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Noosemiótica: a produção de sentido nos processos

comunicativos espirituais
Luís Bittencourt∗

Índice 1 Espiritualidade e comunicação


1 Espiritualidade e comunicação 1 Amizade e fidelidade são qualidades que ci-
2 Espiritualidade e ciência 3 mentam as relações enquanto elas duram.
3 Espiritualidade, fato e realidade 7 Em 1911, Freud e Jung ainda mantinham
4 Saber nootrópico 9 vínculos que ultrapassavam os limites pro-
5 Referências Bibliográficas 10 fissionais. A carta citada, no entanto, pre-
nunciava o rompimento entre o mestre e o
“Caro amigo, discípulo que seria efetivado três anos de-
... Sei que você tem obedecido à sua profunda pois. Dissensões em torno da teoria da li-
inclinação pelo estudo do ocultismo, e não bido, que Jung insistia em dessexualizar, e
duvido que aí poderá colher abundantes frutos. opiniões contrárias em relação ao desejo in-
Nada há a fazer contra isso e cada qual tem cestuoso levaram os dois ao rompimento de-
razão de obedecer ao encadeamento de seus finitivo.
impulsos. A fama adquirida através de seus
Carl Jung seguiu o “encadeamento de seus
trabalhos sobre a demência resistirá por muito
impulsos” e “colheu frutos abundantes” no
tempo à acusação de ‘místico’. Mas não
permaneça em meio às luxuriantes colônias
seu caminho. Mais do que isso, abriu inúme-
tropicais; é preciso reinar na própria casa. ras estradas percorridas por discípulos e pes-
Cumprimentando-o muito cordialmente e espero quisadores que encontram na sua obra uma
também me escreva em breve. fonte inesgotável de criatividade, erudição
Seu amigo fiel. e sabedoria. “Não concordo quando dizem
Freud”.1 que sou um sábio ou um ‘iniciado’ na sabe-

Jornalista (O Dia, O Globo, Jornal do Com-
doria”, escreveu Jung (1975, p. 307), com-
mercio, TV Globo, TVE), professor (UFRJ, UVA), pletando com o relato de uma história:
editor (OPVS Editorial), Doutor em Comunicação e
Cultura pela ECO/UFRJ, autor do “Manual de Te- “Há uma velha lenda, muito bela, de um
lejornalismo” (Ed. UFRJ) e “Além da Ciência” rabino a quem um aluno, em visita, per-
(OPVS/BookLink), em edição
1 gunta: ‘Rabbi, outrora havia homens que
Jung (1975, p.319). Carta de 15 de junho de
1911. viam Deus face a face; por que não acon-
tece mais isso?’ O rabino respondeu:
‘Porque ninguém mais, hoje em dia, é
2 Luís Bittencourt

capaz de inclinar-se suficientemente’. É de alguns fenômenos sócio-culturais: a co-


