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Os três significados podem ser expressos pelo verbo português «interpretar», e no entanto
cada um representa um sentido independente e relevante do termo interpretação. A
interpretação pode pois referir-se a três usos bastante diferentes: uma recitação oral, uma
explicação racional e uma tradução de outra língua quer para grego quer para português.
Podemos, no entanto, notar que o «processo Hermes» originário, está em acção: nos três
casos, há algo de diferente, de estranho e de separado no tempo, no espaço ou na experiência,
que se torna familiar, presente e compreensível; existe algo que requer representação,
explicação ou tradução e que é, de certo modo, «tornado compreensível», «interpretado».
De início deparámo-nos com a situação em que a tradução literal rodeia dois desses processos
e muitas vezes um terceiro. A literatura apresenta algo que deve ser compreendido. O termo
do texto pode estar longe de nós no tempo, espaço, linguagem e pode haver outros obstáculos
à sua compreensão. Isto também se aplica à compreensão de um texto bíblico. A tarefa da
interpretação deverá se tornar algo que é pouco familiar, distante e obscuro em algo real,
próximo e inteligível. Os diferentes aspectos deste processo explicativo são vitais e essenciais
quer para a literatura quer para a teologia. O livro convida portanto a examinar cada um deles
no que respeita ao seu significado na interpretação literária e teológica.
A palavra grega hermeios referia-se ao sacerdote do oráculo de Delfos. Esta palavra, o verbo
hermeneuein e o substantivo hermeneia, mais comuns, remetem para o deus-mensageiro-
alado Hermes, de cujo nome as palavras aparentemente derivaram (ou vice-versa?)
(PALMER, 1969: p24).
Podemos, no entanto, notar que o «processo Hermes» originário, está em acção: nos três casos
subsequentes, há algo de diferente, de estranho e de separado no tempo, no espaço ou na
experiência, que se torna familiar, presente e compreensível; há portanto algo que requer
representação, explicação ou tradução e que é, de certo modo, «tornado compreensível»,
«interpretado».
O como dizer…
Do ponto de vista da teologia, tem significado uma polémica etimológica que nota estar a
forma inicial herme próxima do latim sermo, «dizer», e do latim verbum, palavra. Isto sugere
que o sacerdote ao apresentar a Palavra está a «anunciar» e a «afirmar» algo; a sua função não
é meramente explicar, mas sim proclamar. O sacerdote, tal como Hermes, e tal como o
sacerdote de Delfos, traz notícias fiéis da divindade. Naquilo que diz ou proclama, ele é, tal
como Hermes, um- mensageiro de Deus para com o homem. Mesmo o simples dizer, afirmar
ou proclamar é um acto importante de interpretação. Ainda dentro desta primeira orientação
significativa, há um matiz vagamente diferente, sugerido pela frase «expressar», que ainda
mantém um sentido de «dizer», mas que é um dizer que é em si próprio interpretação”. A
tarefa da interpretação oral não é de maneira alguma uma mera técnica que tem como
objectivo expressar um sentido totalmente copiado, ela apresenta-se como tarefa filosófica e
analítica jamais podendo afastar-se da própria compreensão, visto que segundo Palmer (1969:
p.28) o leitor fornece a expressão de acordo com a sua compreensão do texto. A interpretação
oral, apresenta dois caminhos, sendo o primeiro a necessidade de compreender algo para
posteriormente se exprimir e o segundo o alcance da própria compreensão a partir de uma
leitura interpretativa. Analisada sob a abordagem da interpretação como dizer e como
expressar, a hermenêutica levou à afirmação de determinados princípios fundamentais, quais
O como explicar…
O como traduzir…
Tal como o deus Hermes, o tradutor é um mediador entre um mundo e outro. O acto de
traduzir não é uma simples questão mecânica de encontrar sinónimos. Os resultados ridículos
das máquinas tradutoras tornaram isso por de mais evidente. O tradutor é um mediador entre
dois mundos diferentes. A tradução torna-nos conscientes do facto de que a própria língua
contém uma interpretação. A tradução torna-nos conscientes de que a própria língua contém
uma visão englobante do mundo, à qual o tradutor tem que ser sensível, mesmo quando traduz
expressões individuais. A tradução apenas nos (torna mais totalmente conscientes do modo
como as palavras na realidade moldam a nossa visão do mundo), mesmo as nossas
percepções. Não há dúvida de que a língua é um repositório de uma experiência cultural;
existimos nesse medium e através dele. Vemos através dos seus olhos.
