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ZANGA

RREIO
andré capilé
junho/2011
uma observação de Valéry me
esclarece:

“(...) se me inte-
rrogarem, se se in-
quietarem (…) sobre
o que eu quis diz-
er em tal poem-
a, respondo que não
quis dizer, e sim quis
fazer, e (...) foi a in-
tenção de fazer que
quis o que eu di-
sse...” os grif-
os são dele, o re-
sto é tudo no-
sso, ou qua-
se isso.

capilé

Para minhas mães, sempre. Panapaná.

Para Bael, meu maninho, meu melhor.


Para Pedro Paiva, mano meu, parceiro.
fuga per canonem
para Daniel Bueno

Do mitologema que me contou Murilo


divido margem a margem de rio
o medo fêmeo do delírio mudo.

Na volta à terra sem som, soube: se há lama,


há nome sem festa alguma, mas vem já fama,
lançado ao labirinto curto da poltrona.

Afina a boca – argila sem tempero –


e, pasma, a cara fecha, mas a carne fala.

Reza azuela, firma o tempo


e firma o ponto, sola grave.
Segue firme o pulso de borda
da corda que segue em rebate.

Alfange, de lâmina gusa,


do bote lambido de furo e corte,
leva a costela e vem a chuva
que mela o rosto, melodia. Note:

ginga de comer a fala, lambuza.


A língua não traduz em música –
mi muscular, violoncela, maiúscula –
a mulher, sempre mais que musa.

Matraca, bala curva do ruído?


Certo odiar o jogador?
Talvez. Nunca o jogo do ritmo.
Nouvelle Cuisine
para e com Luiz Coelho

Quente ou frio?

A entrada deixe em fogo brando:


ao ponto de calda, segmente:
evite miúdo a empelota.

Com o terço debulhar os cravos.


Com cuidado palmilhar chalotes.
Após persignar falta um só fio:

firme, atenue o tom até o fim –


no arremate, o palato, não amarga.
Com rigor, prove o caldo do gargalo.

Vigie os dedos e a pança da moleza:


a colher tende a manter tudo no raso.
As alfaces não são roxas por acaso.

Siga firme, sem lombada, a folha


vibre, sempre que sentir ela regada.
Deixe repousar, já não há pressa
(comer cru também é parte do regalo).

Refestele-se. Gozo há, mesmo sem prato.


Vigília
para Tiago Rattes

Não perde posto, o espia.

Arrasta os guizos e, sem


pressa, confere os furos
das cercas em cada volta
de ronda. Cuida que não
haja a fatura dos varais.

Não há fabrico à boca


da noite. Para, ajeita,
recolhe. O pé marca
a inflamação do dia.

Melhor curar o esporão,


depois desafinar os galos.

Quem se sabe – e como


calígrafo maneja tão bem
o pente, quanto o mourão –
desce, medido em corte,
a extensão. Mas quem
o sabe, melhor ainda,
escolta o berro à cama.
Bilhete
para Helena, amor

Busco entender os eventos menores


enquanto resolvo como ficar
entre sobras – sem forçar mais que o necessário.

Embora não haja com quem falar


da ordinária precisão do banal,
saiba que no correr das últimas semanas
tenho me dedicado a novos temas:
um vário repertório de coisas inúteis.

Um modo de retomar a leveza?


Pode ser. Não quero mais fim do mundo,
nada de “últimos tempos”, nem assuntos pingentes.

Mas quando acesso a lotação


dos nossos dias juntos, temo
não parar de pensar que ter
passado todos os momentos
entre estantes e prateleiras,
sapatos e meias, me fez
desfiar o que nos restava:
pouco menos ou quase nada.

Já comecei, não se preocupe,


pois serão poucas as viagens.

O que tenho tentado dizer é


que só levo, por enquanto, o que posso
carregar – sem que nenhuma lembrança
viva dentro em mim como peso morto.