preciso, com efeito, curvar-se muito para municação.
beber no rio”. Antes privilegiando os processos indivi-
duais e sociais de interação, a comunicação
Jung, como um bom sábio, afirma que a hoje pode ser vista como uma disciplina es-
diferença entre ele a maioria dos homens “re- sencial para a compreensão de fenômenos
side no fato de que em mim as ‘paredes di- espiritualistas e sincrônicos, como os refe-
visórias’ são transparentes. É uma particu- ridos por Jung e seguidores. Clarividência,
laridade minha. Nos outros, elas são muitas clariaudiência, telecinesia, telepatia, incor-
vezes tão espessas, que lhes impedem a vi- poração e inúmeros outros fenômenos atri-
são. Eles pensam, por isso, que não há nada buídos a práticas conhecidas como “ciências
do outro lado. Sou capaz de perceber, até ocultas” podem ser analisadas sob o ponto de
certo ponto, os processos que se desenvol- vista da comunicação.
vem no segundo plano; isso me dá segurança Na consulta ao Tarot, por exemplo, trata-
interior” (1975, p.307). se de um processo dialógico mediado por
Esta segurança Jung a demonstra em di- cartas que envolve não só consultor e consu-
versos livros sobre temas como artes divina- lente. Pode-se refletir sobre a existência de
tórias, alquimia etc. Utilizando os recursos “parceiros” subjacentes ao fenômeno da sin-
da ciência ao alcance de sua época, mostra cronicidade, povoando o “segundo plano” a
um universo povoado de símbolos arraigados que se refere Jung. Toda um “prática filo-
no inconsciente do indivíduo e sediado numa sófica” espírita foi construída com base no
espécie de memória virtual atualizada cotidi- seguinte pressuposto: há uma comunicação
anamente. Descobrindo regularidade na ex- com os espíritos desencarnados. Milhões de
periência simbólica, Jung desvela princípios pessoas em todo o mundo praticam, de uma
não-causais de conexão a que dá o nome de forma ou outra, algum tipo de comunicação
sincronicidade. Com isso, abriu uma via ori- com os “espíritos”.
ginal de acesso ao estudo científico da espi- Quem são, além de consulente e consultor,
ritualidade. os “parceiros ocultos” desse diálogo? Quais
Por sua vez, a ciência hoje corrobora as são os protocolos que regulam essa comuni-
deduções psicológicas subvertendo as no- cação? Qual é o seu universo de significa-
ções de tempo e espaço, criando um universo ção? Está-se falando, portanto, de uma se-
de ordens explícitas e implícitas em que as miótica nos moldes estabelecidos por Char-
leis de causalidade perdem sua referência ló- les Peirce divulgada no Brasil, entre outros,
gica e formal. O universo ganha atributos por Lúcia Santaella. Estamos num “viveiro
de indeterminação e criatividade, sobretudo de signos”. Santaella contrapõe céu e Terra
com o avanço da teoria quântica e seu con- (1992, p.107-108):
seqüente reflexo em disciplinas como a filo-
sofia. E no âmago desse processo renovador, “Muitos olhos, ao redor do planeta, es-
uma disciplina ganha força e credibilidade piam, contemplam, rastreiam os sinais da
como ferramenta de análise e compreensão Terra, processam sua tradução em sinais
codificados que, transmitidos à Terra, são

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Noosemiótica 3

reprocessados e convertidos em imagens. gias espirituais. A fonte está no “mundo dos


(...) Quantas visões da Terra o Céu nos mortos”, um espaço determinado, um lugar
envia? (...) Quantas Terras há, vistas do qualquer, que não é geográfico nem material,
Céu? (...) Os sentidos, especialmente os para onde vão as “almas” depois que deixam
olhos e ouvidos do homem, assim como os corpos.
seu cérebro, estão crescendo para fora do O emissor é uma individualidade que dei-
seu corpo”. xou o mundo material para ocupar o seu lu-
gar num mundo invisível aos homens co-
Citando Charles Peirce, Santaella afirma muns mas perceptível, visual ou sensitiva-
(1992, p. 61-62) que “O universo está em mente, a homens e mulheres sensíveis à sub-
expansão. Onde mais poderia ele crescer se- jetividade espiritual. O veículo, que também
não na cabeça dos homens?”. De fato, com- é canal, é o médium que recebe a mensagem
plementa Santaella, “O cérebro e os senti- para um destinatário determinado que pode
dos humanos estão crescendo, mas crescem ser um parente do morto.
para fora da cabeça e do corpo na multi- É importante reiterar que, na prática teúr-
plicidade de seus prolongamentos” fazendo gica2 , a experiência é o que conta. Tornar-
com que as faculdades humanas passem “por se sujeito e objeto de observação não é fácil,
transformações num ritmo tão veloz que não mas não é impossível quando um conjunto
deixa atrás de si senão cacos da nossa auto- de fatores conduz a uma ação da qual não se
imagem, sobre o pano de fundo de um mo- pode derrogar. A maior dificuldade, sem dú-
delo de mundo, da prévia idade moderna, vida, é de natureza emocional. O controle
que se estilhaçou”. das emoções, de tal forma que a consciên-
Num sentido inverso e complementar, o cia coopere com processos superiores de co-
homem também volta-se para dentro. A des- municação, é condição essencial para o bom
coberta cósmica tem sua contrapartida inte- empreendimento da tarefa. É uma aprendiza-
rior. Não há signos apenas do lado de fora. gem, no entanto, que ultrapassa uma simples
Dentro, há um universo infinito a descobrir, existência. Como diz Mabel Collins (1990,
uma viagem fantástica que há séculos vem p.37), na Luz no Caminho:
sendo feita por “peregrinos” das Tradições
religiosas. O Tarot é uma dessas tradições, “A grande e difícil vitória, o domínio
bem como a conversa com os espíritos, que dos desejos da alma individual, é obra
xamãs, curandeiros e consultores de oráculos de idades; portanto, não esperes rece-
praticam há milênios. ber a recompensa antes que idades e ida-
Vê-se que há um processo de comunica- des de experiências de hajam acumulado.
ção. Tecnicamente, há emissor, receptor e Quando tiver soado a hora de aprender
mensagem. Nada que não possa ser utili- esta regra 17, o homem estará próximo
zado no estudo, por exemplo, das comuni- de se tornar mais que um homem”.
cações espíritas. Um médium capta as men- 2
As operações que acionam os poderes de Deus
sagens de um “espírito” e as transmite ao ou dos seres espirituais sobre a natureza e a humani-
papel. Neste momento ele está fazendo o dade.
papel de canal. É um canalizador de ener-

