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Grau Zero da Psicologia?

A Representação da Acção nos Filmes


dos Irmãos Dardenne (Pippin, R.; 2015) – RESUMO

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Desde 1996, a dupla de irmãos belgas, Luc e Jean-Pierre Dardenne, realizou e
produziu filmes sete ficcionais, que se distanciam claramente dos primeiros, datados de
1987 a 1992. Lançaram este ano um novo filme: Deux Jours, une nuit.

Todos os seus filmes se desenvolvem em torno de uma questão moral que, regra
geral, tem a ver com responsabilidade; frequentemente, envolvem alguma espécie de
acção de recuperação, ou de reparação, de um erro cometido por alguém (delinquente),
contra outro alguém (vítima); em todos eles se manifesta um elevado sentido de
complexidade em ordem a compreender as personagens que lidam com tal questão.
Parte desta complexidade tem a ver, por um lado, com o facto de a nossa atenção ser
constantemente atraída para a agitação, perturbação e confusão psicológicas da
personagem, por outro lado, para as características do mundo social em que vive. Mais,
o autor do texto assere que as várias propriedades cinemáticas destes filmes envolvem
formas de repensar e desafiar a base da nossa compreensão convencional da relação
agente – acção, numa acção comum e numa acção explanatória. E assim, retratar de
forma invulgar a subjectividade humana.

Isto levanta outras questões: o que necessitamos compreender, para


compreender o Outro? Como podemos entender o Outro, de uma nova maneira? Isto
envolve outra grande questão: o que é denominar estes objectos estéticos “formas de
Re-pensar”? O autor apenas se vai limitar, neste texto, a seleccionar detalhes, e a
esperar que uma nova forma de inteligibilidade cinemática possa emergir.

Em cada filme, os irmãos Dardenne tentam representar as motivações e as


decisões (muitas vezes momentâneas) de determinadas personagens. Prosseguem sob
duas premissas: há algo de difícil entendimento, e até misterioso, nestas motivações e
decisões das personagens; o contexto social que as personagens habitam (que
pertencem à classe trabalhadora, ou têm empregos precários, ou são desempregadas)
é historicamente recente – um produto das zonas de livre comércio europeu, de
trabalho migrante, do mercado comum, do capitalismo e da globalização, formando um
novo contexto de trabalho-produção cujas implicações não são ainda claras. É um
mundo em que os trabalhadores são forçados a entrar em competição impiedosa, onde
o trabalho de um sujeito implica o desemprego de outro, e em que ambos,
provavelmente, se conhecem. Ou noutra situação, as personagens são migrantes numa
terra estranha e vivem à margem de um ciclo normal de produção e consumo, e as suas

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vidas íntimas, bem como o seu próprio autoconhecimento, não pode, ser acedidos pelos
meios comuns. Muitas vezes, não têm um estatuto social atribuível e isso não tem só
uma dimensão social, mas também psicológica. Tudo isto ainda coloca mais pressão na
luta para entender o Outro.

Os irmãos Dardenne fazem questão de impedir ao espectador uma leitura


convencional do filme. Por várias razões. O acto cometido pode parecer, à primeira vista,
gratuito, sem motivação aparente, e por isso, muito difícil de entender. Por exemplo,
um homem aceita como aprendiz o rapaz que, cinco anos antes, tinha morto o seu filho
e, em vez de o vingar, liberta o rapaz e trabalha com ele (O Filho, 2002). Uma mulher
que se cruza por acaso com um rapazinho perturbado, em busca do pai que o
abandonou, envolve-se profundamente na sua vida e assume toda a responsabilidade
sobre ele, sem que tivesse qualquer obrigação, a ponto de arruinar a sua vida amorosa
(O Miúdo da Bicicleta, 2011).

Os Dardenne tornam isto cinematicamente (ou cinematograficamente)


inteligível. O modo cinemático parece ser uma espécie de modalidade sensível - afectiva
de tornar inteligível, que tem a ver com o que nos comove, toca. Com a forma como
uma paisagem moral é tornada mais saliente, como alguns detalhes nos agarram, nos
excitam a imaginação, como somos surpreendidos ou confundidos, e isso faz – nos ver
de um novo modo. As personagens principais não são especialmente cultas, articuladas
ou reflexivas. Quase todos os seus aspectos psicológicos têm que ser inferidos da forma
como agem e do que se vê nos seus rostos.

Em suma, o que quero reiterar é que os seus filmes são construídos à luz da clara
consciência de uma inteligibilidade visual e dramática das nossas vidas morais. Desta
nova forma de consciência resulta um novo estilo cinematográfico, que desafia as
explicações filosóficas e de senso comum ortodoxas acerca do ser humano, bem como
o entendimento dos seus actos.