Vê: terminei de esvaziar uma ala inteira –


a falta não faz a medida das gavetas –
e torço, se tiver que cavar esse quase
nada, escolher a melhor fuça de surpresa.

Agora o difícil, difícil mesmo,


é sacar, sem você, como aprontar as malas.
uma (falta de) arte glosadinha
para Larissa Andrioli

“Com timbre falso de um gemido plano –


e o tempo que perdi chupando abiu –
componho um nunca mais do tipo mambo”.

Quando escapou de mim o seu quadril


de largo nó, madame; aqui reclamo
do baixo tom com que se despediu.

Avanço nesse caso terminado,


como música exausta no repeat,
livre revide de um disco arranhado:
tu, Diva gorda, canta teu apetite.

“Olha, a arte de perder não dá diploma;


pelo contrário: conversa sem goma.
Canção que não nos livrou do desastre
de termos dividido o mesmo catre”.
prêt-à-porter
para Cecília

Vi lagartas andarem sem renúncia,


assumidas como decoração
nos jardins, em trânsito de pelúcia.

Um tanto de pernas, sem equilíbrio,


fazem migalha do rastro: fascínio.
Pé Duro
para Luiz Fernando Priamo

Não há vida que tome conversão.


Claro que não, quando a trilha que toca
desvia vigas. E a língua, sem coro,
faz molambo os joelhos sem sintaxe.
Tunga
para Oswaldo Martins

Chamar para o bailado bom negócio

Vá devagar todo cuidado é pouco


Comum dizer não dobra a tal esquina
Sem pressa galo pardo a vida é louca

Um passo por vez calma quase lá


Dureza deve ser tensão de cinta
Abre os olhos sai do escuro coragem

Íntimo só fique quando for claro


Melhor partir discreto na surdina

Antes poupar a voz virá discurso


Esquece sua dança aprenda esquiva
mind the gap
para Anelise Freitas

pau menor / pau maior


tudo junto misturado

a manada se muvuca
a pica gonga a pino

mané boca miúda


ruína da lábia
só furna boceta
da loba na rua tropica
no beiço do inferno
cafua de beira de trilho
marraio não fica na pista
o avesso do cu arrepio
dondoca vestida pra festa
vaca louca babada no pufe
encapado o galudo não enverga

se fosse cabê-lo
botava
se fosse cabê-lo
tirava
se fosse cabelo
puxava
se fosse cabelo

tosava

teu pelo de poodle


teu pelo de potra
teu pelo de puta

madame
Germina
para Clarissa, irmã

Como pode o papel vivo,


gerado da festa bruta,
dobrar-se em novo motivo?

Talvez dar-se como fruta


afeita ao termo do surto
de saltar da própria gruta.
Terra-a-Terra
para Alexandre Faria

Mapas de menos, posta a vez do GPS –


atlas de atalho que encurta as costas do mito –
milho aos pombos de antanho no farfalho
das folhas ressecadas dos catálogos.

Usam novos gastadores de dígitos,


atuando como FARIA disse –
em Urânia – que no Google dos dedos
se refavela arquitetura das cidades.
Alarma
para Patrícia, mãe

Confirmar a mãe no presente:


os cotovelos duros na janela
caçam – sem verbo – o sono cônscio.

Não sobe mais à cama – flor


plural, só fêmur. Segue sem fiar
o que de si demuda sem piscar.

A meta confirma a mãe: estado de espera.


Se o devir vier, que não fique devendo
para Mariano, Domingos e Augusto – os SeteNovos

Pássaro de cenário, carrega daqui


teu plumário. Se foi começo a marca
de um dia ido – começo é passado –
não sigo. Filho do primeiro ato,
barro anterior, monumento de palavra
presa – ponta-seca da imagem fácil
de um fim de tarde cinza, com a cor
da gema estalada – faz do acidente
o trivial toque, que vem e mata,
o co-movimento de opalas separadas
no plano vazio do belo inútil.