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2 Espiritualidade e ciência iniciar-se um trabalho de tal natureza pelo


impacto negativo imediato sobre o ocul-
Como falar sobre o que não se vê e que, na
tismo. Associado a práticas negativas e
maioria das vezes, acontece no interior de
obscurantistas, o termo ocultismo afasta
uma subjetividade rarefeita e impermeável a
freqüentemente o olhar objetivo das ciên-
objetivações? Porque o ocultismo3 é, antes
cias que o abandonam ao discurso público de
de tudo, velado aos não iniciados. As ci-
uma minoria de iniciados.
ências ocultas por exemplo sempre desper-
Que os fenômenos da espiritualidade, por-
taram suspeitas no meio científico. Lalande
tanto, ainda não são objeto da ciência, atual-
(1996) expõe com precisão uma seqüência
mente é uma afirmação que já pode ser co-
de definições sobre ocultismo que demons-
locada em questão5 . Que dizem respeito
tra a profundidade dessa desconfiança.
a uma transmissão oral e interna, eis outra
Cita Grasset, para quem ocultismo é o “es-
afirmação que ninguém pode negar. Porém,
tudo dos fatos que não pertencem ainda à ci-
que desvanecem-se ao sabor da crítica, aí es-
ência (...) mas que pode vir a pertencer-lhe
barramos num enunciado que só em parte
um dia”. Mais adiante, complementa com
deve ser considerado verdade. Desvanecer-
Mentré: “o ocultismo englobaria tudo o que
se é uma expressão muito forte para um fenô-
ainda não é objeto da ciência, o que supo-
meno que, ao contrário de inúmeras teorias
ria que a ciência é o único modo de conheci-
e idéias, mantém-se na Tradição6 há séculos
mento”. Cita ainda Boisse sobre Grasset: “A
de existência. O que se mantém, portanto,
definição do dr. Grasset é demasiado ampla:
apesar da crítica, demonstra uma tal regula-
há fenômenos que não são ainda objeto da
ridade que deveria causar um mínimo de in-
ciência positiva e contudo não têm nenhuma
teresse das ciências.
das características que distinguem os fatos
Em poucas palavras, o problema é que as
de ocultismo” (Lalande, p. 764).
ciências não sabiam como lidar com os fenô-
Portanto, na visão da “ciência positiva”,
menos da espiritualidade. Ou caíam num po-
“o caráter oculto destes conhecimentos vem
sitivismo estéril de “ver para crer”, e mesmo
sobretudo da sua transmissão puramente oral
assim não criam, ou se protegiam por trás
e esotérica. São ciências sem arquivos,
de um cinismo tão estéril como retórico,
que se transmitem a iniciados com a ajuda
conquistando legiões de seguidores que vêm
de signos especiais, ‘cabalísticos’. Elas
contribuindo com sucessivas gerações para
[as ciências ocultas] temem a luz do dia e
5
desvanecem-se na sua maioria quando sub- Veja-se a contribuição de pesquisadores ligados
metidas à crítica”.4 ao programa de Comunicação e Semiótica do Dou-
torado da PUC-SP, notadamente o grupo Inter Psi –
Os enunciados acima são adequados ao
Grupo de Estudos em Semiótica, Interconectividade e
3
Entende-se aqui ocultismo como uma prática es- Consciência.
6
piritual, religiosa ou não, que pressupõe a mediação Lalande (1996, p.1147): “Aquilo que, numa so-
de fatores tais como escolas de mistério, prática ocul- ciedade (pequena ou grande) e particularmente numa
tista e iniciação espiritual, o que diferencia o termo religião, se transmite de uma maneira viva, que pela
da religiosidade ou, simplesmente, a prática de uma palavra, quer pela escrita, quer pelas maneiras de
religião específica. agir”.
4
Lalande (1996, p. 764).

