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O tecelão dos tempos: o historiador como artesão das temporalidades

Durval Muniz de Albuquerque Júnior

O que fabrica o historiador quando faz história (Certeau)?


 Fabrica uma narrativa;
 Fabrica os acontecimentos do passado.

A historiografia é produto de uma operação:


 Atividade de atribuição de sentido aos eventos.

“A historiografia seria uma maquinaria narrativa que usinaria o passado, buscando dar
forma à mecânica que azeitaria os processos que se desenrolaram em dado tempo e
espaço” (13)

Karl Marx  “(...) Motor da História, mecânica social, a qual caberia o historiador,
usando como instrumento o materialismo histórico, desvendar, enunciar, fazer aparecer em
suas engrenagens mais sutis” (14)

Marx e Certeau compartilham da mesma metáfora, imagens-símbolos da sociedade


moderna, da sociedade industrial, ao pensar nas atividades do historiador e as tarefas que
este tem que cumprir socialmente.

 A historiografia aparece como atividade de manufatura, remetendo-se ao


“maquínico”;
 Maquinações faziam parte da ordem social, da realidade, do referente, do passado,
do qual tratava o historiador para Marx;
 Maquinações se davam na hora da fabricação da narrativa histórica para Certeau.

“Esta não descobria na ordem social, no passado, na realidade, uma maquinaria já pronta,
engrenagens perfeitamente identificáveis, mas as produzia com a matéria prima da
linguagem, montando peça por peça versões do passado, que apareceria como um artefato
fruto da indústria do historiador, de sua destreza, de sua perícia narrativa e profissional” (14)

 Historiadores e operários são todos trabalhadores, sem distinção entre intelectuais ou


manuais, apenas diferenciando-se em trabalhos com matérias diferentes, produzindo
produtos diferentes.
 A historiografia é produto de um trabalho (...) de atribuição de sentido aos eventos,
aos acontecimentos do passado; de produção do passado, o fabricando como um
artefato. Produz versões para aquilo que se passou, que produz sentido para os
tempos, que dá a ele existência e consistência.

O trabalho do historiador NÃO tem o caráter maquínico, fabril, plenamente moderno

 Para o autor o trabalho do historiador guarda mais relações com o trabalho artesanal.
“(...) maior proximidade com a paciente e meticulosa atividade manual exercida por tecelões,
bordadeiras, rendeiras, tricoteiras, chuliadeiras” (15)

 Criação/nascimento da história associado ao contexto cultural grego do modo de


produção/técnica de trabalho da antiguidade (atividades artesanais);
 Sua função era reproduzir a memória e garantir a dominação social dos setores
poderosos;

“(...) a historiografia parece ter sido pensada e praticada como uma forma de trabalho
artesanal que tomava como matéria prima os restos, os fragmentos de narrativas sobre
o passado e sobre o presente, que podiam ser recolhidos e submetidos a um trabalho
de enredamento, que podiam ser tramados de forma a dar um passado para estes povos (...)”
(15)

 Heródoto é um tecelão que articula aquilo que viu e aquilo que ouviu sobre o
passado e sobre o presente. Ele conecta povos e lugares que se desconheciam,
conecta lendas, mitos e testemunhos, articulando o tempo, passado, presente e futuro,
criando uma identidade unificadora para os gregos do presente e do passado, os
diferenciando dos “bárbaros”.
 Costura fragmentos, pedaços de lendas, de mitos, com pedaços de narrativas
factuais, de testemunhos, de memórias, dando a este caos sarapintado uma
coerência, uma ordem, uma aparente coesão.
 Seu instrumento de trabalho é a palavra escrita (forma artística).

“Trabalho de ordenamento e de racionalização do vivido, a história nasce como este


trabalho artesanal, paciente, meticuloso, diuturno, solitário, infindável que se faz sobre os
restos, sobre os rastros, sobre os monumentos que nos legaram os homens que nos
antecederam que, como esfinges, pedem deciframento, solicitam compreensão e sentido”
(15/16)

 É o historiador quem submete uma ordem ao caos dos vestígios do passado, como
num bordado, fazendo entender um desenho, um projeto, um plano previamente
pensado;
 O historiador deve ter em mente o fio condutor que irá seguir (problema, questão,
objetivo) e que deve estar presente em toda a sua narrativa;

*Mesmo no século XVIII e XIX, quando a história se pretendia uma ciência exata, uma
máquina que produziria e contaria a verdade do passado, a mesma não conseguiu superar
sua origem artesanal.

“(...) a narrativa historiográfica não conseguiu expurgar suas dimensões artísticas,


literárias e poéticas, o artesanato da e na linguagem” (17)

 O trabalho do historiador ainda se faz de maneira isolada;


 O historiador ainda controla sua jornada de trabalho;
 Após cobrir as leituras bibliográficas o historiador “costura” todos os fragmentos
para fazer como que os mesmos pareçam fazer parte de um mesmo “tecido”;
 Escrevemos em uma solidão povoada por presenças do passado e do presente.

