar de forma clara em sociedades
em que as classes governantes se isolam da população e passam a justificar
sua autoridade em linguagens herméticas e inacessíveis. Por mais que se
diga representante do povo, o poder adquirirá um caráter de
arbitrariedade, a desarmonia com a ordem do ser será sentida e isso poderá
colocar em perigo o regime. Nos nossos tempos, a ascensão do populismo
anti-establishment pode ser vista como um sintoma desse tipo de crise, que
pode, em último caso, levar déspotas e tiranos ao poder. Para Voegelin, o
motivo pelo qual isso acontece é claro: “se um governo é representativo
apenas no sentido constitucional, um governante representativo no sentido
existencial, mais cedo ou tarde, por-lhe-á fim; e, muito possivelmente, o
novo governante existencial não será dos mais representativos no sentido
constitucional.” Voegelin argumenta que o aviso também serve para
explicar o fracasso ocidental em exportar “instituições representativas”
para outras sociedades ao redor do mundo. Essa política externa
equivocada teria sido “um fator agravante à desordem internacional através
de seu sincero porém ingênuo desejo de curar os males do mundo
espalhando instituições representativas no sentido [constitucional] para
áreas onde as condições existenciais para o seu funcionamento não eram
dadas.”

4. A verdade do cosmion antigo


A ideia de que um governo deva representar não somente o povo mas a
verdade da existência, Voegelin argumenta, é um princípio que norteia a
estrutura política de diversas sociedades antigas e modernas. Antes de
retornar à modernidade, podemos começar com um exemplo do mundo
antigo. Das diversas civilizações que Voegelin estuda, talvez em nenhuma
outra essa ideia esteja tão clara do que no antigo império Egípcio. A palavra
frequentemente traduzida como ‘verdade’ que encontramos nessa
sociedade é “maat”, um símbolo de difícil tradução nas línguas modernas.
Sobre a polivalência desse símbolo, Voegelin explica que, “como a Maat do
cosmos, ela teria de ser traduzida como ordem; como a Maat da sociedade,
como bom governo e justiça; como a Maat do verdadeiro entendimento da
realidade ordenada, como verdade.”[3] Na mitologia egípcia, essa ideia se
apresenta em forma narrativa através da deusa Maat, a filha de Rá que, na
criação do universo, ergueu do caos primordial a primeira morada dos
deuses. Todo o mundo ordenado, portanto, vive sobre Maat. A Maat divina
transforma o caos em ordem, perpassando então todo o mundo natural e
toda a sociedade. Maat é a força garantidora não somente do movimento
dos astros e da passagem das estações que sustentam a existência humana,
mas também do próprio funcionamento ordenado da sociedade que garante
a convivência harmoniosa entre os homens. Na ordem política, o Maat se
transmite do deus diretamente ao faraó, cuja soberania se torna então o
condutor da verdade divina para o ordenamento social. Quando
propriamente dirigidas pelo faraó, as instituições reais estarão portanto
imbuídas de Maat, assim como os agentes do faraó que agem sob a sua
vontade também estão imbuídos de Maat.
Maat, o conceito egípcio de verdade e justiça, e a divindade que o encarnava.

Essa transmissão da verdade divina da realeza até os agentes reais que


garantem a lei e a ordem é, durante algum tempo, operada de modo
hereditário, mas o mesmo princípio será evocado também nos processos de
burocratização que se observam na IV Dinastia, onde o faraó apontaria
funcionários para agir em seu nome. Voegelin cita o extraordinário relato
de Rekhmire, o vizir do faraó Tutmoses III, na ocasião de sua nomeação:
“Minhas habilidades não eram mais como haviam sido: a minha natureza
de ontem havia se alterado, desde que [vim a ser] o Profeta de Maat. […]
Eu agi em conformidade com aquilo que ele [faraó] ordenou. […] Quando
julguei o peticionário, não fui parcial. Não voltei meu rosto em busca de
recompensa. Não fiquei bravo com o peticionário nem o repreendi, mas eu
o tolerei em seu momento de explosão. Resgatei o tímido do violento.”

