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Índice 1 Introdução
1 Introdução . . . . . . . . . . . . . 1 De uma maneira geral, sem a preocupação
2 O aparelho formal da enunciação . 3 de aprofundarmos o tema, podemos resumir
3 Jornalismo e a construção do real . 5 as definições de jornalismo e notícia a par-
4 As características da enunciação tir de dois grandes grupos: os que defendem
jornalística . . . . . . . . . . . . . 8 a notícia como um espelho da realidade e
5 Referências bibliográficas . . . . . 11 aqueles que concebem a notícia como uma
construção social da realidade.
Num estudo clássico sobre a produção da
Resumo: Este trabalho tem como obje- notícia, Tuchman (1983) tendo como pres-
tivo fazer uma discussão teórica do jorna- suposto a concepção sociológica dos atores
lismo não como um simples reprodutor do sociais argumenta que por um lado a so-
real, mas como uma atividade que diaria- ciedade ajuda a formar a consciência e, por
mente contribui para a construção social da outro, mediante uma apreensão intencional
realidade. Acreditamos que a concepção do dos fenômenos do mundo social compar-
jornalismo como um espelho da realidade tilhado – mediante seu trabalho efetivo -,
desconhece a dimensão simbólica da ativi- os homens e as mulheres constroem e con-
dade. Nesse sentido, a partir de conceitos da stituem os fenômenos sociais coletivamente.
teoria da enunciação procuramos apresentar Segundo a autora, cada uma destas perspecti-
algumas características da enunciação jor- vas ao atuarem sobre os atores sociais deter-
nalística tendo como pressuposto que o dis- minam uma abordagem diferente da notícia.
curso jornalístico é produzido com base no A idéia da notícia como um espelho da
concurso e do efeito daquilo que lhe ofertam realidade corresponderia à concepção tradi-
outros códigos. Isto é, outras vozes e múlti- cional das notícias. Este ponto de vista de-
plas polifonias provenientes de outros cam- fende a “objetividade” como um elemento
pos ou deles tomadas por empréstimos. chave da atividade jornalística. Dentro desta
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concepção, o máximo que se admite é a pos-
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
da UFPE
sibilidade de que as notícias reflitam o ponto
de vista do jornalista (STAMM, 1976).
Já Gaye Tuchman defende que a notícia
2 Alfredo Vizeu
não espelha a realidade. Para a autora, a ciação e a análise do discurso que tem como
notícia ajuda a constituí-la como um fenô- princípio que a linguagem é ação e não um
meno social compartilhado, uma vez que mero instrumento de comunicação.
no processo de definir um acontecimento a Bakhtin chama a atenção para o fato de
notícia define e dá forma a este aconteci- que a verdadeira substância da língua não
mento. Ou seja, a notícia está permanente- é constituída por um sistema abstrato de
mente definindo e redefinindo, constituindo formas lingüísticas, nem pela enunciação
e reconstituindo fenômenos sociais. monológica isolada, nem pelo ato psicofisi-
Entendemos que a construção da notícia ológico de sua produção, mas pelo fenômeno
não se reduz a uma mera técnica, a sim- social da interação verbal, realizada através
ples mobilização de regras e normas forneci- da enunciação ou das enunciações: “a in-
das pelos manuais de redação ou aprendi- teração verbal constitui, assim, a realidade
das no desempenho da atividade profissional. fundamental da língua” (BAKHTIN, 1992,
Acreditamos que tal ponto de vista desco- p.123). Como lembra o autor, a enunciação
nhece a dimensão simbólica do trabalho jor- é de natureza social.
nalístico. Ele argumenta que toda a palavra com-
Consideramos que é no trabalho da enun- porta duas faces, sendo determinada tanto
ciação que os jornalistas produzem discur- pelo fato de que procede de alguém, como
sos. E é no interior do próprio processo pelo fato de que se dirige para alguém. Nesse
discursivo, por meio de múltiplas operações sentido, constitui justamente o produto da in-
articuladas pelos processos da própria lin- teração do locutor e do ouvinte, isto é, toda a
guagem, que a audiência é construída ante- palavra serve de expressão de um em relação
cipadamente. ao outro.
