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As lições de Prometeu

As narrativas sobre as origens do mundo e da humanidade sempre


foram objetos de minha atenção. As questões filosóficas sobre “quem
somos nós, o que devemos e podemos fazer, de onde viemos e para
onde vamos” trazem “embutidinhas” algumas outras, que me permito
escrever de uma forma mais livre: “E aí, tem alguém que nos mandou
para cá? Existe algo antes e depois?”.
Nessas “embutidinhas” deparo com narrativas que se aproximam em
aspectos literários e de conteúdos. Uma das narrativas que me encanta
é a de Prometeu, como também nas versões cujas estruturas iniciais se
aproximam das histórias de tradição judaico-cristã, como o livro do
Gênesis. A necessidade que temos de saber de nossas origens,
enquanto humanidade, em muitos momentos confunde-se com o desejo
de saber sobre nosso futuro… ou seja, a história narrada da criação
passada do mundo não seria uma projeção (in)consciente para um
possível futuro. É preferível a fantasia do paraíso perdido que um nada
cabal.

No princípio havia o vazio que foi preenchido. Essa massa ganhou


vidas. Uma delas se destacou sobre as outras, tanto que necessitava
de explicações para sua existência. E criou narrativas para se justificar
e representar frente aos seus e à espécie como um todo.

As narrativas antigas, diferentemente daquelas pós-newtonianas,


trabalhavam com elementos transcendentais, isto é, que iam além do
observado fisicamente. E vêm deuses, deusas e uma miríade de
criaturas e forças que trazem como base comum esse desejo de
explicar o surgimento e fortalecer uma ideia de futuro.

A história de Prometeu me encanta muito porque é uma lição de vida. A


história sobre como tirar dos deuses (roubar para alguns) algo que
pertence a nossa humanidade, isto é, a capacidade de lidar com as
artes e as técnicas. Isso que Kant explicitou séculos e séculos depois
sobre o estado de maioridade da razão humana, essas bases narrativas
prometeica e adâmica (são muito próximas as ideias do roubo do fogo e
a do fruto da árvore do conhecimento dos hebreus) metaforicamente
tentavam explicar.

Os deuses puniram a ambos os “ladrões”, de formas diferentes nas


narrativas, mas deixaram sua marca de divindades. Ai é que se
encontra o fascinante. No desejo de se sustentar como ser humano,
mesmo com o castigo, enfrenta-se a divindade. Prometeu me auxilia a
criar minha biografia como ser humano quando enfrento meus deuses e
diabos. Primeira lição.

“Querer o fogo” é o desejar aprender como aprender, é um passo muito


sério na jornada de autoconhecimento. Se não se consegue, frustra-se,
castra-se, sublima-se, recalca-se… não necessariamente nessa ordem,
mas sempre com um sentimento de perda de algo que nunca foi
preenchido. Prometeu me lança para o sentimento de perdas sem nada
ter perdido ou ganhado. Como ser humano, possuo essa antevisão
(Προμηθε?ς) de ser e estar. Segunda lição.

Os deuses são arrogantes, imagens superampliadas e, por vezes,


distorcidas, do que gostaríamos de ser. Vaidosos, vingativos,
sorrateiros, intrometidos, lobos escondidos debaixo de peles de
ovelhas. A criação de Pandora explicita muito bem isso: para se vingar
do fogo roubado, Zeus ordenou a Hefesto a criação de uma estátua que
tivesse a beleza dada por Afrodite, a oratória de Hermes, a beleza e
musicalidade de Apolo, a inteligência de Atenas – mas a tudo isso,
também um dos defeitos de cada um. Os deuses são assim, primeiro se
mostram charmants e depois vêm os delírios e as loucuras insanas da
maldade. Divindades são reflexos de nossos eus mal refletidos em
espelhos distorcidos, o fogo não lhes pertence. Terceira lição.

Como enganar a um deus com tais qualidades e defeitos? A riqueza da


artimanha de Prometeu foi tamanha que a raiva e o desejo de vingança
de Zeus foram incomensuráveis. Cuidado com os deuses, eles não são
confiáveis. Quarta lição.

Uma das artimanhas dos deuses para real vingança contra Prometeu foi
a vinda de Pandora, próxima à Eva judaico-cristã ou a coquete Lilith (?),
para tentar seu irmão, Epitemeu ( “aquele que pensa após”). Pandora e
Eva são inocentes frente aos discursos machistas que ainda ousam
defender as ligações entre o feminino e pecado. Isso é coisa retrógada
e fede ao bolor das morais conservadoras! Respeitem as mulheres,
sem demagogia, mesmo que Pandora tenha aberto sua caixa e soltado
os males mundo afora, pelo menos a esperança ficou lá retida. Mulher e
esperança caminham juntas. Quinta lição.