Na ordem faraônica do Egito, portanto, a verdade da existência é uma


substância que se transmite do deus, através do faraó e seus funcionários,
até o mais humilde e tímido peticionário na corte. Através dessa
simbolização mítica da verdade da existência, todos os membros da
sociedade Egípcia poderiam então experimentar a sua existência como
representativa da verdadeira ordem do ser.
Essa dinâmica de representação teria consequências interessantes nos
embates entre civilizações que, cada uma à sua maneira, enxergavam a si
mesmas como representativas da verdade da existência. Afinal, se a ordem
faraônica é representativa da verdade, da justiça e da ordem, o que
poderiam seus inimigos representar senão a mentira, a injustiça e o caos?
Derrotar esses inimigos não se trataria então apenas de uma questão de
estabelecer a paz no reino ou de expandir o poder político do faraó, mas de
garantir a canalização efetiva da verdade (maat) no mundo. Certamente
haveria, naquela época como na nossa, aqueles que agiriam apenas por
interesse pragmático e desejo de poder – mas até mesmo o analista mais
cínico deve reconhecer que uma causa dificilmente prospera a não ser que
alguém acredite nela; a não ser que o sucesso da causa represente, pelo
menos para alguns, a vitória de um princípio mais alto, seja a justiça, o
progresso ou uma verdade divinamente ordenada.

Antes de trazer a discussão às ideologias da modernidade, talvez um outro


exemplo do mundo pré-moderno valha ser mencionado. No século XIII,
mais de mil anos depois do apogeu da ordem faraônica, hordas de
cavaleiros advindos das estepes mongóis fariam incursões devastadoras no
território asiático e europeu. Na medida em que a Horda Dourada avançava
sobre território cristão, o papado procurou enviar emissários aos agressores
para questionar a legitimidade dos massacres promovidos pelo Khan
mongol, ocasionando então um curioso embate entre concepções rivais de
ordem. Segue parte da resposta enviada pelo Khan ao papado:
Vós me enviastes estas palavras: ‘Vós tomastes os reinos dos magiares e
dos cristãos em sua totalidade… Dizei-me que falta cometeram os
cristãos?’
“Essas palavras vossas, nós não as compreendemos.
(Para evitar, no entanto, qualquer aparência de que tenhamos evitado
esse ponto com o silêncio, falamos em resposta a vós desta maneira:)


O Deus eterno matou e destruiu os homens daqueles reinos.
Salvo para cumprir a Ordem de Deus, como poderia alguém, por sua
própria força, matar e conquistar?
Agora, vós deveis dizer com a sinceridade no coração:
‘Nós seremos vossos súditos;
Nós vos daremos nossa força’…
Então nós reconhecermos vossa submissão.
E se vós não observais a Ordem de Deus,
E se desobedeceis nossas ordens,
Saberemos que vós sois nossos inimigos.”
Para Voegelin, essas palavras refletem uma sofisticada teologia política. De
acordo com a lei mongol na qual a mensagem se sustenta, o Khan é
considerado “único senhor dos homens sobre a terra”, o que significa dizer
que o império mundial do Khan tem existência de jure mesmo que ainda
não esteja realizado de fato. Dentro dessa concepção, não se pode dizer que
os inimigos do Khan estão legitimamente ‘em guerra’ contra a Ordem de
Deus. Eles no máximo estariam “em rebelião” contra ele, pois mesmo que
ainda não tenham sido efetivamente conquistadas, todas as sociedades
humanas já fazem parte do império mongol em virtude da Ordem de Deus.
O Khan pode se arrogar tal autoridade pois ela se sustenta sobre a verdade
inegável que rege o cosmion mongol: Deus concede poder àquele que o
conquista. A Ordem de Deus portanto legitima a sociedade que reconhece
essa verdade, e aquele que a coloca em ação adquire através dela a
soberania sobre todo o mundo – mesmo sobre aquele mundo ainda por
conquistar. A expansão do império mongol, diz Voegelin, segue portanto
“um estrito processo jurídico. As sociedades cuja hora de integrar-se de fato
ao império é chegada devem ser notificadas por embaixadores da Ordem de
Deus e instadas a oferecerem a sua submissão. Se recusarem… serão
consideradas como rebeldes e contra elas serão tomadas sanções militares.
O império mongol, assim, de acordo com a sua própria ordem jurídica,
nunca se engajou em guerras, mas apenas em expedições punitivas contra
súditos rebelados do Império.” Daí que o Khan pode dizer que não foi o seu
exército que massacrou os cristãos e magiares, mas sim a própria verdade
divina se manifestando no campo de batalha.

Estátua equestre de Gengis Khan na capital mongol Ulaanbaatar.

Poderíamos facilmente acreditar que o modo de autolegitimação do


khanato mongol ou do antigo império egípcio são curiosidades excêntricas
de um passado obscuro. Estaríamos, no entanto, enganados. Voegelin nos
mostra que essas sociedades exibem uma estrutura de autojustificação
política que se repete ao longo da história, inclusive na modernidade.
Vejamos agora alguns exemplos mais recentes.

