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STO.

TOMAS DE AQUINO

DANTE ALIGHIERI

SELEÇÃO DE TEXTOS
Tradução: Luiz João Baraúna, Alexandre Correia, Paulo M. Oliveira, Blasio Demétrio, Carlos do
Soveral

NOVA CULTURAL
1988
Títulos originais: Textos de Sto. Tomás de Aquino, selecionados de:
De Ente et Essentia
Quaestiones Disputatae de Veritate
Summa de Veritate Catholicae Fidei Contra Gentiles
Compendium Theologiae
Summa Theologica
Textos de Dante Alighieri:
Vita Nuova Monarchia
©Copyright desta edição, Editora Nova Cultural Ltda., São Paulo, 1988. Av. Brig. Faria Lima, 2000 — CEP
01452 — São Paulo, SP.
Traduções publicadas sob licença do Prof. Alexandre Correia (Suma
Teológica); D. Giosa Indústrias Gráficas S. A., São Paulo (Vida
Nova); Guimarães & Cia. Editores, Lisboa (Monarquia).
Direitos exclusivos sobre as demais traduções deste volume, Editora Nova Cultural Ltda., São Paulo.
Direitos exclusivos sobre "STO. TOMÁS DE AQUINO - Vida e Obra" e "DANTE" - Vida e Obra",
Editora Nova Cultural Ltda., São Paulo.
STO. TOMÁS DE AQUINO
QUESTÕES DISCUTIDAS SOBRE A
VERDADE
(QUESTÃO PRIMEIRA)
Tradução:Luiz João Baraúna

ARTIGO PRIMEIRO
Que é a verdade?

I — TESE: PARECERIA QUE O VERDADEIRO É EXATAMENTE O MESMO QUE O ENTE.

1. Diz Agostinho no livro dos Solilóquios (capítulo V) que "o verdadeiro é aquilo que é".
Ora, aquilo que é, outra coisa não é senão o ente. Logo, o verdadeiro é exatamente a mesma coisa
que o ente.
2. Todavia, objetar-se-á que o verdadeiro e o ente se equivalem, sim, segundo os
supostos, diversificando-se, porém, segundo o conceito. A isto se responderá: o conceito de cada
coisa é aquilo que é significado ou expresso pela sua definição. Ora, aquilo que é, é designado por
Agostinho (na passagem citada) como a definição do verdadeiro, depois de rejeitadas algumas
outras definições. Logo, visto que tanto o verdadeiro como o ente concordam no fato de serem
ambos "aquilo que é", parece que ambos se identificam no conceito.
3. Além disso, todas as coisas que se diferenciam pelo conceito estão uma para a outra de
tal modo, que uma delas se pode compreender sem a outra. Daí que Boécio, no livro Sobre as
Semanas, afirma que se pode compreender que Deus é ou existe, mesmo que a inteligência separe
d'Ele a sua bondade. Ora, o ente de forma alguma pode ser compreendido, se dele se separar o
verdadeiro, visto que o ente se compreende como ente pelo fato de ser verdadeiro. Logo, o
verdadeiro e o ente não se diferenciam quanto ao conceito.
4. Além disso, se o verdadeiro não for a mesma coisa que o ente, necessariamente será
uma disposição do ente. Ora, o verdadeiro não pode ser uma disposição do ente.
Não é uma disposição que corrompe totalmente o ente, pois do contrário seguiria o
seguinte: é verdadeiro, logo é um não-ente, da mesma forma como se impõe a conclusão: este
homem está morto, logo não é mais um homem. Tampouco o verdadeiro é uma disposição que
diminua o ente ou tire algo dele, pois do contrário não seguiria o seguinte: é verdadeiro, logo é
ente, da mesma forma como não procede dizer: os dentes dele são brancos, logo ele é branco.
Tampouco o verdadeiro é uma disposição que limite ou especifique o ente, pois, se o fora. o
verdadeiro não seria conversível com o ente. Por conseguinte, o verdadeiro e o ente são
exatamente a mesma coisa.
5. Além disso, aquelas coisas cuja disposição é a mesma se equivalem. Ora, o verdadeiro e
o ente têm a mesma disposição. Logo, são a mesma coisa. Com efeito, afirma-se no livro II da
Metafísica (Aristóteles, texto 4): "A disposição de uma coisa no ser é como a sua disposição na
verdade". Logo, o verdadeiro e o ente se equivalem completamente.
6. Além disso, todas as coisas que não se equivalem, diferem entre si de alguma forma.
Ora, o verdadeiro e o ente não diferem entre si de maneira alguma. Não diferem pela essência,
visto que o ente, pela sua própria natureza, é verdadeiro. Tampouco se diversificam em virtude
de outras diferenças, pois teriam que concordar em algum gênero. Logo, o verdadeiro e o ente se
equivalem totalmente.
7. Além disso, se o verdadeiro e o ente não fossem exatamente a mesma coisa, necessaria-
mente o verdadeiro acrescentaria alguma coisa ao ente. Isto é evidenciado pelo Filósofo
(Aristóteles), que no livro IV da Metafísica (comentário 27) afirma: "Ao definirmos o verdadeiro,
dizemos ser ele aquilo que é; ou, então, não ser ele aquilo que não é". Portanto, o verdadeiro
inclui tanto o ente como o não-ente. Logo, o verdadeiro nada acrescenta ao ente, e
conseqüentemente parece identificar-se totalmente com ele.

