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PREAL

PROGRAMA DE PROMOÇÃO DA REFORMA EDUCATIVA NA AMÉRICA


LATINA E CARIBE

Série “Documentos Ocasionais”

No. 5

AS ATUAIS REFORMAS EDUCATIVAS NA AMÉRICA LATINA: QUATRO


ATORES, TRÊS LÓGICAS E OITO TENSÕES

Cecilia Braslavsky e Gustavo Cosse *

Maio de 1997

*Os autores são funcionários do Ministério da Cultura e Educação da República Argentina. São,
também, professores da FLACSO/Argentina e das universidades de Buenos Aires e de Luján,
respectivamente. As opiniões expostas no presente trabalho não comprometem as instituições em
que trabalham.
Os documentos desta série estão disponíveis em formato eletrônico na Internet (www.preal.cl).
Traduzido por Paulo Martins Garchet
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AS ATUAIS REFORMAS EDUCATIVAS NA AMÉRICA LATINA:


QUATRO ATORES, TRÊS LÓGICAS E OITO TENSÕES

Apresentação

Nós, os autores do presente trabalho, nos consideramos pesquisadores


profissionais. Não cabe relatar aqui o histórico de nossas atividades profissionais,
apenas indicar alguns traços que definem a perspectiva na qual se escreve este texto. Na
década dos oitenta estávamos dedicados à geração de conhecimentos.
Compartilhávamos essa tarefa com uma série de colegas latino-americanos, da Argentina
e de outros países da região, com quem trocávamos trabalhos e reflexões. De outro
lado, alternávamos a tarefa de pesquisa com a de formação, no nível de pós-graduação.
A imensa maioria de nós havia sido excluída das universidades nacionais pelos governos
militares. Trabalhávamos nas sedes da Argentina e do Equador da FLACSO (Faculdade
Latino-americana de Ciências Sociais), um dos novos centros de produção e distribuição
de conhecimento sobre a sociedade e o Estado na região, com características peculiares
em relação às universidades: ausência ou escassez de financiamento regular para o
pagamento de salários, funcionamento centrado na execução de programas e projetos de
pesquisa e de ensino, forte ligação com os circuitos internacionais de produção de
conhecimento, progressiva orientação para pesquisa direcionada para a informação de
tomada de decisões, pretensões de pluralismo e excelência acadêmica.
Os processos de democratização da América do Sul trouxeram para nós a
possibilidade de inserção nos processos de elaboração e desenvolvimento de políticas
públicas do setor educacional. Esta possibilidade não foi um feito isolado ou pessoal.
Foi parte de um significativo movimento de um grupo relativamente numeroso de
intelectuais que se voltou para a ação. Tal movimento seria um dos muitos indicadores
do surgimento, também na América Latina, de uma nova estrutura ocupacional, da qual
uma das categorias seria a dos “analistas simbólicos”. 1

1 A metodologia utilizada é clara. Formulou-se uma pauta de entrevistas que foi apresentada aos
colegas mencionados na próxima nota. Atentos às altas responsabilidades de vários deles em
governos ou organismos internacionais, garantimos que não haveria referências pessoais nos
pontos de vista expressos. Vale ressaltar, contudo, que muitas das idéias aqui colocadas, ou
desenvolvidas, se baseiam em sugestões ou idéias colhidas nessas entrevistas.
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Segundo Brunner e Sunkel (1993) os pesquisadores sociais latino-americanos –


ou, pelo menos, um setor deles – fariam parte dessa categoria que surge agora, de
analistas simbólicos, e que estaria “...com a intenção de produzir, transportar, usar e
aplicar conhecimentos para identificação, resolução e arbitragem de problemas; (e que
teria) a habilidade de manipular conhecimentos para o cumprimento dessas funções, seja
por si mesma, seja pela identificação de outros analistas, equipes ou redes que possam
dispor desses conhecimentos” (p.12).
Os analistas simbólicos se diferenciariam dos funcionários tradicionais por sua
consciência sobre a relação entre conhecimento e poder e sua convicção de que
possuem os conhecimentos relevantes para o exercício efetivo do poder. A partir deste
posicionamento, e acostumados à marginalização e à dissensão, tentariam manter um
certo distanciamento crítico em relação a outros atores que também se inserem no
Estado, ainda que com outros saberes menos específicos em relação aos campos ou
áreas de atuação em que trabalha cada analista simbólico. Ao mesmo tempo,
procurariam estabelecer com as estruturas hierárquicas de governo uma lógica de
interação, antes que de subordinação ou obediência.
A manutenção dessa distância crítica e o esforço para horizontalizar as tomadas
de decisões não seriam nada simples, nem dentro, nem fora do Estado, já que
romperiam com aspectos da cultura política tradicional (Coll 1995), contribuindo –
junto com as mudanças tentadas por setores das estruturas partidárias impulsionados
pela demanda social de modernização do sistema político – para fazer frente ao “hiper-
partidarismo” e à burocratização autoritária das práticas governamentais e estatais.
Como conseqüência de algumas das questões expostas, os analistas simbólicos
tenderiam a promover a elaboração de políticas de Estado que perdurem para além das
gestões de governo, não apenas por uma questão de convicção sobre suas necessidades,
mas também – e talvez fundamentalmente – porque esse tipo de política seria mais
conveniente para a manutenção e ampliação de sua influência.
Tanto no espaço da elaboração, condução e implantação de políticas educativas
do Chile, da Argentina, do Uruguai , do Brasil e, em menor escala, do México, como de
outros países encontram-se, em certo grau, esses “analistas simbólicos”, dos quais, um
dos grupos pode ser denominado “pesquisadores, ou intelectuais reformadores”. Os
membros deste subgrupo procedem de instituições com FLACSO e CEDEL, na
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Argentina, CEPAL, no Uruguai, das Fundações Carlos Chagas e Getúlio Vargas, no


Brasil e, no Chile, de FLACSO, CIDE e PIIE. Os profissionais deste perfil
compartilham certos modos de encarar e analisar os processos de reforma educativa,
com variantes, é claro, derivadas de suas diversas posições políticas, teóricas e
ideológicas.
Estes analistas simbólicos construíram sua visão dos sistemas educativos e
traçaram grandes linhas para sua transformação no contexto de um crescimento
significativo de ONGs, de organismos regionais internacionais autônomos (como a
FLACSO), de instituições privadas ou “federa ções” de instituições acadêmicas
independentes (como a CLACSO e o CSUCA) que desempenharam um papel relevante
na análise das estruturas e processos sociais e políticos. Em alguns países este
crescimento esteve relacionado com as dificuldades, de diversos tipos, para que as
universidades desempenhassem, elas mesmas, este papel. Na América do Sul, isto
constituiu uma resposta ao desaparelhamento das universidades nacionais para o
exercício do pensamento autônomo e da pesquisa gerado pelas políticas dos regimes
militares autoritários. Tais políticas tornaram as Universidades Nacionais “não
elegíveis” para as fontes de financiamento do primeiro mundo.
As ONGs, os organismos regionais e as instituições e federações privadas se
beneficiaram grandemente dessa situação. Primeiro, pelo fluxo de recursos que
receberam, mas, em segundo lugar, porque as exigências de qualidade e universalidade
de alguns de seus financiadores constituíram um impulso adicional para uma necessária
renovação do pensamento latino-americano em termos de níveis de análise, paradigmas
e propostas de transformação, assim como para o surgimento de um perfil de
funcionários simbólicos que, em muitos casos, logo se inseriram nos organismos estatais
como “intelectuais reformadores”.2
O presente documento pretende recuperar algumas reflexões produzidas por
estes “pesquisadores reformadores” sobre alguns aspectos das dinâmicas estabelecidas

2 Agradecemos de forma muito especial o tempo que nos concederam os colegas entrevistados.
Entre parênteses estão indicados dois de seus principais âmbitos de atuação, o de definição e
execução de políticas públicas e o de pesquisa: José Joaquín Brunner (FLACSO-Ministério de
Governo do Chile), Cristian Cox (CIDE-Ministéiro da Educação do Chile), Daniel Filmus
(FLACSO-Secretaria de Educação da Municipalidade da Cidade de Buenos Aires), Daniel
Hernández (CEDEL-Ministério da Educação da Argentina), Francisco Dellich (CLACSO-
Ministério da Educação da Argentina), Germán Rama (CEPAL-CODICEN, Uruguai), Pedro
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para atender os desafios educativos, reconhecendo neles alguns elementos facilitadores e


outros obstaculizadores para a viabilização das reformas educativas ora em curso na
América Latina. O foco das reflexões estará nos processos de reforma educativa do
Chile, da Argentina e do Uruguai, sem descartar referências a outros que estão em
andamento, por exemplo, no Brasil e na República Dominicana.
Para tanto, está apoiado em nossa própria experiência vivida, em comentários e
colóquios incidentais com vários colegas e em dez entrevistas com alguns de nossos
“velhos” conhecidos reencontrados. Na primeira seção começaremos por caracterizar o
cenário do ensino contemporâneo como um ambiente de ressurgimento das reformas
educativas. Na segunda seção tentaremos especificar um aspecto comum aos contextos
em que tais reformas têm lugar: a pretensão de reformar o Estado. Na terceira seção
apresentaremos alguns dos elementos obstaculizadores e facilitadores das reformas
educativas, organizados como “tensões”, do ponto de vista dos “intelectuais
reformadores”. Finalmente, procuraremos apresentar algumas conclusões sobre as
culturas em conflito por trás das tensões que se manifestam nos processos de gestão das
reformas educativas.