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Noosemiótica 5

manter a espiritualidade longe dos laborató- Como Prigogine, para fins operacionais
rios do saber estabelecido. entende-se Deus como um princípio auto-
Não há o que ocultar. Trata-se, na verdade, organizador do universo; em termos plotini-
de estabelecer um esforço metodológico no anos, o princípio intelectivo. Se Deus é isso,
sentido de criar ou aproximar conceitos que o princípio mesmo da intelecção, é incognis-
possam trazer à luz do dia o que vive à Luz cível. Não cabe uma aventura com esse ob-
do espírito. Ou, num sentido filosófico, recu- jetivo. No entanto, é possível tornar-se Um
perar idéias e conceitos que as ciências man- com esse princípio utilizando-se recursos no-
tiveram no limbo durante anos a fio em con- otrópicos disponibilizados pelas ciências em
seqüência de condições histórico-sociais. E geral e pelo que se convencionou chamar de
o próprio Lalande, na citação acima, fala em “ciências ocultas”.
“signos especiais”. Portanto, no mínimo te- Assim, de imediato afirma-se a existência
mos um fenômeno de interesse da Semiótica. de sujeito e objeto na prática da espiritua-
Antes de tudo, para ter-se uma hermenêu- lidade. Conseqüentemente, há também ob-
tica das ciências da espiritualidade é preciso, servação. Besana (1990, p.55) fala da difi-
como se diz, “deixar Deus de lado”. Ele con- culdade de conceituar observação em con-
tinuará presente, segundo o princípio da ima- dições normais da análise científica, porque
nência, mas não o Deus antropomórfico que “Todo processo cognitivo de natureza teoré-
conhecemos. Como diz Prigogine7 , tica, natural ou prática exige, para assegurar
a sua própria sobrevivência, uma base cons-
“Deus não é problema meu. Cada um de titutiva composta por um conjunto de fatos,
nós faz sua extrapolação. O máximo que de aquisições estáveis e seguras, cuja reco-
posso dizer é que o problema da exis- lha é tarefa da observação. Logo, a obser-
tência de Deus é diferente hoje do que vação surge como percepção atenta e consci-
era há algum tempo. Antes, parecia que ente de situações, fatos etc, pormenorizada-
você tinha de escolher entre duas certe- mente apreendidos e considerados”.
zas: a de Newton ou a da Bíblia. Essa Procura-se então definir a observação con-
oposição não era lógica, pois, mesmo em siderando sua pratica nas ciências e dis-
um universo autômato como o de New- ciplinas que pressupõem a existência de
ton, você precisaria de alguém que cri- objetos perfeitamente diferenciados do su-
asse este autômato. Mas se você en- jeito, como astronomia, ciências naturais etc.
tende o universo como sendo capaz de se Pratica-se também a observação quando o
auto-organizar, a pergunta se torna: esse objeto é um livro ou material resultante de
universo é possível devido à sua própria produção mental de outras pessoas. Outra
estrutura intrínseca ou porque alguém o forma de praticar-se a observação é traba-
programou? Acho que essa questão está lhar sobre objetos documentais, como rela-
muito além da nossa capacidade de en- tos, manuscritos, periódicos etc, relaciona-
tendimento”. dos a disciplinas como a história.
7
Ilya Prigogine, entrevista a Alessandro Greco, Todas essas áreas permitem a observação
Gazeta Mercantil, 12-13/06/1998. “do ponto de vista do esforço a desenvolver
para atribuir um significado e uma organiza-

