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— Tem uns três dentes soltos — enfiou os dedos mais para dentro e forçou um pouco a
mandíbula — e vai ter mais se isso não melhorar. Que bosta.
O doutor deu um tapa leve no queixo do paciente e mandou que fosse para a cozinha
com um papel mandando o cozinheiro dar-lhe um pouco das batatas cozidas para os oficiais.
— Estamos quase sem batatas nem repolhos, e eu vou acabar num navio de doentes
desdentados! — Não podia fazer crescer umas laranjas, M’bemb?
— Os dentes não prendem na merda. A cabeça de vocês é cheia de merda, e é por isso
que não tem laranjas! — disse M’bemb com braços cruzados, e depois deu de ombros —
M’bemb vai tentar alguma frutinha pra vocês, cabeças de fossa.
Passou por um grupo que se ocupava de esticar e soltar cordas, usando imensas
carretilhas presas no piso que enrolavam as cordas e estas saíam espremidas por uns vãos
oleados para fora do casco. Um painel de vidro lhes permitia olhar as cordas se emaranhando
nuns postilhões que se espalhavam como ouriços e eram ligados por um tipo de couro. Vez por
outra um postilhão tremia ou se dobrava um pouco, e os homens das carretilhas tratavam de
arrumar as cordas novamente. Em cima deles estava um tubo que corria até a ponte, onde
ficava o piloto e por onde este podia gritar ordens sempre que quisesse forçar um rumo. Era
para lá que o grumete se dirigia.
— Bom pra mim — a aspirante chamada Bul coçou a nuca e abriu um bocejo,
espremendo as olheiras — que vou dormir como mereço, Dan. O velho osso — disse baixinho
— está acordado há umas três horas, mais agitado que galinha em loja de isca. Acho que foi
dar uma mijada, mas logo volta.
Então, antes que o capitão voltasse, Dan tratou de estar ocupado. Buscou um pedaço
de sabão e uma estopa e começou a polir o grande vidro, grosso e globular, que se destacava
da ponte. Tomaria metade do turno e seus braços iriam arder como fogo, mas ele não ligava.
Não naquele dia, não se os cálculos que fizera olhando as cartas estiverem corretos. Não
errara, e naquele dia, quando já estava com quase todo o vidro polido Dan parou um pouco.
Também o capitão e o piloto pararam de conversar, porque uma linha tênue surgiu onde antes
era escuridão, azul profundo e estrelas pintalgadas. A linha aumentou e torceu, formando um
arco.
E Solaris surgiu por trás de Arton, banhando o contorno daquele mundo gigantesco com
ouro e calor, e iluminando as velas e tripulantes de Megaréa, que depois de seis meses
emergia da rota escura.