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A produção de sentidos no jornalismo: da teoria da

enunciação a enunciação jornalística∗


Alfredo Vizeu

Índice 1 Introdução
1 Introdução . . . . . . . . . . . . . 1 De uma maneira geral, sem a preocupação
2 O aparelho formal da enunciação . 3 de aprofundarmos o tema, podemos resumir
3 Jornalismo e a construção do real . 5 as definições de jornalismo e notícia a par-
4 As características da enunciação tir de dois grandes grupos: os que defendem
jornalística . . . . . . . . . . . . . 8 a notícia como um espelho da realidade e
5 Referências bibliográficas . . . . . 11 aqueles que concebem a notícia como uma
construção social da realidade.
Num estudo clássico sobre a produção da
Resumo: Este trabalho tem como obje- notícia, Tuchman (1983) tendo como pres-
tivo fazer uma discussão teórica do jorna- suposto a concepção sociológica dos atores
lismo não como um simples reprodutor do sociais argumenta que por um lado a so-
real, mas como uma atividade que diaria- ciedade ajuda a formar a consciência e, por
mente contribui para a construção social da outro, mediante uma apreensão intencional
realidade. Acreditamos que a concepção do dos fenômenos do mundo social compar-
jornalismo como um espelho da realidade tilhado – mediante seu trabalho efetivo -,
desconhece a dimensão simbólica da ativi- os homens e as mulheres constroem e con-
dade. Nesse sentido, a partir de conceitos da stituem os fenômenos sociais coletivamente.
teoria da enunciação procuramos apresentar Segundo a autora, cada uma destas perspecti-
algumas características da enunciação jor- vas ao atuarem sobre os atores sociais deter-
nalística tendo como pressuposto que o dis- minam uma abordagem diferente da notícia.
curso jornalístico é produzido com base no A idéia da notícia como um espelho da
concurso e do efeito daquilo que lhe ofertam realidade corresponderia à concepção tradi-
outros códigos. Isto é, outras vozes e múlti- cional das notícias. Este ponto de vista de-
plas polifonias provenientes de outros cam- fende a “objetividade” como um elemento
pos ou deles tomadas por empréstimos. chave da atividade jornalística. Dentro desta

concepção, o máximo que se admite é a pos-
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
da UFPE
sibilidade de que as notícias reflitam o ponto
de vista do jornalista (STAMM, 1976).
Já Gaye Tuchman defende que a notícia
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não espelha a realidade. Para a autora, a ciação e a análise do discurso que tem como
notícia ajuda a constituí-la como um fenô- princípio que a linguagem é ação e não um
meno social compartilhado, uma vez que mero instrumento de comunicação.
no processo de definir um acontecimento a Bakhtin chama a atenção para o fato de
notícia define e dá forma a este aconteci- que a verdadeira substância da língua não
mento. Ou seja, a notícia está permanente- é constituída por um sistema abstrato de
mente definindo e redefinindo, constituindo formas lingüísticas, nem pela enunciação
e reconstituindo fenômenos sociais. monológica isolada, nem pelo ato psicofisi-
Entendemos que a construção da notícia ológico de sua produção, mas pelo fenômeno
não se reduz a uma mera técnica, a sim- social da interação verbal, realizada através
ples mobilização de regras e normas forneci- da enunciação ou das enunciações: “a in-
das pelos manuais de redação ou aprendi- teração verbal constitui, assim, a realidade
das no desempenho da atividade profissional. fundamental da língua” (BAKHTIN, 1992,
Acreditamos que tal ponto de vista desco- p.123). Como lembra o autor, a enunciação
nhece a dimensão simbólica do trabalho jor- é de natureza social.
nalístico. Ele argumenta que toda a palavra com-
Consideramos que é no trabalho da enun- porta duas faces, sendo determinada tanto
ciação que os jornalistas produzem discur- pelo fato de que procede de alguém, como
sos. E é no interior do próprio processo pelo fato de que se dirige para alguém. Nesse
discursivo, por meio de múltiplas operações sentido, constitui justamente o produto da in-
articuladas pelos processos da própria lin- teração do locutor e do ouvinte, isto é, toda a
guagem, que a audiência é construída ante- palavra serve de expressão de um em relação
cipadamente. ao outro.
Por isso, antes de entrarmos na enuncia- Bakhtin instaura o dialogismo como
ção jornalística propriamente dita, procu- princípio constitutivo da linguagem e
ramos contextualizar a questão da enuncia- condição de sentido do discurso: “A língua
ção, que ponderamos importante para tratar constitui um processo de evolução ininter-
da enunciação no jornalismo. Partimos do rupto, que se realiza através da interação
princípio que a teoria da enunciação teve verbal dos locutores” (1992, p.127).
como precursor Bakthin e ganhou um im- O outro está sempre presente nas formu-
pulso na França com a obra do lingüista Ben- lações do autor e tem tanto a função de quem
veniste, que propôs estudar a subjetividade recebe como também de quem permite ao lo-
na língua: o aparelho formal da enunciação. cutor perceber o seu próprio enunciado:
Acompanhamos Bakhtin (1992) quando “Os outros, para os quais o meu pensa-
concebe a língua como um produto socio- mento se torna, pela primeira vez, um pen-
histórico, como forma de interação social samento real (e, com isso, real para mim),
realizada por meio de enunciações. O con- não são ouvintes passivos, mas participantes
ceito da língua como interação social de- ativos da comunicação verbal. Logo de iní-
sempenhou um papel importante nos estudos cio, o locutor espera deles uma resposta, uma
que, hoje, se desenvolvem sobre a interação compreensão responsiva ativa. Todo o enun-
verbal, como a pragmática, a teoria da enun- ciado se elabora como para ir ao encontro