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ção sistemática a tudo que é observado, quer veito. Os Racionalistas, ao contrário, se


a observação resulte principalmente da apli- assemelham à aranha, pois tecem teias
cação do aparelho sensorial ou da aplicação admiráveis, mas sem nenhuma solidez. O
de instrumentos conceptuais, quer diga res- modelo do verdadeiro sábio não é a for-
peito genericamente a objetos naturais, ou, miga nem tampouco a aranha, mas a abe-
mais especificamente, a objetos espirituais, lha; a abelha vai extrair o suco das flores
quer surja dirigida para o exterior ou interior nos campos e nos jardins, em seguida, o
do observador” (Besana. 1990. p.46). digere para transformá-lo em mel. Con-
Em resumo, o observador científico dos clusão: a única esperança de progresso
fenômenos da espiritualidade, ele próprio encontra-se na indução verdadeira, numa
tem participado como sujeito da sua experi- indução realmente probante, susceptível
mentação. Com isso, o que tem sido consi- de provar que, uma vez supressa a causa,
derado como inexplicável vai ganhando, no cessa o efeito (sublata causa, tollitur ef-
decorrer dos anos, novas técnicas sensoriais fectus)”.
e ferramentas de análise que, certamente, po-
dem levar a uma redefinição conceitual nos Sodré (1994, p.32) aponta Isaac Newton
próximos anos. Como registra a literatura, como um “paradigma do cientista moderno”,
defendendo essa abertura da ciência a fenô- considerado por Keynes como “o último dos
menos da espiritualidade, o “campo da ciên- magos”, porque “aceitava o método experi-
cia moderna, que é axiomático-dedutiva em mental moderno sem recusar as especulações
suas formas ‘puras’ e empírico-dedutiva nas herméticas. Ele concebia a ciência como um
formas experimentais. Estes dois tipos pres- aprofundamento do saber antigo, presente
supõem sempre uma causa para o fato”... e tanto nos mitos como nos textos inaugurais
...“o controle do fato pela indução ou pela da filosofia. (...) [Newton], “como qual-
dedução legitima-o cientificamente” (Sodré, quer alquimista, invocava ‘espíritos etéreos’
1994, P.17). e fluídos em eterna circulação na natureza.
O “controle do fato” a que se refere Sodré Invocava o princípio obscuro da ‘força”’.
é uma condição da prática espiritual. Mesmo Se a concepção de uma substância eté-
que não o controle na sua totalidade, o que rea no espaço foi sendo abandonada pela ci-
pode exigir um grau muito elevado de ini- ência, que hoje fala em anti-matéria, a de
ciação, o espiritualista exerce sobre os fatos campo ganhou reforço nas últimas décadas
materiais, psíquicos e espirituais algum tipo com as teorias do campo unificado. Nos últi-
de controle indutivo, pressupondo, portanto, mos anos, os cientistas desenvolvem experi-
alguma intencionalidade. ências que resultam em teorias que nos pró-
Sobre a observação fenomênica, Bacon ximos anos podem mudar a concepção de
afirma, segundo Japiassu (1995, p.52-53), universo e de vidas. Contam-se às centenas
que os livros sobre física, cosmologia etc. que
procuram atender à procura de novos para-
“os Empíricos se assemelham à formiga, digmas que permitam melhor compreender
pois coletam fatos sem ordem e sem es- os processos de vida.
colha, dos quais não tiram nenhum pro- A uma pergunta sobre a filosofia, se ela é

