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Pai Contra Mãe - Rafael.
Pai Contra Mãe - Rafael.
É possível ler o conto “Pai contra mãe” de Machado de Assis ignorando a dimensão que
a questão racial tem na narrativa? Sim, da mesma forma como é possível fazer uma leitura pelo
foco exclusivo da questão de gênero, ou da questão racial, etc. Mas leituras com foco
fragmentado possivelmente terão dificuldades para estabelecer mediações entre a forma literária
do conto e a forma objetiva. Porque há um movimento da estrutura narrativa que diz respeito a
um movimento do processo social, e a leitura pelo viés fragmentado teria limites para evidenciar
essa conexão.
Há uma possibilidade de leitura à esquerda, que em nome da totalidade, opera com o
conceito de classe para interpretar a relação entre os personagens, e chega à conclusão que há
uma crítica contra o modelo social que estabelece a relação entre opressores e oprimidos, ou
exploradores e explorados, sendo generalizável para qualquer grupo oprimido, além do negro.
Analisar a relação entre os personagens por meio do conceito de classe é operar por
anacronismo: porque o conceito de classe é contemporâneo do universo de trabalhadores
“livres” submetidos ao trabalho assalariado, situação diversa daquela em que se encontravam os
negros em condição escrava – força motriz da economia brasileira à época –, diferente também
da condição de Candinho, que sobrevive de trabalhos informais, que depende de favores, etc.
Podemos falar certamente em coisificação de seres humanos, de mercantilização, de fetichismo
da mercadoria, expressões forjadas para compreender significados e descrever a dinâmica do
capital em sua materialidade objetiva.
No ensaio “Que pai contra que mãe? A questão do ponto de vista em um conto de
Machado de Assis”, o professor Hermenegildo Bastos ressalta que o texto é “capaz de apreender
num país como o nosso e no seu modo peculiar de fazer parte do capitalismo moderno a forma
social da reificação. Apreender e criticar”.
“Com isso Machado de Assis consegue produzir um ponto de vista outro, mais do que
simplesmente um outro ponto de vista. Evidenciando as máscaras, ou seja, a ideologia
dominante, “Pai contra mãe” dá a ver a sociedade reificada. Nesse sentido, o título pode ser
enganador: a princípio pensaria o leitor que o pai e a mãe são Candinho e Arminda, mas com
1
Pelos comentários à primeira versão do texto agradeço a Gustavo Arnt, Luísa Lima, Manoel Dourado e
Miguel Stedile.
2
Doutorando pelo Departamento de Teoria Literária da UnB.
1
cuidado verifica-se que há aí muitos pais e muitas mães. O antagonismo é a tônica dessa
sociedade”3.
3
Texto publicado na página eletrônica www.manifestabrasil.pro.br/index.html
4
FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez, 1989.
2
assim definiu a relação entre classe e raça, numa perspectiva de transformação radical da
sociedade brasileira:
Quando falamos da relação imanente entre raça e classe no Brasil não estamos
evocando a experiência histórica dos Estados Unidos, bastante diversa da nossa pela proporção
de brancos e negros do país, e pela conseqüente diferença de operação do racismo – por via
hereditária e aparência –, tão pouco estamos abrindo mão de conceitos caros à formulação do
materialismo histórico dialético. É que a depender da maneira como o raciocínio é construído, a
idéia de classe torna-se supressiva e anacrônica. Encarar o problema racial como uma questão
exclusivamente de classe e, portanto, social é não ver que o problema social brasileiro tem como
pressuposto o problema racial. A questão de classe não se dilui, pelo contrário, é potencializada
quando passa a incorporar esse dado como pressuposto.
Se nortearmos nossa produção intelectual pela perspectiva da práxis, nos cabe a
indagação: como interpretar o mundo de modo que a transformação apareça como uma
possibilidade concreta?