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dessa resposta. O índice substancial (consti- venção do sujeito, que nele investe sua sub-
tutivo) do enunciado é o fato de dirigir-se a jetividade: “A enunciação é este colocar em
alguém de estar voltado para o destinatário” funcionamento a língua por um ato indivi-
(Bakhtin, 2000, p.320). dual de utilização” (1989, p.82).
Dessa forma, o interlocutor é constitutivo No entanto, no ato enunciativo, o sujeito
do próprio ato de produção da linguagem, não constitui apenas a si, sujeito locutor, mas
de certa maneira, ele é co-enunciador do também o sujeito-alocutário, isto é, define
texto e não um mero decodificador de men- não só a posição eu, mas também a do tu:
sagens. Ele desempenha um papel funda- “...ele implanta o outro diante de si, qualquer
mental na constituição do significado e na que seja o grau de presença que ele atribua
produção. Logo, um enunciado deve ser a este outro. Toda a enunciação é, explicita
analisado levando-se em conta sua orien- ou implicitamente, uma alocução, ela pos-
tação para o outro. tula um alocutário” (BENVENISTE, 1989,
Outra noção introduzida por Bakhtin foi p.84)
o conceito de polifonia, resultado dos traba- Para o autor, o que, em geral, caracteriza
lhos desenvolvidos sobre a natureza do dis- a enunciação é a acentuação da relação dis-
curso literário (1981, p.65-85). Ao analisar cursiva com o parceiro. Na realização do
a obra de Dostoiévski e uma série de textos seu estudo sobre o aparelho formal da enun-
da literatura popular, Bakhtin percebe que o ciação, ele tomou como os principais pon-
autor investe suas personagens de uma série tos de partida os sistemas pronominal e ver-
de máscaras diferentes. Como essas más- bal do francês (BENVENISTE, 1995, p.247-
caras representam várias vozes a falarem si- 283).
multaneamente sem que uma dentre elas seja Na descrição do sistema pronominal, o
preponderante, Bakhtin qualifica o texto de autor distingue os pronomes da pessoa (1a
Dostoiéviski de polifônico. e 2a ) dos pronomes da não-pessoa (3a ).
Os primeiros designam os interlocutores, os
sujeitos envolvidos na interlocução(eu, tu,
2 O aparelho formal da
você; nós, vós, vocês); os últimos designam
enunciação os referentes (seres do mundo extralingüís-
O conceito bakthiniano de língua como in- tico de que se fala) e, assim, não devem ser
teração social reintroduz, nos estudos da lin- colocados na mesma classe dos primeiros.
guagem, a reflexão sobre a noção de sujeito. Quanto ao sistema verbal, Benveniste diz
Deixa-se de lado o conceito de língua como que existem dois planos de enunciação: o
um sistema neutro e passa-se a ver a língua discurso e a história, cada um com os seus
como o lugar privilegiado de manifestações tempos característicos. Na história, tem-
enunciativas. Tal proposição apresenta-se se o relato de eventos passados, sem o en-
claramente na teoria da enunciação de Ben- volvimento do locutor, como se os fatos nar-
veniste. rassem a si mesmos.
Como mostrou Benveniste, o único modo Pertencem à ordem da história o passé
de fazer o discurso funcionar é pela inter- simple (pretérito perfeito simples), os
pronomes da não-pessoa, o imperfeito, o