Ravela (CEPAL-CODICEN/Uruguai), Sonia Scaffo (Universidade Católica do Uruguai-


CODICEN, Uruguai) e Esther Mancebo (FLACSO-CODICEN, Uruguai).
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1. O RESSURGIMENTO DAS “REFORMAS EDUCATIVAS”

Os sistemas educativos da região nunca estiveram estáticos. Depois da onda de


reformas produzidas em articulação com as propostas da Aliança para o Progresso na
década de sessenta, verificaram-se vários processos de transformação, produzidos como
resultado de certas políticas públicas orientadas para a modificação de alguns aspectos
de seu funcionamento. Por outro lado, e ao mesmo tempo, produziram-se também
certos processos de transformação como resultado da ação, em numerosas instituições,
dos atores do quotidiano do ensino – diretores, pais, alunos, docentes – que nem
sempre estiveram explícita e claramente articulados com os primeiros.
A partir da década de sessenta surgiu e permaneceu, na América Latina, uma
série de políticas e estratégias efetivas na determinação de uma mudança nas relações
entre o centro de condução dos sistemas e cada uma das instituições que oferecem
serviços educativos. Os processos de descentralização levados a cabo em vários países
da região, a municipalização ensaiada em outros e a desconcentração de funções iniciada
em ainda outros, são algumas das políticas e estratégias que contribuíram para tal
mudança. Ainda que os discursos destas políticas e estratégias estivessem
fundamentados de maneiras muito diversas e que elas tenham sido executadas em
ritmos distintos e com peculiaridades próprias de cada caso, na maior parte perseguiram
objetivos econômico-financeiros, principalmente a melhoria do equilíbrio fiscal.
Entre os processos de transformação que resultaram da ação dos atores do
quotidiano do ensino surgiu uma situação diferenciada. Por um lado, começou-se em
algumas instituições a gestação de um processo de construção de maior autonomia
institucional, em resultado da qual começaram a tomar decisões acerca de aspectos de
currículo e administração que podem ser qualificados, em alguns casos, como
promotores de qualidade e eqüidade. Por outro, um número talvez maior de
instituições consolidou estilos de funcionamento orientados para o cumprimento
rotinizado de atividades, com a conseqüente perda da noção dos fins contribuindo para
sua deterioração.
O resultado foi o agravamento de alguns dos velhos problemas do sistema
educativo nos segmentos dedicados ao cuidado das populações mais pobres e o
aparecimento de outros, novos, fortemente ligados à fragmentação dos sistemas como
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tais. Para fazer frente a esta situação alguns países e administrações descentralizadas
começaram a executar políticas e estratégias voltadas para a reorganização ou criação de
certos dispositivos de orientação e regulação do funcionamento dos sistemas educativos.
O governo Pinochet pôs em marcha o PER (Programa de Evaluación de Rendimiento
Escolar). A municpalidade da cidade de Buenos Aires elaborou um novo Desenho
Curricular.
A recuperação da democracia, no caso da América do Sul, e a generalizada
aceitação de novas regras do jogo econômico internacional, tais como a globalização da
economia e o desafio da competitividade internacional, fizeram que estes esforços de
políticas e estratégias parciais se mostrassem absolutamente insuficientes para alcançar o
tipo de educação exigido para toda a população. Em conseqüência, voltaram a aparecer
os discursos de “reforma educativa”, na América Latina.
Mesmo quando– em vários países como o Chile, por exemplo e menos
coerentemente, Argentina, República Dominicana e outros – tais discursos se
apresentam evitando a convocação para uma “reforma educativa”, têm, em geral, a
pretensão de substituir um padrão de mudanças erráticas e descontinuadas por outro, do
tipo incremental e contínuo (Cox 1994). Têm em comum com os discursos da década
de sessenta o fato de acolherem propostas abrangentes, só que desta vez mais orientadas
para a reconversão que para a expansão. Muitos dos novos discursos parecem ter a
intenção de “re-inventar” as formas pelas quais as sociedades satisfazem suas
necessidades educativas. Já não se trata de propor a expansão do que existe, ou seu
melhoramento através de tal ou qual política ou estratégia (descentralização,
municipalização, novo currículo, sistemas de avaliação), mas de repensar o conjunto de
dispositivos discursivos, normativos e institucionais que regulam e conformam a
educação. Em certo sentido, está em questão a própria existência dos “sistemas
nacionais de ensino”, pela generalização de novos mecanismos de regulação e por sua
nova configuração, que poderiam transformá-los em redes quase irreconhecíveis,
comparadas a suas ancestrais.
Um indicador de tal intenção de re-invenção é a forte presença de novas leis de
educação geral na região, ou a adoção de amplos planos nacionais de reforma, que
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incluem princípios e propostas organizacionais, administrativas, curriculares e didático-


pedagógicas diferentes das que caracterizavam etapas anteriores.3
Numerosos autores se encarregaram de investigar e refletir sobre as tendências
de transformação e reforma educativas.4 Contudo, a produção bibliográfica mostra
certos desequilíbrios. Enquanto alguns aspectos estão mais considerados, outros
permanecem, ou significativamente ausentes, ou merecem apenas um par de páginas no
âmbito do tratamento de outro conjunto de temas.
Em termos gerais, pode-se dizer que há numerosos trabalhos nacionais, e alguns
regionais, sobre o quê, o por quê e o para quê das transformações e reformas (veja-se,
por exemplo, Carnoy e de Moura Castro 1996 e Remiers e Tiburcio 1994), mas é muito
escassa a produção acerca das pessoas que as estão realizando, e como, e que facilidades
e dificuldades estão encontrando.
Nesta última ordem de idéias encontram-se algumas tentativas de narrar e de
refletir sobre a articulação entre os distintos atores - a que existe e a que seria desejável -
na hora de produzir definições acerca das políticas e estratégias a seguir no setor
educação (veja-se, por exemplo, FLACSO e outros 1995 e Coraggio 1995), ou sobre os
paradigmas próprios da administração do ensino em perspectivas conceituais (Sander
1996), mas muito poucos para descrever, e refletir sobre o que ocorre com as práticas
dos atores no dia-a-dia da elaboração e da implantação das políticas educativas nos
níveis superiores e intermediários da administração pública.
A maior parte das pesquisas existentes estão centradas no nível da análise do
sistema educativo como um todo, no de cada instituição escolar, ou no das aulas – não
no nível de análise da gestão municipal, provincial ou nacional. Recentemente, alguns
grupos investigaram processos específicos da administração pública, tais como a
incorporação de conhecimentos (ver, por exemplo, Brunner e Sunkel 1993 e Briones e
outros 1993) e equipes responsáveis por algumas das gestões tentaram recuperar o fato
introduzindo componentes de reflexão acerca dos conceitos e tensões existentes em sua
ação (veja-se, por exemplo, Devries e colaboradores 1993).

3 Vejam-se, por exemplo, as novas leis gerais de educação da Argentina, de 1993; da Colômbia, de
1994; do Chile, de 1991; do México, de 1993; do Paraguai, de 1992, ou o Plano Decenal de
Educação da República Dominicana, de 1992.
4 Nesta altura do texto, convém esclarecer que se reserva o termo “reforma educativa” para fazer

referência ao conjunto de políticas públicas orientadas para produzir mudanças nos processos e
serviços educativos, enquanto o termo “transformação” se emprega para designar as mudanças
que neles ocorrem, sejam, ou não, resultado das políticas educativas.
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Na realidade, porém, a pesquisa educativa e a investigação sobre o Estado deram


pouca atenção à questão do funcionamento quotidiano do Estado no setor da educação,
o que acarreta uma séria carência na hora de se tentar construir outro Estado, que sirva
para produzir outras políticas (Gurrieri 1987). Parece que, ao menos no que tange ao
setor da educação, as reflexões e propostas acerca de como construir outro Estado
tendem a vir mais da mão dos economistas, primordialmente preocupados com as
contas fiscais, que dos sociólogos e cientistas políticos da educação – e nem falar dos
pedagogos. Como se acaso fosse possível administrar as reformas e impulsionar as
transformações sistêmicas necessárias sem reforçar a visão e as capacidades
proposicional e gerencial a respeito desse como.
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2. QUEM PRODUZ AS TRANSFORMAÇÕES EDUCATIVAS LATINO-


AMERICANAS?

