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Nietzsche diz alguma vez que não é verdade que todos os homens queiram ser
felizes – isso só acontece com os ingleses1. Não interessa agora examinar que é que está
em causa na observação de Nietzsche. O que parece mais ou menos claro é que
Nietzsche deve estar a interpretar aqui “felicidade” ao modo como certo pensamento
inglês a entendeu: a procura do prazer. A felicidade seria a maximização do prazer, tal
como aparece em J. Bentham e em Stuart Mill. O prazer tem, como se sabe, muitas
formas e é evidentemente um erro grosseiro interpretar o pensamento de Stuart Mill
como um hedonismo vulgar. É melhor, dizia, um Sócrates infeliz do que um porco
feliz2. Também não se pode discutir aqui a proposição de Stuart Mill, que está muito
longe de ser evidente. O que importa é somente chamar a atenção para o facto de haver
uma certa forma de pensamento e, naturalmente, uma idealização de certa forma de vida
que faz equivaler bem a prazer. Passa-se também por alto a investigação sobre a
eventual identificação absoluta entre prazer e felicidade. O prazer pode ser pensado
como a essência da felicidade ou como um requisito necessário, mas não suficiente. O
problema é muito difícil de resolver também devido a um facto surpreendente: ainda
que todos tenhamos experiência do prazer e o identifiquemos com uma facilidade
extraordinária, não sabemos que é, a que corresponde. As discussões sobre a natureza
do prazer ocuparam longamente os pensadores da antiguidade grega, e as opiniões
foram de todos os tipos, e muito diferentes entre si, complementares, opostas e
contraditórias. Trata-se de um fenómeno muito complexo, que pode ser encarado de
vários pontos de vista e que, aqui, se tem de deixar, na sua maior parte, fora de
consideração. Para o caso presente basta o facto de que nós identificamos
imediatamente o estado de prazer, que goza de uma absoluta evidência ou, pelo menos
(mais um assunto que tem de ficar de fora) de uma pretensão de absoluta evidência.
O segundo ponto tiramo-lo de Epicuro. Epicuro dizia que nós temos uma natural
familiaridade com o prazer3. Isso significa que no prazer nos sentimos em casa, no sítio
certo, no estado que nos corresponde. Não se trata somente de um estado agradável ou
muito agradável. Trata-se de que no prazer o sujeito como que se reencontra a si
1
O Crepúsculo dos Ídolos
2
Stuart Mill
3
Epicuro
1
mesmo, ou melhor, se reconhece como estando bem, no sentido mais radical do termo.
O prazer não surge, a quem se reconhece nele, simplesmente como bom, mas como o
bem, tem forma de bem. É relativamente fácil pensar que não é assim, e ter várias
teorias sobre o assunto, segundo as quais o bem tem outras formas, etc.. O que, no
entanto, não é fácil é sentir que não é assim.
Todavia, o aspecto que eu queria tratar aqui prende-se com um facto – que está
relacionado com os anteriores, mas que não é totalmente idêntico a eles – que parece
óbvio, mas que requer alguma reflexão: nós procuramos o prazer. Não nos limitamos a
agradecer quando vem ter connosco, como se fosse uma boa surpresa não merecida; não
nos contentamos por não o ter, como se fosse algo indevido ou inalcançável, algo que,
por muito bom que fosse, estaria para além do que realmente necessitamos. Não parece
ser assim. Nós procuramos positivamente ou prazer. Ou, pelo menos, há pessoas que
assim o fazem. Os ingleses, por exemplo. Para evitar generalizações, o problema pode
reformular-se na seguinte pergunta: que é que está em causa na procura positiva do
prazer, quando ela acontece? O que implica tentar esclarecer duas coisas: a forma do
estado em que se procura – o terminus a quo – e a forma do estado procurado – o
terminus ad quem. E este é o primeiro ponto: aquilo de que se quer sair e aquilo que se
trata de adquirir é um certo estado, não a posse de um bem exterior a nós, uma “coisa”.
O sujeito quer estar, viver, sentir-se a si mesmo de uma determinada maneira e deixar
de se sentir de outra. Quer dizer, o prazer tem a qualidade de se constituir como uma
forma do si mesmo e não como de um bem de que ele se distinga. E isto parece ser um
traço essencial. O prazer tem a ver connosco de uma maneira que nenhum bem parece
ter: ele é uma forma do ser. E quando se persegue o prazer, o que acontece é que o
sujeito quer deixar de ser de um modo e passar a ser de outro.