5. Do lado certo da história

No final do século XVIII, a França se tornou palco de um dos episódios


mais sangrentos da história humana. Entre Setembro de 1793 e Julho de
1794, trezentos mil franceses e francesas (2% da sua população na época)
foram encarcerados pelo recém empossado governo revolucionário. Nesses
poucos meses, a guilhotina produziu mais cadáveres do que a Inquisição
católica teve oportunidade de criar em quatro séculos. Nos arredores de
Paris, franceses refratários à Revolução também foram massacrados pelo
exército revolucionário na ordem dos 170,000. Em seguida, uma vez que
toma o poder, Napoleão Bonaparte canalizaria as forças revolucionárias em
uma guerra tal como o mundo jamais havia visto antes, cobrando o preço
adicional de 3 – 6 milhões de vidas humanas. O que exatamente fez as
pessoas acreditarem que estavam no caminho certo? De que forma tal
banho de sangue foi justificado? Claro que não podemos generalizar a
maneira com que cada revolucionário enxergava o seu papel no movimento
do qual participou (e não podemos também esquecer todas as contribuições
que a Revolução Francesa legou ao campo das ideias que formaram as
nossas democracias modernas). De qualquer forma, o historiador Reinhart
Koselleck aponta que, nos anos antecedendo a Revolução, surgiria um
modo radicalmente novo de legitimar a ação política que mudaria para
sempre o mundo moderno.[4]
Outubro de 1793: suplício de 9 emigrados durante o Reino de Terror na França
revolucionária.

Entre as ideias inovadoras que se discutiam nos cafés literários de Paris na


época estava a chamada “filosofia da história”, isso é, a ideia de que a
história tem um sentido, um rumo ditado pelo progresso da humanidade.
Essa ideia postula que, se avaliarmos o desenvolvimento das civilizações
passadas até a nossa, podemos ser capazes de discernir a direção para a
qual a sociedade caminha e, portanto, qual seria o destino final da
Humanidade. Diversas filosofias da história foram formuladas desde então,
cada uma apontando para um destino diferente – seja o triunfo da
democracia liberal, da utopia positivista, da ditadura do proletariado ou do
Reich de mil anos. Em todas elas a história é concebida como tendo
um telos, uma direção e um fim que é compartilhado por todos os seres
humanos que contribuem (conscientemente ou não) para a sua
consumação. Nessa concepção, a vida e a ação dos homens individuais
adquirem sentido na medida em que se integram no sentido maior da
história da humanidade. Qualquer movimento político que buscasse
legitimidade a partir de então precisaria portanto se colocar, como a velha
frase diz, “do lado certo da História”.

Koselleck argumenta que essa nova filosofia da história proporcionaria um


valioso instrumento de poder a forças revolucionárias ao conceder ao
revolucionário uma espécie de ‘anonimato moral’. Isso porque, ao dizer que
age ‘em nome da história’, o revolucionário poderia transferir sua própria
responsabilidade moral para uma força anônima e arrebatadora que
culminará na perfeição da sociedade futura. Se ele age com o fim da história
em mente, no fundo não é ele quem age mas a História que age através
dele. Tendo vislumbrado a direção do progresso da humanidade e o sentido
final da história, a Revolução Francesa e outros movimentos
revolucionários poderiam então ser vistos pelos seus entusiastas não como
uma mera guerra entre facções mas como o cumprimento de postulados
morais universais e consumação efetiva da verdade da história. Se o fim da
história é cognoscível, então aquele que trabalha para sua consumação é
um representante da verdade.

Já na esteira da Revolução Francesa alguns se mostrariam cientes dos


efeitos que essa nova forma narrativa teria na concepção que os homens
têm da sua própria agência moral. No seu ensaio sobre a nascente
democracia americana, Tocqueville demonstra preocupação com certas
tendências na escrita historiográfica da época. Os historiadores da era
moderna, observa o pensador francês, parecem atribuir mais importância a
grandes mecanismos impessoais do que a homens de carne e osso como
principal elo causal da história humana. “Lendo essas histórias,” diz
Tocqueville, “somos muitas vezes tentados a supor que (…) sociedades
estão agindo inconscientemente em conformidade com alguma força
dominante superior.”[5] Enquanto na historiografia antiga sobressaía a
noção de que os indivíduos poderiam se tornar mestres do próprio destino
através da autodisciplina, as histórias da era moderna parecem sugerir que
o homem na verdade não tem nenhum poder sobre si mesmo frente às
grandes forças motores que ditam o progresso da humanidade. Tocqueville
temia que, caso essa perniciosa ‘doutrina da fatalidade’ se transmitisse dos
historiadores aos cidadãos, ela poderia paralisar moralmente os cidadãos
das novas sociedades. “Nossos contemporâneos”, diz Tocqueville, “já são
muito inclinados a duvidar do seu livre arbítrio pois cada um deles se sente
por todos os lados restringido pelas próprias fraquezas.” Para preservar
seus discernimentos morais e existenciais, precisaríamos então elevar o
espírito do homem, não submergi-lo em uma corrente inabalável de forças
impessoais.
Alexis de Tocqueville