Os primeiros estudos acerca das transformações educativas latino-americanas


partiam do princípio de que elas eram o resultado quase direto, pouco influenciado e
pouco intermediado por outros, da aplicação das leis dos poderes legislativos pelos
poderes executivos: os governos geravam políticas educativas inspiradas nas leis; tais
políticas modificavam a realidade, produzindo transformações.
Há já tempo se sabe que nas transformações educativas – como em qualquer
outra transformação social – intervêm os discursos e as atuações de numerosos atores.
Neste sentido pode-se afirmar que o próprio desenho das políticas educativas é
fortemente influenciado pelos interesses, pelas representações e pelas práticas de
numerosos atores, em diversos cenários, e não apenas pela atividade do Congresso e seu
resultado normativo. Ainda mais, porém, esses cenários, representações e práticas estão
inscritas em um campo que determina suas possibilidades, o qual – certamente – elas
mesmas co-determinam.
Sem embargo, e em que pese tal multiplicidade de presenças, parece que, em
todos os países da América Latina, são os Estados Nacionais que estão propiciando,
articulando, liderando e determinando em maior medida os processos de nova
regulamentação e configuração dos sistemas educativos, de forma sustentada ao longo
do tempo. Os empresários, os dirigentes sindicais e outros atores– mais ainda que os
políticos que ciclicamente propõem reformas – atuam no setor de forma errática e
descontinuada: em certos momentos preocupam-se e se ocupam da educação, em
outros, prolongados, se despreocupam ou delegam as iniciativas aos Estados Nacionais.
Isto parece corroborar uma hipótese relativamente recente, segundo a qual seria
inútil discutir se o Estado deveria, ou não, intervir nas transformações latino-americanas,
porque, de fato, já o estaria fazendo (Gurrieri 1987). O debate deveria deslocar-se para
outras questões. A primeira consistiria em revisar que políticas deveria o Estado
implantar, e a segunda, em revisar como deveria transformar-se a si mesmo para poder
cumprir seu novo contrato.
Com relação à primeira questão, as sociedades latino-americanas deveriam
chegar a novos consensos com respeito a quais tarefas deixar nas mãos dos Estados e
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quais assumir através de suas outras instituições. A segunda metade da década dos
oitenta e o primeiro qüinqüênio dos anos noventa parece ter sido o tempo de avançar
na consecução de um certo consenso prévio em relação a estas questões. Amplas
correntes de opinião e os grupos hegemônicos dentro dos partidos dos governos
parecem ter concordado com a necessidade de mudar o foco das prioridades referentes
às tarefas que, de acordo com este novo contrato, ficariam nas mãos dos Estados
nacionais. A prestação direta dos serviços educativos, sem haver sido alienada dos
Estados, foi visualizada, mais clara e abertamente, como uma responsabilidade a ser
compartilhada com a sociedade. A convocação para o pacto, a informação e avaliação, a
compensação de diferenças e a promoção da inovação e transformação pedagógicas
foram, em troca, enfatizadas como funções dos Estados (Tedesco 1987; Braslavsky 1990
e Filmus 1996).
Em princípio, isto parece ter significado uma opção entre duas alternativas, que
não são as mesmas que foram colocadas há trinta anos. Já não se trata de optar entre o
Estado Docente e o Estado Subsidiário, mas entre Estado Prescindente e Estado
Promotor, em que o primeiro se constituiria canalizador e financiador das forças do
mercado, e o segundo, em regulador e conformador de um novo sistema educativo.
A opção pelo Estado Prescindente teria representado atribuir-lhe uma função de
“regulamentação mínima”, que lhe teria exigido enfocar a atenção nas demandas por
educação e nos resultados esperados do processo educativo, de um ponto de vista de re-
atualização da “modernidade”, sem preocupação com seus “lados escuros” (Giddens
1994) representados, no caso da educação, pela desistência, pela repetência, pelo
fracasso escolar e pela segmentação.
A opção pelo Estado Promotor reclama que se focalize a atenção nos marcos
dos sistemas e processos necessários ao atendimento das necessidades educativas, de um
ponto de vista de atualização da modernidade passando pela preocupação – mais ou
menos conseqüente – de superar seus “lados escuros”. Por este motivo dá atenção ao
conjunto de funções acima enunciado, incluindo entre elas a promoção da inovação e
transformação pedagógica, certamente omitidas em todo planejamento orientado para a
construção de um Estado Prescindente.
Ocorre que o setor educação da rede institucional do Estado foi criado quando
ele precisava assumir o papel principal e predominante na função da prestação direta
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dos serviços. Em conseqüência, a nova concepção sobre a função dos Estados exigiu
uma importante revisão acerca de sua própria organização, de seus perfis profissionais,
de sua relação com os estabelecimentos de ensino e uma série de outras questões.
Exigiu que o setor da educação dos Estados latino-americanos, não apenas fosse capaz
de alimentar um processo de nova regulamentação e configuração dos sistemas
educativos, mas também que fosse, ao mesmo tempo, capaz de se repensar e de tornar a
se regular e a configurar-se a si mesmo.
Em síntese, tratar-se-ia de passar da velha concepção do Estado docente, própria
do século XIX latino-americano, para uma nova, de sociedade educadora,
reconhecendo, porém, que ela só se pode tornar realidade graças a um ativo papel dos
Estados nacionais, agora concebidos como promotores que articulam acordos para
definir políticas, que informam e compensam solidariamente, ao mesmo tempo que se
reorganizam a si mesmos para poder definir políticas e cumpri-las de modo mais eficaz e
eficiente.
As reformas educativas dos anos noventa puderam se iniciar na América Latina
graças ao imperativo da necessidade e com uma alta dose de voluntarismo. Em muitos
casos, tal início se realizou – como veremos em maior detalhe mais adiante – através da
montagem de estruturas paralelas à organização funcional permanente dos ministérios.
Nessas condições de precariedade deram-se passos significativos para passar de
um planejamento centralizado no livro plano para um planejamento situacional e
operacional (Matus 1987), ou de ações centradas exclusivamente na conjuntura e nos
meios, ou de outras que tentam equilibrar as conjunturas de médio e longo prazos e pôr
os meios a serviço da resolução dos problemas educativos das pessoas.
Contudo, é possível duvidar-se de que esses passos tenham iniciado em todos os
países um processo irreversível de reforma do setor educativo dos Estados nacionais e é
provável que sejam, todavia, insuficientes para sustentar uma transformação
modernizadora e eqüitativa dos sistemas educativos. As afirmações precedentes podem
ser tidas como inscritas em uma espécie de ceticismo otimista. Chamará, certamente, a
atenção ler esta associação de termos, que tenta refletir, por um lado, a detecção de
múltiplos sinais sobre as limitações existentes na dinâmica dos Estados nacionais para
cumprir as funções de “regulação necessária” que lhe são designadas. Pelo outro,
porém, reflete a convicção de que, se essas limitações forem detectadas e enfrentadas,
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será possível superá-las. Caso não fosse assim, certamente que as posições neo-liberais,
que neste momento não têm a penetração no setor da educação que alguns críticos das
políticas educativas latino-americanas lhes atribuem, avançariam com suas alternativas:
destruição da educação pública, generalização do vale-educação e anulação de marcos
curriculares compartilhados.
Contudo, a possibilidade de configuração de um setor educativo dentro do
Estado que assuma as funções mencionadas não depende exclusivamente do que se
passe com ele mesmo, mas, em medida importante, do que venha a ocorrer com todo o
Estado, processo que as tendências do setor da educação contribuíram, por outro lado,
para co-determinar. Por isto é importante examinar o que se poderia chamar “a solução
dominante” dos problemas relacionados com a configuração e o tamanho do Estado, a
questão de sua reforma em primeiro lugar (Cosse 1994).
A principal estratégia para reforma do Estado, tal como está sendo proposta ou
implantada na maior parte dos países da América Latina, consiste na redução de seu
tamanho, de seus papéis de empresário e prestador de serviços, assim como de suas
funções de regulamentação e orientação. Ela confunde dois níveis totalmente distintos
de “estatismo”. O primeiro refere-se ao que poderia ser sintetizado como o hiper-
dimensionamento burocrático: muitos funcionários mais que o necessário, clientelismo,
ineficiência, corrupção, lentidão, opacidade, caráter indiscriminadamente subsidiador do
Estado, amplitude do setor empresarial público, etc. O segundo, consiste nos papéis
planificador, regulador e orientador, do Estado (Cosse 1994).
Desse modo, quando se fala de “reforma do Estado”, se alude, indistinta e
ambiguamente, ao tamanho e à função. O super-dimensionamento excludente da
estratégia de reduzir o hiper-dimensionamento estatal está implicitamente articulado
com a desvalorização do papel regulador e orientador do Estado, e à valorização do
mercado como organizador do desenvolvimento. Explícita ou, mais freqüentemente,
implicitamente, há o conceito subjacente de que a crise fiscal que varre o mundo é
basicamente atribuível ao fato do Estado estar sobrecarregado por uma espiral
estruturalmente ascendente de demandas impossíveis de satisfazer que levam, cedo ou
tarde, a uma situação de ingovernabilidade. Assim sendo, a única e bastante solução
seria diminuir o Estado e privatizar os serviços públicos.
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A primeira coisa a assinalar é que, com freqüência – mesmo em valiosos


trabalhos acadêmicos – ao analisar as razões do fracasso, no longo prazo, da capacidade
de reprodução expansionista do Estado de Bem Estar, ou de seu devenir em Estado do
Mal Estar (Bustelo 1993) se apontam todos os vícios da burocracia pública
anteriormente mencionados– além de outros – como uma das razões centrais.
Contudo, parece necessário distinguir dois níveis também nessa questão. É certo, sabe-
se, que as organizações complexas, especialmente as públicas, tendem a garantir sua
reprodução, se preciso for, definindo novos fins institucionais, ou reformulando os que
se lhe destinam nos níveis políticos de decisão. Sabe-se, também, que a burocracia
pública tende a estruturar um conjunto de mecanismos de auto-proteção, entre os quais
a complexidade dos procedimentos e a opacidade das informações que maneja têm
grande importância (Oszlak 1984; Crozier e Friedberg 1990). Finalmente, foram
registradas inúmeras situações em que as organizações burocráticas, ou técnicas,
colocam forte resistência a adaptarem-se a mudanças nas políticas, por um efeito de
arrasto de lógicas e culturas institucionais construídas historicamente (Cosse 1991).
Tudo isto é certo.
Mas seria errôneo atribuir os problemas do aparato estatal apenas à dimensão
explicativa mencionada. Esta abordagem implica, por certo, eximir o sistema político de
responsabilidade por tais males. Ao contrário – e é significativo que raras vezes isto seja
mencionado – boa e decisiva parte desses problemas pode ser imputada ao que o
sistema político fez, e faz, da administração pública. Vejamos os exemplos.
O gigantismo da folha de funcionários estatais se deve fundamentalmente ao
fato de que os governos usaram a administração pública para dar empregos que não
eram gerados pelo sistema produtivo, o que se deu, além disso, em um contexto de
estratégias clientelistas de reprodução política. Deve-se, também, à baixa capacidade da
sociedade em controlar o Estado nos períodos pré-autoritários.
A ineficiência do Estado pode associar-se sem dificuldades a distintos fatores
que operam em diversos níveis. A ineficiência das empresas públicas pode ser
imputada, entre outras coisas, à política de tarifas subsidiadas – para os trabalhadores e
as empresas – que tornou inviáveis programas razoáveis de manutenção e de
reinvestimento tecnológico; também, à política de terra arrasada das novas autoridades –
às vezes de outro partido e às vezes do mesmo. Quando mudam os mandos políticos,
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mudam também as equipes de assessores, os técnicos, as prioridades e, freqüentemente,


as políticas. Por outro lado, importantes setores sociais e espaços do sistema acadêmico
sancionam – com exceção de alguns países como, talvez, o Chile – a participação em
organizações do Estado de personalidades independentes, por considerar que isto
implica um aval partidário. Em conseqüência, geram-se círculos viciosos dos quais
resulta que há mais políticas de governo que políticas de Estado.
Portanto, o sistema político tende a introduzir fatores de partidarização,
irracionalidade e arbitrariedade na burocracia pública. Sem mencionar o vai-e-vem dos
regimes, da democracia ao autoritarismo e vice-versa, que tornam ainda maior a
arbitrariedade e a incerteza. Por isso, reiteramos, a administração pública é, em grande
parte– e provavelmente continuará sendo – o resultado do que o sistema político dela
fez, e faz, além de outros fatores históricos. Por exemplo, não poucas vezes, políticas
de antecipação de aposentadorias, indenizações, etc. orientadas para a redução de gastos
com pessoal, produzem um esvaziamento dos melhores quadros profissionais, que têm
oportunidades alternativas, ou no setor privado, ou no estrangeiro. Ou,
paradoxalmente, como ocorreu na Argentina, muitos deles saem da folha e reingressam
como contratados porque, afinal, para fazer certas coisas é preciso alguém qualificado.
O paradoxal dessa situação é que, reingressando no Estado desta maneira, tornam-se
significativamente mais onerosos porque seus honorários passam a ser regulados por
um mercado que está começando a reconhecer os que têm altas competências
profissionais como trabalhadores simbólicos, e a remunerá-los de acordo com isso.
De todo modo, alguns dos movimentos mencionados podem vir a ser
convenientes em duas perspectivas. A primeira consiste no avanço de uma
racionalidade meritocrática e a segunda, na redução do volume global do gasto. A
condição para que essas duas vantagens comparativas valham a pena, seria que
realmente se insiram em um processo de reforma estrutural do Estado visando um perfil
de promotor altamente eficiente na consecução dos princípios de qualidade e eqüidade
dos serviços.
A reforma das lógicas de funcionamento do Estado implica abordar questões
como o aumento do grau de liberdade dos diversos segmentos institucionais na
execução de políticas e em temas como a fixação de salários e recrutamento de pessoal,
redução dos regulamentos que governam os gastos e, especialmente, os controles ex
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ante, orçamentos para períodos de dois ou três anos, maior flexibilidade no movimento
entre contas, procedimentos rigorosos de seleção de pessoal profissional, contratos de
duração entre dois e quatro anos, etc. (Cf. Crozier 1988).
Se observarmos os eixos centrais do que se convencionou chamar “reforma do
Estado”, percebemos que vários desses problemas não estão sendo considerados com
suficiente energia.5 O esforço principal – já foi dito – é, em geral, dirigido para a
redução da estrutura estatal, dos gastos operacionais e da folha de funcionários. É, pelo
menos, discutível que isto possa produzir, por si só, efeitos importantes em termos da
eficiência e da transparência do Estado no cumprimento de seus objetivos, quaisquer
que eles sejam.
Na última década, contudo, surgiram duas inovações relevantes neste quadro,
associadas à duração e à composição das equipes condutoras do setor educação.
Pelo menos na Argentina, no Brasil e no Chile pós-autoritarismo, essas equipes
tendem a permanecer mais tempo em seus cargos que as precedentes. No Chile há
equipes que já permaneceram oito anos. No Uruguai – cujo governo da educação
consiste em um órgão coletivo e colegiado eleito com intervenção do Parlamento –
houve conselheiros que foram mantidos após a mudança do governo Lacalle para o de
Sanguinetti. Na Argentina e no Brasil, ou em outros paises, como a República
Dominicana, a duração das equipes nacionais tem sido bem mais breve, mas tendeu-se a
manter no setor os profissionais formados e eficientes, substituindo lentamente os
funcionários com formação e eficiência inferiores. Na República Dominicana várias
equipes profissionais permaneceram depois da mudança do governo do Presidente
Josquín Balaguer e da posse de Leonel Fernandez. Em vinte porcento das províncias
argentinas e em alguns estados brasileiros, tende-se também a manter as equipes nos
cargos, pelo menos durante um período eleitoral e, também, quando se reelegem
governadores, o que ocorre com certa freqüência. Isto é, sem dúvida, um fator de
estabilidade no desenvolvimento de políticas e uma condição necessária (ainda que não