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mais-que-perfeito e o futuro do pretérito atividades complementares na enunciação.


do indicativo. Já o discurso é de ordem Proferir um enunciado é ao mesmo tempo:
diversa: num determinado momento, em -realizar um ato locutório, produzir uma
determinado lugar, um indivíduo se apropria série de sons dotada de um sentido numa lín-
da língua, instaurando-se como eu, e, ao gua;
mesmo tempo, instaurando o outro como tu. -realizar um ato ilocutório, produzir um
É uma enunciação que pressupõe um locutor enunciado ao qual se vincula convencional-
e um ouvinte e, no primeiro, a intenção de mente através do próprio dizer uma força;
influenciar o outro de alguma maneira. -realizar uma ação perlocutória, isto é ,
Orlandi (1996) critica a concepção de su- provocar efeitos por intermédio da palavra
jeito de Benveniste como ser único, central, (por exemplo, pode-se fazer uma pergunta
origem e fonte do sentido. Ducrot (1987) de- – ato ilocutório – para interromper alguém,
fine a enunciação independentemente do au- para embaraçá-lo, para mostrar que se está
tor da palavra como o acontecimento consti- ali, etc.). O campo do perlocutório sai do
tuído pela aparição do enunciado. contexto propriamente lingüístico.
Mainguenau (1997, p.40) faz algumas res- Grosso modo, Austin mostra que é impos-
trições ao uso da enunciação na análise do sível encontrar enunciações sem valor perfo-
discurso: a) não deve ser concebida com a mativo que só descrevessem o mundo. Até
apropriação do sistema da língua por parte um enunciado que parece puramente des-
de um indivíduo, o sujeito só chega à enun- critivo como está chovendo, coloca-nos di-
ciação através de múltiplas regras do gênero ante de uma realidade nova, realiza também
de discurso; b) não reside num único enun- uma ação, no caso, um ato de afirmação.
ciador, é a interação que está em primeiro Para Austin, entre está chovendo e afirmo
lugar; c) o indivíduo que fala não é neces- que está chovendo, haveria apenas uma
sariamente a instância que se encarrega da diferença de explicitação; o perfomativo se-
enunciação. ria explícito no segundo caso e primário
Apesar das ressalvas, Mainguenau admite no primeiro. Decerto ações como susten-
que a enunciação trouxe contribuições. Para tar, afirmar, ordenar...são verbais; não são
o autor, um dos contributos fundamentais foi do mesmo tipo do que ações institucionais
o de colocar em evidência a dimensão refle- como jurar, batizar ou decretar, mas trata-
xiva da atividade lingüística: o enunciado só se, nos dois casos, de atos de linguagem.
remete para o mundo, seu referente, quando No telejornalismo, é muito comum os edi-
reflete o ato da enunciação que o produz. tores trabalharem com atos ilocutórios ao in-
Desse modo, as pessoas e o tempo do terpelar a audiência. Por exemplo: Confira...
enunciado são referenciados relativamente Austin explica ainda que um ato de lin-
a essa situação de enunciação; assim, o guagem não é verdadeiro ou falso, mas bem-
enunciado possui o valor elocutório que ele sucedido ou não. Essa distinção tem grandes
mostra através da sua enunciação. conseqüências porque se refere ao modo de
Em seu livro Quando Dizer é Fazer, inscrição dos enunciados na realidade. Além
Austin (1990) distingue, com precisão, três do simples respeito por regras propriamente
gramaticais, parece existir um certo número

