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Resenhas

durante o seminário The History of Eugenics:


Work in Progress, realizado nos Estados Unidos,
em 1983, sob a organização do historiador Mark
Adams. Desse seminário resultou uma série de
trabalhos que, sete anos depois, seria apresen-
tado no livro The eellborn science: eugenics in
Germany, France, Brazil, and Rússia, no qual
Nancy Stepan publicaria novamente, com ligei-
ras alterações, seu trabalho de 1985.
É nesse contexto historiográfico que
“A HORA DA EUGENIA”: RAÇA, GÊNE- Nancy Stepan lança, em 1991, o livro “The
hour of eugenics”: race, gender and nation in
RO E NAÇÃO NA AMÉRICA LATINA
Latin America, somente agora traduzido para o
Nancy Leys Stepan.
português. Na obra, a autora defende a tese de
Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. 224p. que a história da eugenia na América Latina sub-
verte o entendimento do significado da euge-
A partir de meados dos anos 1980 os tra- nia em geral, afirmando que o movimento eu-
balhos sobre eugenia tornaram-se discussões gênico internacional não foi unitário e não pode
bastante recorrentes na historiografia interna- ser indiscriminadamente apreendido. Ao con-
cional. De maneira geral, os historiadores têm trário da concepção mendeliana de genética –
procurado demonstrar que longe de ter sido dominante nos países anglo-saxônicos –, os
um acontecimento histórico específico dos paí- eugenistas latino-americanos baseavam sua
ses anglo-saxônicos, a eugenia foi um movi- eugenia em uma corrente alternativa de noções
mento de idéias que emergiu em várias partes neolamarckianas de hereditariedade, cujas con-
do mundo, conformando-se sempre aos dife- cepções se apoiavam na idéia da transmissão
rentes contextos nacionais. O livro da historia- dos caracteres adquiridos. O resultado foi a
dora Nancy Leys Stepan procura reafirmar es- adoção de uma “eugenia preventiva”, muito
sas noções ao destacar as especificidades ideo- mais preocupada com as reformas sociais e com
lógicas e o modo pelo qual se organizaram os a adaptação ao meio do que propriamente com
movimentos eugênicos na América Latina. as questões biológicas.
A autora, também professora da Univer- Nesse livro, Nancy Stepan explora os
sidade de Colúmbia, em Nova York, publicou movimentos eugênicos dos três países mais po-
outros livros diretamente relacionados à histó- pulosos da América Latina – Brasil, México e
ria das ciências e da medicina, entre os quais se Argentina –, ressaltando que suas diferentes tra-
destacam The idea of race in science: Great dições do pensamento científico, político e cul-
Britain, 1800-1860 (1982) e Picturing tropical tural permitem uma análise comparativa. Ape-
nature (2001). Seu primeiro trabalho sobre eu- sar de articularem de maneiras diversas as ideo-
genia foi resultado de pesquisas realizadas no logias raciais, os movimentos eugênicos latino-
Brasil durante os anos 1980, quando publicou o americanos estavam unidos em torno de uma
artigo “Eugenesia, genética y salud pública: el mesma preocupação: a construção de uma
movimiento eugenésico brasileño y mundial”, na “verdadeira nacionalidade”. Os esforços da
Revista Quipu, em 1985. Esse trabalho havia sido maioria dos eugenistas latino-americanos foram
preparado com base em discussões que surgiram empregados com o objetivo de superar a he-

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terogeneidade de sua “população mestiça”, riência cultural e na história da própria região”