Acorrentado, preso, como um titã era imortal, mas uma ave de rapina
vinha lhe comer o fígado todos os dias. Entranhas abertos. À noite,
recompunha-se o titã. No dia seguinte,para sempre Prometeu viveria
todas as dores do dia anterior. Que deus mais cretino para apreciar
essa cena cotidiana, não importa se fosse sua criatura ou um
semelhante a si. Trate bem de seu deus, saiba como dialogar com ele-
ela-elo e jamais lhe abra espaço para tais permissividades. Deuses não
são pets e nós não somos pets deles. Lição seis.

Mas quem é esse Prometeu? Pois bem… é a história de um senhor que


não para contar à criançada na hora de dormir. Ou eles se ficarão
impressionados com possíveis pesadelos durante o sono ou nos
assustarão pedindo algum aplicativo que traga o joguinho do cara tendo
o fígado comido… Surpresas das TIC e dos TOCs derivados…

Em resumo ultrarrápido: Prometeu era descendente de deuses


derrotados por Zeus. Veio viver nesse mundo. E do vazio criou a toda a
humanidade por meio da barro da terra, tinha por irmão Epitemeu e
alguns parentes, como Atlas. Prometeu era um gigante bondoso, na
criação dos seres humanos, teve ajuda de Atenas que soprou sobre as
imagens de barro a vida.

“Pelados e com as mãos nos bolsos” essas criaturas eram mais


indefesas que os outros animais, também criados. E Prometeu ensinou
a elas artes e técnicas para sobreviver. Ainda não satisfeito e com raiva
dos deuses – por que somente eles podiam deter bens que a todos
deveriam estar compartilhados? – roubou parte do fogo do rastro da
carruagem do Sol.

Trouxe o fogo – calor, aquecimento, proteção- para a humanidade.


Ultrajado com mais aquela afronta, Zeus além de enviar Pandora, que
trouxe muita coisa ruim na caixinha famosa, arremeteu um castigo atroz
a Prometeu: seria acorrentado num penhasco do Cáucaso, e
diariamente uma águia (ou abutre dependendo da tradução e dos
escritos primevos) viria a devorar-lhe o fígado. Ele se regeneraria e no
dia seguinte, o ciclo do sofrimento retornaria.

Esse castigo continuaria eternamente se Hércules, um semideus, não o


aliviasse daquela selvageria. Para enganar Zeus, Prometeu livre fez um
anel com parte da rocha do Cáucaso. Zeus quando queria monitorar se
ele continuava preso verificava pelas vibrações da rocha. Não sei se
Prometeu viveu para sempre feliz como nos contos a la “Era uma vez”.

Ele me marca por essa coragem de enfrentar as forças que se


pressupunham poderosas, onipotentes e oniscientes de tudo. É um
exemplo, como bom mito, que tanto serve para enaltecer a coragem
quanto para fazer com que se exercite a prudência nos enfrentamentos
com situações, pessoas e grupos diferentes daquilo que se pressupõe
como racional e razoável.

Bibliotecas físicas e digitais, textos impressos e by web pululam de


informações sobre Prometeu. Existem inúmeros ângulos de análise.
Algumas delas incríveis, outras nem tanto. Entretanto, para quem quiser
se iniciar em leituras mais sérias (e também gostosas), é importante se
aventurar pelas fontes clássicas de Platão (Protágoras), Ésquilo
(Prometeu), Hesíodo (Teogonia; Os trabalhos e os dias) e Ovídio
(Metamorfoses).

Detalhes sobre a família (pais, irmãos, esposa ou esposas, filho ou


filhos), conhecimento práticos, o que aconteceu com Epitemeu e
Pandora, quem substituiu Prometeu no rochedo, porque o fígado e não
o coração a ser bicado todos os dias, perfil astrológico, qual carta
representa em algum tarô “plusmoderno”, panteão de deuses e dos
companheiros titãs, “endereço para correspondência ou em alguma
rede social” encontram-se disseminadas internet afora.

Existem muito mais aprendizagens que podem ser retiradas nas leituras
das versões de Prometeu. Tenho essas lições que Prometeu me
ensinou, poderia até ser pretensioso em escrever: das lições que
Prometeu deixou para mim (parece até construção frasal próxima às
palavras de Roberto Carlos na música: – “Hoje, lembro das canções
que você fez pra mim…”, prefiro na versão com Maria Bethania. Que
me desculpe os fãs, Roberto é ótimo para Zeus, prefiro a sincrética
Bethania).

Além das lições, algo marcante para além das narrativas e reflexões
sobre Prometeu e seus feitos, são importantes as ilustrações que foram
elaboradas. Ao longo do texto, trouxe algumas delas, apenas mencionei
os sites originários, não os autores. Lapso? Não. Opção.

Algumas delas, das ilustrações, transbordam de tragédia e outras de


uma sensualidade, a sensibilidade e a técnica que ele nos trouxe ao
roubar o fogo dos deuses, isto é, de nos permitir a pensar que se pode
existir sem muletas. E frente aos deuses, ele conseguiu vencer e
continuar a viver.

Fonte: http://encenasaudemental.net/personagens/as-licoes-de-prometeu/

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