Apesar do alerta de Tocqueville, inúmeros movimentos após a Revolução


Francesa continuariam a justificar suas ações em nome das engrenagens
incoercíveis da História. O paralelo com as formas autojustificativas da
antiguidade se torna mais claro quando avaliamos talvez o maior
empreendimento imperialista do século XX: a União Soviética. Na
concepção histórico-filosófica que motivou a Revolução Russa, é certo que a
H

istória caminha para a instauração de uma sociedade sem classes. Na


dialética marxista que legitima o império soviético, portanto, “a verdade da
ordem cósmica é substituída pela verdade da ordem imanente da história.
E, no entanto, o movimento comunista é representante dessa verdade no
mesmo sentido em que um Khan mongol era o representante da verdade
contida na Ordem de Deus; e a consciência dessa representação leva às
mesmas construções políticas e jurídicas encontradas nos outros exemplos
de representação imperial da verdade. Sua ordem está em harmonia com a
verdade histórica; seu objetivo é o estabelecimento do reino da liberdade e
da paz; seus oponentes opõem-se à verdade histórica e serão, por fim,
derrotados; ninguém pode empreender uma guerra legítima contra a União
Soviética pois passaria assim a ser um representante da inverdade
histórica, ou, usando a linguagem contemporânea, um agressor; e as
vítimas não são conquistadas, mas libertadas de seus opressores e, em
consequência, da inverdade de sua existência.” Sob o véu dessa forma
justificativa, a União Soviética e o movimento comunista promoveriam um
número de mortes que compete com todas as guerras religiosas da história
humana tomadas em conjunto. Se, no entanto, perguntássemos a Stalin
porque teve que cometer tantas atrocidades, não seria surpreendente que
recebêssemos uma resposta parecida com a que o Khan enviou ao papa:
Não foi ele, nem o Partido Comunista, nem a KGB, nem o Exército
Vermelho e nem o gulag que matou esses homens – foi a verdade da
História agindo através deles.

Cena de “Os Demônios”, filme de Andrezj Wajda baseado na obra homônima de


Dostoiévski.

