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09/02/2017 Sonhos dourados ­ Revista de História

Sonhos dourados
Considerado o pai dos bandeirantes, D. Francisco de Souza usou métodos pouco
ortodoxos em sua obsessão pela descoberta de minérios
José Carlos Vilardaga
1/8/2015  
Quando “Francisco das Manhas” faleceu, na vila de São Paulo, em 1611, estava “tão pobre (...) que
nem uma vela tinha para lhe meterem na mão”, segundo o cronista Frei Vicente do Salvador. Não foi
na hora da morte, portanto, que inscreveu seu nome na história, mas ao longo da vida: fidalgo
português, D. Francisco de Souza havia sido sétimo governador geral do Brasil e ocupava, desde 1608, o
posto de capitão geral das Minas e governador da “Repartição Sul”, que incluía as capitanias do Rio de
Janeiro, Espírito Santo e São Vicente. 
 
Era uma espécie de “Quixote mineral”: despendeu toda a energia e os recursos que tinha – e que não
tinha – no mirabolante sonho de transformar o Brasil em um eldorado. Na historiografia paulista, foi
louvado como o pai dos bandeirantes, verdadeiro promotor do impulso expansionista regional,
patrocinando expedições que definiram a “vocação para o sertão” de São Paulo. Mas sua trajetória foi
polêmica, na linha tênue entre o lícito e o ilícito. 
 
Ainda nos tempos de Portugal, D. Francisco de
Souza serviu em Tanger, comandando um galeão da
armada real de D. Sebastião na desastrosa
campanha marroquina de 1578. Durante a União
das Coroas Ibéricas, sob o reinado de Felipe II, pôs‐
se rapidamente a serviço do novo senhor, ao
participar, em 1589, da defesa de Lisboa contra as
investidas do pretendente português ao trono, D.
Antonio. Não só caiu nas graças do rei, como se
casou com a filha de um membro do Conselho Real.
Com boa inserção na rede de influências do sogro,
no final do ano seguinte era nomeado governador
geral do Brasil, em substituição a Francisco
Giraldes, que nem chegou a tomar posse. Mapa da Capitania de São Vicente em fins do XVI,
  de Teixeira Albernaz. (Imagem: Fundação
A obsessão por minérios não era exclusividade de D. Biblioteca Nacional)
Francisco: aos impérios ibéricos interessava muito ir
em busca dessa riqueza. No amplo espectro territorial formado pelo império espanhol, multiplicavam‐se
as iniciativas de exploração mineral. No Brasil, o Regimento de 1588, herdado de Francisco Giraldes,
instruía sobre a fortificação da costa, o favorecimento à conversão dos índios pelos jesuítas e o
estímulo à descoberta de minas. Para tanto, o novo governador geral angariou uma comitiva bastante
representativa, com nítido sentido militar e técnico: soldados, arquitetos de fortalezas, peritos em
minérios, engenheiros, fundidores. A presença de portugueses, castelhanos, bascos, alemães,
flamengos e italianos refletia a amplitude do império espanhol.
 
Ainda em Madri, Souza conheceu Gabriel Soares de Souza, senhor de engenho na Bahia e autor do
Tratado descritivo do Brasil (1587). Este devia ser um homem bastante persuasivo: depois de sete anos
perambulando pela corte madrilena, estava prestes a voltar ao Brasil carregado de promessas de
mercês caso descobrisse as minas de metais que jurava existirem. Segundo algumas fontes, D.
Francisco tomou a mesma embarcação que o senhor de engenho, e prometeu empreender todos os
esforços para ajudá‐lo em suas empreitadas.
 
D. Francisco de Souza tomou posse em Salvador, no dia 9 de junho de 1591. Durante o período em que
permaneceu na Bahia, fez disparar entradas aos sertões em busca das riquezas minerais. Também
fortificou a costa, efetivou a conquista do Rio Grande e promoveu uma série de melhoramentos na
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cidade de Salvador, como a reforma de igrejas, o término da murada da cidade e a reconstrução do


forte de Santo Antônio da Barra. Vem desse tempo o seu envolvimento com um intenso comércio,
muitas vezes proibido, com a região do Rio da Prata, atual Argentina. Em Tucumã, um procurador de
D. Francisco de Souza comprou quatro escravos negros para negociá‐los em Potosí. O primeiro contador
de Buenos Aires, Hernando de Vargas – obrigado a parar em Salvador porque sua nau tinha sido
apresada por corsários franceses – relatou que o governador lhe fazia tanta mercê e lhe emprestava
tanto dinheiro que fazia com que se sentisse como seu herdeiro.
 
Foi em outubro de 1598 que D. Francisco iniciou sua viagem rumo à capitania de São Vicente. Teria sido
atraído para lá em função das notícias de descobertas de ouro e prata nas cercanias da vila de São
Paulo. Na verdade, as notícias e os boatos de riquezas minerais na capitania eram bem mais antigos.
Em 1595, o governador já enviara uma delegação de especialistas a São Paulo e, um ano depois, fez
partir três entradas: a de Diogo Martins Cã, do Espírito Santo, a de Martim de Sá, do Rio de Janeiro, e
a de João Pereira de Sousa Botafogo, de São Paulo.
 