Por isso, antes de entrarmos na enuncia- Bakhtin instaura o dialogismo como
ção jornalística propriamente dita, procu- princípio constitutivo da linguagem e
ramos contextualizar a questão da enuncia- condição de sentido do discurso: “A língua
ção, que ponderamos importante para tratar constitui um processo de evolução ininter-
da enunciação no jornalismo. Partimos do rupto, que se realiza através da interação
princípio que a teoria da enunciação teve verbal dos locutores” (1992, p.127).
como precursor Bakthin e ganhou um im- O outro está sempre presente nas formu-
pulso na França com a obra do lingüista Ben- lações do autor e tem tanto a função de quem
veniste, que propôs estudar a subjetividade recebe como também de quem permite ao lo-
na língua: o aparelho formal da enunciação. cutor perceber o seu próprio enunciado:
Acompanhamos Bakhtin (1992) quando “Os outros, para os quais o meu pensa-
concebe a língua como um produto socio- mento se torna, pela primeira vez, um pen-
histórico, como forma de interação social samento real (e, com isso, real para mim),
realizada por meio de enunciações. O con- não são ouvintes passivos, mas participantes
ceito da língua como interação social de- ativos da comunicação verbal. Logo de iní-
sempenhou um papel importante nos estudos cio, o locutor espera deles uma resposta, uma
que, hoje, se desenvolvem sobre a interação compreensão responsiva ativa. Todo o enun-
verbal, como a pragmática, a teoria da enun- ciado se elabora como para ir ao encontro
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A produção de sentidos no jornalismo 3
dessa resposta. O índice substancial (consti- venção do sujeito, que nele investe sua sub-
tutivo) do enunciado é o fato de dirigir-se a jetividade: “A enunciação é este colocar em
alguém de estar voltado para o destinatário” funcionamento a língua por um ato indivi-
(Bakhtin, 2000, p.320). dual de utilização” (1989, p.82).
Dessa forma, o interlocutor é constitutivo No entanto, no ato enunciativo, o sujeito
do próprio ato de produção da linguagem, não constitui apenas a si, sujeito locutor, mas
de certa maneira, ele é co-enunciador do também o sujeito-alocutário, isto é, define
texto e não um mero decodificador de men- não só a posição eu, mas também a do tu:
sagens. Ele desempenha um papel funda- “...ele implanta o outro diante de si, qualquer
mental na constituição do significado e na que seja o grau de presença que ele atribua
produção. Logo, um enunciado deve ser a este outro. Toda a enunciação é, explicita
analisado levando-se em conta sua orien- ou implicitamente, uma alocução, ela pos-
tação para o outro. tula um alocutário” (BENVENISTE, 1989,
Outra noção introduzida por Bakhtin foi p.84)
o conceito de polifonia, resultado dos traba- Para o autor, o que, em geral, caracteriza
lhos desenvolvidos sobre a natureza do dis- a enunciação é a acentuação da relação dis-
curso literário (1981, p.65-85). Ao analisar cursiva com o parceiro. Na realização do
a obra de Dostoiévski e uma série de textos seu estudo sobre o aparelho formal da enun-
da literatura popular, Bakhtin percebe que o ciação, ele tomou como os principais pon-
autor investe suas personagens de uma série tos de partida os sistemas pronominal e ver-
de máscaras diferentes. Como essas más- bal do francês (BENVENISTE, 1995, p.247-
caras representam várias vozes a falarem si- 283).
multaneamente sem que uma dentre elas seja Na descrição do sistema pronominal, o
preponderante, Bakhtin qualifica o texto de autor distingue os pronomes da pessoa (1a
Dostoiéviski de polifônico. e 2a ) dos pronomes da não-pessoa (3a ).
