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Toda sociedade tem, e deve ter, uma base moral e ética. Creio
que todo mundo está de acordo com esta afirmação. O cidadão que
se preze deve ter uma conduta ética, em consonância com as normas
morais que são admitidas comummente. Estou convencido também
que estaríamos de acordo com este ponto, pois sem um conjunto de
valores, princípios e normas morais comummente aceites, a vida em
sociedade toma-se impossível. Hoje, em dia, ao que parece, revalori-
za-se, ao menos teoricamente, a ética como base da conduta pessoal,
da convivência cívica e do poder político. A ética obriga-nos, num
certo sentido, a reflectir sobre os objectivos para que deve tender a
educação neste mundo cada vez mais complexo.
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Clemente Garcia A Ética na Vida do Professor
t Neste sentido, a formação deve proporcionar os professores não A auto-reflexividade que caracteriza a profissão docente tem
'i :
só o desenvolvimento de competências técnicas de ensino e de ava- uma actividade muito forte que raramente é compreendida pela socie-
liação, mas também de atitudes mais consentâneas com as mudanças dade em geral. Aqui reside um dos grandes problemas do sofrimento
que urge concretizar. Em nosso entender, a formação não deverá ser profissional: como é que a sociedade pode compreender que eu me
realizada pontualmente e de forma pouco estruturada, mas possuir um esforço por ser melhor professor todos os dias? O professor de hoj e
carácter permanente e sistemático e incidir, essencialmente, nas áreas acaba por ter que negociar consigo próprio, diferentes formas de mo-
onde os professores sentem maiores necessidades para que possa ter o tivação para ser capaz de acreditar que o que faz é socialmente válido.
impacto desejado, sobretudo nas práticas avaliativas e, também, reper- Assim, somos obrigados a dizer que não somos professores apenas
cussões positivas, de sucesso, no trabalho desenvolvido com os alunos. ocasionalmente, por algum acidente. Mas sim, somo-lo "profissional-
mente", isto é, vivemos a tarefa do ensino como nossa profissão, ou se
Quando falamos de ética, estamos a reflectir sobre a nossa
quisermos, utilizando a linguagem weberiana como nossa vocação' 12 .
vida real, situada numa circunstância concreta, porquanto ela não
Ensinar é o trabalho para o qual nos sentimos chamado, a forma de
pode ser desligada da prática: ela é a reflexão sobre a prática e, por
actividade em que resolvemos servir a nossa comunidade/sociedade
conseguinte, sobre a nossa profissão. Segundo CARLOS CEIA 11 º ou Estado onde estamos inseridos .
, o logocentrismo do professor deve ser reconhecido tanto no discurso
pedagógico interior (será que expliquei bem este assunto? Será que Aqui chegados, é lícito pergunt~JID.os: até que ponto a profissão
podia ter feito melhor? Será que quero mesmo continuar a ensinar? de professor está institucionalizada entre nós? Temos um "Código"
Será que me revejo nesta escola? etc. - eis algumas questões do pro- escrito para a nossa profissão, um código de ética, uma deontologia . 1
fessor para si próprio que se resumem à questão central da identidade 111 específica? Um código d~ _ética profissional para os professores, seria
: Ensinamos realmente o que somos?) como no discurso cívico para a importante?
comunidade. A ética diz respeito a toda a vida pública de uma comu-
Porque todo o trabalho digno, independentemente da designa-
nidade e, por conseguinte, a escola é incapaz de ser neutral do ponto
ção, tem uma dupla dimensão: ninguém é profissional para si pró-
de vista axiológico, na medida em que toda a educação assenta numa
prio, ou seja, toda a profissão possui uma dimensão social, de utili-
base normativa e a escola tem a ver com valores sociais básicos; con- dade comunitária, que suplanta a concreta dimensão individual, ou o
sequentemente, a justiça está intimamente ligada ao posicionamento mero interesse particular, o que leva ao aparecimento de códigos deon-
ético relativo ao modo como se pensa e actua na escola e, por isso, tológicos. Não vivemos isolados, e o velho aforismo "como o mal dos
com as próprias concepções e práticas de pedagogia. outros posso eu bem ", não só traduz um mesquinho egoísmo, como
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Professor Associado com agregação da Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciên-
está profundamente errado. De que servirá a riqueza numa sociedade
cias Sociais e Humanas. 1 de miséria? Teremos então hoje e no futuro, melhores advogados? E
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CEIA, Carlos. O Professor na Caverna de Platão. As recentes políticas para a formação
11 2
de professores em Portugal e o futuro da profissão, Edição Caleidoscópio, Casal de Cambra, Vocação, em alemão, para citarmos Max Weber, é Beruf, e daí o título da sua famosa pal-
p. 15, 2010. estra, WissenschaftalsBeruf - ciência como vocação/profissão.