II — CONTRATESE: PARECERIA QUE O VERDADEIRO NÃO E A MESMA COISA QUE ENTE.

1. A tautologia é uma repetição inútil. Ora, se o verdadeiro fosse a mesma coisa que o
ente, seria uma tautologia, porquanto se afirma que "um ente é verdadeiro". Ora, é falso dizer que
tal afirmação constitui uma tautologia. Logo, o verdadeiro e o ente não exprimem exatamente a
mesma coisa.
2. Além disso, o ente e o bom são conversíveis. Ora, o verdadeiro não é conversível com
o bom, visto que uma coisa pode ser verdadeira sem ser boa; por exemplo, o fato expresso nesta
proposição: este homem está fornicando. Logo, tampouco o verdadeiro é conversível com o
ente.
3. Além disso, Boécio afirma no livro Sobre as Semanas: "Em todas as criaturas, o ser (esse)
difere daquilo que é (quod est) ". Ora, o verdadeiro segue o ser das coisas. Logo, o verdadeiro se
diferencia, nas criaturas, daquilo que é. Ora, aquilo que é, equivale ao ente. Em conseqüência, o
verdadeiro, nos seres criados, se diferencia do ente.
4. Além disso, todas as coisas que estão uma para a outra da mesma forma que a anterior
está para a posterior necessariamente se diferenciam entre si. Ora, com o verdadeiro e o ente é
isto que ocorre, porquanto, segundo se lê no livro Sobre as Causas (proposição 4.a), a primeira das
coisas criadas é o ser. E o Comentador (de Aristóteles, isto é, Averroes ou Ibn Roshd), ao glosar
o referido livro, diz: "Tudo o que se afirmar para além do ente são predicados ou informações
que se adicionam ao ente" e, por conseguinte, lhe são posteriores. Logo, o verdadeiro e o ente se
diferenciam um do outro.
5. Além disso, as coisas que se predicam em comum da causa e dos efeitos, identificam-se
entre si mais na causa do que nos efeitos, e, sobretudo, identificam-se mais ao serem predicadas
de Deus do que ao serem predicadas dos seres criados. Ora, em Deus os quatro elementos, a
saber, o ente, o uno, o verdadeiro e o bom, se apropriam ou predicam da forma seguinte: o ente
pertence à essência, o uno à pessoa do Pai, o verdadeiro à pessoa do Filho, o bom à pessoa do
Espírito Santo. Ora, as pessoas divinas não se diferenciam apenas logicamente, mas realmente, e
por conseguinte uma não pode ser predicada da outra. Logo, com muito maior razão se deve
dizer que os quatro conceitos mencionados não podem distinguir-se apenas logicamente.
III — RESPOSTA À QUESTÃO ENUNCIADA.