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de condições de sucesso para o ato de lin- dos, como, por exemplo, os indicadores de
guagem. Qualquer um não pode dizer qual- modalidade, todos os tipos de modalizadores
quer coisa em qualquer circunstância, e esse ou marcas lingüísticas.
conjunto de condições torna o ato de lin-
guagem pertinente ou não, legítimo ou não.
3 Jornalismo e a construção do
Para que o ato de linguagem seja bem-
sucedido, é preciso que o enunciador consiga real
fazer o destinatário reconhecer a intenção de É no trabalho da enunciação, na operação so-
realizar um certo ato, exatamente aquele que bre vários discursos, que os jornalistas pro-
se mostra enunciando. Um enunciado só é duzem as notícias. No entanto, nessa ope-
plenamente um enunciado quando se apre- ração, os profissionais não são simples re-
senta exprimindo uma intenção desse tipo produtores do real e senhores soberanos dos
com relação ao destinatário, e o sentido do discursos, como reza toda uma tradição do
enunciado é a sua própria intenção. fazer jornalístico.
Esse sentido que se mostra nos conduz Fausto Neto (1991, p.25-40) denuncia
ao centro do dispositivo pragmático, a re- essa falácia que situa o jornalismo num
flexividade da enunciação, isto é, ao fato de contexto de desobrigações, no qual fun-
que a enunciação se reflete no enunciado. ciona como dispositivo intermediário, instru-
Para uma concepção da linguagem ingênua, mento, articulador e suporte de algo que lhe
os enunciados, são de certo modo, trans- é externo.
parentes; devem se apagar diante do estado O autor lembra que a enunciação é uma es-
de coisas que representam. Em compen- pécie de tomada de posição, a instância que
sação, na perspectiva pragmática, um enun- estrutura o valor do dito. Nesse sentido, o su-
ciado só consegue representar um estado de jeito enunciador não constitui um todo unifi-
coisas distinto dele se mostrar também a sua cado. Isso porque, se é verdade que a língua
própria enunciação. é finita na definição dos seus limites e de suas
Dizer algo parece inseparável do gesto regras; por outro lado, também é verdade que
que consiste em mostrar que se diz. Isso são infinitas as possibilidades modalizadoras
se manifesta através dos embreantes; qual- de uso da língua, pela mediação da palavra,
quer enunciado tem marcas da pessoa e de pelo sujeito.
tempo que refletem sua enunciação, coloca- Sem dúvida, o enunciador está presente no
se mostrando o ato que o faz surgir. discurso através de suas marcas. No entanto,
A enunciação constitui a âncora da re- ele não tem controle, a priori, do que deve
lação entre a língua e o mundo: ela permite ser dito de uma maneira melhor ou não. É
representar os fatos no enunciado, consti- neste trabalho de enunciação-apropriação da
tuindo, ela própria, um fato, um aconteci- língua onde se dá o modo pelo qual o jor-
mento único definido no tempo e no espaço. nalista (enunciador da informação) se rela-
A isso, acrescentaríamos que, a partir dos ciona com o que ele mesmo diz, isto é, está
estudos da enunciação, passou-se a estudar relacionado com o problema de como ele le-
outras marcas da presença do enunciador, gitima o seu discurso ou o torna aceitável.
do co-enunciador, nos enunciados produzi-