Palmer sente que nos dias de hoje o campo e os termos da hermenêutica tenha mudado muito
e adquirido seis diferentes concepções que a desvirtuam da sua original qualidade e natureza
como a ciência da interpretação. Procurava, como tal, “uma exegese de texto adequada”
(PALMER, 1969: p 43). Subsequentemente falamos de maneira cautelosa sobre as seis
definições do campo da Hermenêutica que Palmer (1969) traz para evidenciar a evolução
diacrónica e sincrónica da natureza da ciência hermenêutica. “1) Uma teoria da exegese
bíblica; 2) uma metodologia filológica geral; 3) uma ciência de toda a compreensão
linguística; 4) uma base metodológica das Geisteswissenschaften – todas as disciplinas
centradas na compreensão da arte, comportamento e escrita do Homem; 5) uma
fenomenologia da existência e da compreensão existencial; 6) sistemas de interpretação,
simultaneamente recolectivos e iconoclásticos, utilizados pelo homem para alcançar o
significado subjacente aos mitos e símbolos” (PALMER, 1969: p 43). Cada uma destas
definições indica um momento, que se diferenciam pela natureza da sua ênfase, ou uma
abordagem ao problema da interpretação. Um esboço destes seis momentos ilustrará este tema
e servirá de breve introdução histórica à definição da hermenêutica.
O significado mais antigo e talvez ainda o mais difundido da palavra' «hermenêutica» refere-
se aos princípios da interpretação bíblica. Há uma justificação histórica para esta definição,
visto que a palavra encontrou o seu uso actual precisamente quando surgiu a necessidade de
regras para uma exegese adequada das Escrituras. Provavelmente, o primeiro registo da
palavra enquanto título de um livro foi a obra de J. C. Danhauer, Hermeneutica sacre sive
rnethodus exponendarum sacrarum litterarum, publicada em 1654. Pode-se então palpar a sua
diferenciação em relação a uma outra abordagem com a qual ela é com frequência associada,
a exegese. Se a exegese se reporta ao comentário real, já a hermenêutica consiste nas regras,
métodos ou teorias que orientam esse mesmo comentário. O termo começa a surgir com cada
vez maior regularidade, motivada pela necessidade de auxiliar os sacerdotes na interpretação
das Escrituras, desligados que estavam de qualquer recurso à autoridade da Igreja. Depois da
Alemanha também na Inglaterra e nos Estados Unidos a utilização da palavra Hermenêutica
tinha como referência imediata uma leitura e interpretação da Bíblia. Mesmo após o aumento
dos contextos em que é usada, o texto em questão será “de um modo geral obscuro ou
Uma vez que existiam regras para interpretar correctamente a Torah, a hermenêutica estende-
se, retroactivamente, ao Antigo Testamento. “Existe uma relação hermenêutica importante
entre o Novo e o Antigo Testamento pois Jesus explica-se a si próprio aos Judeus, em termos
de profecia bíblica.” (PALMER, 1969: p 45). Já nos Evangelhos e nas Epístolas de S. Paulo
existem momentos de interpretação daquilo que Jesus diz aos seus ouvintes. A teologia
“enquanto intérprete histórica da mensagem bíblica, é já hermenêutica” (PALMER, 1969: p
46). Palmer procura sistematizar a história da hermenêutica bíblica sob duas categorias
fundamentais. Por um lado aquela que procura subsumir a interpretação de passagens
individuais num sistema de interpretação. Encontra-se, por exemplo, no Iluminismo quando o
texto bíblico é entendido como um receptáculo de grandes verdades morais, justamente
porque se “moldou um princípio interpretativo que as encontrasse” (PALMER, 1969: p 46).
Para que as expressões essenciais da vida humana sejam adequadamente interpretadas elas
deverão ser compreendidas historicamente, no que se manifesta diferentemente da quantidade
Remígio Clemente. Chechu
de conhecimento que se possui da ciência ou do mundo da vida, que é regida por uma
espectativa de aparências de quantificação. Dilthey acreditava nas ciências humanas podia-se
encontrar diferente e não científica que determine com certa precisão quem o homem ele é,
correspondente àquela que Kant tinha feito nas ciências naturais – uma crítica da razão
histórica. Se no início Dilthey tentou encontrar na Psicologia o meio da realização desse
objectivo acabou por entender que apenas a Hermenêutica – voltada como está para a
interpretação de realidade histórica, seria apropriada.
É por intermédio da Hermenêutica que, naquelas narrativas que têm vários níveis de
significação – como os mitos – que se estendem para lá do mais superficial, se accede à
significação mais profunda. Mas esse processo de desvelar um sentido oculto para lá da sua
mostração de superfície leva a que nos tornemos “desconfiados do conhecimento consciente
que temos de nós mesmos” (PALMER, 1969: p 53), o que ilustra o carácter iconoclasta desta
hermenêutica psicanalítica.
Bibliografia: