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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação em Psicanálise


Projeto de Qualificação de Mestrado

Mais além da construção delirante:


Um sujeito, a função do delírio e a direção do tratamento

Aluna:
Raquel Coelho Briggs de Albuquerque
Banca Examinadora:
Doris Rinaldi (orientadora)
Sonia Alberti
Andréa Hortélio Fernandes

Rio de Janeiro
2011

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.....................................................................................................................1

1. O DELÍRIO E SUA RELAÇÃO COM A PSICOSE..............................................................6


1.1 - Um delírio.............................................................................................................................................6
1.2 – As origens da noção de psicose.........................................................................................................10
1.3 – As origens das noções de delírio e de paranóia...............................................................................13
1.4 Freud: a importância da noção de delírio para a conceituação da psicose....................................21
Referências................................................................................................................................36

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1. O DELÍRIO E SUA RELAÇÃO COM A PSICOSE

1.1 - Um delírio

Alberto está na casa dos 30 anos. Aos 18, levou um tiro no pescoço que o deixou com
seqüelas no aparelho fonador e no aparelho respiratório, além de uma grande cicatriz no
pescoço. Ele estava trabalhando quando alguém mandou que chamasse um traficante, em uma
favela próxima. Ele se recusou e o homem atirou nele. Mas essa é a versão que a família
conta. Segundo ele mesmo, a polícia confundiu-o com um traficante, e por isso atiraram nele.
A partir de então, Alberto parece nunca mais ter sido o mesmo - segundo relatos da
família e dele mesmo.
Conheci Alberto anos depois, em um Centro de Atenção Psicossocial, onde ele já era
acompanhado há algum tempo. Em seu prontuário, constava que ele era usuário de drogas, e
havia também, uma única menção a um possível conteúdo delirante, que era também o modo
como ele se definia: ele fazia chover. Inicialmente, quando ele entreva no consultório, para
seu atendimento individual, dizia que precisava de fluoxetina, para melhorar a angústia, e
pedia para eu transmitir isso ao médico. Dizia isso e já ia levantando rumo à porta de saída.
Aos poucos, observando que eu não anotava no prontuário tudo o que ele dizia, Alberto foi
me contando, desordenadamente, sua história:
Ele fazia chover. Era o responsável pelas chuvas do país. Abanando as mãos para o
céu chamava as nuvens, ou as afastava, de acordo com a necessidade de chuva.
Mas o que mais o afligia era o que havia se dado uns oito anos antes - quando, a partir
de uma grande seca, faltou energia elétrica e o país enfrentou um “apagão”. Embora essa
“crise do apagão” tenha realmente ocorrido em 2001 e 2002, com o racionamento
“voluntário” de energia, nosso paciente nos conta sua própria versão: faltou luz e água em
hospitais e escolas e ele começou a receber inúmeros telefonemas de mulheres, “tinha até
mulher casada”, e pedidos, inclusive da TV globo, para que ele interviesse e mandasse chuva.
Ameaçaram-no de morte, caso ele não fizesse chover. “Era Albertinho pra cá, Albertinho pra
lá... você tinha que ver como me tratavam bem, até que eu mandei a chuva e todos
desapareceram. Ninguém mais me ligou. Ninguém me agradeceu. Eu não recebi nem um
obrigado.”
E desde então Alberto teria ficado neste impasse: precisava fazer chover para que não
o pegassem. Ele costumava ouvir muitas vozes que diziam, entre outras coisas, que os

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malandros iam pegá-lo. Os “malandros” queriam matá-lo, mas as mulheres ficavam de olho
nele. “Mas se eu morrer eles vão ver: nunca mais vai chover”.
Alberto muitas vezes dizia que Deus não queria que ele morresse, afinal, ele estava
vivo até hoje. E contava, também, que um anjo do mal, quando ele tinha um ano de idade,
veio até ele, tentou matá-lo, mas ele foi protegido pela anja boa. Foi aí que ele soube que faria
chover. Outras vezes, Alberto dizia que achava que ia morrer cedo, que tinha medo de morrer
logo.
Enfim, Alberto nos proporciona um belo exemplo de um delírio psicótico e de como
este delírio está intrinsecamente ligado a sua posição em relação ao Outro. O delírio de
Alberto constitui sua história, o localiza no mundo e explica o porquê de ele ser tão visado:
de quererem matá-lo. Além disso, permite a Alberto sair de uma posição passiva em direção a
uma posição ativa: aquele que faz chover. Com tantas funções importantes para este sujeito,
seria suficiente definir este delírio apenas como uma patologia primária, como acontece na
psiquiatria (Dalgalarrondo, 2008)?
Na clínica de Alberto foi possível acompanhar os efeitos que teve sobre ele a sua
construção delirante, uma vez que algumas conquistas, precárias, mas importantes, puderam
ser alcançadas. Uma delas diz respeito a uma espécie de resolução que Roberto criou para o
conflito da chuva: certa vez disse que tinha deixado a chuva por conta de Deus, pois o pastor
da igreja disse para “não passar na frente de Deus”. De outra feita, Roberto disse que agora a
anja P1 o estava ajudando: ela estava tomando conta da chuva. E ele, Santo Alberto, que já
tinha feito bastante coisa em favor do mundo, agora ia aproveitar a vida: comer do bom e do
melhor.
Nos livros de psicopatologia que determinam a direção de tratamento no âmbito da
psiquiatria, estuda-se o delírio como um “juízo patologicamente falso” e acrescenta-se,
frequentemente, as três características definidas por Jaspers, em 1913: a convicção
extraordinária (certeza subjetiva), a impossibilidade de remoção da idéia pela experiência e, o
conteúdo impossível. (Dalgalarrondo, 2008)
Poder-se-ia acrescentar que existe a possibilidade de adicionar a esta definição
psicopatológica do delírio, a característica de sistematizado ou não-sistematizado, no intuito
de ajudar na definição de um delírio paranóico/crônico. E que, Alberto, por exemplo,
apresenta um delírio sistematizado. Entretanto, quando se ouve um delírio paranóico, percebe-
se que não é possível colocar tudo “no mesmo saco” e que esta definição descritiva não
transmite a importância e a função que um delírio tem na vida de um sujeito psicótico.
É justamente nesse ponto que a contribuição da psicanálise se mostra preciosa para o

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estudo do tema. Como indica Maleval (1998) só o enfoque estrutural pode dar conta com
rigor da especificidade da função do delírio, já que, para quem se orienta por um enfoque
estrutural, parecem existir modos de defesa específicos, aos quais alguns podem recorrer, e
que têm conseqüências específicas. Enquanto o neurótico recorre ao mecanismo de defesa do
recalque e se orienta no gozo através da fantasia e de seus sintomas, o psicótico recorre à
foraclusão - uma forma de negação mais radical que o recalque - e pode orientar-se no mundo
através do delírio – construção análoga, e diversa, da fantasia.
Desta forma, mais que um fenômeno psicopatológico, passível de ocorrer em qualquer
estrutura, o delírio tem uma função específica na estrutura da psicose. E, se nos primeiros
textos freudianos podíamos ver o termo delírio aparecer em inúmeras situações, independente
de ser um caso de neurose ou psicose, ao longo da obra freudiana, o delírio aparecerá, cada
vez mais atrelado à estrutura da psicose. Isso se deve ao fato de os termos delírio e psicose
serem originários da psiquiatria.
Vejamos, pois, como os termos psicose e delírio estendem-se e modificam-se, da
psiquiatria à psicanálise.

1.2 – As origens da noção de psicose

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O termo psicose foi utilizado pela primeira vez em 1845, no Manual de Psicologia
médica, pelo barão Ernest von Feuchtersleben, um médico vienense. Veio substituir o antigo
termo vesânia, que faz referência a alienação mental, isto é, à loucura. É importante ressaltar
que o termo psicose surge, subordinado a um segundo, a saber, neurose. Dito de outra forma,
a psicose surge, no contexto da psiquiatria, para designar uma classe de doenças específicas
dentro da ordem das neuroses. “Para ele [Feuchtersleben] psicose designa doença mental, ao
passo que neurose designa as afecções do sistema nervoso, das quais só algumas podem ser
traduzidas em sintomas de uma ‘psicose’.” (Laplanche e Pontalis, 2001, p.393)
Façamos, brevemente, uma retrospectiva da concepção de neurose, nos reportando aos
séculos XVIII e XIX. O termo neurose foi proposto em 1777, pelo escocês William Cullen e
designava afecções do sistema nervoso não acompanhadas de febre nem imputáveis a lesões
localizadas. Nos primórdios da psiquiatria agrupava-se sob o nome de neurose o que hoje
poderíamos classificar como transtornos psiquiátricos não orgânicos – isto é, conjuntos de

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sintomas específicos sem correlato cerebral orgânico. Entretanto, vale destacar que se
apostava na descoberta destes correlatos.
Para se entender melhor o que era designado pelo termo neurose, vejamos a divisão
feita por Pinel, em sua Nosographie philosophique, de 1798, que segundo Maleval
(1991/2009) é muito próxima à descrição de Cullen (criador do termo neurose).
Pinel - assim como outros alienistas da época - considerava a alienação mental uma
doença - no sentido das doenças orgânicas – originada em um distúrbio das funções
intelectuais, isto é, das funções superiores do sistema nervoso. (Bercherie, 1989) Por isso, a
alienação mental foi por ele situada na classe das neuroses, que, como vimos, era composta
pelas afecções do sistema nervoso que não eram acompanhadas de inflamações ou lesões
estruturais, nem de febre.
Segundo Becherie (1989), as neuroses eram divididas por Pinel em 2 tipos: afecções
comatosas (abolição da função) e vesânias (perturbação da função). Maleval (1991/2009)
acrescenta ainda quatro classes à divisão de Pinel: os espasmos, que podem ser entendidos
como os ataques de histeria e epilepsia; as afecções comatosas, que corresponderiam à
catalepsia e ao êxtase das afecções comatosas; as anomalias nervosas locais, que remeteriam
aos fenômenos de conversão, sob o gênero de neuralgias, neuroses do órgão da voz, neuroses
oftálmicas, etc.; e finalmente as vesânias, que agrupariam, além da hipocondria, do
sonambulismo e da hidrofobia, os estados de mania, de melancolia, de demência e idiotismo.
O conceito de psicose surge, desta forma, para ocupar o lugar das vesânias,
subordinado às neuroses. Este termo espalha-se sobretudo na literatura psiquiátrica de língua
alemã, no decorrer do século XIX. (Laplanche e Pontalis, 2001).
E é no princípio deste mesmo século, o XIX, que ocorreram descobertas muito
importantes para o então campo das psicoses. Em 1822, Bayle descobriu a anatomia
patológica da paralisia geral, a sífilis nervosa. Desde então, tal morbidade passou a ser um
modelo do estudo da loucura - as então chamadas psicoses. Somou-se a isso a descoberta da
correlação anátomo-patológica da psicose de korsakoff (alcoólica) e as lesões histológicas
causadas pela demêncida de Alzheimer e Pick.
O termo psicose, desta maneira, começou a se diferenciar das doenças do cérebro ou
dos nervos – como doenças do corpo – mas também daquilo que a tradição filosófica
denominava “doenças da alma”: o erro e o pecado. (Laplanche e Pontalis, 2001). O termo
psicose designa, então, nesta época, uma patologia grave, de sintomas psíquicos, mas de
etiologia orgânica – ainda que esta etiologia não fosse especificada, isto é, fosse apenas
suposta.

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Diante dos avanços anátomo-patológicos a neurose tendia a sair do discurso
psiquiátrico, dando lugar às psicoses. Desta forma, o grupo das neuroses foi aos poucos se
restringindo às afecções em que se supunha um mau funcionamento do sistema nervoso
(neurose cardíaca, neurose digestiva, epilepsia, etc.) e esses doentes compunham um grupo de
pacientes que visitava os médicos, sem ser, em geral, enviado para os asilos. Inversamente, o
termo psicose designava os pacientes asilares, objeto de estudo dos alienistas, e que
apresentavam sintomas essencialmente psíquicos, o que não queria dizer, para os autores que
utilizavam estes termos, que a causa das psicoses não residisse no sistema nervoso. (Maleval,
1991)
Portanto, foi a partir das descobertas anatomo-patológicas de doenças como a sífilis
que o estudo das neuroses foi perdendo força para o campo das psicoses. Entretanto, ainda no
século XIX, com a hipnose de Charcot e a psicanálise de Freud, as neuroses ganham um novo
espaço, sendo definitivamente retiradas do campo das doenças de etiologia orgânica.
Maleval (1991) sublinha que foi assim que surgiu pela primeira vez o par de opostos
neurose x psicose: a partir de um fundamento etiológico e não de fundamentos clínicos. Isto é,
as neuroses passaram a ser aquelas afecções de etiologia não-orgânica, enquanto as psicoses
possuíam etiologia orgânica.
Berrios (2011) acrescenta que o termo psicose, introduzido por Feuchstersleben, em
1845, carregaria a noção de um concomitante psicológico geral de qualquer mudança
neurológica, o que teria permanecido até o século XIX. Desta forma, teria havido um
interessante processo histórico pelo qual as psicoses – que na origem do termo enfatizavam o
adoecimento mental - passaram, gradualmente, a ser consideradas orgânicas, enquanto as
neuroses cruzaram, na direção oposta, para o pólo psicológico.
Entretanto, como é possível que a psicose - esta doença de etiologia orgânica - tenha
passado, ela também, a fazer parte do campo de estudo da psicanálise? Como é possível que a
psicose tenha sido considerada uma neuropsicose?
É a partir da paranóia que acontecem as primeiras reflexões de Freud a respeito da
psicose, que ele considerava uma psiconeurose de defesa, e que se caracteriza por um delírio
crônico, tal qual o de Alberto. Mas, como isso foi possível se, como foi visto até então, as
psicoses eram consideradas patologias de origem orgânica?

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Se por um lado as descobertas anátomo-patológicas contribuíram para a descoberta da
etiologia orgânica de certas psicoses, por outro lado, a divisão estabelecida entre os estados de
delirium1 e delírio2 permitiu a divisão das psicoses em orgânicas e funcionais.
Foucault (1987/2005) afirma que o termo delírio foi, no início, fortemente associado à
loucura, sendo delirante um dos nomes dados ao louco - o que tornava o termo delírio um
termo muito vago. Berrios (1996, 2006), no mesmo sentido, afirma que os vocábulos délire
(francês) e Wahn (alemão) eram utilizados tanto para loucura como para delírio. O termo
referia-se também ao que conhecemos hoje como delirium, o delirium orgânico, que era
considerado uma forma de insanidade. Assim, o delírio surge no contexto das loucuras, que
abrangiam um sem número de doenças e transtornos, hoje classificadas nas mais variadas
especialidades médicas.
Berrios (2011) e Maleval (1998) nos falam da confusão original feita entre os estados
delirantes crônicos, isto é, nos quais haveria uma lógica evolutiva comum, e nos estados
delirantes crepusculares, nos quais haveria uma aproximação ao sonho.
O primeiro autor enfatiza a importância da redefinição etiológica e fenomenológica da
categoria do delirium para a transformação do termo insanidade funcional no termo psicose.
Ele destaca a importância do estudo da consciência e, em conseqüência, da turvação da
consciência para o isolamento do delirium que, até então, não poderia ser diferenciado do
delírio. Segundo Berrios (2006), é só a partir da noção dos níveis de consciência - que vão da
vigília ao coma, passando pelo sono – que o delirium pode ser claramente distinguido do
delírio, no qual não há prejuízo da função da consciência.
O segundo autor ressalta a importância do estudo evolutivo do delírio em detrimento
às aproximações descritivas que o aproximavam do sonho. Enquanto o estudo evolutivo
permitiu o avanço do estudo da função do delírio para o sujeito, a aproximação ao sonho se
restringiu ao estudo descritivo, por considerá-lo ausente de uma lógica.
E, se considerarmos que os estados crepusculares ou de turvação da consciência são
muito próximos aos sonhos, nos quais há o rebaixamento do nível de consciência, então,
podemos aproximar a indicação de ambos os autores: a diferenciação entre delirium (próximo
ao estado do sonho e, portanto, repleto de alucinações, sobretudo, visuais) e delírio (juízo
patologicamente falso) parece ter sido fundamental para o isolamento das psicoses funcionais.
É a partir destas separações – isto é, por um lado, psicoses orgânicas e funcionais e;
por outro, delirium e delírio - que as psicoses (funcionais) parecem passar a ser,
1
Estado de rebaixamento da consciência próximo a um sonho acordado que provoca confusão mental, com
desorientação alo e auto-psíquica, além de alucinações, sobretudo, visuais.
2
Crença inabalável, baseada em juízo patologicamente falso.

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definitivamente, também um campo de estudo da psicanálise. Tal qual a neurose, uma
enfermidade de etiologia psíquica.
Vejamos, portanto, como o avanço da noção de delírio contribuiu para o campo de
estudo das psicoses.

1.3 – As origens das noções de delírio e de paranóia

Foucault (2005) apontou a proximidade entre as concepções originais de delírio e


loucura e demonstrou a amplitude do termo, que acarretava que inúmeras doenças fossem
associadas ao que era, então, concebido como delírio. Pode-se observar, no trecho a seguir,
retirado do livro História da Loucura, uma definição de delírio do século XVIII - do
Dictionaire Universal de Médecine, de 1746:

A definição mais simples e mais geral que se pode dar da loucura clássica é exatamente a de
delírio: “Esta palavra deriva de lira, sulco, de modo que deliro significa exatamente afastar-
se do sulco, do caminho reto da razão.” [JAMES, 1746-1748, apud Foucault, 2005, p.237]
Não se deve estranhar, portanto, quando se vê os nosógrafos do século XVIII classificarem
frequentemente a vertigem entre as loucuras, e, mais raramente, as convulsões histéricas; é
que por trás desta é frequentemente impossível encontrar a unidade de um discurso,
enquanto na vertigem se esboça a afirmação delirante de que o mundo está realmente
girando. (Foucault, 1987/2005, p.237)

Desta forma, pode-se observar que o termo delírio abarca, originalmente, um sem
número de quadros: paranóia, delirium alcoólico, conversões histéricas, e até mesmo
vertigens. E, embora o vocábulo delírio tenha surgido no século XVI, já significando “falsa
opinião ou crença fixa em relação a coisas objetivas” (Maleval, 1998), vale destacar que esta
definição original não diz respeito ao erro de julgamento, como na definição psicopatológica
atual, mas ao erro como desvio da razão – o que pode ser lido não apenas como erro de
julgamento, mas também como erro de percepção, erro de comportamento, etc.
Pinel, por exemplo, utilizou, em 1809, o termo délire, para se referir, tanto a um erro
específico de julgamento, quanto à frenite3 (Berrios, 2011). Já Esquirol adotou, em 1814, uma
visão do delírio como uma perturbação perceptual, primariamente: uma pessoa seria delirante

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Inflamação do Diafragma que pode gerar quadros de confusão mental e que chegou a ser considerada, na
Grécia Antiga, causa da loucura.

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quando suas idéias não estivessem em relação com suas sensações e as alucinações seriam a
causa mais freqüente de delírio.
Mas, se desde a medicina grega do século V a.C. os sintomas mentais e corporais se
combinavam sem maiores problemas (a ausência de febre, por exemplo, foi usada, desde esta
época até o século XIX, para separar as loucuras convencionais ou vesânias - mania, paranóia,
etc - dos estados delirantes secundários à doença física); por outro lado, no século XVII, a
aceitação da separação cartesiana entre as substâncias extensa e pensante acarretou uma
torção conceitual na noção de loucura: a idéia de que doenças mentais poderiam ser
acarretadas por doenças físicas passou a ser um problema. (Berrios, 2011). Portanto, no século
XIX, “ou a loucura é uma afecção orgânica de um princípio material, ou é a perturbação
espiritual de uma alma imaterial” (Foucault, 2005, p.213), não sendo possível a existência de
uma perturbação da alma com origem orgânica - como eram até então considerados os casos
de estados delirantes febris.
Segundo Foucault (1987/2005) os estudiosos do século XVIII travam uma grande
discussão em torno da origem da loucura e, em conseqüência, da origem do delírio: “a alma
dos loucos é louca?”

Sob a influencia de Locke, muitos médicos procuravam a origem da loucura numa


perturbação da sensibilidade: se se vêem diabos, ou se ouvem-se vozes, a alma não
tem nada a ver com isso, ela recebe como pode aquilo que os sentidos lhe impõem.
Ao que Sauvages, entre outros, respondia: aquele que vê turvo e vê em dobro não
está louco; mas aquele que, vendo em dobro, acredita que existem dois homens,
está. Perturbação da alma, não do olho; não é porque a janela está em mau estado,
mas porque o morador está doente. Essa é a opinião de Voltaire. (Foucault,
1987/2005, p.212)

Desta forma, e sob a influência de John Locke, que tendia a considerar a loucura como
um erro da sensopercepção, muitos estudiosos procuravam a origem da loucura e, portanto,
dos delírios, numa perturbação da sensibilidade. (Foucault, 1987/2005) Sob a justificativa de
que a alma seria imutável, a doença só poderia ser orgânica. (Berrios, 2006) Havia, assim, no
século XVIII, uma divisão teórica: uns, crendo na imutabilidade da alma, baseavam-se no erro
da sensopercepção e apostavam na etiologia orgânica da loucura; outros, acreditando que se
tratava de um erro de julgamento, apostavam no adoecimento da alma.
No século XIX, alguns estudiosos da loucura, apostando no erro de julgamento,
começam a tentar circunscrever os delírios segundo um modo de evolução interna que lhes
seria próprio; enquanto outros, considerando a origem do erro na sensopercepção,

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consideravam o delírio análogo aos sonhos, acreditando que sua evolução seria tão mutável e
variável como os últimos.
Assim, o delírio ia sendo divido em delirium e delírio: o primeiro, uma “afecção do
corpo” e, o segundo, uma “afecção da alma”.
Berrios (2011) afirma que a “aceitação pela psicologia clássica de uma visão da
consciência como uma função separada levou a psiquiatria a reinterpretar a desorientação e a
confusão de idéias como perturbações dessa nova função.” (Berrios, 2011, p.175) Esta noção
teria possibilitado a idéia de perda do controle voluntário sobre as funções intelectuais,
contribuindo, assim, para a diferenciação entre delírio e delirium.
Em seu livro The history of Mental Symptoms, Berrios (2006) enfatiza a importância
da noção psicopatológica de consciência e, consequentemente, de turvação da consciência
(rebaixamento da consciência, em grau leve a moderado) para diferenciar delirium - no qual a
turvação estaria presente – e delírio - no qual não haveria alteração quantitativa ou qualitativa
da consciência. Desta forma, a noção de níveis de consciência - da vigília ao coma, passando
pelo sono -, contribuiu para a aproximação do mecanismo do delirium com o mecanismo dos
sonhos e possibilitou, por outro lado, a diferenciação do delírio, que não afetava o nível da
consciência ou a orientação alopsíquica – isto é, a capacidade de se localizar no tempo e no
espaço.
Por outro lado, Maleval (1998) enfatiza a importância do estudo evolutivo do delírio
para a diferenciação do mecanismo envolvido nos delírios e nos sonhos, já que o primeiro
apresentava uma lógica evolutiva, enquanto o último, não.
Destaca-se que, se inicialmente Freud aproximará o sonho da loucura, como veremos,
não é no sentido já estabelecido da desordem do sonho, uma vez que, para Freud, o sonho é
carregado de uma estrutura: todo sonho porta uma realização de desejo - isto é, o sonho, para
Freud, possui, tal qual o delírio, uma lógica, é estruturado de alguma maneira. Entretanto, ao
longo da obra, diferenciações serão feitas, e ver-se-á, sobretudo a partir do estudo lacaniano,
que o tema do desejo na psicose se distingue radicalmente do desejo na neurose,
diferenciando as formações do inconsciente - como o sonho – dos fenômenos psicóticos –
como o delírio e as alucinações verbais. Voltemos ao estudo evolutivo das loucuras.
Guislain (1797-1860), assim como Pinel e Esquirol, considerava as loucuras como
reações psicológicas a um estado de dor moral; a causa da loucura era, para ele, uma causa
moral, embora admitisse uma predisposição hereditária. Uma de suas principais contribuições
diz respeito ao termo delírio:

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Sob o nome de delírio, destacou as formas com idéias delirantes primárias das formas em
que o delírio era secundário aos distúrbios afetivos (depressão, ansiedade, exaltação)
assimilando pela primeira vez uma classe de psicoses delirantes que, mais tarde, os alemães
chamariam de paranóia, e que ele distinguiu dos distúrbios afetivos de tipo maníaco e
melancólico. (Bercherie, 1989, p.71-72)

Foi Guislain quem influenciou radicalmente Griesinger (1817-1868), o primeiro


psiquiatra considerado organicista. Griesinger foi o autor do primeiro verdadeiro tratado de
psiquiatria - já que a obra de Esquirol e Pinel foi considerada mais uma coleção de verbetes
que um manual de psiquiatria. Ele aproximava sonho e delírio, apesar de ter contribuído para
o estudo evolutivo da loucura e foi também um dos psiquiatras que mais influenciou o estudo
psicanalítico de Freud:

Griesinger sem dúvida influenciou Freud vivamente; de fato o exemplar pertencente a ele
estava ‘cuidadosamente sublinhado a lápis’, em particular ‘ é do mais alto interesse o
acúmulo de notas a lápis nas paginas em que Griesinger apresenta sua teoria do ego e sua
concepção da metamorfose do ego’ no delírio, teses que Freud retomaria muito amplamente.
(ibidem, p.73)

Apesar de organicista, é através de Griesinger que a revolução pineliana (clínica


psiquiátrica francesa) penetra na Alemanha. A escola alemã conservou sempre tentações
totalizantes e uma tendência a partir de uma interpretação fisiológica do quadro clínico e da
inter-relação dos sintomas, diferente da escola francesa, como o próprio Freud (1892-
94/2006) nos ensina no Prefácio à tradução alemã das Conferências das Terças-feiras, de
Charcot:

Enquanto a descrição dos clínicos é o tema central da nosografia, a tarefa da clínica médica é
averiguar até o fim a forma individual que cada caso assume e a combinação de seus
sintomas. (...)
Essa forma de abordagem [método francês] é, de fato, estranha ao método alemão. Para este,
o quadro clínico e o tipo não desempenham qualquer papel de relevo, e é explicada pela
evolução dos clínicos alemães: uma tendência a fazer uma interpretação fisiológica do estado
clínico e da inter-relação dos sintomas. A observação clínica dos franceses,
indubitavelmente, ganha em auto-suficiência, no sentido de que relega a plano secundário os
critérios relativos à fisiologia. (Freud, 1892-94/2006, p.176)

Ao tratar das características gerais da loucura e de suas analogias com certas formas
‘normais’ de experiência, Griesinger descreveu em especial suas afinidades com o sonho e a
hipnose. No tocante ao delírio, demarcou seu domínio sob a denominação de Verrücktheit
[perturbação do espírito], distinto da Versinnung [confusão mental] (Kauffmann, 1996).
Alguns anos mais tarde Kraepelin adotou essa delimitação, simplesmente substituindo o
termo Verrücktheit por paranóia.

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No plano nosológico, podemos observar o progresso representado pelo isolamento do grupo
dos delírios crônicos, já preparado por Guislain. [...] O fato de eles serem considerados
sempre secundários a um episódio agudo certamente representou uma imperfeição [...] e que
Griesinger deveria corrigir mais tarde, ao reconhecer a existência da Verrücktheit primária de
Snell; Baillarger também contestaria a presença constante de uma debilitação intelectual,
prenunciando o debate da década de 1900 entre os alienistas franceses e alemães (Kraepelin)
sobre as formas sistematizadas dos delírios crônicos alucinatórios (Bercherie, 1989, p.77-78)

Bercherie (idem) assinala que foi a partir do estudo evolutivo da loucura que
Griesinger pôde isolar o delírio crônico e apontar um tipo de delírio como fenômeno primário:

Essa foi a primeira aparição de uma fenomenologia das ‘experiências delirantes primárias”
(Jaspers), bem como de uma distinção de camadas estruturais diferentes na massa dos
fenômenos delirantes. [...]
Griesinger apresentou-nos uma nosologia erigida sobre a idéia da evolução das formas
clínicas; foi isso que lhe permitiu isolar os delírios crônicos. [...]
Assim, vemos surgir um novo critério clínico – a evolução – na construção nosológica.
(idem)

Chama à atenção a semelhança que a teoria do eu, de Griesinger, tem em relação à


organização psíquica descrita por Freud (1950[1895]/2006) em seu Projeto para uma
psicologia científica. Griesinger concebe a inteligência como uma atividade associativa que
teria por base as representações mentais. Estas últimas, por sua vez, provinham das sensações,
e haveria entre a percepção e a consciência uma multidão de analogias importantes.
Sua noção de eu e de metamorfose do eu, que seria retomada por Freud, sobretudo no
tocante ao delírio, implica a idéia de tendências e representações que lutavam por ocupar o
campo da consciência e por se transformar em atos.
Nessa luta, ganhava a tendência mais forte, mas alianças eram formadas através de
associações entre as tendências formando complexos de ideias cada vez mais solidamente
encadeadas. A natureza desses complexos dependia de sua história e dos acontecimentos
externos com que o eu se deparava. As representações harmoniosas seriam ‘reforçadas’ e
poderiam consumar-se, enquanto as outras seriam recalcadas (o termo é tomado do psicólogo
alemão Herbart, 1776-1841, grande influenciador de Griesinger). Mas o eu, tal qual na
puberdade, poderia sofrer modificações: assim como as mudanças orgânicas da puberdade
geravam uma série de novas sensações, acarretando novas associações de ideias; do mesmo
modo modificações orgânicas causadas pela doença cerebral poderiam acarretar modificações
no eu. (Bercherie, 1989) No trecho a seguir, Bercherie (ibidem) descreve como ocorria, para
Griesinger, esta modificação no eu e, como, a partir disso, ele pôde isolar o delírio
sistematizado do delírio crônico, que levaria à demência:

12
‘A doença cerebral faz nascerem disposições e pendores que se tornam ponto de partida de
emoções’: ela modificava sutilmente o regime de fluxo dos pensamentos, o ‘ritmo’ da
atividade mental, para empregarmos uma formulação moderna, mas também o humor básico
e os diversos sentimentos.
[...]
Esses fenômenos eram inicialmente sentidos pelo eu num obscuro sentimento de angústia, de
dor moral (a frenalgia inicial de Guislain). Ele podia se deixar arrastar ou, ao contrário,
reagir, [...] exaltar-se e ser invadido por um estado de humor inverso. De qualquer maneira,
progressivamente, o novo estado mental dava origem a representações concordantes, a
‘juízos falsos (idéias fixas) que o doente não consegue retificar’
‘os juízos falsos tornam-se parte integrante do eu’ assim metamorfoseado. A luta podia parar,
dissipar-se a tempestade mental e o doente recuperar um pensamento ‘formalmente exato’,
mas as idéias anormais deslizavam para dentro dele como premissas irresistíveis; ‘o doente
já não é, sob nenhum aspecto, o mesmo que era antes; é inteiramente diferente: seu eu
transformou-se num eu novo e falso”. Essa era a loucura sistematizada (Verrücktheit). O
processo podia ser mais destrutivo: podia dissociar o eu em diversas massas pouco coerentes
e contraditórias (discordantes, dir-se-ia mais tarde), fazendo a unidade da pessoa desaparecer
na demência. (ibidem, p.75, [grifo nosso])

A partir disso, o estudo evolutivo das loucuras foi sendo aprimorado, como pode-se
observar com o psiquiatra francês Jean-Pierre Falret (1794-1870) que também contribuiu para
o estudo do delírio. Ele foi um dos primeiros a isolar a “loucura circular” – psicose maníaco-
depressiva - e o primeiro a dividir o delírio crônico em etapas evolutivas. Segundo ele, o
delírio se desenvolve segundo leis que lhe são próprias e pode ser dividido em três fases: uma
fase de incubação, dominada por um sentimento de angústia e dor moral, além de alucinações
e idéias variadas e vacilantes; uma de sistematização, em que o distúrbio das faculdades
intelectuais e afetivas era encarnado em algumas séries de ideias determinadas e; uma de
cronificação, na qual o delírio, já estereotipado e imutável tornava-se, a partir de então,
incurável.
Assim como Falret; Lasegue, Magnam e Kraepelin também se dedicaram ao estudo
das loucuras através de suas formas evolutivas.
Lasègue (1816-1883) distinguiu duas fases no delírio de perseguição: a primeira, um
mal estar indefinível e, a segunda, uma tentativa de explicar os males sofridos. Ele ainda
diferencia o delirium alcoólico do delírio, aproximando o primeiro dos sonhos.
Magnan (1835-1916) retoma a descrição do delírio crônico de Lasègue, dividindo-o,
porém, em quatro períodos: um primeiro período, de incubação e inquietude. Um segundo, de
perseguição e sistematização. Um terceiro período, de grandeza, no qual as idéias de grandeza
apareceriam por dedução lógica e, um quarto período, de demência.

13
Kraepelin (1883-1913), cuja ampla nosologia4 repousa, em grande parte, sobre a
noção de evolução, distinguiu três grupos fundamentais de psicoses, os quais passarão, pouco
a pouco, a fazer parte do campo de estudos da psicanálise: a paranóia, a loucura maníaco-
depressiva, que se tornaria a psicose maníaco-depressiva, e a demência precoce - que se
tornaria, com Bleuler, em 1906, a esquizofrenia. A nosologia kraepeliana foi largamente
utilizada por Freud. Destaca-se que Kraepelin adotou a delimitação de Griessinger,
substituindo o termo Verrücktheit por paranóia – o delírio sistematizado dos franceses.
(Kaufmann, p. 391). Nesse quadro, Kraepelin definiu a paranóia como uma doença de:

‘desenvolvimento insidioso, na dependência de causas internas e segundo uma evolução


contínua, de um sistema delirante, duradouro e inabalável, que se instaura com uma completa
preservação da clareza e da ordem no pensamento, no querer e na ação’ Segundo ele, tratava-
se de uma doença ‘constitucional’ que repousava em dois mecanismos fundamentais: o
delírio de referência e as ilusões de memória, ambos produtores de diferentes temas de
perseguição, ciúme e grandeza. (Roudinesco, 1998, p.572-573)

À paranóia e à demência precoce, acrescentou-se ainda um termo intermediário, a


parafrenia, que designava um delírio crônico, situado entre a demência precoce e a paranóia.
A parafrenia seria acompanhada de enfraquecimento intelectual e não evoluiria para a
demência, mas se aproximaria dela pelas suas construções delirantes ricas e mal
sistematizadas. (Laplanche e Pontalis, 2001). Kraepelin cunhou, ainda, o termo dementia
paranoides - forma paranóide da demência precoce – ao lado das já reconhecidas formas
hebefrênica e catatônica da demência precoce.
Assim, enquanto a acepção pré-kraepeliana da paranóia era a de uma entidade clínica
muito ampla, que agrupava a maior parte das formas de delírios crônicos, (Laplanche e
Pontalis, 2001), Kraepelin divide-a em três grupos, de acordo com a sistematização delirante:
a demência precoce, a parafrenia e a paranóia.
Vale destacar que a distinção entre paranóia e demência precoce feita por Kraepelin
não é apenas descritiva, ou seja, não se restringe à presença/ausência dos sintomas e à
sistematização ou não do delírio. Segundo Roudinesco e Plon (1998), na nosologia
kraepeliana a demência precoce se diferencia da paranóia porque na primeira, a personalidade
corporal do sujeito seria lesada, sendo que o sujeito sofreria da ação de forças estranhas sobre
o organismo; enquanto na segunda, isso não ocorreria. Neste sentido, Kraepelin afirma:

Na paranóia verdadeira observei algumas vezes a idéia de uma influência proveniente de


alimentos envenenados, mas nunca, ao contrário, a concepção de se estar entregue, como um
joguete inerte, à dominação de uma personalidade alheia. (Kraepelin, 1905/1988 p.164)
4
Em 1883 surgiu o compêndio de psiquiatria de Emil Kraepelin. Em trinta anos ele conheceria oito edições e
iria, de 380 à duas mil e quinhentas páginas. Não haveria uma só edição sem modificações. Mas algumas, são
mais cruciais, por terem sido consagradas pelo uso dos psiquiatras da época. (Laplanche e Pontalis, 2001).

14
Neste trecho, Kraepelin parece antecipar um dos pontos essenciais ao estudo freudiano
da paranóia, sobretudo com o famoso caso Schreber: a mudança de fase da enfermidade de
Schreber se destaca exatamente nesta diferença: se na primeira fase o sujeito é objeto de uma
invasão e está completamente dominado pelo Outro, tal qual Kraepelin identifica na demência
precoce; na segunda fase, embora o sujeito possa sentir-se perseguido, não há um
assujeitamento completo; o que seria característico da paranóia kraepeliana. E, é através da
construção delirante que Schreber sai desta posição de “joguete inerte”.
Desta forma, observamos que, mesmo apostando na origem orgânica da loucura, o
estudo evolutivo das chamadas ‘doenças mentais’, assim como o estudo da lógica do delírio,
foi essencial para o estudo psicanalítico da paranóia.
Entretanto, mesmo a psiquiatria organicista se dividirá no estudo da psicose,
considerando-a um fenômeno estruturado ou não. O psiquiatra francês Henri Ey (1900-1977),
por exemplo, funda sua clínica sobre os níveis da desestruturação da consciência e não sobre a
investigação de mecanismos psíquicos específicos do delírio, o que o levou a retomar a noção
de delírio como um fenômeno desestruturado: “o delírio não se desenvolve como um cristal
ou como uma semente, e não está condicionado por uma estrutura elementar que o determine”
(Ey, 1974, p.522)
São noções tais como as de Heni Ey que foram passando a predominar na psiquiatria,
chegando soberanas aos manuais psiquiátricos e livros de psicopatologia atuais: uma
conceituação descritiva, com a qual chega-se a definição de delírio como juízo
patologicamente falso (Dalgalarrondo, 2008). Frequentemente acrescenta-se à definição atual
de delírio três características descritivas, definidas por Jaspers, em 1913: convicção
extraordinária (certeza subjetiva), impossibilidade de remoção da idéia pela experiência e,
conteúdo impossível. Tais definições, por serem descritivas, e não estruturais, se mostram
bastantes limitadas, uma vez que não permitem avançar na questão da função do delírio para o
sujeito. É assim que Lacan, contemporâneo e amigo de Henri Ey, instala, a partir da década de
1930, um embate teórico com o mesmo: Lacan aposta, tal qual Freud, na psicogênese da
loucura, enquanto Henri Ey aposta na organogênese da mesma – sem qualquer estrutura ou
influência do psiquismo. (Lacan, 1946/1998)
Enfim, a psicanálise freudiana se insere neste contexto, anterior ao embate referido,
com seus primórdios no final do século XIX e seu desenvolvimento no início do século XX.
Apostando na psicogênese herdada da escola francesa, Freud insere, inicialmente, a paranóia
no campo das neuroses, isto é, uma enfermidade que tem suas origens em conflitos psíquicos.