Ainda verde, a câmara oferece


à vaidade do ofício (todo excesso
notado: excelsa a parca monta do recheio)
mostra a queda cariada do risco:
trinca-vidro. Cortada de branco, bem rente –
permuta do entre no vão do verso – a mão só
sabe das coisas simples. Teatra a metáfora
dura, feita só de unhas – delírio
essencial da pedra gasta, máscara
na nulidade do cume. Daí,
a palavra “poeta” vir armada –

e sem disparo, não zune, nem nada.


Falador
para Anderson Pires

Escrever com a pata da margem – não grife –


cara a cara com o rascunho da catástrofe.
A tarefa do falador tigrina
uma inconveniente urgência.

E o falador deve estar atento,


como o sucateiro está atento,
ao seu trabalho de catar – negando
as migalhas. E mais: o falador,
de fato, deve atuar, sim
como tradutor – mula de carregar páginas
e papelão patinado – daquilo
que escapa ao registro do dizível.

Sem dever servilismo à manutenção do dito,


vai dizer ao redito, sem requinte.

– Parte já pra cima deles,


cada vez mais alto. Arre!
Mais que o preciso falar,
falar a fala do bagre.
LowProfiles
para Edimilson de Almeida Pereira

enquanto cadeiras
são lotadas por
esquecidos
(cadeiras latifúndios
tipo luxo lotes baldios)
leis
com todo vigor
prendem
mas não pegam
enquanto cadeias
são lotadas de
ex-famosos
e
esquecidos
andam na linha
e
vão cada vez
mais dentro
enquanto cadeias
estão lotadas por
esquecidos
futuros
tipos de esquecidos
fazem fila para entrar
e
estar cada vez
mais dentro
e
uma vez dentro
formar quadrilhas
(cirandas entre
cadeias e cadeiras)
enquanto
no pátio
outros atores
que são
de dentro
fingem querer
estar fora
zumbis cavam
com colher pequena
e
mineram em covas
de outros esquecidos
que amontoados
feito ratos
(do dentro e do fora
cabeça a cabeça
espremidos
corpo a corpo)
atritam cotovelos
esperando fogo
de idéias
que são as mesmas
idéias
de cadeiras e cadeias
embora
cadeias e cadeiras
possam ser mais
que só idéias
quando idéias
passam a ser mais
que fogo
e
textos menos
cinzas
e
territórios menos
escombros
Exu
para Ronald Augusto

Faz roda amunã. Bebe do melaço.


Melanja efun oti e epô. Fermenta.

Gargalha. Comporta o sorriso; não redunda


– metáfora mais. O caralho a foda e o barro.

Hermes, o do pinto menor, nem pra saída.

Costureiro divorciado do alfaiate.


Cabeça pica no orun. Senta em formigueiro:
o golpe, o risco. Pé da nuvem permanente,
além. Desdenha dos corcéis de carrossel.

Dirigente volante do destino:


téssera, mitologema, palavra.

Abre a moldura do mundo. Xirê:


o que começa e começa de novo.

Decide vestir a tabatinga: existência.


ZANGARREIO é uma plaquette
idealizada de modo artesanal.
Nas capas foi utilizado papel-semente.
Então, após o consumo, pique e plante.

O corte-e-costura foi realizado por


Luiz Fernando Priamo. Agradeço.

Embora os poemas se entreguem dedicados,


ZANGARREIO é feito mais da matura do
encontro, que da fruta do encômio.

Há fantasmas meus que não se ausentam.


Conto só com oss amigos que riem comigo.
E, desse modo canhoto, agradeço.

Foram impressos 50 exemplares


E é o primeiro tiro das Edições Parabelo.

Alguns dos poemas desse ZANGARREIO


já foram publicados em outras paragens –
www.textoterritorio.pro.br, falados em
outras paradas – ECO Performances
Poéticas e CEP20000 – e seguem, eles,
sua própria vida.

Eu, no mais, agora vôo na asa da laba.

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