Ora não se trata de ume mera troca de estados. Trata-se, evidentemente, da
passagem para o melhor. Mas o melhor do prazer tem uma determinada forma, a da
sensação, num sentido do termo muito lato. Não se trata de preferir um outro estilo de
vida, por assim dizer, mas um modo de se sentir a si mesmo. Ainda que seja preciso
abreviar muitíssimo, o que parece estar em causa nesta procura positiva do prazer é que
o sujeito quer abandonar um estado que vive como penoso para se constituir a si mesmo
numa forma de sensação plena de si, para encontrar um sentimento de plenitude de si
mesmo. Quer dizer, o terminus ad quem não é simplesmente “bom”; é muito mais do
que isso: é um acontecimento de plenitude, de completude. E o terminus a quo não é
simplesmente insignificante: é pelo contrário, penoso. Aqui parece haver um passo
2
rápido de mais. De facto, não é nada claro que o estado a partir do qual se procura o
prazer se viva como penoso. O assunto não pode ser aqui analisado, também porque é
bastante complexo. Parece, todavia, que a procura positiva do prazer é, pelo menos
numa grande parte dos casos, consequência do prazer experimentado. E isso pode
significar, pelo menos, que, depois de experimentado, a situação de carência dele é a
experiência de ausência de algo que torna penosa a situação em que se está. E mesmo a
experimentação curiosa de um prazer novo é já efeito do reconhecimento de uma
deficiência na forma em que o sujeito se reconhece estar, deficiência que deve ser
anulada. De outro modo não haveria nada de apelativo na proposta de uma nova
experiência de prazer: quando se está saciado não se sente o apelo de mais nada. Na
base de toda a procura do prazer, do reconhecimento da sua natureza apelativa, há
sempre um certo descontentamento, por muito vago que possa parecer. Um certo
desencanto subjaz sempre à procura de qualquer satisfação.
Um dos aspectos essenciais do fenómeno do prazer é um extraordinário
sentimento da vida, da sensação de se estar vivo. Há uma intensificação do sentimento
vital e parece ser precisamente isso que se procura em primeiro lugar. Aqui há dois
aspectos a considerar. O primeiro é que se desenha neste ponto uma encruzilhada na
interpretação do prazer. Segundo uma venerável interpretação, o prazer é algo que
acompanha, em determinadas circunstâncias, uma actividade, de modo que todo o seu
sentido está na própria actividade que ele acompanha; em si mesmo ele é
completamente vazio; é, aliás, impossível procurá-lo directamente, pois só se encontra
na dependência de uma actividade qualquer. O que importa, pois, é o sentido dos
desempenhos que produzem prazer, o que significará que o juízo sobre o prazer depende
totalmente do juízo sobre a actividade que o produz. Noutros termos, o juízo sobre o
prazer é variável e o que deve ser procurado é um determinado desempenho. Na
interpretação alternativa, o sentido está no próprio prazer, de tal forma que as
actividades que o facultam são secundárias e só têm significado precisamente na medida
em que o facultam; de facto, seriam imediatamente abandonadas no caso em que isso
não acontecesse. Quer dizer, a forma do prazer é totalmente secundária relativamente ao
próprio núcleo do prazer e este – o núcleo – não tem que ver com o facto de ser assim
ou de outro modo, de depender desta ou daquela actividade, mas simplesmente de
procuzir a espectacular sensação de vida que ele é. Este assunto pode tender a escapar.
Um sujeito está interessado neste ou naquele prazer não pelo facto de estar interessado
nisso, como se fosse um monomaníaco, mas sim porque isso constitui uma
3
intensificação do sentimento vital. Parece, de facto, apesar de haver quem duvide disso,
que há actividades que produzem maior prazer do que outras. Elas serão procuradas por
esse motivo. O que importa é sentir-se intensamente vivo. Aristóteles dizia que se gosta
do prazer porque ele é uma experiência da vida, que é, ela própria, um certo bem. A
frase é ainda mais clara: “se todos os homens sem excepção aspiram ao prazer é porque
todos têm tendência para viver(…). É, pois, normal que os homens tendam ao prazer
pois para cada um deles o prazer completa a vida, que é uma coisa desejável”4. Em
última análise, o que pretendemos é sentirmo-nos vivos.