15
Posteriormente, desenvolve uma teoria que tenta explicar a função do delírio para o sujeito,
assim como o mecanismo estrutural da psicose.
Tentemos destacar, pois, no percurso freudiano, esta empreitada.

1.4 Freud: a importância da noção de delírio para a conceituação da psicose

Ao longo de sua obra, vemos Freud se referir à paranóia, ora como uma neurose, ora
como uma neuropsicose, ora, ainda, como uma psicose, o que pode parecer obscuro ao leitor
desavisado, que carrega consigo a noção dicotômica de neurose e psicose como estruturas
clínicas que não podem ocorrer ao mesmo tempo num mesmo sujeito. Entretanto, vale
destacar que o termo psicose, retirado da psiquiatria, só terá o estatuto de conceito
propriamente psicanalítico em 1924.
A partir do que foi visto nos itens anteriores, pode-se melhor entender que Freud, no
início de seus estudos, considerava a paranóia uma neurose – no sentido de uma enfermidade
de etiologia psíquica. E se, mesmo no início da obra, o autor se refere, por diversas vezes, à
paranóia como uma psicose, é porque esta utilização do termo é puramente descritiva, ou seja,
se refere ao quadro sintomático. No trecho transcrito a seguir, do Rascunho H, de 1895, pode-
se observar isso com bastante clareza. Neste texto, Freud faz referência à paranóia como uma
psicose, mas apenas no início do artigo, quando menciona a opinião da psiquiatria, que
considera a etiologia orgânica das psicoses. Ao longo de todo o manuscrito, Freud defende a
etiologia psíquica da paranóia, enquadrando-a nas defesas neuróticas.

Na psiquiatria, as idéias delirantes situam-se do lado das idéias obsessivas como distúrbios
puramente intelectuais, e a paranóia situa-se ao lado da loucura obsessiva como uma
psicose intelectual. Se as obsessões já foram atribuídas a uma perturbação afetiva e se
encontrou prova de que elas devem sua força a um conflito, então a mesma opinião deve ser
válida para os delírios, e também estes devem ser conseqüência de distúrbios afetivos, e sua
força deve estar radicada num processo patológico. Os psiquiatras aceitam o contrário deste
fato... (Freud, 1895, p.253-254)

Em um trecho de uma carta a Fliess, a carta 61, de 2 de maio de 1897, Freud


classifica, claramente, a paranóia como um tipo de neurose:

Percebo, agora, que todas as três neuroses (histeria, neurose obsessiva e paranóia) mostram
os mesmos elementos (ao mesmo tempo que mostram a mesma etiologia) – ou seja,
fragmentos mnêmicos, impulsos (derivados da lembrança) e ficções protetoras, e percebo
que a irrupção na consciência, a formação de compromissos ( isto é, sintomas), ocorre
nessas neuroses em pontos diferentes. (Freud, 1897, p.296, vol.1)

16
Também nos artigos Neuropsicoses de defesa, de 1894, e Observações adicionais
sobre as neuropsicoses de defesa, de 1896, Freud classifica claramente a paranóia como uma
neurose - ou seja, uma defesa psíquica - junto à histeria e à neurose obsessiva. No segundo
texto, contudo, o autor se refere à paranóia como uma “psicose de defesa”. Assim, mesmo
aproximando neurose e psicose, já é patente sua tentativa de diferenciar o mecanismo de
defesa de cada uma delas.

Em ambos os casos até aqui considerados, a defesa contra a representação incompatível foi
efetuada separando-a de seu afeto; a representação em si permaneceu na consciência, ainda
que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e
bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e
se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento
em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como
“confusão alucinatória”. (Freud, 1894, p.64, vol.III)

Por tempo considerável tenho alimentado a idéia de que também a paranóia (...) é uma
psicose de defesa; isto é, que tal como a histeria e as obsessões, ela provém do recalcamento
de lembranças aflitivas, sendo seus sintomas formalmente determinados pelo conteúdo do
que foi recalcado. Entretanto, a paranóia deve ter um método ou mecanismo especial de
recalcamento que lhe é peculiar, assim como a histeria efetua o recalque pelo método da
conversão em inervação somática, e a neurose obsessiva, pelo método da substituição.
(Freud, 1896, p. 174, vol. III)

Ao mesmo tempo em que considera a paranóia um mecanismo específico de defesa,


análogo ao da neurose, Freud chama a atenção para a importância que o delírio tem para o
paranóico. É o que pode-se observar no Rascunho H, sobre a paranóia, de 1895:

Ora, sucede que a paranóia crônica, na sua forma clássica, é um modo patológico de defesa,
tal como a histeria, a neurose obsessiva e a confusão alucinatória. As pessoas tornam-se
paranóicas diante de coisas que não conseguem tolerar, desde que para isso tenham a
predisposição psíquica característica. (Freud, 1895, p.253) (grifo nosso)

Qual seria a peculiaridade da defesa paranóica? (Freud, 1895, p.257)

Em todos os casos, a idéia delirante é sustentada com a mesma energia com que uma outra
idéia, intoleravelmente penosa, é rechaçada do ego. Assim, essas pessoas amam seus
delírios como a si mesmas) (Freud, 1895, p.257) [grifo nosso]

Neste mesmo texto, Freud (1895) nos apresenta um caso de paranóia 5 e faz sua
interpretação a respeito dele. Convém assinalar a busca da especificidade do mecanismo
paranóico, em analogia ao mecanismo neurótico, assim como a antecipação teórica que este
caso parece fazer, no que diz respeito, tanto às alucinações, como ao delírio de perseguição.
Uma senhora procura Freud, e relata que a irmã havia contado a ela sobre uma
tentativa de assédio, após o que caiu em surto paranóico, desenvolvendo delírios de ser
observada e perseguida: “achava que suas vizinhas tinham pena dela por ter sido abandonada