Os primeiros designam os interlocutores, os
sujeitos envolvidos na interlocução(eu, tu,
2 O aparelho formal da
você; nós, vós, vocês); os últimos designam
enunciação os referentes (seres do mundo extralingüís-
O conceito bakthiniano de língua como in- tico de que se fala) e, assim, não devem ser
teração social reintroduz, nos estudos da lin- colocados na mesma classe dos primeiros.
guagem, a reflexão sobre a noção de sujeito. Quanto ao sistema verbal, Benveniste diz
Deixa-se de lado o conceito de língua como que existem dois planos de enunciação: o
um sistema neutro e passa-se a ver a língua discurso e a história, cada um com os seus
como o lugar privilegiado de manifestações tempos característicos. Na história, tem-
enunciativas. Tal proposição apresenta-se se o relato de eventos passados, sem o en-
claramente na teoria da enunciação de Ben- volvimento do locutor, como se os fatos nar-
veniste. rassem a si mesmos.
Como mostrou Benveniste, o único modo Pertencem à ordem da história o passé
de fazer o discurso funcionar é pela inter- simple (pretérito perfeito simples), os
pronomes da não-pessoa, o imperfeito, o
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de condições de sucesso para o ato de lin- dos, como, por exemplo, os indicadores de
guagem. Qualquer um não pode dizer qual- modalidade, todos os tipos de modalizadores
quer coisa em qualquer circunstância, e esse ou marcas lingüísticas.
conjunto de condições torna o ato de lin-
guagem pertinente ou não, legítimo ou não.
3 Jornalismo e a construção do
Para que o ato de linguagem seja bem-
sucedido, é preciso que o enunciador consiga real
fazer o destinatário reconhecer a intenção de É no trabalho da enunciação, na operação so-
realizar um certo ato, exatamente aquele que bre vários discursos, que os jornalistas pro-
se mostra enunciando. Um enunciado só é duzem as notícias. No entanto, nessa ope-
plenamente um enunciado quando se apre- ração, os profissionais não são simples re-
senta exprimindo uma intenção desse tipo produtores do real e senhores soberanos dos
com relação ao destinatário, e o sentido do discursos, como reza toda uma tradição do
enunciado é a sua própria intenção. fazer jornalístico.
Esse sentido que se mostra nos conduz Fausto Neto (1991, p.25-40) denuncia
ao centro do dispositivo pragmático, a re- essa falácia que situa o jornalismo num
flexividade da enunciação, isto é, ao fato de contexto de desobrigações, no qual fun-
que a enunciação se reflete no enunciado. ciona como dispositivo intermediário, instru-
Para uma concepção da linguagem ingênua, mento, articulador e suporte de algo que lhe
os enunciados, são de certo modo, trans- é externo.
parentes; devem se apagar diante do estado O autor lembra que a enunciação é uma es-
de coisas que representam. Em compen- pécie de tomada de posição, a instância que
sação, na perspectiva pragmática, um enun- estrutura o valor do dito. Nesse sentido, o su-
ciado só consegue representar um estado de jeito enunciador não constitui um todo unifi-
coisas distinto dele se mostrar também a sua cado. Isso porque, se é verdade que a língua
própria enunciação. é finita na definição dos seus limites e de suas
Dizer algo parece inseparável do gesto regras; por outro lado, também é verdade que
que consiste em mostrar que se diz. Isso são infinitas as possibilidades modalizadoras
se manifesta através dos embreantes; qual- de uso da língua, pela mediação da palavra,
quer enunciado tem marcas da pessoa e de pelo sujeito.