abrindo caminho para a homogeneização da (p.40).
identidade nacional. O livro está dividido em sete capítulos.
A história da eugenia na América Latina é No primeiro, a autora analisa “a nova genética
abordada pela autora com base em uma visão e os primórdios da eugenia”, que remontam ao
contextualizadora, marcada pelas concepções da final do século XIX. Demonstra que o novo
nova história social da ciência. Sua orientação evolucionismo, surgido a partir da década de
possibilita compreender como os elementos 1860, foi essencial para que o cientista britâni-
culturais e as tradições intelectuais locais tornam- co Francis Galton agrupasse um conjunto de
se parte constituinte das teorias científicas, além idéias que chamou, em 1883, de eugenia. Nes-
de permitir apreender a eugenia como um co- se mesmo contexto, a autora discute as novas
nhecimento científico e social estreitamente con- teorias da hereditariedade, como as concep-
formado pelos fatores particulares das socieda- ções de August Weismann sobre a continuida-
des em que emergiram. A utilização dessa abor- de do plasma germinativo e, acima de tudo, a
dagem teórica evidencia ainda a imensa autori- redescoberta das leis de Mendel sobre a re-
dade social que a ciência exerce no mundo combinação de caracteres hereditários em
moderno, a maneira pela qual ela produz per- plantas. Essas teorias acabariam conjugando-se,
cepções e as técnicas capazes de conformar in- logo no início do século XX, no bojo de um
terpretações culturais e levar ao desenvolvimen- mesmo projeto eugênico, confirmando as no-
to de diversas estratégias sociais. ções galtonianas sobre a importância da “linha-
Um dos principais méritos da obra é de- gem”, e não do meio social, na determinação
monstrar que a América Latina não pode ser das características hereditárias.
vista como uma consumidora de idéias, con- A institucionalização da eugenia na Amé-
forme os estudiosos da história intelectual pro- rica Latina é o assunto tratado no segundo ca-
curaram reforçar por muito tempo. Nas pala- pítulo. Nancy Stepan procura compreender o
vras da autora, concepções como essas deixam desenvolvimento das idéias sobre a eugenia
de considerar “a contribuição de uma região numa região cuja população era marcadamen-
como a América Latina para nosso entendi- te pobre, de formação católica, amplamente
mento sobre o modo como as idéias passam miscigenada e com sérios problemas de saúde
a fazer parte do complexo tecido da vida polí- pública. Segundo a autora, os eugenistas latino-
tico-social” (p.11). Seu argumento é que os americanos encontraram no discurso eugênico
eugenistas latino-americanos não faziam ciên- uma ferramenta poderosa para auxiliar no pro-
cia por imitação, reproduzindo idéias estran- cesso de reforma social e de aperfeiçoamento
geiras em um contexto estranho ou não cien- médico da nacionalidade. Liderado por intelec-
tífico. Ao contrário, a história da eugenia na tuais de diversos matizes, o movimento eugê-
América Latina deve ser vista como uma espé- nico rapidamente se institucionalizou em vários
cie de conhecimento produzido e conforma- países da região. Para Stepan, a Sociedade
do pelas variáveis culturais peculiares à região. Eugênica de São Paulo e a Sociedade Eugênica
Assim, “em lugares como a América Latina, da Argentina, ambas fundadas em 1918, foram
temos de estudar a eugenia não como pálido impulsionadas pelo sentimento nacionalista que
reflexo da eugenia de outras partes do mun- tomou conta da América Latina no período
do, algo talvez ‘mal entendido’ ou ‘mal inter- imediatamente posterior à Primeira Guerra
pretado’, mas como algo enraizado na expe- Mundial. Destaca também a organização do

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movimento eugênico no México, que, em ple- gicas, os eugenistas latino-americanos incenti-


no contexto da Revolução Mexicana, entre varam o controle matrimonial por meio de exa-
1910 e 1920, recebeu significativo apoio de mes médicos e de certificados pré-matrimoni-
médicos e reformadores nacionais. ais, restringindo “uniões inadequadas” como
No terceiro capítulo, a autora analisa as entre indivíduos portadores de doenças consi-
concepções neolamarckistas desenvolvidas du- deradas hereditárias e “vícios sociais”. Nesse
rante a década de 1920. Segundo Stepan, os sentido, os discursos de gênero, raça e nação
eugenistas assumiram um programa eugênico transformaram-se em elementos centrais da
ao estilo do ambientalismo médico em que a “eugenia matrimonial”, uma vez que era me-
idéia de evolução parecia um modo mais har- diante a reprodução sexual que ocorriam as
monioso e humano de aperfeiçoar a natureza, conformações raciais. As políticas matrimoniais
diferentemente da evolução baseada na inten- concentraram sua atenção sobre o gênero fe-
sa luta darwiniana. Ao invés de medidas radicais, minino, pois era por intermédio da educação,
como a esterilização e a segregação racial, os dos conselhos morais e da higiene sexual femi-
eugenistas latino-americanos preferiram um nina que se poderia garantir uma prole saudá-
modelo de “eugenia preventiva”, que incorpo- vel e uma “nação eugênica”.
rasse políticas em prol da higiene, do sanea- As discussões sobre as identidades nacio-
mento e do combate aos “venenos raciais”, nais e as transformações raciais na América La-
como o álcool, a nicotina, a sífilis e outras doen- tina são analisadas mais detidamente no quinto
ças infecciosas. A autora destaca também a im- capítulo. Para Stepan a grande preocupação dos
portância da puericultura como medida preven- eugenistas era homogeneizar a “raça nacional”,
tiva para conservar a saúde racial das mães e de ainda que fosse para criar uma identidade mes-
suas proles, consideradas pelos eugenistas tiça ou, para outros, uma nacionalidade em pro-
como recurso biológico essencial para o futu- cesso de branqueamento. De maneira geral, os
ro da nação. Impregnados pelo hereditarismo eugenistas buscavam um caminho alternativo
neolamarckista, os eugenistas e puericultores que fugisse aos esteriótipos negativos que os ci-
divulgaram amplo programa de educação e entistas europeus construíam em relação à ins-
moralização da esfera sexual, além de conse- tabilidade das formas raciais das nações latino-
lhos dirigidos aos pais com o objetivo de evitar americanas. Nas palavras da autora, “os argen-
que o meio ambiente e social se constituíssem tinos eram vistos, na melhor das hipóteses,
em fonte de degeneração hereditária. como europeus pobres. O México, com seus
Nancy Stepan discute no quarto capítu- índios e mestiços, jamais foi considerado pró-
lo os discursos de gênero e raça inseridos no ximo à norma branca dos racistas. No Brasil, o
programa para uma eugenia reprodutiva. Ao clima tropical era visto como fator adicional de
contrário da “eugenia negativa” anglo-saxônica, deterioração de sua população mestiça”
o controle da reprodução humana na América (p.150). Para vencer esses estereótipos, a au-
Latina ocorreu de forma menos radical. Deno- tora demonstra que cada movimento eugênico
minada pelos próprios eugenistas latino-ameri- lidou de maneira própria com as ideologias ra-
canos “eugenia matrimonial”, Stepan explica ciais, sempre mobilizado por políticas de cunho
que a “eugenia reprodutiva negativa” adquiriu nacionalista. Na Argentina, por exemplo, pre-
na região características próprias, compatíveis dominou um modelo eugênico mais racializado,
com as visões sociais, políticas e religiosas des- que visava construir uma nacionalidade confor-
sas sociedades. Ao invés de intervenções cirúr- me as idealizações europeizantes das elites