Diversos outros estudos procuram explorar as catástrofes ocasionadas por


narrativas que diluem a agência moral humana nas forças incoercíveis da
história. Antes mesmo da Revolução Russa, Fiódor Dostoiévski já se
consolidava como um dos observadores mais astutos dos dilemas morais
ocasionadas pelas narrativas modernas que o Ocidente exportara para a
Rússia tsarista. No romance Os Demônios (1871), ele relata uma reunião
entre líderes revolucionários determinados a derrubar o governo. Em
determinado momento, alguém busca medir os custos morais da revolução:
Até que medida o assassinato é justificável para o avanço da causa?
Estaríamos justificados em matar centenas, milhares, ou até milhões de
inocentes para atingir o fim almejado? A resposta do revolucionário é
categórica: Milhões? Para que temer esse número!? O sofrimento de uma
época, por mais acentuado que possa ser, é um preço pequeno a pagar pela
garantia de paz em todas as épocas futuras. A discussão é imaginária mas,
já em sua época, surpreendentemente plausível – na época seguinte se
mostrou verdadeiramente profética através do morticínio sem precedentes
promovido pela revolução comunista.
O romancista russo empreende uma análise semelhante em Crime e
Castigo (1866), que também é relevante à nossa discussão. O protagonista
desse romance, Rodion Raskolnikov, é um brilhante e promissor estudante
de direito que enxerga a si mesmo como um pequeno Napoleão, um líder
destinado a avançar as engrenagens da história. A situação financeira de
Raskolnikov, no entanto, não era das melhores. Vislumbrando o bem que
poderia fazer em nome do progresso da humanidade se apenas tivesse os
meios, ele resolve então assassinar e roubar o dinheiro de uma velha agiota
que considerava um ser desprezível, uma representante fidedigna do atraso
e da injustiça. Afinal, se Napoleão estava justificado em deixar alguns
corpos na esteira do progresso, ele também estaria. Após o assassinato, no
entanto, Raskolnikov não consegue negar por muito tempo a sua
responsabilidade pessoal em nome das engrenagens impessoais da história.
Sua justificativa cai por terra, e ele eventualmente cede a realização de que
cometera o mais grave dos pecados.
Nem todos os personagens da era moderna, no entanto, se renderam tão
facilmente a tais instintos morais. No seu clássico estudo sobre a
banalidade do mal, Hannah Arendt relata alguns dos truques psicológicos
explorados por Heinrich Himmler, arquiteto do holocausto nazista, para
preparar sua legião de assassinos para a tarefa que lhes era exigida. Ao
convencê-los de que eram peças fundamentais para a consumação do
destino histórico da nação alemã, Himmler lhes permitia redirecionar a
pena instintiva que sentiam em relação às suas vítimas para ninguém mais
do que eles próprios. Dessa forma, explica Arendt, “ao invés de dizer ‘Que
coisas horríveis eu fiz com as pessoas!’, os assassinos poderiam dizer ‘Que
coisas horríveis eu tive de ver na execução dos meus deveres, como essa
tarefa pesa sobre meus ombros!’”[6]. A culpa pelo massacre dos judeus
portanto não era a dos agentes da SS, mas da História que os colocou nessa
infeliz porém inevitável posição.
Esse modo de autojustificativa histórico-filosófica se encarna nos
movimentos de massa da modernidade na medida em que eles procuram
diluir a substância moral do homem no telos da história. Auxiliada pela
retórica de seus líderes, esse telos apontará para uma sociedade futura que
vive em paz perpétua e liberdade absoluta, e os indivíduos poderão então
justificar os desvios morais mais atrozes em nome da utopia prometida. O
custo do mal presente – da guilhotina, do gulag e do holocausto – é
atenuado pela realização de que seus arquitetos são representantes de uma
verdade superior àquela representada pelas forças recalcitrantes do
presente. Mesmo que o futuro não tenha ainda conquistado o passado, a
verdade já está do lado daqueles que agem com o fim da história em mente.
A utopia da qual extraem sua autoridade revolucionária portanto já
existe de jure mesmo que ainda não exista de facto, e isso lhes permite
atropelar as forças do atraso com a mesma autoridade que o Khan mongol
avança a Horda Dourada sobre os que ignoram a Ordem de Deus.

6. Conclusão

Procuremos agora retornar à pergunta que deu origem à discussão: qual é o


ponto de encontro entre a religião e a política? As analogias que listamos
entre as formas teocráticas do passado e as autojustificações ideológicas da
era moderna são de algum modo reveladoras e podem apontar semelhanças
estruturais entre a fé religiosa e a fé política – mas essas analogias só
podem nos levar até certo ponto e muitas perguntas permanecem em
aberto. Afinal, a fé em Deus e a fé na História, apesar de tudo, são coisas
dramaticamente diferentes, e apontar semelhanças estruturais entre formas
políticas e formas religiosas de autojustificação não significa
necessariamente uma equivalência substancial. Muito resta dizer sobre o
caráter distinto que esse sentido adquire no contexto religioso ou político.

Sugerimos que, no contexto moderno, certas narrativas ideológicas podem


influir drasticamente na concepção que indivíduos tem da sua
responsabilidade moral ao diluir a substância do homem em um
movimento justificado histórico-filosoficamente. Falamos pouco, no
entanto, sobre como narrativas religiosas absorvem a substância do homem
dentro de uma concepção do sagrado. Não poderemos então esclarecer
muita coisa sobre as diferenças e semelhanças entre religiões e ideologias (e
nem ao menos definir esses conceitos apropriadamente) se não tratarmos
esses pontos.

Essas perguntas, no entanto, terão de ficar para a segunda parte deste


ensaio. Apenas começamos a explorar a maneira como Voegelin teorizou
sobre as forças misteriosas que entorpecem o intelecto e a moral humana, e
o mais importante ainda resta dizer. Esperamos então que essas palavras
possam ajudar a divulgar o pensamento de um filósofo ainda amplamente
desconhecido, porém indiscutivelmente relevante.
Pedro Damazio Franco é bacharel em Comunicação Social e mestre em História Social
da Cultura pela PUC-Rio.

Notas:
[1] Para um valioso compêndio de teorias do tipo, ver SILVA, Nelson
Lehman.A Religião Civil do Estado Moderno. SP: Vide Editorial, 2016.
[2] The New Science of Politics. p. 50.
[3] VOEGELIN. Israel and Revelation. p. 118-9
[4] KOSELLECK. Crítica e Crise. p. 161
[5] TOCQUEVILLE. “Volume 2, Part 1, Chapter 20”. In: Democracy in
America.
[6] ARENDT. Eichmann em Jerusalém. p. 121-122.

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