Você está na página 1de 7

Peri Gomes Feio, o poeta que o povo esqueceu

Posted on 30/11/-0001 | 68 Comments

inShare

Cristóvam Dutra Martins, advogado provisionado, ex-prefeito de Vitória do Mearim, já


falecido, era admirador incondicional dos grandes poetas brasileiros. Destes, recitava poemas
inteiros sem esquecer uma palavra. Dos seus prediletos, ele sempre recitava “Versos Íntimos”,
de Augusto dos Anjos, e sempre fazia confusão com a autoria do soneto “Samaritana”, de
Vespasiano Ramos, que ele atribuía a Peri Gomes Feio, provavelmente porque Peri – o mais
sofrido e martirizado de todos os poetas brasileiros – andou sem descanso por estas paragens
do Mearim, carregando seu sofrimento com resignação, lembrando, em sua dor, o sofrer do
andarilho dos versos de Vespasiano: Venho, de longe, trêmulo, bater,/à vossa humilde e
plácida cabana/ pedindo alívio para o meu viver.

Nascido em Rosário-MA, em 04.08.1909, e falecido em São Luís, em data indeterminada, Peri


Gomes Feio era excelente poeta e orador. Um artista, na verdadeira acepção da palavra. Mas
Peri sofria do mal-de-lázaro, doença perigosa, que não tinha cura e que causava verdadeiro
pavor, pela facilidade do seu contágio.

No período em que Peri Gomes Feio esteve em Vitória do Mearim (1955), os leprosos eram
estigmatizados ao extremo. E não exagero ao dizer que um pouco antes, quando morriam, não
eram enterrados no mesmo cemitério em que se enterravam as pessoas comuns da cidade.
Seus pertences eram queimados e o local onde eles moravam (geralmente afastado e ermo)
era expurgado com sal, apagando-se para sempre a lembrança dos mesmos da memória dos
vivos.

Peri era um homem deformado fisicamente. A terrível doença destruíra-lhe todos os dedos das
mãos e dos pés. Seu corpo, ulcerado e malcheiroso, causava repugnância às pessoas.

Cristóvam Dutra Martins conheceu Peri Gomes Feio nesse ano, durante os festejos da
padroeira de Vitória do Mearim. Ele chegara naquela manhã de setembro, proveniente de São
Luís, quando os fiéis católicos deixavam a igreja, após terem assistido a Santa Missa. O poeta,
montado no jumento que o conduzira pela dificílima estrada maranhense, encontrava-se à
frente da igreja, provavelmente rogando à Virgem de Nazaré um pouco de “alívio” para seu
viver. Ao verem-no em condições totalmente deploráveis, as roupas desgrenhadas, manchadas
com a secreção fétida que fluía das suas feridas, as pessoas logo se afastaram aterrorizadas.

O poeta notara a repulsa dos vitorienses. E, pacientemente, desceu do seu jumento, subiu
na calçada da igreja com dificuldade, e, como um líder iluminado pelo dom da palavra, proferiu
um comovente discurso, que falava da sua dor, da sua solidão e tristeza, da sua infortunada e
miserável vida.

As pessoas, que deixavam o local, se aproximaram para ouvi-lo, como se, de repente, a
lepra, que causava repulsa, não existisse mais no corpo ulcerado do poeta. Muitos
derramaram lágrimas de pesar ao ouvirem-no falar, e até jogaram esmolas para o vate
miserável. Depois disto, ele montou novamente em seu jumento, deixando os moradores de
Vitória em verdadeiro estado de comoção.

Cristóvam Dutra Martins intensificou sincera relação de amizade com o poeta durante o ano
de 1955, em São Luís, indo, por diversas vezes, visitá-lo no Bonfim, local onde os leprosos da
capital maranhense viviam recolhidos.

Em janeiro de 1956, o jornal O Mearim em Folha, órgão oficial de divulgação da União


Vitoriense dos Estudantes, edição nº 01 (São Luís-MA.), publica uma nota, com os seguintes
dizeres:

Avisamos aos leitores de “O Mearim em Folha” e, especialmente, àqueles que tomaram


assinatura do livro ‘”FARRAPO’”, da autoria de IUSSERIP[1], poeta homiziado no Bonfim, que
por todo este mês de fevereiro este livro literário sairá do prelo. Agradecemos a boa vontade
daqueles que, reconhecendo a necessidade de um doente, o qual não obstante, possui uma
alma limpa, sadia e iluminada – alma de poeta, adquiriram uma assinatura do seu livro (…).

Como vimos, parece que os editores do jornal queriam esconder a identidade do poeta,
como se ele carregasse no próprio nome a doença que trazia no corpo.