Assim como nas demonstrações é necessário operar uma redução a um certo número de
princípios evidentes à inteligência, o mesmo ocorre ao investigarmos o que é uma determinada
coisa. Do contrário se chegaria, tanto em um caso como em outro, ao infinito, o que tornaria
totalmente impossíveis a ciência e o conhecimento das coisas.
Ora, a primeira coisa que a inteligência concebe como a mais conhecida, e à qual se reduz
tudo, é o ente, conforme afirma Avicena no início da sua Metafísica (livro I, capítulo IX). Daí que
necessariamente todos os outros conceitos da inteligência se obtêm por adjunção ao ente.
Ora, ao ente não se pode acrescentar algo à maneira de uma natureza estranha, assim
como, por exemplo, a diferença específica se acrescenta ao gênero, ou o acidente ao sujeito, uma
vez que toda natureza é essencialmente um ente. Razão pela qual o Filósofo demonstra (na
Metafísica, livro III, comentário 10) que o ente não pode ser um gênero e que só se pode afirmar
que certas coisas são passíveis de ser acrescentadas ao ser, no sentido de que exprimem um
determinado modo do mesmo, modo que não está expresso no próprio termo ente.
A adjunção ao ente pode ocorrer de duas maneiras.
A primeira se dá quando o modo expresso constitui um certo modo especial do ente. pois
há graus diferentes do ente, e de acordo com eles existem gêneros diversos de coisas. Pois a subs-
tância não acrescenta ao ser qualquer diferença que pudesse significar alguma natureza somada ao
ente. O termo substância designa antes um certo modo peculiar do ente, isto é, o que é em vir-
tude de si mesmo. O mesmo acontece com os outros gêneros.
A segunda maneira de adjunção ao ente ocorre quando o modo expresso compete a cada
ser de maneira geral. Este modo pode ser compreendido de duas maneiras: primeiro, enquanto
ele convém a todo ente considerado em si mesmo; segundo, enquanto convém a todo ente em
relação a outro. No primeiro caso, isto significa que o modo exprime no ente algo de maneira
afirmativa ou negativa. Ora, não existe nenhuma afirmação positiva e absoluta que se possa
atribuir a cada ente, a não ser a sua própria essência, em virtude da qual se denomina ente. Assim
é que se dá o nome de coisa, a qual se diferencia do ente, conforme ensina Avicena no início da
Metafísica, pelo fato de que o ente deriva da atualidade do ser, ao passo que o termo coisa exprime
a "qüididade" (quidditas) ou "entidade" do ente. A negação, porém, que convém de maneira
absoluta a todo ente é a indivisão. Esta se exprime pelo termo "uno", visto que o uno outra coisa
não é senão um ente indiviso.
Se, contudo, o modo do ente for entendido no segundo sentido, isto é, segundo a relação
de uma coisa à outra, isto pode ocorrer de dois modos. Primeiro, conforme a divisão ou distinção
de uma coisa da outra: é o que se expressa no termo "algo", que etimologicamente significa mais
ou menos "outra coisa" (aliud quid). Por conseguinte, assim como o ente se diz uno, enquanto é