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l
11
Cleme nte Garcia
A Ética na Vida da Professor
"
responsável, obrigado a assumir a minha respon-
sua execução. Enfim, o respeito mostra-se até nos corredores, na con-
1 vivência do dia-a-dia, na "cortesia" (noblesse oblige).
sabilidade. Em todas as aulas dizia o Dr. Baltasar:
«É preciso cultivar o sério. Quando estás num exa-
li Seguindo este raciocínio, a aula é, pelo elevado clima moral em que me não procures copiar, vem com os teus próprios
,, -.l meios, estuda porque tu és capaz, pegas no livro,
lt i decorre, o lugar sagrado onde se realiza a comunhão entre o mestre e os
estudas e dás aquilo que realmente podes dar» 11 4.
seus discípulos, irmanados por uma busca comum da verdade e da beleza:
"Por isso, o que se oferece numa lição, mais Temos uma grande responsabilidade que importa ser sublinha-
do que um simples conteúdo, é a comparti- do, isto é, temos que repensar o nosso ensino antes que seja tarde. Mas,
cipação do continente em que se derramou e não haverá uma base sobre a qual assenta toda a construção a erguer?
fundiu essa verdade. Ela nos tocou e do mes- Será que a escola que habitualmente conhecemos no nosso país está
mo modo tocará a pessoa do discípulo" 113 • efectivamente preocupada em compreender a sociedade para melhor
ajustá-la? Pois, a educação significa erguer uma construção, ajudar a
A sacralização do acto educativo é, simultaneamente, a sacrali-
criança, o adolescente, o jovem, a co'nstruir a sua própria personalida-
zação das pessoas neles envolvidos - professor e alunos - elementos
de com a solidez que lhe permita enfrentar os embates que a vida lhe
inseparáveis de um percurso que os conduz, a ambos, à redenção tor-
vai trazer.
nada possível pela escola.
Nestes termos, importa seja lícito fazer-se referência a uma figu- Que caminhos para lá chegar? Desde logo, deve-se excluir a es-
ra incontornável na história da educação de Cabo Verde, BALTASAR trada larga do facilitismo. É essa a mais inumana das atitudes por parte
LOPES DA SILVA, o nosso patrono e que será sempre o nosso guia, do educador e muitas vezes com a conivência do Ministério da Edu-
a nossa estrela cintilante, e à ética que magistralmente desenvolveu, e cação. Porquê? Porque prepara ou julga preparar o educando para um
que citando o investigador Leão Lopes: mundo que não existe, um mundo meramente virtual. Consequência:
temos a criança a crescer sem raízes, dentro de um universo de fantasia
"Dr. Baltasar apesar da nossa situação de cábula e, mais tarde, ao deparar-se com a realidade bem madrasta e agreste,
nunca nos abandonou, ele exigia que fôssemos às
lá vem a frustração, o desânimo. E, como dizia Descartes "casa sobre
aulas e quando as faltávamos e íamos brincar no pá-
tio, na tamarineiro do quintal do Liceu Velho, se ele areia e sem alicerces, à primeira ventania vem o desmoronamento".
nos apanhasse lá a brincar, pegava pela orelha e le- Nesta linha de pensamento, importa questionar o seguinte: quem
vava-nos de volta para a aula. Umas duas vezes ele
deve educar eticamente? É uma obrigação que compete aos pais
me levou para a aula de Dr. Pais Monteiro que era
de Físico-Químicas segurando-me pela orelha e di- para com os filhos, ou será obrigação do estado para com os cida-
zia: «vim trazê-lo porque ele não tem nada que fazer dãos? Aristóteles responde que é um empreendimento de todos, embo-
na rua». E claro, acho que o que aconteceu naquele ra, nesta matéria, o Estado tenha mais poder, através das leis que aprova,
dia foi positivo para mim porque fui obrigado a ser
114
113 AGUDO, Francisco Dias - «Projecto do Estatuto do Professor». Labor, 1954, pp. 407-563,. AGUDO, Francisco Dias - «Projecto do Estatuto do Professor» . Labor, 1954, pp. 407-563,.
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Clemente Garcia
A Ét ica na Vida do Professor
ili Muito se tem falado, também, sobre a necessidade de se im- rios de outros professores, origem social... Caro colega, não construa
plementar uma cultura de disciplina, de exigência e de promoção do imagens estereotipadas dos seus alunos! Acredite sempre, de boa-fé,
r.
mérito dos alunos e sobre uma maior responsabilização dos pais ou que eles vão ser capazes de atingir bons resultados nem que para isso
li encarregados de educação. Trata-se, de facto, de um verdadeiro de- se tenha de esforçar mais. Devemos pois acreditar que o aluno pode
li
sígnio nacional que a todos deve mobilizar de uma forma convicta e
1
sempre surpreender-nos, pode crescer, aliás, está diante de nós exacta-
i empenhada, na medida em que está em causa a preparação das nossas
mente para isso. O professor deve apostar mais nas habilidades do que
;!
