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No período em que Peri Gomes Feio esteve em Vitória do Mearim (1955), os leprosos eram
estigmatizados ao extremo. E não exagero ao dizer que um pouco antes, quando morriam, não
eram enterrados no mesmo cemitério em que se enterravam as pessoas comuns da cidade.
Seus pertences eram queimados e o local onde eles moravam (geralmente afastado e ermo)
era expurgado com sal, apagando-se para sempre a lembrança dos mesmos da memória dos
vivos.
Peri era um homem deformado fisicamente. A terrível doença destruíra-lhe todos os dedos das
mãos e dos pés. Seu corpo, ulcerado e malcheiroso, causava repugnância às pessoas.
Cristóvam Dutra Martins conheceu Peri Gomes Feio nesse ano, durante os festejos da
padroeira de Vitória do Mearim. Ele chegara naquela manhã de setembro, proveniente de São
Luís, quando os fiéis católicos deixavam a igreja, após terem assistido a Santa Missa. O poeta,
montado no jumento que o conduzira pela dificílima estrada maranhense, encontrava-se à
frente da igreja, provavelmente rogando à Virgem de Nazaré um pouco de “alívio” para seu
viver. Ao verem-no em condições totalmente deploráveis, as roupas desgrenhadas, manchadas
com a secreção fétida que fluía das suas feridas, as pessoas logo se afastaram aterrorizadas.
O poeta notara a repulsa dos vitorienses. E, pacientemente, desceu do seu jumento, subiu
na calçada da igreja com dificuldade, e, como um líder iluminado pelo dom da palavra, proferiu
um comovente discurso, que falava da sua dor, da sua solidão e tristeza, da sua infortunada e
miserável vida.
As pessoas, que deixavam o local, se aproximaram para ouvi-lo, como se, de repente, a
lepra, que causava repulsa, não existisse mais no corpo ulcerado do poeta. Muitos
derramaram lágrimas de pesar ao ouvirem-no falar, e até jogaram esmolas para o vate
miserável. Depois disto, ele montou novamente em seu jumento, deixando os moradores de
Vitória em verdadeiro estado de comoção.
Cristóvam Dutra Martins intensificou sincera relação de amizade com o poeta durante o ano
de 1955, em São Luís, indo, por diversas vezes, visitá-lo no Bonfim, local onde os leprosos da
capital maranhense viviam recolhidos.
Como vimos, parece que os editores do jornal queriam esconder a identidade do poeta,
como se ele carregasse no próprio nome a doença que trazia no corpo.
Cristóvam Dutra Martins, o prefeito que adorava poesia e fazia confusão quando tinha
que citar autores, dizia-me, ao referir-se a Peri Gomes Feio, que ele havia cumprido sua missão
naquela manhã de setembro em que visitara Vitória do Mearim, ao dizer, em seu discurso, que
o preconceito era a verdadeira e mais cruel de todas as lepras, pois destruía a humanidade de
forma implacável, tornando-a tão perversa e deformada que dificilmente alguém conseguia
ver-lhe a própria alma.
Do poeta Peri Gomes Feio, o Maranhão pouco sabe. O que ele publicou – na verdade,
testamento contundente e sem fingimento de dores e de saudades por ele realmente
vivenciadas – ficou esquecido até hoje. Seus versos não são lembrados. E sua figura,
deformada pela doença que o afligia, parece que foi eliminada para sempre da memória das
pessoas que o conheceram. Que pena!
SUPREMA ANGÚSTIA
FINIS
4 DE AGOSTO
TROVAS
2
Pedi a Nossa Senhora
Da ingratidão da mulher.
(Estes poemas de Peri Gomes Feio integram o livro “Cortina azul”, publicado em 1948, em São
Luís-MA.)