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brancas locais. Os eugenistas mexicanos procu- No último capítulo, que serve como con-
raram criar um discurso eugênico que pudesse clusão para a obra, a historiadora esboça uma
sustentar a idéia de uma miscigenação constru- reflexão sobre as relações entre a ciência e a
tiva, como propunha o ensaísta José Vasconce- política, demonstrando que as “representações
los em suas obras Raza cósmica (1924) e científicas tanto são conformadas como formam
Indianologia (1925). O caso brasileiro é apre- o mundo à sua volta” (p.213). Nesse contexto
sentado pela autora como particularmente in- chama a atenção para a importância da história
teressante, uma vez que o discurso eugênico da eugenia no tempo presente, na medida em
sobre raça e identidade nacional florescia con- que as discussões sobre genética, biotecnologia
forme as contingências do nacionalismo e das e fisiologia reprodutiva são atualmente apresen-
discussões acerca das políticas de imigração. tadas como idéias “cientificamente validadas” que
No capítulo seis são destacadas as vincu- prometem novos métodos de reprodução hu-
lações internacionais da eugenia latino-america- mana, a eliminação de doenças e “imperfeições
na. Apesar da organização de dois congressos biológicas”, além do desejo de conhecer as ca-
pan-americanos, realizados nas décadas de 1920 racterísticas mais recônditas contidas no DNA.
e 1930, Nancy Stepan explica que a cooperação Para encerrar, valer dizer que o livro em
entre os eugenistas norte-americanos com seus apreço tem contribuído muito para uma série
pares da América Latina fracassou amplamente, de trabalhos produzidos no Brasil e na Améri-
pois punha em evidência as diferentes concep- ca Latina, especialmente no campo da história
ções políticas e ideológicas que norteavam seus das ciências, da medicina e da saúde pública.
projetos eugênicos. A autora demonstra que a Mais do que uma importante referência, ele
organização internacional da eugenia latino-ame- pode ser definido como uma grande agenda de
ricana encontrou abrigo ideológico nos movi- pesquisa sobre temas latino-americanos, uma
mentos eugênicos da Itália, da França e da Bél- vez que apresenta um panorama geral sobre
gica, que associados por “pontos em comum” diversas questões que envolvem não somente
fundaram, em 1934, a Federação Internacional as discussões sobre ciência, raça, gênero, na-
de Sociedades Eugênicas. De acordo com Nancy ção, sexualidade e reprodução humana, mas
Stepan, a construção da “latinidade”, como iden- também sobre a própria história intelectual da
tidade ideológica, ocorreu com uma oposição ao região.
projeto eugênico proposto pelos países anglo-sa-
xônicos. Enquanto a visão anglo-saxônica de raça
era considerada em suas formas unilateral, bio- Vanderlei Sebastião de Souza
lógica e mendeliana, a Federação Latina pensa- Doutorando em História das
va as discussões raciais de forma mais tolerante, Ciências e da Saúde
ligada a uma visão neolamarckista que refletia a Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
diversidade da situação racial na América Latina. vanderleidesouza@yahoo.com.br

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