5 Há, por certo, exceções, que se refletem em algumas mudanças significativas. Na Argentina, por
exemplo, pode ser mencionada a generalização do Orçamento por Programa e sua aprovação
antes de iniciar-se o ano de execução, o estabelecimento de salários razoáveis para o nível de
direção e coordenação de programas, nos ministérios, a paulatina introdução do juizado oral, de
forte impacto sobre a igualdade no acesso à justiça rápida, o progresso na definição do papel de
planificação, avaliação e convenção pelo Ministério da Educação e o maior controle das empresas
privadas.
17

suficiente) para que as políticas possam instrumentar uma intervenção estatal com
objetivos – ao menos – de médio prazo. 6
A composição das equipes de condução do setor educativo modificou-se
consideravelmente. Embora haja particularidades importantes em cada um dos países,
em todos eles participam – tal como se antecipara na apresentação – certos perfis de
“trabalhadores simbólicos”: pesquisadores que fizeram seu itinerário em instituições
acadêmicas dinâmicas, ou em organismos internacionais, decidem, por si mesmos,
ingressar na política através de cargos eletivos, ou são convocados por governos de
perfis político e ideológico diversos (Alfonsín, Menem, Sanguinetti, Alwin, Frei, Borja,
Balaguer, Fernandez, etc.) para serem ministros, secretários, diretores de programas, etc.
Um exemplo de fora do setor educativo é a nomeação de Domingo Cavallo para o
Ministério da Economia da Argentina, que convocou um número importante de
funcionários provenientes de outro circuito de instituições acadêmicas ágeis, como o
IERAL, da Fundação Mediterrânea, por exemplo,
nutrido por egressos de universidades norte-americanas de alto prestígio.
Outro ainda, Fernando Henrique Cardoso, realiza uma carreira política que
termina na presidência. No que se refere à convocação para postos executivos, não se
trata sempre, necessariamente, de melhorar com isto a capacidade profissional instalada
no aparato estatal – ainda que combinada com outras de efeito parcial – mas,
fundamentalmente, de algo como incrustar nos níveis de decisão esses ex-acadêmicos ou
funcionários internaciona is, dando-lhes margens de liberdade e de recursos
relativamente significativas. Convivem nesses espaços com colegas recrutados, por
mérito, de outros espaços, tais como escolas inovadoras da própria política e estruturas
intermediárias de gestão. Em muitos países convivem, também, com elementos
recrutados segundo uma lógica clientelista ou corporativista, de acordo com velhas
práticas que não deixaram de existir e de serem exigidas. 7

6 É sugestivo o fato de que pelo menos dois dos ministros da educação desta etapa tenham sido
“premiados”: Ricardo Lagos, do Chile, e Jorge Rodríguez, da Argentina, deixaram seus cargos
para assumir funções de igual ou maior hierarquia. No caso deste último, sua substituição por
Susana Decibe, que também teve uma passagem significativa por instituições acadêmicas
dinâmicas e que já havia ocupado o cargo de Secretária de Programação e Avaliação Educativa,
demonstra claramente a vontade de assegurar continuidade no setor da educação.
7 É interessante a leitura de um anúncio, veiculado em um diário de Buenos Aires, no qual a

administração eleita para o governo autônomo da cidade decidiu solicitar aos candidatos a cargos
técnicos seus Currícula Vitae, o que provocou polêmicas e resistências entre os líderes partidários
18

Sem embargo, e apesar de tudo, a inovação não deixa de ser importante em


termos da tradição de recrutamento das equipes executivas do setor educativo,
habitualmente em grupos partidários leais. Mas, em geral, poder-se-ia observar que esta
persistente tendência à incorporação de trabalhadores simbólicos, particularmente dos
“pesquisadores pedagogos reformadores” pode ser vista como uma forma pouco
tradicional e, portanto, inovadora, de renovação dos partidos. Por cima de uma tradição
em que era comum que para os cargos no sistema decisório público se privilegiassem a
lealdade, o esforço e a antigüidade partidárias, se insere a prática de premiar a produção
e a criatividade, intelectuais e pedagógicas. Isto implica, além disso, abrir um espaço à
inovação e à criatividade que – supõe-se – estes novos atores podem gerar.
Por outro lado, esta inovação não deixa de introduzir, junto com as novas
oportunidades, novos conflitos e tensões, que têm, em cada país e setor, sua
especificidade. Em um contexto onde o discurso hegemônico de uma parte significativa
dos grupos de poder confunde reforma com redução do Estado, dando pouca atenção à
necessidade de que haja um novo Estado, com novas e fortalecidas funções, ou, ao
contrário, em que entre as lógicas de funcionamento do mesmo aparece,
paradoxalmente, esta nova realidade: estabelece-se um consenso social prévio a respeito
das novas funções que o Estado Nacional tem de cumprir no setor, e um número nada
desprezível de intelectuais deixa de focalizar a explicação em seus trabalhos, passando à
ação, transformando-se em “trabalhadores simbólicos” que – em adequada articulação
com outros – podem contribuir para a criação desse Estado, para uma transformação
democratizante, a partir de suas novas funções como atores-chaves dos processos de
reforma educativa.
Nesse novo papel, discriminam uma série de obstáculos, mas, também, um bom
número de facilitadores das reformas e das transformações do ensino.

de bairros, que se consideravam com direito a exercê-los por seus méritos como cabos eleitorais na
campanha que levara à vitória.
19

3 COMO SE PRODUZEM AS REFORMAS EDUCATIVAS DOS ANOS 90?

Ninguém pode hoje duvidar de que haja na América Latina os processos de


transformação e reforma educativas a que se fez referência nas páginas anteriores. A
existência de um processo de transformação e reforma no interior das instituições
estatais encarregadas de impulsioná-las que vá além das características assinaladas –
maior continuidade e mudança de perfil das equipes de governo – é, em contrapartida,
menos evidente. Contudo, estas duas características, combinadas com a necessidade de
se prestarem contas, sempre presente nas sociedades democráticas, e com o fato de
haver “algo por fazer”, foram configurando certas tensões no acionamento das
instituições encarregadas da condução das reformas educativas que – sendo resolvidas
satisfatoriamente – podem constituir o início de uma dinâmica de inovação permanente
no seio do aparelho estatal.
Tais tensões podem ser reconstituídas a partir da identificação dos aspectos em
conflito, que não deveriam ser assumidos como dilemas. Isto quer dizer que o estilo de
gestão a ser construído deveria assumir que existe o problema de compatibilizar,
articular ou harmonizar questões que parecem colidir permanentemente. Da efetiva
articulação dessas questões pode depender a viabilidade das reformas e seu impacto na
direção e articulação das transformações. Por isto, cada uma das tensões encerra um
desafio, cujo maior ou menor grau de superação condicionará, em alguma medida, o
tipo de reforma e transformação educativas que irão ocorrer em cada país, já que “a
reforma não é um objeto que possa ser instalado em um lugar determinado, nem tem
propriedades essenciais que estão à espera de serem descobertas” (Popkewitz 1995, 41).
É, antes, o resultado de uma dinâmica particular estabelecida pelos atores em torno dos
pontos da agenda.

1. As tensões acerca da função da educação.


A orientação educativa no início da reconstrução da democracia na América do
Sul foi caracterizada em pesquisa realizada em um dos países da região como “des-
hierarquização cognitiva” (Braslavsky e Tiramonti 1990). O estilo de gestão assim
qualificado consistia em que os atores responsáveis pelos desenho, execução e avaliação
20

das políticas educativas tendiam a atribuir-se funções vagas e indeterminadas,


desvinculadas dos processos de transmissão de conhecimentos.
As gestões de “des-hierarquização cognitiva” se associavam ao que se passou a
chamar esvaziamento de conteúdos significativos das escolas e colégios e a uma visão da
democracia como um conjunto de regras de jogo, fundamentalmente vinculadas à
participação dos atores e não à eficiência de tal participação na melhoria da qualidade de
vida. Desse ponto de vista, era coerente que nas primeiras fases da recuperação
democrática na América do Sul se desse mais atenção às modificações nas pautas ou
regulamentos de convivência – como ocorreu, por exemplo, nos casos argentino,
uruguaio e de alguns estados brasileiros – que às questões ligadas à distribuição e
enriquecimento do saber.
Por outro lado, tais gestões percebiam também os estragos causados no ensino
pela deterioração das condições de vida e trabalho de significativos setores da
população. Em conseqüência, visualizavam claramente a necessidade de garantir
oportunidades de educação equivalentes, a partir da compensação de diferenças através
de programas estatais que fornecessem aos alunos de setores populares aqueles
elementos imprescindíveis à participação razoavelmente bem sucedida nos processos
educativos: materiais, livros, cadernos, etc. Em tal contexto se entende que em alguns
países – o primeiro governo da recuperação democrática chilena é um exemplo – se
tenha dado atenção especial à elaboração de programas compensativos.
Os progressos nas elaborações conceituais da sociologia crítica da educação e do
cognoscitivismo pedagógico, por um lado, e o lugar privilegiado junto à opinião pública
alcançado pelas teorias sobre a sociedade do conhecimento, pelo outro, contribuíram
para dar outro significado ao contrato do sistema educativo e das escolas com os
conteúdos e, em particular, com o conhecimento. Este novo contexto ideológico
obrigou a uma mudança na ênfase das gestões educativas que, pouco a pouco, foi
posicionando o conhecimento no centro das preocupações. É provável que esta
mudança seja o que está na base da convocação dos “intelectuais reformadores”, e da
disposição para assumir responsabilidades em conjunto com eles.
Sem embargo, e provavelmente em benefício de um equilíbrio da busca dos
objetivos de qualidade e eficiência com a dos de eqüidade e eficácia, a re-hierarquização
cognitiva por parte das administrações da educação, coexiste com a presença de outra
21

série de preocupações, tais como a compensação de diferenças. Na hora de decidir e


executar as políticas educativas, a compatibilização dessas questões, geralmente
enfatizadas por diferentes setores da administração, é um dos desafios a enfrentar.