tempo que refletem sua enunciação, coloca- Sem dúvida, o enunciador está presente no
se mostrando o ato que o faz surgir. discurso através de suas marcas. No entanto,
A enunciação constitui a âncora da re- ele não tem controle, a priori, do que deve
lação entre a língua e o mundo: ela permite ser dito de uma maneira melhor ou não. É
representar os fatos no enunciado, consti- neste trabalho de enunciação-apropriação da
tuindo, ela própria, um fato, um aconteci- língua onde se dá o modo pelo qual o jor-
mento único definido no tempo e no espaço. nalista (enunciador da informação) se rela-
A isso, acrescentaríamos que, a partir dos ciona com o que ele mesmo diz, isto é, está
estudos da enunciação, passou-se a estudar relacionado com o problema de como ele le-
outras marcas da presença do enunciador, gitima o seu discurso ou o torna aceitável.
do co-enunciador, nos enunciados produzi-
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Mas, isso não implica um controle do dis- dos os tempos no presente, convidando-nos
curso voluntariamente definido pelo sujeito. a atuar nesse tempo difuso, imaginado como
O trabalho jornalístico é concebido sem- um presente aberto ao que está por vir.
pre a partir de mensagens que ganham forma “O presente é o que se comenta. Por isso
de matérias segundo economias específicas são mais notícias as que duram mais tempo
a cada sistema e/ou veículo de comunicação, porque são elas que dão consistência a nosso
que produzem dimensões classificatórias da presente de referência, ao nosso presente co-
realidade. letivo, comum, aos fatos que comentamos
Compartilhamos de opinião de Fausto socialmente” (GOMIS, 1991, p.34).
Neto para quem toda notícia se constitui uma Por isso, busca-se, por conta do papel que
espécie de formação substitutiva. Ou seja, é desempenham as técnicas discursivas e os
algo que tenta se colocar no lugar de outra seus efeitos junto à audiência, legitimar-se o
coisa que lhe é exterior. Sendo assim, o dito tempo e o modo discursivo como o próprio
tem uma objetivação expressa em forma de tempo do fato. Como o processo de interação
matéria significante (mensagem). social vive dos protocolos de linguagem, é
Um conjunto de operações são estrutu- de se supor, igualmente, que a veracidade e a
radas, anteriormente, por diferentes instân- legitimidade dos fatos estejam, portanto, no
cias, de certa forma, como um pré-requisito reino dos discursos.
à emergência do dito. Como o tempo do “A isto estamos chamando mo-
fato bruto, por exemplo, o incêndio em uma dos/maneiras de dizer. Se nos é impos-
fábrica, e o tempo da produção da matéria sível aprisionar o tempo do ‘fato bruto’,
se constitui num outro, não é possível a su- estruturamos nossa compreensão pelos
perposição de ambos, restando apenas o re- processos de classificação e inteligibilidade
curso do jornalista (o enunciador) recorrer à social definidos pelas operações discursivas
mediação dos procedimentos de linguagem da comunicação social. Neste sentido,
para procurar reconstituir o tempo do fato sim, o discurso jornalístico produz fatos”
bruto. (FAUSTO NETO, 1991, p.30) (o itálico é
Esse é um dos motivos pelos quais a nosso).
maioria dos autores que estudam o jorna- No jornalismo, a linguagem não é ape-
lismo denomina-o de discurso da atualidade. nas um campo de ação, mas a sua dimensão
Como afirma Gomis (1991), o presente é constitutiva. É a condição pela qual o sujeito
mais direto e próximo. É o tempo do ime- constrói um real, um real midiatizado.
diato, do vivido. Nesse sentido, a enunciação jornalística é
Outra razão apontada pelo autor para o uso bastante singular em função de esse campo
do presente, é por tratar-se do tempo do co- deslocar-se sempre como um lugar que re-
tidiano. Quando as pessoas querem contar trata e cria o lugar do outro, a partir de leis e
alguma coisa que ocorreu com elas ou lhes regras determinadas.
chamou a atenção, a tendência é contar no “A enunciação jornalística se faz a par-
presente. tir de uma dupla falta. A primeira àquela
Os jornais, os radiojornais e os telejornais relativa ao próprio ‘estatuto’ do sujeito, face
mediam o passado e o futuro convertendo to- à ordem simbólica, que toma a palavra como
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tica, predomina o valor referencial; pres- digam respeito ao mundo mutuamente par-
supõe a veracidade dos fatos a que se refere tilhado pelo jornalista e pela audiência po-
e a autenticidade do seu relato. O pressu- dem adquirir uma dimensão comunicacional.