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Mas, isso não implica um controle do dis- dos os tempos no presente, convidando-nos
curso voluntariamente definido pelo sujeito. a atuar nesse tempo difuso, imaginado como
O trabalho jornalístico é concebido sem- um presente aberto ao que está por vir.
pre a partir de mensagens que ganham forma “O presente é o que se comenta. Por isso
de matérias segundo economias específicas são mais notícias as que duram mais tempo
a cada sistema e/ou veículo de comunicação, porque são elas que dão consistência a nosso
que produzem dimensões classificatórias da presente de referência, ao nosso presente co-
realidade. letivo, comum, aos fatos que comentamos
Compartilhamos de opinião de Fausto socialmente” (GOMIS, 1991, p.34).
Neto para quem toda notícia se constitui uma Por isso, busca-se, por conta do papel que
espécie de formação substitutiva. Ou seja, é desempenham as técnicas discursivas e os
algo que tenta se colocar no lugar de outra seus efeitos junto à audiência, legitimar-se o
coisa que lhe é exterior. Sendo assim, o dito tempo e o modo discursivo como o próprio
tem uma objetivação expressa em forma de tempo do fato. Como o processo de interação
matéria significante (mensagem). social vive dos protocolos de linguagem, é
Um conjunto de operações são estrutu- de se supor, igualmente, que a veracidade e a
radas, anteriormente, por diferentes instân- legitimidade dos fatos estejam, portanto, no
cias, de certa forma, como um pré-requisito reino dos discursos.
à emergência do dito. Como o tempo do “A isto estamos chamando mo-
fato bruto, por exemplo, o incêndio em uma dos/maneiras de dizer. Se nos é impos-
fábrica, e o tempo da produção da matéria sível aprisionar o tempo do ‘fato bruto’,
se constitui num outro, não é possível a su- estruturamos nossa compreensão pelos
perposição de ambos, restando apenas o re- processos de classificação e inteligibilidade
curso do jornalista (o enunciador) recorrer à social definidos pelas operações discursivas
mediação dos procedimentos de linguagem da comunicação social. Neste sentido,
para procurar reconstituir o tempo do fato sim, o discurso jornalístico produz fatos”
bruto. (FAUSTO NETO, 1991, p.30) (o itálico é
Esse é um dos motivos pelos quais a nosso).
maioria dos autores que estudam o jorna- No jornalismo, a linguagem não é ape-
lismo denomina-o de discurso da atualidade. nas um campo de ação, mas a sua dimensão
Como afirma Gomis (1991), o presente é constitutiva. É a condição pela qual o sujeito
mais direto e próximo. É o tempo do ime- constrói um real, um real midiatizado.
diato, do vivido. Nesse sentido, a enunciação jornalística é
Outra razão apontada pelo autor para o uso bastante singular em função de esse campo
do presente, é por tratar-se do tempo do co- deslocar-se sempre como um lugar que re-
tidiano. Quando as pessoas querem contar trata e cria o lugar do outro, a partir de leis e
alguma coisa que ocorreu com elas ou lhes regras determinadas.
chamou a atenção, a tendência é contar no “A enunciação jornalística se faz a par-
presente. tir de uma dupla falta. A primeira àquela
Os jornais, os radiojornais e os telejornais relativa ao próprio ‘estatuto’ do sujeito, face
mediam o passado e o futuro convertendo to- à ordem simbólica, que toma a palavra como

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representante da coisa. A segunda, por se A dependência das fontes de informação


constituir num discurso relatador, o saber e de opinião reduz o grau de autonomia
jornalístico tentar superar esta impossibili- do jornalista como autor de um texto e faz
dade de ser um discurso de ‘primeira mão’, com que o discurso jornalístico seja mar-
através das multiplicidades de investimen- cado pela intercalação entre discurso narra-
tos enunciativos (lingüísticos, discursivos, tivo e discurso citado (fragmentos da fala),
pedagógicos etc.), para, através de modali- na acepção de Bakhtin, que vê o discurso in-
dades substitutivas, dar conta de um certo direto como a transmissão analítica do dis-
real” (FAUSTO NETO, 1991, p. 31). curso de outrem.
Dessa forma, o discurso jornalístico é pro- “O emprego do discurso indireto ou de
duzido com base no concurso e do efeito uma de suas variantes implica uma análise
daquilo que lhe ofertam outros códigos, isto da enunciação simultânea ao ato de trans-
é, outras vozes e múltiplas polifonias prove- posição e inseparável dele. A tendência
nientes de outros campos culturais ou que analítica do discurso indireto manifesta-se
deles são tomadas por empréstimo: vozes principalmente pelo fato de que o elemento
deontológicas – que dão conta de um certo emocional e afetivo do discurso não é lite-
fazer discursivo; as vozes da divisão social ralmente transposto ao discurso indireto, na
do trabalho inerente ao jornalismo; as vozes medida em que não são expressos no con-
da pedagogia –cada vez mais o discurso jor- teúdo mas nas formas de enunciação” (BAK-
nalístico se insinua como uma espécie de THIN, 1992, p.158-159).
saber explicativo dos processos sociais. Bakthin (1992, p.161) explica que a
Também não podemos deixar de lado as análise envolvida na construção de um dis-
vozes internas do próprio discurso jornalís- curso indireto pode partir de duas aborda-
tico. São as técnicas que mobilizam as regras gens:
de vários campos: convenções audiovisuais, I-Discurso indireto analisador do con-
vocabulário, normas gramaticais, procedi- teúdo – quando a enunciação de outrem é
mentos profissionais, estilo, entre outros, apreendida como a tomada de posição com
para a produção das notícias. conteúdo semântico preciso, o que leva à re-
Entendemos que o processo de enuncia- composição do sentido exato do que disse o
ção jornalística é regulamentado através falante (ou locutor). Tal apreensão é feita
de procedimentos mais generalizados e que no plano meramente temático e permanece
se encontram estabelecidos em espécies de surda e indiferente a tudo que não tenha si-
macrocódigos: a língua, as matrizes cultu- gnificação temática.
rais, as regras sociais, a ética e as ideolo- “A variante analisadora do conteúdo abre
gias. E, por microcódigos, como os códigos grande possibilidades às tendências à réplica
particulares estabelecidos pelas empresas de e ao comentário no contexto narrativo, ao
comunicação, por exemplo, os manuais de mesmo tempo em que conserva uma dis-
redação, mas também os valores-notícia tância nítida e estrita entre as palavras do
(critérios de noticiabilidade), que vão ser narrador e as palavras citadas” (BAKTHIN,
manejados e mobilizados no processo de 1992, p.161).
enunciação. Esse tipo de transmissão preserva a inte-