2. As tensões entre consenso social e eficiência

Foi proposto aqui que a re-hierarquização do conhecimento como elemento


central das reformas do anos 90, como uma das colunas vertebrais que orientam os
processos de seleção dos funcionários do setor e sua atuação, vem da existência de um
forte consenso social sobre a importância do conhecimento. Contudo, para além desta
questão de alto nível de abstração, o grau de consenso social sobre a necessidade da
reforma educativa é diferente nos distintos países da América Latina., o que determina,
por um lado, uma parte importante da viabilidade e do alcance das reformas e, por
outro, o tipo de ações às quais se deve dedicar uma porção significativa da energia
institucional.
Com efeito, os casos nos quais não há um consenso forte no conjunto de atores,
estatais e de fora do Estado, que intervêm no cenário educativo, é necessário consumir
um importante volume de energia institucional, e tempo, na conquista dos montantes de
orçamento necessários para a educação e no manejo das tensões, dos atritos e conflitos
envolvidos em cada área objeto de políticas.
É possível que o Chile, neste momento, seja o país onde exista o mais alto nível
de consenso a respeito da necessidade de políticas educativas voltadas, a partir do
Estado, para a transformação da educação, bem como de seu caráter prioritário no
conjunto dos gastos públicos. Isto – somado às tendências econômicas
comparativamente mais favoráveis – facilita a conquista para esta finalidade de
percentuais relevantes do orçamento e reduz o dispêndio de energia em árduos debates
com os atores-chaves para a educação – de fora do Estado, como a Igreja Católica (em
quase todos os países da região) e de segmentos de outras áreas do Estado e do
governo.
No Uruguai, a falta de um consenso forte, explícito, sobre a necessidade de
produzir uma mudança na educação impôs às próprias autoridades do setor, no início
do segundo governo Sanguinetti, a necessidade de “fazer campanha” pública para que o
22

Parlamento aumentasse os recursos previstos para o ensino no Projeto de Orçamento


do Poder Executivo.
Na Argentina, a ausência de consenso entre a hierarquia da Igreja Católica e os
setores afins da educação leiga, assim como a pretensão de setores dessa igreja de impor
uma orientação fundamentalista aos conteúdos curriculares, obrigou as autoridades do
setor a destinar, durante quase um ano, um volume significativo de energia e a manter
numerosos debates públicos e privados, levando a infindáveis negociações para chegar a
fórmulas que pudessem ser razoavelmente aceitas por parte importante dos setores
envolvidos e afetados pela reforma educativa.
A segunda dimensão, no que se refere à implantação, consiste em que, muitas
vezes, os sindicatos têm sido opositores, ou críticos não construtivos dos processos de
reforma – há exceções altamente significativas, como a Associação Dominicana de
Professores.8 De modo geral, esta oposição responde às mudanças que, em algum
momento, as reformas trazem para as regras históricas de jogo no sistema de ensino,
como a inamovibilidade de cargos, a antigüidade como critério central de aumento
salarial, a exigência de capacitação, a mudança no sistema de caracterização de uma
situação de enfermidade, etc. Algumas dessas mudanças, a primeira delas
particularmente, são grandemente temidas em contextos de desemprego e instabilidade
trabalhista crescentes, como são os cenários de numerosos países da região.
Reverter essa situação é extremamente difícil em um contexto de desconfiança
derivado da constante pressão para o aprofundamento do ajuste fiscal e requer, além
disso, tempo, que, às vezes, na ânsia de resultados rápidos, não se acredita ter.
Perseguindo uma eficiência imediata, supostamente possível, deixa-se de insistir na
procura de consensos com atores significativos do quotidiano escolar, com o que se
perdem oportunidades de construir condições para uma eficácia real através de
processos menos rápidos porém, em geral, também mais eficientes.
Obter equilíbrios razoáveis entre a construção de consensos e a execução
eficiente das políticas educativas é o segundo dos desafios a encarar. O mesmo está
associado, ainda, a outro grupo de tensões. Trata-se das que existem entre a tentação

8 No Uruguai, o sindicato do ensino secundário expulsou docentes que colaboraram com


atividades da reforma, entre eles um dirigente histórico que havia sido preso e exilado durante o
regime militar.
23

dos Estados nacionais de voltarem a executar por si mesmos e a necessidade de alcançar


a mobilização de uma grande diversidade de atores nos processos de transformação do
ensino.

3. As tensões entre executar e dinamizar e instrumentar

A questão da construção de consensos no âmbito da transformação educativa


não se esgota com o acordo sobre o que fazer e o que ensinar, mas abarca, também,
todos os aspectos ligados às tomadas de decisão e à execução das políticas educativas.
Supondo que se consiga um acordo sobre o fato de que os sistemas educativos
existem em função de um contrato social que lhes impõe a reprodução e o acréscimo de
conhecimentos, no contexto de certos modos de fazer, próprios da modernidade, e de
valores democráticos compartilhados e que haja consensos relativamente amplos a
respeito do que significa esse contrato, será necessário construir efetivamente o lugar do
novo Estado no cenário educativo, no meio do conjunto de atores que se articulam no
mesmo acordo.
Nas últimas décadas, tal conjunto de atores se diversificou e cresceu o papel de
cada um deles: em muitos países, ampliou-se o setor privado; os municípios tenderam a
se envolver cada vez mais no setor e, no caso dos países federativos, os estados ou
províncias alcançaram maior presença.
Por outro lado, o processo de recuperação de uma função para o Estado
Nacional parece gerar, em um primeiro momento, uma necessidade de execução direta
de ações até aos estabelecimentos de ensino. Nos países onde não estão encarregados
da prestação direta dos serviços, como a Argentina, por exemplo, o primeiro impulso
consiste em reinventar ações que beneficiem diretamente as escolas, evitando a
intermediação das administrações estaduais, ou provinciais. Trata-se de buscar uma
conexão imediata entre os organismo do Estado Nacional e cada uma das unidades
escolares. Esta busca é alentada fundamentalmente por alguns funcionários de origem
política, e com papéis predominantemente políticos, provavelmente porque as ações
diretas com as escolas apareçam como sendo as que podem ser executadas mais
rapidamente, antes até que se avance em consensos para políticas nacionais de médio e
24

longo prazos e – ao mesmo tempo – como as que permitem uma capitalização eleitoral
mais rápida.
Essa geração de políticas de execução direta tem muitas facetas. Permite,
efetivamente, dinamizar com relativa rapidez um conjunto de estabelecimentos e atores.
Mas, ao mesmo tempo, pode dar início a um foco de resistência por parte daqueles
outros atores – administrações estaduais e diretores – que haviam sido os detentores do
poder em processos anteriores de delegação, no calor da alienação de responsabilidades
por parte dos Estados. Por outro lado, pode parecer contraditória em relação às
propostas de descentralização e de fortalecimento da autonomia das instituições
educativas.
Como alternativa se propõe que o Estado nacional dinamize e instrumente todos
os outros atores do cenário educativo, quer dizer, que assuma realmente as funções
mencionadas mais acima – através de ações de pesquisa e desenvolvimento, de
capacitação de funcionários do nível médio e de assessoramento – mais que a execução
direta nos estabelecimentos de ensino. Esta alternativa é promovida com maior
intensidade pelos funcionários com maior experiência em pesquisa e com maior
capacitação, entre eles a maior parte dos “intelectuais reformadores” e, em alguns casos,
por funcionários com passagem por espaços descentralizados, ou por gestões estaduais
ou provinciais, que mantêm uma dupla perspectiva: a da posição que ocupam nos
organismos centrais e a da que ocupavam na administração estadual ou provincial.
Outros funcionários oriundos dos estados ou províncias demorariam, por outro lado,
um certo tempo para perceber a diferença nas possibilidades de um e outro papéis e
tenderiam a tentar recriar o tipo de atividades que teriam desempenhado com êxito em
seus postos de origem, sem enxergar outro tipo de organização para os novos Estados
Nacionais.
O desafio consiste, neste caso, em selecionar adequadamente alguns programas e
áreas para intervenção direta, em concerto, porém, com outros atores, sem que isto
iniba ou desvie da necessidade principal, a de dinamizar e instrumentar o conjunto dos
atores que intervêm nos processos de transformação, cuidando para que as ações de
intervenção direta sirvam para dar satisfação ao contexto de referência das autoridades
políticas, cumprindo os requisitos de qualidade acadêmica, que exigem os quadros de
25

referência dos trabalhadores simbólicos, e de segurança jurídica e administrativa, que


invocam a satisfação das estruturas permanentes.
A partir do que foi desenvolvido até aqui, pode-se perceber que as tensões
mencionadas, além de outras, têm que ver com os variados contextos de referência aos
quais se ligam os diversos atores que coexistem e cooperam nos processos de gestão das
reformas educativas.

4. As tensões derivadas da conexão com diferentes contextos de referência

Com efeito, numa apresentação muito esquemática, enquanto os funcionários


com responsabilidade política (ministros, secretários, etc.) têm por contexto de
referência principal o governo e o sistema político, os intelectuais inseridos em outras
funções do Estado têm por contexto principal de referência o sistema acadêmico e o
setor da opinião pública composto por seus antigos leitores. Os pedagogos
reformadores têm como marco de referência as escolas e os estratos intermediários da
administração. Os funcionários de longa carreira na administração pública e o segmento
administrativo em geral, têm por principal contexto de referência o sistema normativo.
Uma das primeiras questões que chamam a atenção dos “analistas simbólicos”
quando interagem com os funcionários de origem ou, pelo menos, com larga carreira
política, é a análise de tudo que se propõe do ponto de vista do ministério e do
presidente. Estes novos membros das administrações educativas têm, às vezes, a
sensação de que as reformas de ensino são produzidas para dez ou doze pessoas, cujas
avaliações de tendências e de fatos têm, por vezes, mais peso na hora de ponderar as
políticas a seguir que as de qualquer outro grupo ou setor que se manifeste através da
imprensa independente. Por outro lado, uma das peculiaridades que lhes parece mais
discutida pelos quadros de origem mais “política” é sua baixa disposição para a negação
de princípios em favor da viabilidade dos projetos.
Por último, o fato de que o principal contexto de referência dos funcionários das
áreas administrativa e contábil, e de muitos docentes transformados em técnicos, 9qual