posto dessa veracidade institui um autêntico Mas, nem essa dimensão é partilhada pela to-
contrato entre o jornalista, por um lado, e a talidade da audiência da informação, nem é
audiência, por outro. ela que constitui e justifica o seu valor pro-
Uma das questões interessantes a colocar priamente informativo.
da enunciação jornalística é a da sua inteligi- A enunciação jornalística, ao autonomizar
bilidade por parte da audiência: como é pos- os fatos, as ações e as palavras do mundo
sível que os enunciados elaborados pelos jor- vivido do seu acontecimento, liberta-os de
nalistas sejam entendidos por um número in- sentido tradicionais, da sua carga corpo-
definido de pessoas, apreendendo o seu sen- ral concreta, tornando-os, assim, disponíveis
tido a partir da experiência de mundos vivi- para toda espécie de novos sentidos e de
dos e situados dentro de horizontes heterogê- novos investimentos simbólicos. Desse
neos? modo, cada indivíduo que integra a audiên-
O jornalista pode recorrer aos proces- cia, ao interpretar os novos saberes do dis-
sos metalingüísticos, de redundância e curso jornalístico, a partir do seu próprio
contextualização para se fazer compreen- mundo vivido, pode constituir-se num su-
dido. Mas, não tem, ao seu alcance, a hete- jeito autônomo de constituição de sentido.
rogeneidade de sentidos a que seu discurso Há ainda uma outra modalidade a ser
dá origem, já que não pode identificar to- levada em conta na enunciação jornalís-
dos e cada um dos seus interlocutores, nem tica: o silêncio. É um silêncio que não
pode, conseqüentemente, no decurso do pro- cessa de se deslocar, à medida que o
cesso enunciativo, controlar as hipóteses in- jornalismo prossegue incansavelmente a sua
terpretativas a partir das quais cada um infere representação discursiva. Embora logica-
aquilo que pretende dizer. mente prévio, o silêncio percorre, no en-
Ele transmite um conjunto de saberes, tanto, de uma ponta a outra, todo o discurso
converte, em notícia, os fatos ocorridos no jornalístico.
mundo, informa sua audiência daquilo que Mesmo quando o discurso jornalístico é
de relevante aconteceu, mas não controla a referencialmente correto, quando representa
heterogeneidade de sentidos que essas trans- exatamente aquilo que aconteceu, é atraves-
missões e esses saberes adquirem por parte sado por um diferendo insanável entre, por
dos seus interlocutores, não lhes comunica um lado, aquilo que, numa primeira aproxi-
um sentido, não integra esses sentidos num mação, podemos designar como a dimensão
mundo mutuamente partilhado. referencial e a dimensão significante, e por
Por exemplo, há uma diferença muito outro lado, a dimensão expressiva e o sen-
grande entre ser informado da ocorrência de tido da representação discursiva.
um acidente de carro e ser informado pelo É nos interstícios entre essas diferentes
vizinho de que o gato dele foi atropelado em dimensões da enunciação que um silêncio
frente à sua porta. constitutivo e indizível, mas cheio de sen-
É claro que as mensagens jornalísticas que tido heterogêneos, se instala. É, no fundo,
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10 Alfredo Vizeu
com esse silêncio que o discurso jornalístico muitos comuns (por exemplo, na abertura a
dialoga. cabeça de uma matéria dizendo: Violência
Mas, além dessas modalidades constituti- na zona norte de Vitória.)
vas da enunciação jornalística, há ainda ou- Para Lopes (1990), independente do tipo
tras categorias de silêncio que atravessam as de notícia ou reportagem, os textos jornalís-
suas formas de expressão, tais como elipses e ticos podem mobilizar diferentes formas de
reticências. Muito mais fáceis de identificar, enunciação e de organização dos enuncia-
essas modalidades de silêncio deixam em dos. Entendemos que isso vai depender da
branco unidades significantes, na cadeia de intenção comunicativa, do repertório infor-
expressões lingüísticas, unidades que a au- mativo, cultural e lingüístico da audiência da
diência é levada a complementar, assumindo, flexibilidade das normas de redação de cada
assim, um papel ativo, tanto na reconstitui- veículo.