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útil para a ciência e vice-versa, Weisenberg “(1) ocorrências em geral, assim como
afirmou que ações; logo (2) o que é o caso, se não é
uma ocorrência; logo (3) o que se sabe
“A filosofia profissional tem um valor ser o caso; logo (4) o que se sabe por
próprio, mas não tem muito valor para a observação, mais do que por influência;
ciência. Também acho que a maioria das logo (5) os dados reais da experiência,
descobertas na ciência, incluindo aquelas opostos ao que inferimos, ampliando um
revolucionárias como a mecânica quân- ou mais dos sentidos acima, (6) as coisas
tica e a relatividade, não é muito signifi- que realmente existem, tais como as pes-
cativa para a filosofia. (...) Talvez a única soas e instituições, aparentemente para
descoberta da ciência que tenha sido re- contrastá-las com ficções” (Sodré, 1994,
almente importante para a filosofia foi a p.17).
descoberta da própria ciência. O fato de
que era possível entender o universo de O conceito de fato, como diz Umberto
modo sistemático”.8 Eco, é aberto. Em nosso objeto de pesquisa,
por exemplo, o fato não pode mesmo ser a
Weisenberg é da linhagem de autores
coisa, uma vez que os fatos espirituais ou
como os pioneiros Fritjof Capra, David
psíquicos fazem parte de outro estado que
Bohm, Gregory Bateson, Ilya Prigogine,
não o material, embora englobem também
Marilyn Ferguson e muitos outros, entre es-
o material. Isso porque os fatos espirituais
tes pensadores como Gilles Deleuze e Pièrre
acontecem em dois “lugares” ou mundos dis-
Lévy, reintrodutores de conceitos que po-
tintos e interligados: o interno e o externo,
dem contribuir para o desenvolvimento de
sendo que este permeado por “substância”
um paradigma mais científico aos estudos
tida como material, o éter, plenum ou seja
dos fenômenos da espiritualidade.
lá que nome se dê a ele. Portanto, tal fato
associa-se, sobretudo, ao conceito imaterial
3 Espiritualidade, fato e que se tem dele.
realidade Se o conceito de fato gera tanta controvér-
sia, mais ainda a provoca o de verdade. O
A noção de fato também merece ser consi- conceito de verdade, como diz Sodré (1994,
derada, para tratar de fatos objetivos e sub- p.18), “deve ser entendido como adequação
jetivos. Citando Wittgenstein, sobre fato e do objeto ao sujeito”, isso porque “toda a
coisa, Sodré (1994, p.16) afirma que “o fato experiência contemporânea da verdade (...)
(entendido como representação ou ‘frase’) submete-se à prova de uma objetividade con-
não é o mesmo que ‘coisa’ ou objeto”. Witt- trolada (...) por um sujeito. A objetividade é
genstein afirma: “O mundo é a totalidade dos sempre correlata a um sujeito – é a certeza
fatos, não das coisas”(Ibidem, p.16). Olson que realmente a constitui”.
Kenneth Russel, citado por Sodré, faz o se- Como se trata de um conceito essencial,
guinte raciocínio para definir o fato, que in- enfatiza-se as observações de Sodré sobre
clui: verdade. Diz Sodré (1994, p.18): “entende-
8
Gazeta Mercantil, 6-7/03/99. se ‘verdade’ como uma adequação e por três

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8 Luís Bittencourt

ângulos diversos: (1) como concordância da Como se vê, Micheli pergunta mais do que
coisa com a realidade determinada (harmo- responde, embora seu recurso estilístico in-
nia entre a coisa e o que ela deve ser); (2) duza a uma resposta positiva às questões le-
como conhecimento, ou seja, como ajusta- vantadas.
mento entre o que o sujeito pensa e o que a Retornando a Sodré, o autor cita Schop-
coisa é, sendo o erro o contrário disso; (3) penhauer, para quem “a magia vem confir-
como sinceridade, isto é, como enunciação mar sua hipótese quanto à realidade única da
correta do que o sujeito pensa sobre a coisa, vontade (wille, em alemão), ‘núcleo de to-
sendo o contrário disso a mentira”. das as coisas’. (...) o wille schopenhaueriano
Assim, beirando o caminho do discurso, não é da ordem de um ‘querer’ consciente
podem ser considerados “verdadeiros”, por ou inteligente, e sim um modo de designar
exemplo, os fatos espirituais e a “hierarquia (voluntas vem de vis, que significa ‘força’)
oculta de seres evoluídos” que já passaram toda e qualquer força do mundo, seja ela
pela experiência humana e hoje “trabalham” consciente, inconsciente ou simplesmente fí-
para servir ao homem e levá-lo a percorrer o sica”(1994, p. 33).9 Diz ainda Sodré que
mesmo caminho? “A verdade dos fatos”, ex- “Os eventos ditos ‘ocultos’, na visão scho-
pressão que já foi muito comum na mídia, é penhaueriana, não podem ser avaliados pelo
que nosso empreendimento não envolve uma princípio da causalidade (que atua no mundo
“coisa” sobre a qual se pode construir um dos fenômenos), porque são ‘números’, coi-
discurso que dê conta de uma verdade. sas em si, que aparecem sob forma não fe-
Gianni Micheli (1990, p.93), sintetizando nomênica no mundo dos fenômenos” (1994,
concepções sobre o real, diz: p.34).
Fenômeno (phainomenon), portanto, é da
“O conceito de real desempenha um pa- ordem da causalidade. Se assim for consi-
pel importante na filosofia, cuja história é derado, muitos casos de parapsiquismo po-
percorrida na sua totalidade pela contro- dem ser explicados à luz da ciência tradi-
vérsia que diz respeito à definição do real cional, pelo menos no que diz respeito aos
e ao caráter da oposição entre o que é real seus efeitos observáveis (o entortar de garfos
e o que o não é. Se o real é idêntico ao e moedas10 , os fatos decorrentes da sincro-
ser, como se pode compreender esta iden- nicidade11 etc). Mesmo assim, tais fenôme-
tidade? Tudo o que é objeto da nossa per- nos avaliados pelo princípio da causalidade
cepção é real e, por conseguinte, o termo quase sempre deixam velados pressupostos
que se lhe opõe é o imaginário. Será que de manifestação. Que se manifestam, todos
o real se esgota no campo da percepção, vêem, mas de onde vem, por exemplo, o po-
enquanto tudo o que é abstrato entra no 9
A este propósito, uma dos princípios fundadores
campo da fantasia? Finalmente, não será
da vida, como visto neste trabalho, é a vontade ou o
verdade que o real se identifica com o ra- poder, associado também a um dos sete raios de atri-
cional, na medida em que a razão é juiz buto da vida humana.
10
do mundo sensível, como o é da experi- Cf. Sodré (1994).
11
ência?”. Cf. explicações junguianas e os trabalhos de Ku-
perman sobre o Tarot.