9 Em quase todos os países da América Latina, o universo no qual se selecionavam os especialistas


para os órgãos técnicos dos ministérios da educação era o dos professores, tendendo-se a respeitar
a antigüidade – e, no Uruguai por exemplo, critérios mais meritocráticos ou, em outros exemplos,
26

seja, o sistema de regras e rotinas de procedimento, faz que prefiram seguir as normas,
ainda que estas impeçam, retardem ou dificultem a execução das políticas. Uma
freqüente conseqüência dessa conhecida lógica da burocracia pública é a alienação da
responsabilidades pelos resultados. De acordo com os depoimentos de vários dos
entrevistados em diversos países, os funcionários da estrutura permanente dos
ministérios – sempre há exceções – não se sentem responsáveis pelo resultado de suas
ações, apenas pelo cumprimento das normas, enquanto os funcionários de origem
política ou intelectual tendem a preferir violar ou alterar as normas antes que arriscarem
o resultado das políticas, ou a implantação dos projetos.
Por outro lado, os contextos de referência dos funcionários políticos e
burocráticos fazem que, nem uns, nem outros, tendam a utilizar os resultados das
pesquisas empíricas, nem os dos comparativos internacionais. Para os primeiros, é mais
importante a opinião geral instalada em seu contexto de referência. Para os segundos, é
a consistência das propostas com o que havia antes. Mas, enquanto os primeiros têm
maior flexibilidade para introduzirem novas fontes de informação e maneiras de analisá-
las, os segundos tendem a resistir a elas como forma de aumentar o monopólio que
exercem sobre a informação existente, sua forma de apresentação, seus métodos de
produção, etc. Percebem que enquanto não se ampliar o espectro de informações
disponíveis em um determinado momento, sua fonte de poder permanecerá inalterada.
Por outro lado, seu controle em questão de normas, procedimentos e rotinas,
procurando fazer que os outros atores estatais permaneçam na incerteza, define um
segundo nível de poder (Crozier e Firedberg 1990; Oszlak 1994).
Por seu lado, os intelectuais reformadores tendem a produzir novas
informações, a relacionar de novas maneiras as variáveis que as compõem – a produzir
novo conhecimento, enfim. Com tudo isto, perturbam, por assim dizer, a estrutura
administrativa – contábil e de nível médio tradicional – e geram, em determinados
momentos, expectativas excessivas a respeito dos produtos e processos que podem
fornecer, já que a informação sem processamentos político, estratégico e administrativo

como a Argentina, mais clientelistas. Um certo número de mestres e professores ascendia aos
órgão de planejamento, avaliação e elaboração de currículos, etc. Parafraseando a metodologia da
pesquisa social, pode-se definir que, em um primeiro momento, muitos desses tipos caíram em
“falácias de nível de ação”, operando nos ministérios como se estivessem em escolas. Mais
recentemente, o novo contexto permitiu fazer-se de outra maneira a seleção de perfis da mesma
origem, capazes de distinguir as especificidades de cada nível de ação. São os que se passaram a
denominar “pedagogos reformadores”.
27

adequados não é nunca, por si só, um insumo suficiente para garantir qualquer gestão.
Os intelectuais, de seu lado, carecem às vezes de empatia com os políticos, suas
urgências e seus problemas de manejo de restrições ou condicionamentos gerados, ou
no sistema governamental, ou no político.
O desafio consiste, neste caso, em compatibilizar as valências com os diversos
contextos de referência, em diversificar as fontes de informações e, em conseqüência, de
poder. Isto nem sempre fica claro, particularmente porque dar atenção a estas questões
implica um manejo extremamente complexo de tempos diferentes.

5. As tensões entre os tempos políticos, profissionais e burocráticos.

Um novo olhar para os processos de decisão específicos das reformas educativas


latino-americanas da década dos noventa permite especificar algumas das idéias centrais
geradas na teoria das decisões públicas.
Com freqüência, os processos de decisões são visualizados como uma seqüência,
em termos de identificação dos problemas, sua geração como uma “questão pública”,
introdução na agenda de decisões mediante um complexo jogo que envolve diversos
atores públicos e privados, e decisão. Este novo olhar sugere, contudo, que os
processos não são tão lineares e que há diversos caminhos para se chegar à decisão e,
em seguida, ao processo de implantação de acordo com seu conteúdo substancial e a
trama específica de atores que se configura em cada caso. Às vezes, os custos não
monetários (tempo, energia, negociações, etc.) são tão altos, e tão complexa a rede de
atores a envolver – públicos ou privados – para que a decisão tenha o consenso ou
respaldo suficiente que, finalmente, ou não se toma a decisão, ou se toma quando já
passada a melhor conjuntura para fazê-lo.
Isto implica que se requer um bom acoplamento entre os níveis político e
técnico-profissional para não consumir inutilmente energias política e profissional e para
encontrar os melhores caminhos para cada processo decisório.
Uma das principais tensões para conseguir tal acoplamento parece residir na
existência de quatro tipos de tempos cujas lógicas são distintas: os tempos políticos, os
tempos técnico-profissionais, os tempos burocráticos e os tempos pedagógicos.
28

Os tempos políticos se definem a partir dos objetivos e táticas do governo, ou


do ministro da educação, no contexto da relação de forças políticas, das necessidades de
consolidar ou estabelecer posições em função das ações de outros atores políticos, ou de
tensões geradas com atores corporativos. Por outro lado, os tempos políticos se regem
por calendários externos aos processos de reforma e transformação educativas e estão
associados às agendas eleitorais.
O tempo técnico-profissional se define como o caminho necessário para
construir determinado produto do conhecimento, convincente pelo aval empírico e
argumentativo que possa acompanhá-lo, dando-lhe maior legitimidade e consistência.
Tal caminho, aparentemente, tem pouco a ver com as agendas eleitorais ou, mais
genericamente, com os tempos políticos. Contudo, seu não acoplamento a ela, devido,
por exemplo, à ausência de etapas independentes que coincidam com a previsão de
mudanças nas equipes governamentais, pode levar à perda de grandes investimentos de
tempo e dinheiro, pela incapacidade de demonstrar às novas equipes a necessidade, e
viabilidade de se continuar com certas políticas e estratégias.
Os tempos burocráticos se definem como o caminho necessário para cobrir
todos os passos definidos pelas normas sem correr riscos administrativos, nem jurídicos.
Em uma pesquisa já citada (Braslavsky e Tiramonti 1990) pode-se detectar que o receio
de um inquérito está fortemente presente entre os funcionários de carreira. No
contexto do ajuste estrutural que existe na Argentina, por exemplo, tal temor cresce a
ponto de orientar um grande conjunto de ações que tendem para o imobilismo.
Quando as alianças técnicas e políticas são sólidas e duradouras, é possível conquistar
importantes setores da administração e utilizar seus conhecimentos sobre normas e
procedimentos, enquanto ocorre que outro setor se sente marginalizado dos processos
desencadeados e deserta, ou termina agrupado em espécies de bolsões de ineficiência
que se transformam em receptáculos de funcionários refratários às mudanças.
Os tempos pedagógicos se definem pelo caminho necessário para que os atores
do quotidiano escolar processem e traduzam as políticas educativas e utilizem os marcos
de referência, os sistemas e as informações que surgem da dinamização do Estado, para
promover uma nova configuração do sistema educativo, para desenvolver em seu seio,
processos de genuínas inovações que passem além do cumprimento formal de novas
29

normas e requisitos. São, geralmente, os mais longos e os menos contemplados nos


processos decisórios dos Estados.
O desafio de compatibilizar os tempos políticos, os técnicos, os burocráticos e
os pedagógicos é uma das questões que requerem maior investimento de tempo e
energia institucionais. Há ocasiões em que é tão alto este preço que se foge do desafio e
as decisões deixam de ser tomadas. Mais ainda, toma-se uma quantidade de decisões
superior à capacidade técnica de executar tudo o que é preciso para aproximá-las das
escolas e utilizá-las em benefício de um melhor quotidiano educativo. Como parece que
o número de decisões que se podem implantar em um certo período de tempo é
limitado, a conseqüência desta segunda alternativa é que se termina demorando – ou
tornando ineficientes todas, ou grande parte delas.

6. As tensões entre o cumprimento das normas e a ação.

No início da década dos noventa as instituições voltadas para a definição e


execução de políticas públicas no setor da educação se regiam por uma série de rotinas e
procedimentos burocráticos gerados em décadas anteriores e que sofrera poucas
alterações. Tais rotinas e procedimentos foram criados em correlação com sistemas
educativos pouco desenvolvidos, Estados solventes e relativamente ágeis e sociedades
pouco capazes de satisfazer necessidades educativas sem o concurso desses Estados.
Consistiam em numerosas etapas e controles prévios para a execução do orçamento,
segmentação orçamentária muito rígida, que permitia poucos movimentos de
compensação, no critério, imposto pelos ministérios econômicos, de que o que não for
gasto em um exercício se perde e o que se economiza vai para receitas gerais, na
existência de regulamentos que só quem os aplica conhece, o que faz com que os
executores nunca saibam quais são as regras do jogo, etc.
A primeira dificuldade que todo esse emaranhado de questões põe diante dos
novos funcionários de origem política, acadêmica ou pedagógica, é que poucas vezes
alguém lhes explica algo. Em nenhum dos órgãos de decisão e execução de políticas
educativas com que tomamos contato existe o procedimento do “briefing”, no estilo
dos organismos internacionais, ou um período prévio de passagem como nos países
30

europeus. Conscientes da necessidade de superar esta situação, algumas administrações


iniciaram a prática de aguardar seus sucessores, ou de se aproximarem de seus
predecessores, com o intuito de realizar uma transferência ordenada de gestões. Apesar
disso, várias vezes aconteceu que quem realizara o período de reconhecimento prévio à
tomada de posse no cargo acabou não sendo confirmado na hora de assumi-lo, ou que
os que estavam finalizando a gestão terminaram levando para suas casas uma parte
significativa das informações e da documentação mais relevante.
De todo modo, com o tempo, a maior parte dos funcionários de origem política
ou acadêmica que persistem em suas funções, encontram a forma de funcionar com a
emaranhada burocracia, em casos de baixa produtividade, ou de contorná-la, em casos
de alta produtividade. As peculiaridades na forma de alcançar a eficiência com o
contexto normativo existente variam grandemente em função de cada caso nacional.
Entre as formas de contorná-las, encontra-se o recurso ao financiamento
externo ou – em mais de um caso – a plana e simples violação das normas, seguindo o
princípio de que “o que importa é que seja moral, não que seja legal”. Isto faz que parte
importante dos novos funcionários se sinta permanentemente em situação de “liberdade
condicional”, porque têm mais computadores do que o que poderiam legalmente ter
comprado, ou porque financiaram viagens com os fundos destinados para diárias, ou
porque não se realizaram as convocações nos prazos e formas pré-determinados. No
caso do Uruguai, por exemplo, onde a corrupção é muito menor que a que existe em
países como a Argentina ou a República Dominicana, alguns casos desse tipo de
liberdades foram severamente punidos pela justiça em períodos anteriores, sem que,
contudo, jamais o fossem os casos de inação.
Para os funcionários de origem acadêmica ou política isto implica que, em certas
circunstâncias, correm, além disso, riscos de imagem em contextos nos quais a opinião
pública pode ter dificuldade em discriminar, diante de um descumprimento normativo,
se estão motivados pela busca de eficiência ou eqüidade, ou na de benefícios pessoais,
partidários ou corporativos contrários à ética. 10