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gridade e a autonomia da enunciação origi- 4 As características da


nal, mais em termos semânticos do que sin- enunciação jornalística
táticos, mas gera uma certa despersonaliza-
ção do discurso citado. Nesse variante, “a Na enunciação jornalística, o jornalista dá
propriedade do falante só existe enquanto conta daquilo que aconteceu recentemente
ocupa uma posição semântica determinada e, por esse motivo, daquilo que ainda não
(cognitiva, ética, moral, de forma de vida)” acedeu à memória coletiva e que poderá ir
(BAKTHIN, 1992, p.164), e transmitida de gravar-se nela, em primeira mão, precisa-
forma estritamente objetiva. mente pelo fato de o jornalista enunciar (RO-
II-Discurso indireto analisador da ex- DRIGUES, 1996).
pressão – quando a enunciação de outrem A seleção dos acontecimentos que o jor-
é apreendida e transmitida como uma ex- nalista enuncia pressupõe, da sua parte, um
pressão própria do locutor, não só em re- julgamento, na maior parte dos casos implí-
lação ao objeto ou o assunto sobre o qual citos, acerca da relevância e do seu interesse
fala, mas também – e principalmente – por para o público. A formação desse julga-
sua maneira individual ou tipológica de se mento está relacionada implicitamente a uma
expressar (por exemplo: dificuldades de falar visão do mundo interiorizada pelo próprio
fluentemente, sotaques, jargões ou gestos jornalista que a considera, também, univer-
característicos, etc.) Implica, necessaria- salmente partilhada pela audiência.
mente, juízo de valor do narrador sobre o O jornalista, ao enunciar, parte do pressu-
modo de pensar, falar e se comportar do seu posto de que a audiência tem interesse em
interlocutor. Essa variante - pouco explorada conhecer o que enuncia. Isto é, a enunciação
no jornalismo – integra ao discurso indireto jornalística, nesse sentido, é um trabalho de
palavras e maneiras de se expressar de ou- transformação incorporal dos fatos, fazendo-
trem de tal forma que sua especificidade, sua os aceder, através da sua enunciação, ao
subjetividade, seu caráter típico são clara- público.
mente percebidos. Um texto jornalístico é, por isso, um
Entre a variante analisadora de conteúdo e ato de linguagem que consiste no desdobra-
a analisadora de expressão, Bakthin situa a mento de um trabalho de transformação, fe-
variante impressionista, que busca transmi- liz ou infeliz, provocados pelas ações que a
tir o discurso interior – pensamentos e sen- enunciação põe em cena, colocando, assim,
timentos dos personagens, ou a registrar im- em relação duas temporalidades-limite, um
pressões subjetivas sobre o comportamento antes e um depois, mediante uma temporali-
de alguém. Esse recurso é muito encontrado dade transformadora de mediação.
nas reportagens de comportamento em tele- Como tal, o texto jornalístico é um pro-
visão. cesso de doação de sentido, uma vez que dá
a ler uma orientação para o devir, é discurso,
disposição ordenadora dos fatos, tornando-
os, desse modo inteligíveis, situados numa
lógica racionalmente compreensível.
Nessa perspectiva, na enunciação jornalís-