ção da cadeia das formas significantes eli- É nesse processo que a recepção é cons-
dida ou implicitada, como na elaboração de truída, mediante um conjunto de regras e de
um sentido comum. instruções construídas pelo campo da pro-
As formas da enunciação jornalística são dução, para serem seguidas pelo campo da
marcadas por processos de raciocínio ou recepção (audiência), condição por meio do
cadeias de razões, que visam a determinados qual ele se insere no sistema interativo pro-
efeitos de reconhecimento (apreensão, com- posto e pelo qual ele é reconhecido e, conse-
preensão pela audiência) e podem restringir- qüentemente, se reconhece como tal.
se ao anúncio, à descrição, à argumentação, A recepção não pode ser definida apenas
a demonstração e a persuasão. pelos estudos que as estratégias de marketing
I-Anunciar: dizer o que aconteceu ou vai propõem para ajudar as empresas jornalísti-
acontecer; dizer o que alguém disse, subten- cas a construir o mercado. É claro que traços
dendo a relevância do dito; e características sociais identificados pelos
II-Descrever- relatar as etapas de um fato, institutos de pesquisa orientam as organiza-
com suas circunstâncias; os passos de um ções a construírem o mercado e um perfil da
personagem, com seus comportamentos, at- audiência.
itudes, declarações ou proposições, ou o Entretanto, entendemos, que a recepção é
quadro de uma situação, com os diversos as- construída na própria economia enunciativa.
pectos envolvidos; “...tais vínculos são construídos no interior
III-Demonstrar – provar a relevância, vali- da própria discursividade, bem como daque-
dade ou veracidade do que foi anunciado ou las leis que ao nível do discurso tratam de
descrito; tipificar não só as maneiras pelas quais o
IV-Argumentar – orientar inferências a suporte constrói as notícias, mas, especial-
partir do que foi dito ou realizado (é o mente a organização mesma da sua noção de
que acontece, comumente, na abertura das leitor” (FAUSTO NETO, 1991, p. 37).
matérias no telejornalismo); O outro, que compôs a cadeia interativa
V-Persuadir – buscar convencer o outro da atividade linguageira jornalística, não é
da importância e da veracidade do relato, apenas uma personagem revestida com cer-
utilizando-se, no caso da sedução, apelos tos matizes de indicadores sociais, mas al-
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A produção de sentidos no jornalismo 11
guém que é construído na própria produção GOMIS, L. Teoría del periodismo: cómo
imaginária dos organizadores e enunciadores se forma el presente. México: Paidós,
do discurso. 1991
Nesse sentido, acreditamos que fica difícil
pensar o jornalismo como uma mera repro- GOMIS, L. Problemas de lingüística geral
dução do real. Como podemos ver são tantos II. Campinas: Pontes, 1989.
os “discursos”- não cometeríamos uma here- LOPES, S. A . Sobre o discurso jornalís-
sia se disséssemos que são infinitos – que tico: verdade, legitimidade e identi-
atravessam o campo jornalístico, são tantas dade. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO,
as tensões, as “vozes”, as práticas discur- 1990. 231p. Dissertação (Mestrado em
sivas, que reduzi-lo a uma simples técnica, Comunicação Social)
ao simples acionamento de regras “mecâni-
cas”, seria perder sua própria dimensão, seu MAINGUENAU, D. Novas tendências em
próprio objeto. análise do discurso. 3. ed. Campinas:
Pontes/Editora da Unicamp, 1997.
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