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Os irmãos Dardenne começaram como realizadores de documentários
politicamente orientados (movimento trabalhistas belga). Passaram para a realização de
filmes activistas do movimento, com o objectivo de consciencializar o público acerca da
batalha perdida do movimento trabalhista para uma lógica de produção capitalista, após
a IIGM.

Os seus filmes são uma produção artística lúcida sobre o colapso de uma
solidariedade de esquerda, da falência da experiência de unidade social. A maior parte
das personagens dos seus filmes são da classe trabalhadora (pequenos comerciantes,
mecânicos, carpinteiros, esteticistas; ofensores de pequenos delitos, ou criminosos

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menores, …). São personagens com pouca ligação à comunidade local ou à vida
colectiva; com poucos ou nenhuns amigos e famílias fracturadas ou disfuncionais. Luc
Dardenne diz que “vivemos no tempo de Cronos, que come as suas crianças”. Cada
personagem está entregue a si própria, mesmo quando é menor. A maior aspiração
destas personagens é ter uma ‘vida normal’, atingir a normalidade psicológica, ou uma
fantasia de normalidade.

Os ambientes sociais dos filmes dos Dardenne mostram-nos uma época que,
embora pareça corresponder a um realismo pós-socialista, não indiciam signos
politicamente reconhecíveis. Assim, os momentos de epifania moral, aqueles que
ocorrem em momentos de inesperada intimidade, parecem ser despoletados pela
simples presença de uma pessoa em particular, não advêm de um princípio superior,
como na moral hegeliana, nem da consciência social de um grupo em particular. São
momentos de resistência e de transcendência. Podem parecer gratuitos e inexplicáveis,
são momentos de transformação.

Influências dos irmãos Dardenne: filosóficas - Nietzsche, Heidegger, Levinas,


Kafka, Freud; cinematográficas – Robert Bresson, Roberto Rossellini, temas de François
Truffaut e Vittorio De Sica, entre outros. Fazem um uso muito expressivo de actores
desconhecidos dos grandes públicos e até de actores não profissionais. Tratam de vidas
adolescentes nos seus filmes (época de maior opacidade psicológica e com maior
tendência para o movimento psicológico de ‘acting out’).

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De volta ao tema principal do texto: problematização da representação
cinemática da relação tradicional entre interioridade psicológica e movimentos
corpóreos externos, e outras formas de expressão do exercício da agência humana e da
subjectividade.

Conseguimos elencar quatro técnicas de realização impressionantes, em que


será feita a correspondência entre a forma estética e as suas implicações filosóficas:

1) falta de congruência dos cortes no filme, e dos princípios e fins das acções e
conversações; 2) o posicionamento da câmara é muito próximo das personagens
e por trás, por forma a criar o efeito de que o espectador, mais do que ver a
acção, segue-a; 3) frustração ou recusa da interpretação cinemática
convencional sobre os close-ups; 4) grau zero da psicologia das personagens - as
suas faces apresentam, muitas vezes, uma total inexpressividade (expressão
vazia ou fria), sem indícios de agitação psicológica interior.

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O uso destas técnicas confere aos filmes Dardenne um estilo original e distinto
de todos os outros. É um estilo historicamente indexável, não uma mera
experimentação estética. A suposição implícita é que existe algo na configuração do
mundo tal como se apresenta actualmente que não pode ser representado de forma
credível, ou verosímil, através das formas de narrativa tradicionais. Especialmente
no que diz respeito às representações dos aspectos psicológicos.

1) Relativamente à primeira técnica: além dos cortes não convencionais, a


câmara parece não focar os aspectos que esperaríamos ver seleccionados,
tendo em conta a acção representada. Há muitos jump cuts, e o
enquadramento invulgar das cenas dificulta-nos a selecção entre os aspectos
de maior ou menor significância. Isto faz-nos pensar em que é que consiste
verdadeiramente uma unidade de acção, quando começa e quando termina.
Os próprios filmes começam e terminam abruptamente e directamente, do
e para black screen.

----------- Ver apontamentos de João Safara sobre a análise de O Filho (2002). -----------

- No filme é visível uma inteligibilidade mimética, crucial para entender a reconciliação


final, uma espécie de entendimento mútuo mimético, que não passa pela forma
discursiva, que não é verbalmente articulável, entre Olivier e Francis.

- Considerações acerca da representação visual das unidade de acção do filme: a acção


começa muito antes do filme, percebemos isso ao longo do mesmo. Começa quando
Olivier deixa de trabalhar na carpintaria da família e vai para um centro de formação
profissional para jovens ofensores em reabilitação. Há uma não-coincidência entre a
composição cinematográfica das cenas e a unidade convencional das acções.

- As tomadas de decisão das personagens, em momentos chave dos filmes, implicariam,


classicamente, alguma transparência das personagens em relação a elas próprias. Isto é
posto em causa nos filmes Dardenne, não em nome da representação de um
inconsciente ou de falta de insight por princípio, mas porque ainda não há nada para
conhecer, nada ainda está determinado, decidido, embora as acções tenham um
propósito qualquer e um sentido.

