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Desde 1996, a dupla de irmãos belgas, Luc e Jean-Pierre Dardenne, realizou e
produziu filmes sete ficcionais, que se distanciam claramente dos primeiros, datados de
1987 a 1992. Lançaram este ano um novo filme: Deux Jours, une nuit.
Todos os seus filmes se desenvolvem em torno de uma questão moral que, regra
geral, tem a ver com responsabilidade; frequentemente, envolvem alguma espécie de
acção de recuperação, ou de reparação, de um erro cometido por alguém (delinquente),
contra outro alguém (vítima); em todos eles se manifesta um elevado sentido de
complexidade em ordem a compreender as personagens que lidam com tal questão.
Parte desta complexidade tem a ver, por um lado, com o facto de a nossa atenção ser
constantemente atraída para a agitação, perturbação e confusão psicológicas da
personagem, por outro lado, para as características do mundo social em que vive. Mais,
o autor do texto assere que as várias propriedades cinemáticas destes filmes envolvem
formas de repensar e desafiar a base da nossa compreensão convencional da relação
agente – acção, numa acção comum e numa acção explanatória. E assim, retratar de
forma invulgar a subjectividade humana.
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vidas íntimas, bem como o seu próprio autoconhecimento, não pode, ser acedidos pelos
meios comuns. Muitas vezes, não têm um estatuto social atribuível e isso não tem só
uma dimensão social, mas também psicológica. Tudo isto ainda coloca mais pressão na
luta para entender o Outro.
Em suma, o que quero reiterar é que os seus filmes são construídos à luz da clara
consciência de uma inteligibilidade visual e dramática das nossas vidas morais. Desta
nova forma de consciência resulta um novo estilo cinematográfico, que desafia as
explicações filosóficas e de senso comum ortodoxas acerca do ser humano, bem como
o entendimento dos seus actos.
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Os irmãos Dardenne começaram como realizadores de documentários
politicamente orientados (movimento trabalhistas belga). Passaram para a realização de
filmes activistas do movimento, com o objectivo de consciencializar o público acerca da
batalha perdida do movimento trabalhista para uma lógica de produção capitalista, após
a IIGM.
Os seus filmes são uma produção artística lúcida sobre o colapso de uma
solidariedade de esquerda, da falência da experiência de unidade social. A maior parte
das personagens dos seus filmes são da classe trabalhadora (pequenos comerciantes,
mecânicos, carpinteiros, esteticistas; ofensores de pequenos delitos, ou criminosos
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menores, …). São personagens com pouca ligação à comunidade local ou à vida
colectiva; com poucos ou nenhuns amigos e famílias fracturadas ou disfuncionais. Luc
Dardenne diz que “vivemos no tempo de Cronos, que come as suas crianças”. Cada
personagem está entregue a si própria, mesmo quando é menor. A maior aspiração
destas personagens é ter uma ‘vida normal’, atingir a normalidade psicológica, ou uma
fantasia de normalidade.
Os ambientes sociais dos filmes dos Dardenne mostram-nos uma época que,
embora pareça corresponder a um realismo pós-socialista, não indiciam signos
politicamente reconhecíveis. Assim, os momentos de epifania moral, aqueles que
ocorrem em momentos de inesperada intimidade, parecem ser despoletados pela
simples presença de uma pessoa em particular, não advêm de um princípio superior,
como na moral hegeliana, nem da consciência social de um grupo em particular. São
momentos de resistência e de transcendência. Podem parecer gratuitos e inexplicáveis,
são momentos de transformação.
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De volta ao tema principal do texto: problematização da representação
cinemática da relação tradicional entre interioridade psicológica e movimentos
corpóreos externos, e outras formas de expressão do exercício da agência humana e da
subjectividade.
1) falta de congruência dos cortes no filme, e dos princípios e fins das acções e
conversações; 2) o posicionamento da câmara é muito próximo das personagens
e por trás, por forma a criar o efeito de que o espectador, mais do que ver a
acção, segue-a; 3) frustração ou recusa da interpretação cinemática
convencional sobre os close-ups; 4) grau zero da psicologia das personagens - as
suas faces apresentam, muitas vezes, uma total inexpressividade (expressão
vazia ou fria), sem indícios de agitação psicológica interior.
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O uso destas técnicas confere aos filmes Dardenne um estilo original e distinto
de todos os outros. É um estilo historicamente indexável, não uma mera
experimentação estética. A suposição implícita é que existe algo na configuração do
mundo tal como se apresenta actualmente que não pode ser representado de forma
credível, ou verosímil, através das formas de narrativa tradicionais. Especialmente
no que diz respeito às representações dos aspectos psicológicos.
----------- Ver apontamentos de João Safara sobre a análise de O Filho (2002). -----------
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esta continua a ser impenetrável de algum modo, opaca. Os cortes na edição
de imagem sugerem que algo importante para o entendimento da acção fica
indisponível, ou assim o sentimos. [Não é uma elipse clássica].
Esta técnica parece também ter algo a ver com a psicologia da
deliberação e da acção. Não nos dá suficiente distanciamento para fazermos
sentido das coisas. Tal como as personagens, estamos em agitação, estamos
a ser impelidos para a frente, de uma forma não reflexiva, a curiosidade
envolve-nos na acção. O excesso de proximidade torna ainda mais opaca a
personagem e o sentido da acção.
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inacabada, como se se tratasse de uma moratória psicossocial, muito própria
da interioridade real de um adolescente.
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----------- Ver apontamentos de João Safara sobre a análise de O Filho (2002). -----------
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Os Dardenne são especialmente sensíveis a esta forma de mediação social. A
agência do indivíduo num mundo de novas lógicas sociais: esfera limitada de
possibilidades e oportunidades, baixa probabilidade de mobilidade social, as relações
patológicas entre as personagens, a injustiça moral.
~ The End ~
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