O segundo aspecto a considerar decorre de aqui. Há qualquer coisa como uma
intensificação do sentimento vital, o que é muito estranho. A vida pode sentir-se de
modos mais ou menos vincados e fortes. E o prazer é precisamente o acontecimento da
vida na sua intensidade máxima. O que significa que habitualmente a vida se sente, por
assim dizer, em estado rarefeito, semi-adormecida, sonolenta, numa espécie de
murmúrio. E isto é certamente assim: a vida comum, o ram-ram do dia a dia, é um tom
monocórdico, um estado que Virginia Woolf dizia de non-being, de não ser, um estado
em que a vida, o facto de as coisas serem, a impressão que elas causam, não se sente:
tudo isso passa por nós como se fossemos sonâmbulos. A literatura abunda em
descrições do estado em que de repente a vida surge, impressiona, se faz notar. Por
relação a esses fenómenos, o acontecer comum é uma forma de sono. E por oposição a
este sono quotidiano, a embriaguez, que não ter de ser de vinho, é a exaltação da vida,
com tudo o que isso arrasta de sentido, de poder, de plenitude. É exactamente isso a que
chamamos prazer.
Todavia, nada de isto é suficiente para dar conta da procura expressa do prazer,
pois poderia acontecer que a sonolência habitual não fosse penosa, que não requeresse
abandono. Mesmo que o prazer fosse um estado melhor, isso só por si não justificaria a
sua procura ansiosa e, por vezes, como se sabe, sôfrega. Há um ardor, que é difícil de
compreender à primeira vista, na procura do prazer. No entanto, essa sofreguidão
percebe-se melhor quando se reconhece que o prazer é o remédio exacto, o curativo
perfeito para o que se passa connosco. William S. Burroughs diz, no prólogo a Junky –
que descreve a vida de um viciado na procura do prazer –, que “perhaps all pleasure is
relief”5. E William Burroughs sabia bem do que falava. De que alívio se trata? Alívio de
quê?
4
Ética a Nicómaco, X, 1175ª11 e 17. A tradução não é do original.
5
Junky, London, 2012, pag. ix.
4
A intensificação do sentimento vital a que se fez referência significa, entre
outras coisas, a total redução do sujeito ao instante presente. De facto, o prazer, porque
é uma forma do ser, tem forma de presente. O que significa também que, como toda a
gente sabe, no prazer ontem e amanhã são abolidos. E no prazer intenso só há prazer e
mais nada: nem passado nem presente. Um extraordinário e pleno agora. Trata-se, como
é fácil de ver, de uma abolição muito conveniente. O passado pode ter a desagradável
forma de culpa e o futuro a tão igualmente desagradável forma de angústia. Ora no
prazer tudo isso se desfaz em nada. No prazer o sujeito é só um isso e agora. São duas
“coisas” que o sujeito passa a ser – isso e agora – e não é claro se são mesmo duas ou
uma só com dois nomes. Comece-se pelo agora. O primeiro fardo de que o prazer é um
extraordinário alívio é o do tempo. O tempo não é somente uma forma de organização
dos fenómenos.O tempo é, e é essencialmente, um enorme peso, como toda a gente
sabe. “A chaque minute nous sommes écrasés par l’idée et la sensation du temps”6, dizia
Baudelaire, num texto que teremos de citar completo mais adiante. Pior do que isso: é
um peso de que não nos conseguimos livrar. Há evidentemente a hipótese do suicídio. E
há a sua forma alternativa: o prazer muito intenso. É o oposto do suicídio e, todavia, o
que se procura é a mesma coisa: a libertação do tempo, do peso, maior ou menor, do
passado e do futuro, ou dos dois, porque, no caso da culpa, o passado tinge todo o futuro
e, no caso da angústia, o futuro torna nulo o passado feliz.