10Um “intelectual reformador” típico que foi ministro do presidente Alfonsín, aceitou que em sua
área se estabelecesse um mecanismo de compensação de remuneração entre pessoal contratado e
pessoal do quadro permanente através da criação de um “banquinho”. Quando se contratava um
profissional, acordava-se com ele que um percentual dos honorários seria depositado em uma
espécie de conta interna para ser redistribuído entre o pessoal do quadro permanente cujos
rendimentos eram muito inferiores. A questão tornou-se pública e houve quem, nos meios de
comunicação, tentasse apresentar este fato como um caso de corrupção da administração política e
31

Além dos riscos jurídicos e de imagem que se correm, a persistência de normas e


procedimentos inadequados a uma gestão eficiente é uma fonte permanente de
perturbações, tensões e de desvio de energia institucional, o que em algumas situações
pode representar custos importantes, monetários ou não. Freqüentemente, esta questão
age sobre o atrito entre o tempo político e o profissional, prolongando o último,
aumentando o hiato entre ambos, certamente com um agravante.
Na realidade, dos quatro tempos que interagem nos processos de gestão das
políticas educativas – o político, o profissional, o burocrático e o pedagógico – o único
programável é o profissional. O político não o é porque depende de variáveis externas
ao âmbito institucional educativo, o burocrático porque os profissionais e
freqüentemente também os funcionários políticos trabalham na incerteza a respeito das
restrições burocráticas, e o pedagógico porque nele intervém uma variedade de atores,
com suas respectivas e distintas subjetividades. Contudo, os profissionais e os políticos
são os únicos que têm o interesse, e eventualmente o poder, para remover essas
restrições burocráticas, o que logram em alguns países, como o Chile, com mais
velocidade que em outros.
De todo modo, deve-se reconhecer que, em todos os casos, as gestões
encarregadas das reformas educativas dos anos noventa estão conseguindo que o polo
da execução predomine sobre o das restrições normativas. O maior risco que isto
implica, em um contexto de baixa renovação das normas com vistas a facilitar as
reformas, é que, muitas das vezes, isto é conseguido através de uma espécie de
onipotência pelo fazer, o que implica em forte desgaste e um certo costume pelo
desapreço normativo, altamente impróprio nos contextos de corrupção existentes em
numerosos países da região. Com efeito, a suspeita da opinião pública a que nos
referimos é fundada em que, tanto se violam normas para executar as reformas, quanto
se pode violá-las para alcançar benefícios pessoais não pertinentes, para o tráfego de
influências ou, no pior dos casos, em alguns países, pura e simplesmente para roubar.
Por isto, o desafio neste caso consiste em redefinir todos os procedimentos, e os
métodos utilizados para estabelecê-los, para que se tornem mais ágeis, transparentes e
condizentes com uma execução descentralizada de programas e projetos com controle
de resultados e auditorias, antes que com minuciosos controles prévios de passos

dos funcionários do quadro, semelhante a outros que, sem dúvida alguma, perseguiam propósitos
32

impossíveis de se cumprir, tais como – relatado para o caso do Uruguai – o


fornecimento de números de cédulas para centenas de entrevistadores, a serem
informados no momento do término da tarefa como requisito indispensável para que
cada um deles pudesse cobrar uns poucos dólares.

7. As tensões entre a necessidade, a disponibilidade e a utilização de


competências e conhecimentos.

Todos os pesquisadores reformadores e a maior parte dos trabalhadores


simbólicos ocupados no setor da educação nos Estados latino-americanos concordam
em assinalar a necessidade de contarem, eles mesmos e seus colegas e membros de
equipes, com uma série de competências profissionais que poucos desenvolveram:
polivalência, audácia para enfrentar desafios, abertura multicultural e capacidade de
discernimento para transferir experiências de outros países e contextos, domínio de
idiomas estrangeiros, capacidade para comunicar projetos e resultados a diferentes
públicos e com distintas linguagens, percepção da necessidade e conseqüência na
orçamentação de toda nova iniciativa, disposição e habilidade para negociar,
treinamento para trabalhar em equipes multidisciplinares e capacidade de desenho,
acompanhamento e monitorização de processos complexos.
São concordes, também, em assinalar que essas capacidades não se adquirem
através de nenhum estudo sistemático, nem tampouco através da experiência no
desempenho de funções públicas tal como era feito até muito pouco tempo atrás.
Por outro lado, os poucos estudos que existem acerca da utilização de resultados
de pesquisas na elaboração e implantação de políticas educativas assinalam que são
poucas as pesquisas utilizadas entre pedagogos e políticos, entre outras razões, porque as
que se produzem são distribuídas entre os produtores, e não entre os potenciais usuários
ou, então, porque têm outros propósitos que não orientar a tomada de decisões – apesar
do que possa ser declarado em contrário.
Na realidade, a baixa utilização de resultados de pesquisas entre alguns dos
atores das reformas pode ser associada a um problema muito maior: a relação entre a

de enriquecimento pessoal ilícito.


33

ação e a pesquisa no campo da educação, que é extremamente conflituosa e


contraditória (veja-se, por exemplo, Briones et al 1993). Os que estão na ação podem
desenvolver certa tendência refratária em relação à utilização de certo tipo de resultados
de pesquisas que sustentem uma crítica aberta à sua prática e seus resultados. Este
fenômeno – muito conhecido e ressaltado quando se tratam temas relacionados com o
ensino, por exemplo – não é alheio aos que decidem políticas públicas, em especial aos
que têm outros contextos de referência que não o acadêmico. Por outro lado, os que,
no contexto de possibilidade de movimento em direção à ação, decidiram permanecer
na pesquisa acadêmica, soem sustentar em mais de um caso nacional – como o
assinalam Cesar Coll, na citação transcrita no início deste trabalho, e José Joaquín
Brunner, na obra também citada – seu suposto monopólio da capacidade crítica. Isto
provoca uma tensão que leva à estruturação de um círculo vicioso de dissociação entre
produções do tipo acadêmico e produções orientadas pela necessidade de
desenvolvimento, ou realizadas no calor mesmo desse desenvolvimento, com a
inevitável conseqüência do empobrecimento de ambas.
Poderia parecer, em geral, que há mais conhecimentos na gestão pública dos que
os que se utilizam, mas, ainda assim, tudo que se utiliza é insuficiente e tem certas
distorções benevolentes em relação à multiplicidade de pontos de vista possíveis e –
sobretudo – não bastam para desenvolver as competências necessárias a um exercício
mais eficaz e eficiente da função pública.
Em certas ocasiões, tenta-se cobrir este vazio com cursos, seminários e outros
tipos de espaços formativos equivalentes aos espaços do mundo acadêmico. Esta
estratégia parece ser inadequada para promover a formação das competências
necessárias, algumas das quais têm mais a ver com a disponibilidade de uma sólida
formação geral e com forte circulação em distintos contextos e tipos de instituições –
incluídas as unidades de prestação de serviços educativos – que com aprendizados
profissionais específicos que possam ser realizados em tal ou qual carreira universitária
ou curso de capacitação.
O desafio neste caso parece ser a abertura em direção a outros cenários, em
particular em direção às redes de instituições de ensino bem sucedidas de outros países
do mundo e em direção a espaços acadêmicos que tendam a renovar e sustentar uma
produção acadêmica voltada para o melhoramento incremental de decisões – sem
34

perder, por isto, seu distanciamento em relação às políticas em curso, o fortalecimento


das equipes como tal, e a promoção, nas equipes, das competências que poucos
funcionários públicos individualmente possuem ou podem vir a possuir em curto prazo.
A introdução nos espaços de gestão de políticas públicas de práticas de leituras críticas,
seminários de análises de casos, referimentos e relatos de experiências está começando a
ser visto como indispensável para o melhoramento da gestão das reformas. O uso de
bases de dados e a participação em redes de intercâmbio é cada vez mais freqüente. O
intercâmbio regional é muito fluído atualmente, assim como os “empréstimos” de
desenvolvimentos alheios, que permitem evitar erros e antecipar melhoras nos
processos.11

8. As tensões nas equipes de trabalho: a respeito da busca do profissionalismo


em um contexto de ajuste fiscal.

A inserção de novos elencos no seio dos ministérios da educação, ou seus


equivalentes, para condução das reformas educativas, assumiu diferentes modalidades,
entre as quais podem-se distinguir duas que, em nenhum caso, existem em forma pura.
A primeira consiste em formar uma equipe para que opere em um espaço
institucional próprio, com autonomia e ligada somente ao mais alto nível ministerial.
Esta equipe não apenas produz decisões como se encarrega também de sua implantação,
articulando-se diretamente com as unidades de gestão do sistema educativo. A inserção
da equipe nas estruturas administrativas e técnicas do quadro é, quando ocorre, um
processo posterior – e gradual – que ocorre quando a equipe reformadora já tenha
adquirido legitimidade dentro e fora do sistema educativo. De algum modo a inflexão
da transformação educativa produzida pelas políticas e estratégias do governo Pinochet,
desviando-a em direção a uma reforma educativa democratizante deu-se, no Chile,
através deste caminho.