em si mesmo indiviso, da mesma forma se denomina algo, enquanto se distingue de outros.
A outra maneira é segundo a concordância de um ente com o outro. E isto só é possível
se se considera alguma coisa apta a concordar com todo e qualquer ente. Tal é a alma, que em
certo sentido é tudo, conforme se afirma na obra Sobre a Alma (livro III, texto 37).
A alma é dotada de uma faculdade cognoscitiva e outra tendencial (appetitiva), sendo que a
concordância do ente com a faculdade tendencial se exprime com o termo "o bem" (bonum), con-
forme está dito no livro da Ética: "O bem é aquilo a que tendem todas as coisas". Em
contrapartida, a concordância do ente com a inteligência (faculdade cognoscitiva) está expressa
no termo "verdadeiro". Com efeito, toda cognição se efetua mediante uma assemelhação do
sujeito que conhece com a coisa conhecida, de tal maneira que a assemelhação foi denominada
causa da cognição, assim como a visão apreende a cor pelo fato de tornar-se capaz disto pela
imagem da respectiva cor.
Em conseqüência, a primeira relação do ente com o intelecto consiste no fato de aquele
corresponder a este, correspondência que se denomina assemelhação ou concordância entre o
objeto e a inteligência, sendo nisto que se concretiza formalmente o conceito de verdade.
Por conseguinte, o que o verdadeiro acrescenta ao ente é a concordância ou assemelhação
entre a coisa e a inteligência, concordância da qual deriva a cognição da coisa, como ficou expla-
nado. Assim, pois, a entidade da coisa antecede a esfera da verdade, ao passo que a cognição
constitui um certo efeito da verdade.
Conforme quanto expusemos, existe uma tríplice divisão da verdade e do verdadeiro.
A primeira tem como critério aquilo que antecede a verdade e no qual se fundamenta o
verdadeiro. É assim que Agostinho (Solilóquios, capítulo V) define: "O verdadeiro é aquilo que é";
e Avicena (Metafísica, livro XI, capítulo II): "A verdade de cada coisa é aquela propriedade do seu
ser que foi estabelecida para ela". Outros há que assim definem: "O verdadeiro é a indivisão do
ente e daquilo que é".
A segunda definição baseia-se naquilo que constitui formalmente o conceito de
verdadeiro. Assim diz Isaque: "A verdade consiste na assemelhação da coisa com a inteligência",
enquanto que Anselmo (Sobre a Verdade, capítulo XII) oferece a seguinte definição: "A verdade
consiste na retidão, perceptível exclusivamente ao espírito". Com efeito, é desta retidão que se
fala no sentido de uma certa assemelhação. conforme diz o Filósofo (Metafísica, livro IV,
comentário 27), que dizemos na definição do verdadeiro, que é aquilo que é, ou que não é aquilo
que não é.
A terceira definição da verdade e do verdadeiro baseia-se no efeito que segue. Nesta linha
Hilário afirma: "O verdadeiro é o ente que se revela e se explica". E Agostinho (Sobre a Verdadeira
Religião, capítulo XXXVI): "A verdade é aquilo através do qual se revela aquilo que é". Ou então,
na mesma obra: "A verdade é o critério pelo qual julgamos o que é terrestre".

IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE.

1. Com a citada definição Agostinho quer definir o verdadeiro como sendo aquilo que
tem fundamento na realidade, sem querer negar que o verdadeiro se define pela conformidade
entre a coisa e o intelecto. Em outros termos, dir-se-á que, ao afirmar que "o verdadeiro é aquilo
que é", o verdadeiro não se entende aqui enquanto significa o ato de ser, mas enquanto é a
designação do intelecto composto, ou seja, enquanto significa a simples afirmação da proposição,
de forma que o sentido é: o verdadeiro é aquilo que é, ou seja, predicando-se o ente de alguma
coisa que é. Destarte, a definição de Agostinho coincide praticamente com a definição acima
citada do Filósofo.
2. A resposta se deduz do que já foi explanado (no item III).
3. A afirmação de que uma coisa pode ser entendida sem a outra pode ser compreendida
de duas maneiras.
Primeiro, no sentido de que se compreende uma coisa, sem compreender a outra. É o que
acontece com as coisas que se diferenciam apenas pela razão: uma coisa pode ser compreendida
sem a outra.
No segundo sentido, o conhecimento de uma coisa sem o conhecimento da outra se
entende de tal modo, que uma é conhecida sem que a outra exista. Neste segundo o ente não
pode ser conhecido sem o verdadeiro, pois o ente não pode ser conhecido se não corresponder à
inteligência ou com ela não concordar. Isto não significa que quem conhece o ente conhece
necessariamente também o verdadeiro, assim como nem todo aquele que conhece o ente conhece
automaticamente o intelecto operante, e todavia permanece de pé que sem o intelecto agente o
homem nada pode conhecer..
4. O verdadeiro é uma disposição do ente, não no sentido de acrescentar-lhe alguma
natureza, nem no sentido de exprimir alguma modalidade especial do ente, mas enquanto
constitui algo que se encontra no ente de maneira geral, e no entanto não é explicitado pelo
termo ente. Logo, não é necessário que se trate de uma disposição que corrompe o ente, ou que
tire algo dele, ou que o limite.
5. Disposição não se entende aqui no sentido de qualidade, mas enquanto implica uma
certa ordem. Uma vez que o ente no sentido mais perfeito é aquilo que constitui causa do ser de
outros, e o verdadeiro no sentido mais perfeito é aquilo que constitui causa da verdade de outros,
conclui o Filósofo que a ordem de uma coisa no ser é a mesma que a ordem desta coisa quanto à
verdade. Isto no sentido de que, lá onde se encontra o ser na sua maior plenitude, ali também está
o verdadeiro na acepção mais plena do termo. Tal acontece, não porque o ente e o verdadeiro
constituam em seus conceitos a mesma coisa, mas porque, se alguma coisa tem a capacidade de
assemelhar-se à inteligência ou de concordar com ela, isto acontece na medida em que participa
do ente. Conseqüentemente, o conceito de verdadeiro segue o conceito de ente, sendo
logicamente posterior a ele.
6. O ente e o verdadeiro distinguem-se também pelo fato de o conceito de verdadeiro
poder encerrar algo que não se contém no de ente, embora o conceito de verdadeiro contenha
tudo o que se encerra no de ente. O ente e o verdadeiro não se diferenciam nem pela essência
nem por diferenças opostas.
7. O verdadeiro nada acrescenta ao ente, pois o ente, compreendido de certa maneira, se
predica do não-ente, isto é, enquanto o não-ente é apreendido pela inteligência. Daí que, no livro
IV da Metafísica (texto 2), o Filósofo afirma que tanto a negação como a privação do ente se
denominam entes. Também Avicena diz, no início da Metafísica, que não se pode fazer uma
enunciação a não ser do ente, visto que, necessariamente, aquilo acerca de que se faz alguma
proposição deve ser apreendido pelo intelecto. Donde se infere que todo verdadeiro é de algum
modo um ente.
V — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA CONTRATESE.