A abolição procurada do tempo é, pois, a do tempo concreto, do tempo de cada
um, da memória e da expectativa, do iminente e do passado que acossa. Não se trata,
como se disse, de abolir a estrutura formal do tempo, mas sim do tempo em que cada
um está a ser. Ora o tempo que cada um está a ser é propriamente o seu eu concreto, a
identificação que cada um faz de si, da sua situação presente e do todo da sua vida. Quer
dizer, o que o sujeito quer, de facto, largar é o seu eu real e concreto, é disso que ele
pretende fugir. O fardo é o eu. É de si mesmo que o eu está cansado. E o alívio é o da
supressão de si. Todos nós sabemos bem que há um enorme conforto no esquecimento
de si, e que ele pode ter muitas formas, seja a do doce esquecimento de si do sono seja a
do entusiasmado da embriaguez. Também Nietzsche falava da alegria embriagadora,
para aquele que sofre, de desviar os olhos do seu próprio sofrimento e de se esquecer de
si7. É claro que este esquecimento de si não corresponde ao nada - excepto no budismo,
que manifesta assim uma clara compreensão do problema -, mas antes a de uma
6
BAUDELAIRE, etc, pag. 401.
7
Zarat, dos do outro mundo.
5
plenitude de si ainda que anónima. O facto é, também ele, paradoxal: o que o sujeito
procura no prazer é a anulação de si pela realização de si numa completude sem rosto.
Trata-se, como se disse, de um agora em que se é um isso. O eu quer ser um eu
vazio e, ao mesmo tempo, pleno. E o que é facto é que o prazer é exactamente assim.
No prazer não há nada a não ser o agora e a plenitude do sentimento vital inteiramente
abstracto, da vida anónima levada ao extremo, não como a “minha” vida, mas como a
vida sem mais: a “coisa” vida. O paradoxo é que se tenta abolir a vida – a “minha”, a
real, a concreta - com a própria vida, a anónima e sem rosto.
Musset escreveu alguma vez que “les deux grands secrets du bonheur [sont] le
plaisir et l’oubli”8. É muito provável que prazer e esquecimento não sejam senão duas
faces da mesma moeda, de tal forma que o prazer é prazer pelo esquecimento. Talvez
haja mais no prazer que esquecimento, mas se não houvesse esquecimento muito
provavelmente não procuraríamos o prazer como o fazemos. O assunto é naturalmente
complexo, para não variar, e é difícil denstrinçar os dois aspectos no fenómeno do
prazer. Em qualquer dos casos, o esquecimento está no núcleo mesmo do prazer e da
forma de vida que ele anuncia. Nietzsche, que se volta a citar porque nesta matéria é
muito claro, di-lo com precisão: “a mais pequena como a maior felicidade são sempre
criadas por uma coisa: o poder de esquecer”9; ou: "percebe-se imediatamente porque é
que sem esquecimento não poderia haver nem felicidade nem serenidade (...) nem
presente"10.
A alma humana, na encruzilhada entre prazer e eu, ou entre prazer e tempo, se
recusa o segundo termo, tem duas opções. A primeira é a da difícil arte de esquecer, a
de aprender a saber esquecer. Trata-se de uma arte difícil e pouco tentada. Ainda que se
exigisse uma análise cuidadosa, porque é possível que haja várias artes do
esquecimento, com sentidos muito diferentes, o que parece claro é que a proposta da
arte de esquecer, não só considera o tempo como inimigo, como considera também que
nada merece, por si só, ser retido. Ou, o que é a mesma coisa, que o acontecimento
válido é só o próprio agora, o agora em si mesmo. Quer dizer, a arte do esquecimento é
uma arte do desencanto e da desilusão e tem como pano de fundo o tédio da vida no seu
todo. Trata-se, pois, de uma arte essencialmente negativa, que se prende ao agora só
para não se prender a nada.
8
MUSSET, La nuit vénitienne,
9
Considerações intempestivas, 2ª; refª
10
Genealogia da morak, II, 1.
6
Todavia, a forma mais comum é a de escolher positivamente o prazer como
remédio eficaz. A arte que lhe corresponde é a da construção do que Baudelaire chamou
“paraísos artificiais” ou “paraísos de ocasião”. A alma humana só se sente em casa num
paraíso. Aliás, é possível que a própria noção de “casa” dependa da de paraíso, ainda
que isso só se revele com a idade. Em qualquer dos casos, quando não o encontra,
constrói-o. O paraíso é evidentemente o prazer e o prazer de cada vez mais refinado e
alternativo. Como se sabe, os “Paraísos Artificiais” de Baudelaire são a tradução com
comentário de algumas passagens do livro de De Quincey Confessions of an English
Opium-Eater, que merece ser lido por si só, também porque o seu sentido não é
totalmente idêntico ao de Baudelaire. Já anteriormente Baudelaire tinha escrito um outro
texto intitulado Du Vin et du Hashisch, onde estabelece uma diferença importante entre
os dois tipos de excitantes. O livro mereceria igualmente ser lido, tanto mais que faz o
elogio do vinho e a crítica demolidora do hashisch numa altura em que se faz
precisamente o contrário, o que não deixa de ser curioso. Mas tudo isto deve também
ficar de lado. O que importa é chamar a atenção para o facto de Baudelaire indicar
claramente que os paraísos artificiais são uma extraordinária ilusão. Provavelmente são
ilusão porque são artificiais. Em qualquer dos casos, o tempo revela que os paraísos
artificais são um inferno. E, como se sabe, é difícil sair de lá. Do paraíso ao inferno vai
um pequeno passo. Lamentavelmente, o contrário não é verdadeiro.