2) Os close-ups da parte de trás das personagens, especialmente no filme O


Filho, é como que a materialização imagética do nosso desejo de não perder
nada da acção e de entender o que se passa. A cena parece ser filmada de
dentro da cena, como se o ponto de vista exterior fosse desconfortável. A
parte detrás de um personagem é também o seu lado mais vulnerável, mais
desprotegido… mas por mais perto que nos encontremos da personagem,

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esta continua a ser impenetrável de algum modo, opaca. Os cortes na edição
de imagem sugerem que algo importante para o entendimento da acção fica
indisponível, ou assim o sentimos. [Não é uma elipse clássica].
Esta técnica parece também ter algo a ver com a psicologia da
deliberação e da acção. Não nos dá suficiente distanciamento para fazermos
sentido das coisas. Tal como as personagens, estamos em agitação, estamos
a ser impelidos para a frente, de uma forma não reflexiva, a curiosidade
envolve-nos na acção. O excesso de proximidade torna ainda mais opaca a
personagem e o sentido da acção.

3) O uso extensivo do close-up, uma das técnicas cinematográficas mais


poderosas. É convencionalmente o código do retrato da alma da
personagem. Não em Dardenne. A interioridade psicológicas das
personagens é quase grau zero. Quase, mas não completamente. O close-up
mais comum é o da parte detrás da cabeça. Quanto muito, obtemos ¾ da
face. Há muitos close-ups feitos a partir dos bancos traseiros de automóveis.
Acentuando o tema da velocidade, o ser impelido para a acção por forças não
evidentes, o ser transportado (como Francis e Cyrill). Coloca-nos num
posicionamento quase claustrofóbico dentro da cena. Estes close-ups são um
retrato incompleto da alma. O close-up dominante é o perfil. O que nos
sugere um bloqueio ou impasse da própria personagem. É, também, como
se a nossa expectativa de um momento de insight da personagem fosse
frustrada.

4) Nos raros momentos em que vemos um close-up da face, esta aparece-nos


com grande inexpressividade, indecifrável, quase em branco. Freud,
Nietzsche e Heidegger, o movimento estruturalista e pós-estruturalista
francês, já tinha conceptualizado a psicologia humana de cada indivíduo,
como uma fortaleza interior, unicamente acessível à mente do próprio
sujeito. O que os Dardenne nos mostram é que, de facto, as personagens são
opacas, ocultas, misteriosas, com bloqueios interiores (aplicação dos
conceitos de inconsciente, de auto-engano). Assim, impossibilitados de
aceder ao interior, pela vacuidade da expressão facial, não temos alternativa
senão virarmo-nos para a ocurso da acção e dos actos das personagens. Mas
isto não implica uma relação referencial directa entre a expressão e o interior
das personagens. A interioridade destas personagens não é vazia, está em
ebulição. Não está aqui, também, em causa um realismo psicológico. A
subjectividade e a visibilidade emergem nas acções e interacções das
personagens. E isto é profundamente contra convencional. Mas mais
representativo de uma lógica psicossocial das personagens do que qualquer
outro modo. O conflito interior, a ambivalência, a não-decisão, a acção

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inacabada, como se se tratasse de uma moratória psicossocial, muito própria
da interioridade real de um adolescente.

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----------- Ver apontamentos de João Safara sobre a análise de O Filho (2002). -----------

A significação está nas acções: respiração pesada de Olivier (o filho foi


estrangulado); o peso da memória que carrega (o peso das tábuas, a rotina
pesada de trabalho, a lesão nas costas).

“Não sei” (alguém mais expressivo diria melhor…).

Como se o contexto socio-histórico dos filmes determinasse a psicologia


das personagens, e com ela, a possibilidade de representação cinemática.

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Os Dardenne são especialmente sensíveis a esta forma de mediação social. A
agência do indivíduo num mundo de novas lógicas sociais: esfera limitada de
possibilidades e oportunidades, baixa probabilidade de mobilidade social, as relações
patológicas entre as personagens, a injustiça moral.

Nunca conseguimos imaginar o que acontece depois do final de um filme dos


Dardenne, até porque os próprios personagens não sabem. É um enredo inacabado. Esta
indeterminação é evidente em todos os filmes.

Em O Miúdo da Bicicleta podemos perceber que o final do filme, longe de


representar um final da acção ou do enredo, ainda mais longe de constituir um
desenlace, parece reafirmar a questão do não reconhecimento social das personagens.
Não reconhecido pelo pai, rejeitado até, Cyrill é aceite e amado por Samantha. Mas este
primeiro não reconhecimento deixa marcas fundas, a pontos de não se queixar nem
exigir reparação quando é agredido no final. Não é por expiação de culpa, mas por não
se reconhecer o direito de justiça, de uma certa anedonia moral.

~ The End ~

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