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tica, predomina o valor referencial; pres- digam respeito ao mundo mutuamente par-
supõe a veracidade dos fatos a que se refere tilhado pelo jornalista e pela audiência po-
e a autenticidade do seu relato. O pressu- dem adquirir uma dimensão comunicacional.
posto dessa veracidade institui um autêntico Mas, nem essa dimensão é partilhada pela to-
contrato entre o jornalista, por um lado, e a talidade da audiência da informação, nem é
audiência, por outro. ela que constitui e justifica o seu valor pro-
Uma das questões interessantes a colocar priamente informativo.
da enunciação jornalística é a da sua inteligi- A enunciação jornalística, ao autonomizar
bilidade por parte da audiência: como é pos- os fatos, as ações e as palavras do mundo
sível que os enunciados elaborados pelos jor- vivido do seu acontecimento, liberta-os de
nalistas sejam entendidos por um número in- sentido tradicionais, da sua carga corpo-
definido de pessoas, apreendendo o seu sen- ral concreta, tornando-os, assim, disponíveis
tido a partir da experiência de mundos vivi- para toda espécie de novos sentidos e de
dos e situados dentro de horizontes heterogê- novos investimentos simbólicos. Desse
neos? modo, cada indivíduo que integra a audiên-
O jornalista pode recorrer aos proces- cia, ao interpretar os novos saberes do dis-
sos metalingüísticos, de redundância e curso jornalístico, a partir do seu próprio
contextualização para se fazer compreen- mundo vivido, pode constituir-se num su-
dido. Mas, não tem, ao seu alcance, a hete- jeito autônomo de constituição de sentido.
rogeneidade de sentidos a que seu discurso Há ainda uma outra modalidade a ser
dá origem, já que não pode identificar to- levada em conta na enunciação jornalís-
dos e cada um dos seus interlocutores, nem tica: o silêncio. É um silêncio que não
pode, conseqüentemente, no decurso do pro- cessa de se deslocar, à medida que o
cesso enunciativo, controlar as hipóteses in- jornalismo prossegue incansavelmente a sua
terpretativas a partir das quais cada um infere representação discursiva. Embora logica-
aquilo que pretende dizer. mente prévio, o silêncio percorre, no en-
Ele transmite um conjunto de saberes, tanto, de uma ponta a outra, todo o discurso
converte, em notícia, os fatos ocorridos no jornalístico.
mundo, informa sua audiência daquilo que Mesmo quando o discurso jornalístico é
de relevante aconteceu, mas não controla a referencialmente correto, quando representa
heterogeneidade de sentidos que essas trans- exatamente aquilo que aconteceu, é atraves-
missões e esses saberes adquirem por parte sado por um diferendo insanável entre, por
dos seus interlocutores, não lhes comunica um lado, aquilo que, numa primeira aproxi-
um sentido, não integra esses sentidos num mação, podemos designar como a dimensão
mundo mutuamente partilhado. referencial e a dimensão significante, e por
Por exemplo, há uma diferença muito outro lado, a dimensão expressiva e o sen-
grande entre ser informado da ocorrência de tido da representação discursiva.
um acidente de carro e ser informado pelo É nos interstícios entre essas diferentes
vizinho de que o gato dele foi atropelado em dimensões da enunciação que um silêncio
frente à sua porta. constitutivo e indizível, mas cheio de sen-
É claro que as mensagens jornalísticas que tido heterogêneos, se instala. É, no fundo,