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der manifesto de sinergia?12 Um indivíduo a experiência ocultista é regra aos inicia-


com tal poder13 , de posse de um objeto pes- dos, aqueles que passaram ou não por expe-
soal, é capaz de relatar fatos e acontecimen- riências psíquicas e desenvolveram a capaci-
tos relacionados à vida do dono de tal objeto dade de percepção consciente de fatos extra-
com uma precisão de alguém muito familiar. físicos. Em ambos os casos, há um processo
O significado da palavra traduz uma explica- nootrópico, isto é, a ação de algo que impres-
ção: cooperação. Quem ou o que coopera siona a mente de alguém que, através de me-
com o indivíduo que manifesta o dom? canismos percepto-cognitivos, responde ao
estímulo com possíveis reflexos no corpo fí-
sico.
4 Saber nootrópico
O universo de significações da espiritua-
As perguntas até aqui formuladas devem po- lidade é muito vasto e complexo. Se já é
der encontrar respostas nos estritos termos assim tão complicado, por que não simpli-
da prática da espiritualidade. Há, no entanto, ficar? Os processos ocultistas são de uma
como explicar esse processo numa lingua- natureza tão sutil que, como foi dito, só
gem científica acessível ao entendimento do em condições muito especiais o ser humano
comum dos homens? Aliás, quem, em algum tem acesso consciente pleno a eles. Citando
momento de sua vida, não viveu uma experi- Hess-Lüttich, Santaella (1992) reproduz os
ência que seja considerada sobrenatural? Ex- componentes da ação comunicativa multimí-
periências desse tipo acontecem a todos, o dia que o autor sistematiza como “sistemas
que implica na afirmação de que a comunica- problematicamente complexos de canais fí-
ção ocultista não é tão oculta assim14 . Ela é sicos, sentidos psicofisiológicos, modos se-
tão freqüente como qualquer outro aconteci- mióticos e códigos sistêmicos”. No processo
mento, considerando-se a quantidade de pes- comunicativo espiritualista, o homem é esse
soas que têm alguma experiência deste tipo complexo de sistemas que deve funcionar
ao longo de suas vidas. adequadamente.
Há uma diferença aqui entre experiência É preciso estabelecer uma semântica do
ocultista e experiência psíquica que precisa saber espiritual. Seu universo sígnico é
ser esclarecida. Diz-se ocultista toda expe- muito vasto e pouco explorado adequada-
riência pressupondo processos de certo grau mente, exceto na sua relação com disciplinas
consciente de comunicação subjetiva. Já ex- como a psicologia, por exemplo. Os símbo-
periência psíquica é toda aquela que acon- los mágicos, astrológicos e divinatórios, os
tece na vida de um indivíduo sem o envol- sonhos e imagens repletos de sentido para os
vimento de processos conscientes. Ou seja, praticantes da espiritualidade, tudo isso pre-
12
enche um universo semântico à espera de es-
Do grego synergia, cooperação.
13
Ou “dom” no sentido atribuído por Paulo, o tudos mais conscienciosos. Como disse La-
Apóstolo. lande sobre as ciências ocultas, elas são “ci-
14
Nota-se a ênfase na expressão ocultista em vez ências sem arquivos, que se transmitem a ini-
de oculta, que denota velado. Adota-se a expressão
ocultista no sentido de uma prática que direcione ao
desvelamento.