i
l! crianças e jovens para uma sociedade cada vez mais selectiva, exigen-
te e competitiva.
i,í
nas informações. No fundo, é introduzir a chamada ética do cuidado 11 8
"1
- os alunos estão ao cuidado do professor - que é uma forma diferente
Importa, por isso, que os responsáveis pela Educação concen- de pensar os outros, é uma outra forma de reconhecimento, de morar
trem esforços nestes focos de instabilidade e, de uma vez por todas, com os outros, visando a democracia radical, a qual não se constrói
promovam uma escola pública inclusiva que proporcione igualdade de sem sujeitos morais, racionais e afectivos. Cultivemos este espírito!
oportunidades, mas também uma escola que jamais abdique da respon-
sabilização, séria e firme, de todos os actores do processo educativo. Desde logo, a ética do cuidado exigiria, de modo mais concreto,
e no que se refere à escola 119 :
Neste contexto, apraz-me saudar o novo Estatuto do aluno e
Ética Escolar 117 , no qual se estabelecem os direitos e os deveres do ./ Fidelidade às pessoas;
aluno do ensino secundário e o compromisso dos pais ou encarregados ./ Respeito pela individualidade de cada um;
111
,;i de educação e dos restantes membros da comunidade educativa na sua
./ Lealdade ao colectivo;
educação e formação.
i!,, ./ Celebração da amizade;
i·, Com efeito, importa questionar o seguinte: Que valores devem
guiar a promoção da cidadania no nosso século? O que significa ensi- ./ Relações personalizadas;
nar a aprender? Que novas tarefas, ou papéis, devem ser atribuídos aos ./ Cooperação;
professores? Obviamente, muita objectividade na hora de avaliação.
./ Parcialidade a favor dos desfavorecidos;
Não nos deixaremos nunca arrastar pelo preconceito, por estereótipos
como aquele que diz: "Este aluno não pode sair-se bem nesta avalia- ./ Autonomia vivida em e através da solidariedade;
l!i ,~I'
.·lll.· ção, porque ele não tem base ... ". ./ Simbologia de reconhecimento do papel dos outros;
·r:,( As expectativas menos boas que os professores têm sobre os ./ Reconhecimento da dimensão afectiva da justiça.
ii
1.
alunos podem ter várias origens: classificações anteriores, comentá- 11 8
ESTEVÃO, Carlos Alberto Vilar. Educação, Justiça e Democracia - Um estudo sobre as
geografias da j ustiça em educação. Cortez Editora, São Paulo, p. 88, 2004.
117 11 9
Cf. Decreto-Lei nº 31/2007 de 3 de Setembro. Idem, p. 87 .
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Clement e Garc ia
A Ética na Vida do Professor
Efectivamente, vivemos numa sociedade pluralista, onde é indica o grau de aceitação moral da sociedade abaixo da qual não se
uma questão de respeito aceitar ou pelo menos tolerar hierarquias pode situar nenhum projecto válido da sociedade. Enfim, valores ne-
de valores, porquanto o relativismo moral radical não é filosofica- cessários para que uma pessoa possa levar urna vida digna e possa
mente defensável. Em nosso entender o relativismo radical é insus- desenvolver os seus projectos de felicidade.
tentável "porque, como diz Gómez-Heras, a decadência sociológica Pois bem, importa interrogar como é que o professor faz para se
dos códigos únicos de conduta, vigentes em outros tempos ou cul- ser ético? O que é ter um posicionamento ético na sala de aula? Em
turas, não significa carta de legitimidade para o relativismo moral que medida podemos afirmar que o professor tem ou não uma postura
nem no âmbito público nem muito menos no âmbito privado" 123 • ética? No fundo, há uma ética mínima a que o professor, alunos, pais
e encarregados de educação e sociedade em geral deve obedecer. Mas
1
O relativismo moral parece-nos insustentável porque, sem um sistema
'i: qual será e como defini-la a vivê-la, tendo em atenção que essa ética de
111
moral constituído por valores, princípios e normas que regulem as re-
1
1
mínimos está presente na ética de máximos que cada um vive.
lações entre as pessoas e entre estas e a comunidade 124, a vida humana
toma-se impossível porque, nesse caso, será a lei do mais forte a reger
li !li as relações interpessoais e entre as pessoas e a comunidade. Pois, cada
comunidade humana precisa de um "Ethos" para a sua sobrevivência
moral, a chamada "moral de mínimos", que deve ser exigida a todos
os professores, isto é, um ethos profissional com atributos de técnico,
de intelectual, de educador e de funcionário público.
Há uma preocupação muito grande em cumprir o programa. editores, Lisboa, p. 140, 20 13.
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