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O apito duplo do imediato soou estridente em todos os cantos. Mais um trinado, e o


próximo aviso seria um chute por baixo das redes dos dorminhocos. Homens se levantavam do
conforto dos panos e mesmo dos trapos espalhados no chão. Era a troca do turno.

Um ou outro bocejava, coçava as axilas. Uns corriam na esperança de roubar um pouco


de pão ou um gole de sopa no rancho antes que chegasse a equipe alforriada. Todos estavam
descalços. Não era preciso usar sapatos no chão de tábuas, morno. Pelos corredores escuros
e fedidos de suor um bando de gente grunhia saudações enquanto se esbarravam. Grumetes
zuniam entre eles e às vezes algum tomava um safanão para abrir caminho. Um grumete mais
magro que os outros corria e desviava dos grupos de trabalho, apressado. Os fedelhos
precisavam estar logo em seus postos, mas ele precisava ainda mais: estava de serviço na
ponte e seu mestre era o próprio imediato.

Cruzou a coberta amarrando a camisa e ajeitando sob o calção, antes de meter os


braços numa escada íngreme que levava a outra coberta, mais pra cima. Aquela área estava
muito melhor iluminada, uns globos de luz nas paredes faiscando só um pouco num brilho
azulado. Sob um dos mais estáveis o doutor Teochenco abria a boca de um dos nautas. O
homem olhava arregalado para o médico.

— Tem uns três dentes soltos — enfiou os dedos mais para dentro e forçou um pouco a
mandíbula — e vai ter mais se isso não melhorar. Que bosta.

O doutor deu um tapa leve no queixo do paciente e mandou que fosse para a cozinha
com um papel mandando o cozinheiro dar-lhe um pouco das batatas cozidas para os oficiais.

— Estamos quase sem batatas nem repolhos, e eu vou acabar num navio de doentes
desdentados! — Não podia fazer crescer umas laranjas, M’bemb?

— Os dentes não prendem na merda. A cabeça de vocês é cheia de merda, e é por isso
que não tem laranjas! — disse M’bemb com braços cruzados, e depois deu de ombros —
M’bemb vai tentar alguma frutinha pra vocês, cabeças de fossa.

O homenzarrão passou pelo grumete, resmungando. M’bemb é o cuidador do


herbanário, um selvagem na sua segunda vida que pegaram em Vitalia. Dizia que essa não era
sua segunda vida, porque era xamã e então era sua décima terceira vida, e em cada vida Lena
lhe aumentou um pouco mais os dotes, então era um xamã poderoso que empolgava as
mulheres e intimidava os homens. O certo é que M’bemb era um xamã impertinente e boca
suja e por isso a tripulação o adorava. Até mesmo o doutor Teochenco. E o herbanário era vital
não só por fornecer frutas e legumes frescos mas porque mantinha o ar mais fresco dentro da
nau. Eles se demoraram na rota sombria, muito do herbanário murchara e agora o grumete
pensava se o capitão não deveria ter dado ouvidos a M’bemb e resolvido antes as negociações
em Sombria.

Passou por um grupo que se ocupava de esticar e soltar cordas, usando imensas
carretilhas presas no piso que enrolavam as cordas e estas saíam espremidas por uns vãos
oleados para fora do casco. Um painel de vidro lhes permitia olhar as cordas se emaranhando
nuns postilhões que se espalhavam como ouriços e eram ligados por um tipo de couro. Vez por
outra um postilhão tremia ou se dobrava um pouco, e os homens das carretilhas tratavam de
arrumar as cordas novamente. Em cima deles estava um tubo que corria até a ponte, onde
ficava o piloto e por onde este podia gritar ordens sempre que quisesse forçar um rumo. Era
para lá que o grumete se dirigia.

Entrou na ponte quando outro jovem — a aspirante do piloto — terminava de enrolar


umas cartas e guardar um compasso num baú comprido.

— A tempo! — disse o grumete, e ajudou a garota a puxar as fivelas que fechavam o


baú. — Bom dia, Bul!

— Bom pra mim — a aspirante chamada Bul coçou a nuca e abriu um bocejo,
espremendo as olheiras — que vou dormir como mereço, Dan. O velho osso — disse baixinho
— está acordado há umas três horas, mais agitado que galinha em loja de isca. Acho que foi
dar uma mijada, mas logo volta.

Então, antes que o capitão voltasse, Dan tratou de estar ocupado. Buscou um pedaço
de sabão e uma estopa e começou a polir o grande vidro, grosso e globular, que se destacava
da ponte. Tomaria metade do turno e seus braços iriam arder como fogo, mas ele não ligava.
Não naquele dia, não se os cálculos que fizera olhando as cartas estiverem corretos. Não
errara, e naquele dia, quando já estava com quase todo o vidro polido Dan parou um pouco.
Também o capitão e o piloto pararam de conversar, porque uma linha tênue surgiu onde antes
era escuridão, azul profundo e estrelas pintalgadas. A linha aumentou e torceu, formando um
arco.

E Solaris surgiu por trás de Arton, banhando o contorno daquele mundo gigantesco com
ouro e calor, e iluminando as velas e tripulantes de Megaréa, que depois de seis meses
emergia da rota escura.

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