11 Três interessantes casos a esse respeito são os que se referem ao programa chileno das 900
escuelas, à Nueva Escuela Colombiana, e às sucessivas aprendizagens a partir da metodologia
desenhada para a transformação curricular na República Dominicana, no contexto de seu Plano
Decenal, que facilitou o desenho dos Contenidos Básicos Comunes, na Argentina, logo utilizado como
referência em outros países.
35

A segunda situação consiste em que as equipes reformadoras se inserem na


estrutura da linha de comando e ficam, portanto, muito envolvidas diretamente nas
rotinas, nos procedimentos, nos controles de gastos, nos mecanismos de monopólio das
informações para retenção de poder, nas restrições na organização do orçamento, nas
negociações para obtenção do consenso, na atenção às relações clientelistas de alguns
funcionários de origem partidária, etc. Com variantes, este é o caminho seguido na atual
etapa das reformas educativas argentina e uruguaia.
Além disso, porém, no caso argentino e, pelo menos, também no dominicano,
criaram-se quadros de funcionários contratados, não permanentes, que são remunerados
de acordo com os parâmetros dos mercados do ensino privado e da consultoria
internacional. Isto produziu um forte mecanismo de diferenciação interna entre os
“funcionários do quadro” e os “contratados”, que gera inúmeras tensões que requerem
uma permanente e desgastante administração que, apesar de tudo, não consegue
contrabalançar a progressiva retirada de colaboração que o “pessoal do quadro” acaba
produzindo.
No caso uruguaio, em troca, a estreiteza do mercado profissional, a existência de
uma cultura mais próxima do igualitarismo e a maior capacidade de negociação com os
bancos emprestadores, permitiu evitar a criação de um quadro de funcionários
contratados, utilizando o mecanismo de pagamento de um adicional salarial a quem
assume cargos de responsabilidade gerencial nos órgãos regulares de condução do
sistema.
Nenhuma destas modalidades assegura a continuidade das equipes técnico-
profissionais ao longo do tempo. Se saem os funcionários políticos, os quadros de
funcionários contratados correm sérios riscos. Esgotando-se os créditos externos, os
mecanismos compensadores ficam sem recursos. Por outro lado, em nenhum caso
logrou-se impedir o crescente fenômeno do multi-emprego – entre os trabalhadores do
quadro permanente, devido a seus baixos salários, entre os contratados devido ao temor
da perda do emprego. Entre os empregados públicos de menor eficiência, porque ao
retribuir-se em maior medida a eficiência e a produção, suas receitas tornam-se muito
baixas, mas, por diferentes razões, não são demitidos e se lhes perdoam numerosas
falhas. Esta tolerância se deve a uma série de razões: evitar mais conflitos nos contextos
onde o próprio desenho e a introdução das mudanças já os produzem em número
36

demasiado para que se venha ainda somar outros com o entorno mais imediato,
aproveitar certo tipo de conhecimentos acerca dos afazeres do ministério que só eles
possuem, quando se trata de pessoas de certa idade, compreender sua situação pessoal
em contextos de recessão e crescentes exigências de competitividade, etc. No caso dos
novos trabalhadores simbólicos, o multi-emprego se deve ao fato do mercado estar
muito aquecido, oferecendo oportunidades atraentes, e a que em nenhum momento se
sentem totalmente participantes das organizações estatais que integram. Seu interesse
em conservar referências externas na ação quotidiana, e sua experiência anterior de
expulsões e desligamentos, levam-nos a resguardar contatos através de trabalhos
eventuais.
O desafio consiste em construir alternativas de contratação de pessoal que
permitam superar as obstativas inamovibilidades prévias, encontrando, ao mesmo
tempo, mecanismos mais efetivos para romper a inércia e garantir certa continuidade
aos funcionários de alta capacidade técnica e produtividade, preservando-os dos avatares
do clientelismo.
Na Argentina, e em outros países, começou-se a utilizar o mecanismo de
concursos para cobrir cargos hierárquicos com remunerações razoáveis para
competirem com os mercados privados e de consultoria internacional. Contudo, estes
concursos contêm numerosos vícios e as nomeações deles derivadas têm uma
estabilidade muito relativa, já que, caso se troquem as denominações dos cargos, cessam
automaticamente as funções executivas, perdendo os funcionários um percentual muito
alto de suas remunerações, deixando-as abaixo até do mercado.
Além das tensões até aqui mencionadas – e de outras de ordem diversa, tais
como as que se derivam das altas exigências de competitividade e do baixo nível de
modernização dos equipamentos, por exemplo – em cada país e em torno de cada tema
existe uma série de tensões que especificam as anteriores, contextualizando-as (ver
Braslavsky 1996). O tipo de sistema de governo – unitário ou federativo – introduz
outra série de questões que, em cada caso, coloca desafios específicos às administrações
das reformas educativas. Na área do currículo, ou na de capacitação dos professores,
colocam-se inúmeras questões que se associam com as peculiaridades, tanto as
conceituais, quanto as dos atores que intervêm em cada caso. Tratar tal conjunto de
especificações seria já tema para outro documento. Ao enunciá-las aqui pretendeu-se
37

dar uma idéia de que a complexidade das gestões das reformas educativas é ainda muito
maior do que se pode reconstruir para esta ocasião. Contudo, mesmo com suas
limitações e carências, o que foi exposto permite adiantar algumas conclusões.
38

CONCLUSÕES

Em conclusão, parece que o ritmo e, inclusive, as modalidades de avanço dos


processos de reformas do Estado necessários para impulsionar e sustentar as reformas
educativas dependerão, em medida importante, de dinâmica que hegemonize a lógica de
intervenção dos atores educativos.
Em princípio, pode-se sustentar que existem três dinâmicas possíveis: de
inovação, de permanência – ou anti-mudanças – e de mercado. A constelação de atores
que se articulam em cada uma dessas dinâmicas é específica de cada país e é
relativamente instável.
No momento atual, tendem a se articular em torno da lógica de inovação as
autoridades educativas nacionais, as instituições de origem dos “intelectuais
reformadores”, (em alguns casos) novos movimentos educativos em torno de
publicações especializadas ou de outros tipos de iniciativas de capacitação ou difusão e
associações profissionais – não sindicais – de educadores. Nestes últimos dois casos a
articulação com a lógica de inovação se combina com certa distância crítica a respeito
das políticas públicas. Em alguns países setores sindicais minoritários participam dela e,
em outros, os próprios sindicatos.
Há também uma tendência para participarem da lógica conservadora entre
importantes setores da oposição política – à exceção daqueles países em que se lograram
pactos educativos amplos – grupos sindicais, grupos de professores universitários e a
burocracia estatal tradicional. Entre os argumentos que esgrimem se conta – em
algumas ocasiões com razão – o fato de não haverem sido consultados, ou o de terem
disposto de pouco tempo para analisar as propostas feitas por outros. Talvez como
indicativo do pouco treino em práticas democráticas, mencionam também que suas
propostas não foram seguidas ao pé da letra. Por outro lado, e para além dos
argumentos que se esgrimem, cabe recordar, no caso dos grupos sindicais, o que já foi
exposto sobre o fato de que, nos limites das reformas em curso, se removem ou se
removerão regras de jogo históricas em sua situação trabalhista e as dificuldades para
gerar alianças e acordos com os trabalhadores da educação nos contextos de crise e
busca permanente de aprofundamento dos ajustes fiscais.
39

Por último, o mercado conta, entre seus adeptos, com grupos significativos do
ensino privado, especialmente os que têm interesses econômicos do tipo empresarial,
mas também com grupos transformadores pré-reforma, que temem ver limitadas suas
capacidades de inovação no contexto do novo papel do Estado, e com os economistas
fundamentalistas do mercado, especialmente os que estão mais afinados com a escola de
Chicago. A lógica de mercado orienta a ação dos que preconizam a privatização dos
serviços educativos, o sistema de vale-educação, ou alguma de suas variantes. Os atores
que operam exclusivamente dentro dessa lógica soem participar da oposição de direita
ou – segundo o país – ter posições na própria estrutura de governo.
A lógica de inovação se gera pela convergência de três fatores: a decisão política
de produzir mudanças, a utilização e re-processamento criativo do conhecimento
trazido pelos intelectuais reformadores que aceitam responsabilidades decisórias no
Estado, produzido em grande parte fora do sistema educativo e, em não poucos casos,
por eles mesmos, e a experiência da dinâmica quotidiana dos sistemas educativos,
trazida pelos pedagogos reformadores e por alguns funcionários da burocracia que
aceitam também responsabilidades de decisão e – em medida proporcionalmente maior
– execução e apoio. Contudo, os fatores que contribuem para gerar essa lógica da
inovação não são, de forma alguma, suficientes para sustentá-la no tempo e transformar
o que pode ser um impulso inicial em um elemento constitutivo das culturas
institucionais no setor da educação.
Enquanto a lógica de inovação conflita e atrita em um dos flancos com a lógica
de permanência e no outro com a de mercado, estas duas não parecem ter uma área de
conflitos entre si. Grupos importantes da esquerda tradicional questionam os
inovadores, qualificando-os amiúde como neo-liberais, mas não os próprios neo-liberais,
talvez não tão visíveis, ou presentes, na cena quotidiana das políticas educativas latino-
americanas atuais, mas, nem por isso menos atuantes no processo educativo. Os neo-
liberais, por seu lado, tentam acumular forças para o caso de fracassarem os reformistas.
As áreas de atrito ou conflitos mencionadas serão manejadas com maiores ou
menores custos organizacionais e políticos de acordo com as correlações de forças
sociais e políticas de cada país em cada momento e, sobretudo, com a possibilidade, ou
não, de todos os atores envolvidos na lógica inovadora conseguirem construir um
contexto de referência compartilhado e supra-setorial, demarcado pelo universo dos
40

alunos e alunas – não pelo dos dirigentes políticos ou sindicais, nem dos docentes, ou
dos acadêmicos, por exemplo – ao mesmo tempo que criam um horizonte para sua
ação, localizada para além do presente.
Somente a partir desse contexto de referência compartilhado e supra-setorial,
com um horizonte de referência no século XXI, será possível orientar as soluções que se
venham a conseguir para as oito tensões mencionadas acima e para as que são
associadas a cada especificidade temática e sistema de governo, de modo a fortalecer a
lógica da inovação até transformá-la em rumo caracterizador de uma nova cultura
institucional.
Por exemplo, uma maior força das autoridades educativas em termos da
prioridade da educação nos níveis de governo nacional e de partidos não oficialistas
e/ou a fraqueza relativa da oposição orientada pela lógica de mercado, minimizará
certos conflitos, ou atritos, entre essas autoridades e os atores de fora do Estado e
tornará, portanto, menos atritivas, por exemplo, as relações entre o tempo político, o
tempo profissional e o tempo burocrático. Em uma situação inversa, já a partir dos
contextos de referência da ação das autoridades da educação, serão gerados problemas
de índoles diversas que irão pressioná-las para que obtenham resultados profissionais
rápidos, ou diferentes dos programados, potencializando os atritos entre esses tempos e
gerando perturbações de diferentes tipos.
Em termos gerais, pode-se dizer que a possibilidade de construção de um
Estado promotor depende, em medida importante, da consolidação da lógica da
inovação no interior do setor do Estado dedicado à produção e execução de políticas
educativas. Ao mesmo tempo, é possível sustentar que o caráter mais, ou menos,
democrático das transformações modernizadoras em curso na região, assim como a
possibilidade de se aprofundar o próprio sentido modernizador das mesmas, frente à
presença de tendências neo-conservadoras – que não se podem analisar neste texto –
dependerão da capacidade do aparato estatal consolidar tal dinâmica inovadora.
Retomando elementos do início deste trabalho, é possível sustentar-se um certo
otimismo céptico. O que se expôs em várias ocasiões oferece elementos para se propor
que a capacidade de gestão de reformas educativas é muito superior, nos anos noventa,
que na perdida década dos oitenta. As dificuldades dos próprios processos de gestão, e
as que se derivam de alguns contextos econômicos, políticos e sociais que influenciarão
41

seus resultados, aconselham manter-se um olhar céptico e evitar-se todo triunfalismo


antecipado. As práticas dos atores permitirão iniciar um ciclo de mudanças incrementais
pela via da inovação permanente.
42

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