11
Charlie Kaufman; Michel Gondry
7
Pois nós procuramos a pureza da mente no prazer. Julgo que é importante reter este
aspecto, que não é nada aparente, mas que parece real. Não procuramos somente
esquecer o amanhã. Na verdade, o alívio por que suspiramos é o alívio do tempo,
porque é também o alívio da mente manchada. Pode parecer curioso, mas o que
procuramos no prazer é também a pureza, e procuramo-la no prazer porque não a
encontramos de outro modo senão no esquecimento; pelo menos é o meio mais expedito
e aparentemente mais fácil. É claro que o preço é precisamente o aumento da mancha. E
o processo torna-se, com se sabe, imparável.
O outro problema – vencer o tempo, anular a distenção temporal, o estendimento
do sujeito pela vida no seu todo – é tentado, como se disse, no modo da paragem: "nunc
fluens facit tempus, nunc stans facit aeternitatem", atribui-se a Boécio, ainda que nesta
forma não se encontre nele. Nunc stans: esta é a extraordinária ilusão do prazer, a forma
de eternidade a que aqui temos acesso. E é ilusão, porque o tempo não pode mesmo ser
parado, apenas se produz uma série desconexa de instantes sem ligação entre si, e uma
soma descontínua de instantes avulsos não só não faz uma vida como a destrói
completamente: "celui qui s’attache au plaisir, c’est-à-dire, au present, me fait l’effet
d’un home roulant sur un peinte, et qui voulant se raccrocher aux arbustes, les
arracherait et les emporterait dans sa chute"12.
Vale a pena ler agora o texto de Baudelaire que se iniciou atrás: “à chaque
minute nous sommes écrasés par l’idée et la sensation du temps. Et il n’y a que deux
moyens pour échapper à ce cauchemar, - pour l’oublier: le Plaisir et le Travail. Le
Plaisir nous use. Le Travail nous fortifie. Choisissons.
Plus nous servons d’un de ces moyens, plus l’autre nous inspire de répugnance.
On ne peut oublier le temps qu’en s’en servant”13.
Este texto de Baudelaire merece, todavia, uma pequena nota, para terminar.
Como se disse, nós estamos perante a contradição chamada vida: ela tanto tem a forma
do agora como a do todo do tempo. Ora o que se passa é que ambos aspectos, por mais
incompatíveis que sejam, são verdadeiros, por assim dizer: há certamente uma verdade
neles. E temos a justa impressão de que a abolição de um deles corresponde a uma
perda a que não nos resignamos. Ainda que nos digam que temos de escolher, sentimos
com pena que com a escolha se afasta de nós qualquer coisa por que temos forte
afeição. Claramente queremos sol na eira e chuva no nabal. Ao longo de história houve
12
415.
13
401.
8
muitas tentativas de resolver o problema: eliminar o agora, eliminar o tempo, eliminar a
relação entre os dois, ou ainda o Nirvana. A estratégia comum é diferente e bem
conhecida: parte trabalho, parte prazer, quer dizer, uma divisão do tempo em que uma
parte dele está destinada a fazê-lo esquecer, normalmente o fim de semana. Mas é claro
que se trata de uma solução de recurso, de um mau expediente. O ideal não é claramente
ter uma coisa e a outra, separadas, numa relação de exclusão, em que temos de
abandonar uma para poder usufruir da outra. O ideal seria que as duas coisas fossem
uma só, exactamente a mesma. Parece que aquilo que de facto queremos é uma
plenitude intensa da vida, como a do prazer, mas concreta, com conteúdo, como o eu. O
problema é que não conseguimos ter isto senão "à vez", em alternativa.