1. Ao denominar-se um ser verdadeiro, não se incide em tautologia. pois com o termo


verdadeiro se exprime algo que não está ainda contido no termo ente. A razão da não-tautologia
não está em que o ente e o verdadeiro se diferenciem realmente.
2. Embora seja um mal este homem estar fornicando, todavia, pelo fato de possuir algo
do ente, conaturalmente tem capacidade de estar em conformidade com a inteligência, e por isso
contém a noção de verdadeiro. Por conseguinte, não ultrapassa o ente nem é por ele
ultrapassado.
3. Quando se afirma que "o ente difere daquilo que é", distingue-se o ato de ser daquilo a
que compete este ato. Ora, o conceito de ente toma-se do ato de ser, e não daquilo a que
compete o ato de ser, e por conseguinte o argumento não procede.
4. O verdadeiro é posterior ao ente, no sentido de que o conceito de verdadeiro difere do
de ente da maneira acima exposta.
5. O argumento apresenta três falhas.
a) Embora as três pessoas divinas se diferenciem entre si por distinção real, as coisas
apropriadas a cada pessoa não diferem realmente, mas apenas na ordem lógica.
b) Embora as três pessoas se distingam realmente uma da outra, todavia não se
distinguem do ente. Logo, tampouco o verdadeiro atribuído à pessoa do Filho se distingue
realmente do ente que está da parte da essência.
c) Embora o ente, o verdadeiro, o uno e o bom se identifiquem, em Deus, mais do que
nas coisas criadas, não é necessário que, pelo fato de se distinguirem logicamente em Deus, nas
criaturas se distingam também realmente. Isto acontece com aquelas coisas que pelo seu próprio
conceito não se identificam, tais como a sabedoria e o poder, os quais, embora em Deus
constituam uma só coisa, nas criaturas se distinguem realmente. Ora, o ente, o verdadeiro, o bom
e o uno, pelo seu conceito, se identificam. Daí que, onde quer que se encontrem concretizados,
constituem realmente uma só coisa, embora seja mais perfeita a unidade quando se encontram
em Deus do que quando se encontram nas criaturas.

ARTIGO SEGUNDO
A verdade encontra-se primariamente na inteligência ou nas coisas?
I — TESE: PARECERIA QUE A VERDADE SE ENCONTRA PRIMARIAMENTE NAS
COISAS, E NÃO NA INTELIGÊNCIA.

1. Conforme expusemos no artigo I, o verdadeiro é conversível com o ente. Ora, o ente


se encontra antes de tudo fora da inteligência. Logo, também o verdadeiro se encontra antes fora
da inteligência, ou seja, nas próprias coisas.
2. Além disso, as coisas não estão na inteligência pela sua essência, mas pela sua imagem
(species), como se lê no livro III da obra Sobre a Alma (comentário 38). Se a verdade se encontrasse
primariamente na inteligência, a verdade não constituiria a essência da coisa mas apenas uma
semelhança ou imagem dela, e o verdadeiro seria apenas uma imagem do ente existente fora do
intelecto. Ora, a imagem da coisa, que existe na inteligência, não se predicaria da coisa existente
fora da inteligência, como também não seria conversível com ela. Portanto, tampouco o ver-
dadeiro seria conversível com o ente, o que é falso.
3. Além disso, tudo aquilo que está em alguma coisa é posterior à coisa na qual está. Se,
portanto, a verdade estivesse antes na inteligência do que nas coisas, o juízo sobre a verdade
ocorreria segundo o parecer da inteligência. Com o que se voltaria ao erro dos filósofos antigos,
segundo os quais tudo o que alguém opina é verdadeiro, e duas afirmações contraditórias seriam
verdadeiras ao mesmo tempo. Ora, isto é absurdo.
4. Além disso, se a verdade residisse primariamente na inteligência, seria necessário que
uma coisa que pertence à compreensão da verdade fizesse parte da definição da própria verdade.
Ora, Agostinho recusa tais definições da verdade no livro dos Solilóquios (livro II, capítulos IV e
V); por exemplo, a seguinte: "Verdadeiro é aquilo que é como aparece". Com efeito, se esta defi-
nição fosse correta, não seria verdadeiro o que não aparece. Ora, isto é falso em se tratando das
pedrinhas mais escondidas que se encontram nas entranhas da terra. Agostinho rejeita também
esta definição: "Verdadeiro é aquilo que é tal qual aparece ao sujeito cognoscente, se este quiser e
puder conhecer". Com efeito, segundo esta definição, uma coisa deixaria de ser verdadeira, se o
sujeito cognoscente não quisesse ou não pudesse conhecê-la. O mesmo aconteceria com
quaisquer outras definições da verdade, nas quais se colocasse alguma referência necessária à
inteligência. Por conseguinte, a verdade não está primariamente na inteligência.

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