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10 Luís Bittencourt

ciados com a ajuda de signos especiais, ‘ca- 5 Referências Bibliográficas


balísticos”’.15
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas,
Da mesma forma, uma pragmática ocul-
9a . ed.
tista pode levar ao esclarecimento de muitos
pontos da comunicação interior. O contexto BESANA, Luigi. “Observação”. In: Enci-
das enunciações espiritualistas e do seu par- clopédia. Lisboa: Imprensa Nacional,
ceiro dialógico, isto é, a relação do signo V. 18, 1990, p.55-74.
com o seu usuário, se atentamente obser-
vada, quantificada e qualificada pode trazer COLLINS, Mabel. Luz no Caminho. São
contribuições valiosas para o desvelamento Paulo: Pensamento, 1990, 85p.
dos fenômenos decorrentes da prática espiri-
tual, seja ela qual for, oriundas de religiões JAPIASSÚ, H. O Racionalismo Cartesiano.
afro-brasileiras, espíritas ou seitas esotéri- In: RESENDE, Antônio. Curso de Fi-
cas. Ambas, a pragmática e a semântica dos losofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
fenômenos da espiritualidade, serão aqui ob- 1986, pp. 85-97.
jetos de estudo. As relações entre os signos JAPIASSÚ, H. Francis Bacon, o Profeta da
religiosos, independentemente do sentido e Ciência Moderna. São Paulo: Letras e
do contexto, pressupõem a constituição de Artes, 1995, 142p.
uma noosemiótica que também será objeto
de aventura nesta pesquisa. JUNG, Carl. Sincronicidade. Petrópolis:
Hoje, a abertura da ciência tradicional à Vozes, 1990, 4a . ed., 109p.
visão holística de um mundo macro inter-
relacionado ao universo micro no campo da JUNG, Carl. Memórias, Sonhos, Reflexões.
matéria, bem como a interação que vem es- Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975,
tabelecendo com outros saberes e formas 360p.
de conhecimento, possibilita ao pesquisa- LALANDE, André. Vocabulário Técnico e
dor aventurar-se em campos novos ou pouco Crítico da Filosofia. São Paulo: Mar-
explorados, como é o caso da espirituali- tins Fontes, 1996.
dade. A compreensão do contexto cientí-
fico atual e a constituição de um corpo me- SANTAELLA, Lúcia. A Percepção. São
todológico mais adequado à observação, ab- Paulo: Experimento, 1993, 120p.
sorvendo conceitos semióticos, das ciências
cognitivas e da ecobiologia, associados às SANTAELLA, Lúcia. A Teoria Geral dos
técnicas tradicionais e intuitivas, podem con- Signos. São Paulo: Ática, 1995, 199p.
tribuir para a compreensão dos assuntos le-
SANTAELLA, Lúcia. A Assinatura das Coi-
vantados aqui no sentido de iluminar as vias
sas. Rio de Janeiro: Imago, 1992, 216p.
um tanto obscuras da Tradição religiosa.
15
Obra citada.
SANTAELLA, Lúcia. Cultura das Mídias.
São Paulo: Razão Social, 1992, 137p.

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Noosemiótica 11

SODRÉ, Muniz. Jogos extremos do espírito.


Rio de Janeiro: 1985, 139p.

ZANIAH. Dicionario Esoterico. Buenos Ai-


res: Kier, 1994, 7a . ed., 670p.

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