“(...) a forja do texto do historiador é produto do seu trabalho individual, de sua habilidade
no uso dos instrumentos necessários à elaboração da escritura da história” (19)

 Benjamin e a analogia do historiador como jardineiro: colher as últimas flores das


esperanças (19).
 Analogia com a carpideira – que chora e louva os mortos;
 Analogia com a carpintaria – que recolhe os escombros do passado, os corta e
reajusta, recriando portas ou janelas por onde podemos observar o passado;
 Analogia com o padeiro – que produz com as ações das massas o fermentar de novas
imagens do tempo que alimentarão os sonhos e as esperanças;

*O historiador ainda realiza todas as etapas de seu trabalho

 Mesmo em equipe e mesmo com os bolsistas de iniciação científica – os quais fazem


o “trabalho sujo” ou “pesado” – o historiador ainda acompanha e domina todas as
fazes de produção do seu trabalho;
 Hierarquia rígida entre aprendiz e professor (relações de poder) – caráter de
denúncia;
 O ofício de historiador também se aprende na prática.
 O fazer historiográfico não se aprende apenas com os manuais, deve-se levar em
consideração a sua dimensão prática, tomada como o aprendizado de uma arte;
 A historiografia exige o exercitar da imaginação, da capacidade de estabelecer
conexões entre os estilhaços do passado, de preencher as lacunas entre os eventos –
exercício da capacidade de ficcionalizar;
 O trabalho historiográfico exige a destreza narrativa, de criar boas tramas;
 Deve saber “conectar os fios, amarrar os nós” (21/22)

“Como toda habilidade artesanal, só se aprende a escrever história escrevendo, praticando,


agindo por ensaio e erro, abusando da repetição, buscando o adestramento necessário,
elaborando várias versões do mesmo texto, corrigindo-o, rasurando-o, refazendo-o,
escrevendo versões sucessivas” (22)

 Analogia do trabalho do historiador pós-moderno com o trabalho do lixeiro: recolhe


os restos que sobrou dos sonhos e grandes projetos e promessas que já pretenderam
ser o sentido do processo histórico. Dedica-se a reciclagem das versões dos passados
e dos sonhos dos homens, das utopias falhadas. Desconstrói as versões do passado e
as remodelam para assim apresenta-la novamente aos homens, dando-lhe um novo
valor.

*A alienação do trabalho tem dificuldade de se fazer presente em nosso ofício

 O historiador participa de todas as etapas de sua produção e conhece o resultado final;


 Tal como no trabalho artesanal, o trabalho historiográfico é marcado pela
superexploração em todas as suas etapas;
 O trabalho do historiador não tem valor de uso, mas tem grande valor de troca;
 O valor recebido pelo historiador é inferior ao tempo de produção de sua obra;
 O trabalho do historiador também é cansativo, estressante e repetitivo;

*O autor anuncia sua forma (uma nova forma) de ver a história, separada dos mecanismos
aprisionastes que finalizasse o passado e permanecesse no eterno presente (crítica ao
marxismo). “Uma história que não se dirige apenas à razão, à consciência, mas que dá lugar
aos sentimentos, aos sentidos, às paixões, aos desejos e aos delírios” (26)
 Que não deixe de falar das injustiças e explorações, mas que também não esqueça das
alegrias e felicidades.
RESUMO

O autor faz uma analogia do trabalho do historiador com o trabalho do tecelão, ou da


bordadeira, entre outros trabalhos artesanais manufatureiros, para destacar a especificidade
e o cuidado da produção historiográfica, tratando-a mesmo como uma forma artística de
produção do conhecimento. Inicialmente Albuquerque diferencia as analogias fabris e
maquinistas formuladas por Marx, que vivia em um contexto de expansão industrial, e
Certeau, que pensava o trabalho do historiador como uma operação maquinária, com a sua
percepção sobre a produção das narrativas históricas. Dessa forma, destaca o contexto de
nascimento da história, enquanto conhecimento produzido por homens, afirmando que tal
saber ainda guarda as suas características artísticas, literárias e artesanais primordiais,
mesmo quando pretendeu – no século XVIII e XIX – tornar-se disciplina puramente
científica e “maquina” produtora da verdade sobre o passado. O autor ainda destaca o caráter
solitário do trabalho do historiador – mesmo trabalhando em conjunto com alunos –,
distanciando-o ainda mais dos modelos de linhas produtivas e trabalhos alienados,
argumentando que todas as fases da produção de sua narrativa são acompanhadas de perto,
além de que ao historiador também é permitido controlar sua carga horária de trabalho. Ao
argumentar sobre a dimensão prática do saber historiográfico, Albuquerque afirma que é
necessário ao historiador, ou ao aprendiz, a toma-la como o aprendizado de uma arte, pois é
necessário que se exercite a imaginação, capaz de estabelecer laços entre os fragmentos do
passado e preencher suas lacunas, sobretudo, o historiador deve exercitar a sua capacidade
de ficcionalizar e sua destreza narrativa. Acrescenta que o trabalho do historiador na pós-
modernidade guarda aproximações com o trabalho do lixeiro, que recolhe os projetos,
sonhos e utopias do passado, as recicla, desconstrói e remodela, apresentando-lhes uma nova
forma, novos sentidos e novos valores. Enfatiza o caráter artístico e artesanal do trabalho do
historiador, da “invenção do passado”, denunciando o quão estressante e desgastante é em
comparação ao pouco ganho financeiro que se tem após o trabalho finalizado. Finalmente
faz um apelo para que os novos historiadores reafirmem esse caráter artesanal do fazer
historiográfico, não se entregando ao mercado que exige produções em série e sem uma certa
qualidade, e deseja que todos os historiadores sejam “artistas e arteiros”.

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