Depois de passar por Vitória, Rio de Janeiro e São Vicente, Souza chegou a São Paulo em maio de 1599.
As Atas da Câmara da vila revelam a ansiedade dos moradores com a aproximação da chegada do
governador e de sua comitiva. Autoridades locais se mobilizaram para garantir refeição, abrigo e
serviços aos recém‐chegados. Os habitantes da pequena vila se viram, de repente, alçados ao centro da
governança. E, de fato, enquanto permaneceu na região, entre 1599 e 1604, a atuação de D. Francisco
foi marcante para o desenvolvimento da polis paulista: ordenou espaços, dinamizou a economia,
regulou a vida cotidiana, criou cargos e ofícios e promoveu alianças familiares.
 
Pode‐se dizer que o governador implantou um “projeto articulado” de desenvolvimento na região.
Tentou aplicar o modelo de repartimiento – de inspiração castelhana – no aldeamento de índios como
reserva de mão de obra. Descidos através de expedições de apresamento (as chamadas bandeiras), eles
poderiam ser utilizados na mineração ou nos empreendimentos alavancados pelo governador na área
agrícola e siderúrgica. Alguns dos colaboradores diretos do governador foram os pioneiros no plantio e
na moagem do trigo, bem como em iniciativas de siderurgia. Na segunda vinda do governador à vila,
em 1609, ele traria autorização para importar do Rio da Prata sementes de trigo e cevada, além de
inusitadas lhamas para o transporte dos minérios.
 
D. Francisco continuava valendo‐se de meios não ortodoxos para patrocinar suas aventuras minerais.
Um caso emblemático é o episódio narrado pelo desventurado Anthony Knivet. Em 1599, uma
embarcação flamenga quis fazer comércio em São Vicente. Obteve autorização do governador, mas
depois foi traída por ele: D. Francisco aplicou um golpe nos desavisados tripulantes, mandando
apreender toda a carga. 
 
No entanto, o esforço empreendido em busca das minas de ouro, prata e ferro teve resultados
controversos. Ainda hoje as verdadeiras dimensões desta exploração são apenas especuladas. O que se
sabe é que ficou muito aquém das promessas. Assim, sua atuação passou a gerar desconfianças no
Conselho Real, e também nos governadores gerais que o sucederam. Reclamavam que os projetos de D.
Francisco eram um desperdício dos recursos da Real Fazenda. Apesar das críticas, pouco após voltar à
Europa, em fins de 1605, ele passou de suspeito de desperdício de verbas a um dos protegidos da corte
de Madri. Além de suas boas relações, o seu poder de persuasão e convencimento quanto às supostas
riquezas das “minas de São Paulo” era enorme. Em 1608 ganhou a nomeação de governador da
Repartição Sul e capitão das Minas do Brasil, jurisdição criada especialmente para ele. Voltou a São
Paulo com poder de distribuir mercês, títulos e perdão a degredados, além do direito de tornar‐se
marquês das Minas caso as riquezas minerais dessem o fruto esperado. O título seria utilizado apenas
pelo seu neto, que herdou também seu nome. 
 
O apelido jocoso “Francisco das Manhas” provavelmente veio das características que o tornaram
conhecido: afável e adaptável, bom negociante e capaz de obter influência por caminhos pouco usuais.
O estudioso Washington Luís, ex‐presidente da República do Brasil, em trabalho de 1956, sugeriu que
D. Francisco de Souza teria uma espécie de manha hereditária, pois um trisavô seu pedira como mercê
ao rei D. João II apenas o trato carinhoso em público, pois assim ele conseguiria crédito fácil na praça
por ser “amigo do rei”. Para Washington Luís, o termo “manha” se filiava à ideia de malandragem. De

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qualquer forma, já no século XVIII, a palavra era associada em dicionário à “destreza no manejo dos
negócios”. 
 
Ao final, pouco pôde fazer o manhoso Francisco: sem encontrar a riqueza que tanto buscou, faleceu
dois anos depois de sua volta, vítima provável de alguma das pestes que afligiam continuamente o
planalto de Piratininga. Até hoje não se sabe onde foi sepultado e durante muito tempo especulou‐se
sobre as razões de sua morte. Uma das versões sugeria assassinato. Outra, desgosto.
 
José Carlos Vilardaga é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor de Lastros de
viagem: expectativas, projeções e descobertas portuguesas no Índico (1498‐1554), (Annablume, 2010)
e São Paulo no Império dos Felipes: conexões na América Meridional (1580‐1640), (Intermeios, 2014).
 
Saiba Mais
 
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de bandeirantes e sertanistas do Brasil – séculos XVI,
XVII, XVIII. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Notícias das Minas de São Paulo e dos sertões da mesma
capitania. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
SALVADOR, Frei Vicente. História do Brazil (1500‐1627). Curitiba: Juruá Editora, 2007.

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