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com esse silêncio que o discurso jornalístico muitos comuns (por exemplo, na abertura a
dialoga. cabeça de uma matéria dizendo: Violência
Mas, além dessas modalidades constituti- na zona norte de Vitória.)
vas da enunciação jornalística, há ainda ou- Para Lopes (1990), independente do tipo
tras categorias de silêncio que atravessam as de notícia ou reportagem, os textos jornalís-
suas formas de expressão, tais como elipses e ticos podem mobilizar diferentes formas de
reticências. Muito mais fáceis de identificar, enunciação e de organização dos enuncia-
essas modalidades de silêncio deixam em dos. Entendemos que isso vai depender da
branco unidades significantes, na cadeia de intenção comunicativa, do repertório infor-
expressões lingüísticas, unidades que a au- mativo, cultural e lingüístico da audiência da
diência é levada a complementar, assumindo, flexibilidade das normas de redação de cada
assim, um papel ativo, tanto na reconstitui- veículo.
ção da cadeia das formas significantes eli- É nesse processo que a recepção é cons-
dida ou implicitada, como na elaboração de truída, mediante um conjunto de regras e de
um sentido comum. instruções construídas pelo campo da pro-
As formas da enunciação jornalística são dução, para serem seguidas pelo campo da
marcadas por processos de raciocínio ou recepção (audiência), condição por meio do
cadeias de razões, que visam a determinados qual ele se insere no sistema interativo pro-
efeitos de reconhecimento (apreensão, com- posto e pelo qual ele é reconhecido e, conse-
preensão pela audiência) e podem restringir- qüentemente, se reconhece como tal.
se ao anúncio, à descrição, à argumentação, A recepção não pode ser definida apenas
a demonstração e a persuasão. pelos estudos que as estratégias de marketing
I-Anunciar: dizer o que aconteceu ou vai propõem para ajudar as empresas jornalísti-
acontecer; dizer o que alguém disse, subten- cas a construir o mercado. É claro que traços
dendo a relevância do dito; e características sociais identificados pelos
II-Descrever- relatar as etapas de um fato, institutos de pesquisa orientam as organiza-
com suas circunstâncias; os passos de um ções a construírem o mercado e um perfil da
personagem, com seus comportamentos, at- audiência.
itudes, declarações ou proposições, ou o Entretanto, entendemos, que a recepção é
quadro de uma situação, com os diversos as- construída na própria economia enunciativa.
pectos envolvidos; “...tais vínculos são construídos no interior
III-Demonstrar – provar a relevância, vali- da própria discursividade, bem como daque-
dade ou veracidade do que foi anunciado ou las leis que ao nível do discurso tratam de
descrito; tipificar não só as maneiras pelas quais o
IV-Argumentar – orientar inferências a suporte constrói as notícias, mas, especial-
partir do que foi dito ou realizado (é o mente a organização mesma da sua noção de
que acontece, comumente, na abertura das leitor” (FAUSTO NETO, 1991, p. 37).
matérias no telejornalismo); O outro, que compôs a cadeia interativa
V-Persuadir – buscar convencer o outro da atividade linguageira jornalística, não é
da importância e da veracidade do relato, apenas uma personagem revestida com cer-
utilizando-se, no caso da sedução, apelos tos matizes de indicadores sociais, mas al-

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A produção de sentidos no jornalismo 11

guém que é construído na própria produção GOMIS, L. Teoría del periodismo: cómo
imaginária dos organizadores e enunciadores se forma el presente. México: Paidós,
do discurso. 1991
Nesse sentido, acreditamos que fica difícil
pensar o jornalismo como uma mera repro- GOMIS, L. Problemas de lingüística geral
dução do real. Como podemos ver são tantos II. Campinas: Pontes, 1989.
os “discursos”- não cometeríamos uma here- LOPES, S. A . Sobre o discurso jornalís-
sia se disséssemos que são infinitos – que tico: verdade, legitimidade e identi-
atravessam o campo jornalístico, são tantas dade. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO,
as tensões, as “vozes”, as práticas discur- 1990. 231p. Dissertação (Mestrado em
sivas, que reduzi-lo a uma simples técnica, Comunicação Social)
ao simples acionamento de regras “mecâni-
cas”, seria perder sua própria dimensão, seu MAINGUENAU, D. Novas tendências em
próprio objeto. análise do discurso. 3. ed. Campinas:
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