Cristóvam Dutra Martins, o prefeito que adorava poesia e fazia confusão quando tinha
que citar autores, dizia-me, ao referir-se a Peri Gomes Feio, que ele havia cumprido sua missão
naquela manhã de setembro em que visitara Vitória do Mearim, ao dizer, em seu discurso, que
o preconceito era a verdadeira e mais cruel de todas as lepras, pois destruía a humanidade de
forma implacável, tornando-a tão perversa e deformada que dificilmente alguém conseguia
ver-lhe a própria alma.

Do poeta Peri Gomes Feio, o Maranhão pouco sabe. O que ele publicou – na verdade,
testamento contundente e sem fingimento de dores e de saudades por ele realmente
vivenciadas – ficou esquecido até hoje. Seus versos não são lembrados. E sua figura,
deformada pela doença que o afligia, parece que foi eliminada para sempre da memória das
pessoas que o conheceram. Que pena!

SONETOS DE PERI GOMES FEIO

SUPREMA ANGÚSTIA

Vivendo assim, a esmo, abandonado,

Longe dos meus, daquela que mais amo,

Sinto-me cada vez mais desgraçado,

E contra tudo inutilmente clamo.


Lembrando, finalmente, o meu passado,

Maldigo a dor, o meu vive reclamo.

E este meu coração angustiado

Sofre na mágoa imensa em que me inflamo.

Cada dia que passa, mais padeço,

E da minha ventura já passada,

Um momento sequer eu não me esqueço.

Faze-me, oh! bom Jesus, uma oferenda:

Reanima essa ventura sepultada,

Como fizeste ao Lázaro da lenda!

FINIS

Morreu o nosso amor, morreu! Que pena

Findar essa ventura que gozei!

Tu foste a estrela rútila e serena

Que nos meus versos tímidos cantei.

Tu foste a linda e mística açucena

A despedir perfumes, que nem sei…

Tu foste a mais suave cantilena

Que, enlevado e feliz, eu escutei.

Tu foste o turbilhão dos meus desejos,


Foste os acordes do meu alaúde,

Num misto de ternuras e de beijos.

E agora, meu amor! – tu és somente

O motivo da minha inquietude,

Nesta saudade intérmina, inclemente!

4 DE AGOSTO

Cheguei enfim aos meus trinta e três anos,

Depois de insana e dolorosa lida,

Desolado ante a múltipla investida

De desenganos sobre desenganos.

E nunca tive a glória embelecida

Da qual há corações ufanos…

O amor – essa ilusão melhor da vida

A este coração só trouxe danos.

Felicidades? – essas, desconheço!

Esperanças? – as últimas partiram.

Vivo apenas das dores que padeço!

Um consolo me resta à minha sorte:

Fugir do mundo, como já fugiram

Outros poetas, pelas mãos da Morte.


INDIFERENTISMO

Não importa essa gente que se lança

Injustamente contra o nosso amor:

A tempestade vai, vem a bonança,

Logo o tempo se torna promissor.

Deixemo-nos levar pela esperança,

E de nada tenhamos mais temor;

Teu coração bem junto ao meu avança,

E não nos pode, assim, vencer a dor…

Não importa a maldade dessa gente

Que, decerto, deseja, unicamente,

Trazer-nos desolados e tristonhos.

Gozemos, pois, o nosso amor! Tomemos

O dirigível da ilusão e voemos

Para o infinito azul dos nossos sonhos!…

TROVAS

Há certas coisas na vida

Que não há quem as desfaça:

As águas passam correndo,

A minha mágoa não passa.

2
Pedi a Nossa Senhora

Que me fizesse um favor:

Que me deixasse morrer

Nos braços de meu amor.

Em venci mil empecilhos,

Pisei por cima de abrolhos,

Somente para poder

Mais uma vez ver teus olhos

Por maior a punhalada

Que mão ferina nos der,

Não fere como a estocada

Da ingratidão da mulher.

Esses teus seios, morena,

Por sob a blusa guardados,

São meus maiores desejos,

São meus melhores pecados.

Quando eu morrer não perguntes

A causa da minha morte:

- foi desespero da vida…

Foi desengano da sorte…

A mulher é uma esfinge

Que não tem decifração:


Quando não quer, diz que sim,

E quando quer, diz que não.

Nunca me posso olvidar

Das minhas ansiedades:

Fogueira de amor – os beijos,

Cinzas de amor – as saudades.

(Estes poemas de Peri Gomes Feio integram o livro “Cortina azul”, publicado em 1948, em São
Luís-MA.)

Você também pode gostar