5
Ao longo da obra freudiana observa-se o uso do termo paranóia em seu sentido pré-kraepeliano.

17
pelo pretenso namorado e por ainda estar esperando que o homem voltasse; estavam sempre a
lhe dizer insinuações dessa natureza, diziam-lhe todo tipo de coisas a respeito do homem, e
assim por diante. Tudo isso, dizia ela [a irmã], era naturalmente inverídico” (Freud, 1895,
p.255). Freud nos diz que tenta curar a moça da tendência paranóica fazendo-a reviver a cena,
mas que é em vão, uma vez que a moça nega ter vivido acontecimento semelhante e vai-se
embora, ofendida. O autor observa que não há dúvida que se trata de uma defesa, mas de um
tipo diferente:

Provavelmente, na realidade, ela ficava excitada com o que viu e com a lembrança
do fato. Logo, estava-se poupando da censura de ser uma “mulher depravada”. Daí
em diante, passou a ouvir essa mesma censura, agora proveniente de fora. Assim, o
tema permanecia inalterado; o que mudava era a localização da coisa. Antes,
tratara-se de uma autocensura interna; agora, era uma recriminação vinda de fora.
O julgamento a respeito dela fora transposto para fora: as pessoas estavam dizendo
aquilo que, de outro modo, ela diria a si mesma. Havia uma vantagem nisso. Ela
teria sido obrigada a aceitar o julgamento proveniente de dentro; já o que vinha do
exterior, podia rejeitar. Dessa forma, o julgamento, a censura, era mantida afastada
de seu ego.
Portanto, o propósito da paranóia é rechaçar uma idéia que é incompatível com o
ego, projetando seu conteúdo no mundo externo. (Freud, 1895, p.255) [grifos
nossos]

Portanto, já em 1895, Freud tenta explicar os fenômenos alucinatórios e delirantes


pelo mecanismo de uma defesa mais radical, na qual o fragmento mnêmico é “rechaçado” do
eu, retornando “de fora”. Defesa mais radical, mas que, neste momento, se classifica como
defesa neurótica – em virtude de sua etiologia psíquica.
Freud notou também, ainda no século XIX, que haveria uma “predisposição psíquica”
(Freud, 1895, p.257) para cada uma das ‘neuroses’. Mas, é só mais tarde na obra freudiana
que a psicose será definida independentemente da neurose, sendo só nos artigos Neurose e
Psicose e Perda da realidade na neurose e na psicose, ambos de 1924, que Freud introduz,
pela primeira vez, a psicose enquanto conceito teórico. Acrescenta-se que isso se dá a partir da
distinção que ele faz entre neurose e psicose, distinção, por sua vez, feita através da noção de
perda/substituição da realidade que ocorreria nesta última, isto é, através do delírio – que já
era considerado, desde 1911, com o caso Schreber, uma tentativa de cura paranóica.
Mas, assim como o termo psicose foi utilizado inicialmente de forma descritiva, do
mesmo modo o termo delírio também o foi. É o que será destacado no também famoso texto
Delírios e sonhos na Gradiva de W. Jensen.
Neste ponto, buscar-se-á apreender, por um lado, o momento, já indicado, em que a
psicose passa a constituir um conceito teórico propriamente psicanalítico; e por outro, o

18
momento em que o delírio passa a ser utilizado, não como um termo descritivo, mas como um
fenômeno relacionado à psicose.
Inicialmente, Freud parece não diferenciar o delírio do delirium, como aponta o trecho
a seguir, retirado de um artigo sobre neurose de angústia, de 1895: “por meio da soma, um
alcoólatra crônico desenvolverá finalmente uma cirrose ou alguma outra doença, ou ainda, por
influência de uma febre, cairá vítima de um delírio.” (Freud, 1895[1894], p.107, v.III) [grifo
nosso]
Além disso, neste momento inicial de sua obra, o autor parece apresentar uma visão
onírica da loucura, aproximando a loucura e a psicose dos sonhos. Isso se evidencia, por
exemplo, na parte H, do primeiro capítulo, de A interpretação dos sonhos, no qual o autor
discute “as ligações intrínsecas entre os sonhos e as psicoses, apontando as analogias para o
fato de eles serem essencialmente afins” (Freud, 1900, p.123) e cita diversos autores que
aproximavam o sonho da doença mental, dentre eles, Wundt, Moreau e Hagen, sendo que -
este último - “descreve o delírio como uma vida onírica que é induzida não pelo sono, mas
pela doença.” (Freud, 1900, p.125). Neste capítulo de A Interpretação dos Sonhos, Freud
chega a conjecturar que o estudo dos sonhos poderia contribuir para uma explicação das
psicoses, no sentido de que a elucidação do modo de funcionamento do sonho acarretaria na
elucidação do funcionamento da psicose.
Destaca-se que, se esses autores aproximavam sonho e loucura, não entendiam, tal
como Freud, que o sonho constituía a via régia para o inconsciente. A inovação de Freud é,
justamente, considerar o sonho não como uma desordem, mas como um fenômeno
estruturado. É assim que a aproximação freudiana entre sonho e loucura tem um caráter muito
diferente das aproximações feitas até então.
Entretanto, inicialmente, se o sonho é uma realização de desejo, Freud também
aproximará, como faz em 1907, o delírio de uma realização de desejo. É ao longo da obra
freudiana e com o avanço da teoria que ver-se-á as diferenças estruturais entre estes dois
fenômenos sendo estabelecidas.
Desta forma, ao apresentar o estudo analítico Delírios e sonhos na Gradiva de Jansen,
Freud (1907) traz, sob o nome de delírio, a fantasia e os devaneios neuróticos de um jovem.
Fantasia esta, muito próxima de um sonho, inclusive no sentido da representação da
realização de um desejo recalcado. Mas muito próxima também da definição psicopatológica
de delírio, que como disse Freud, chegava a “influenciar suas ações” (p.25), ao ponto de levar
o jovem a, crendo em sua própria criação, viajar uma longa distância até Pompéia, onde
acreditou que poderia encontrar sua Gradiva, uma mulher-fantasma. Vendo uma escultura que

19
lhe cativava pela forma de pisar da mulher, Norbert cria uma fantasia: nomeia a mulher da
escultura de Gradiva e cria-lhe uma história. Acreditando que ela realmente existe, Norbert
vai em busca desta mulher inventada. É só com o trabalho de delicada escavação, feito por
Zoé, tal qual uma analista, que Norbert é capaz de desvendar sua “fantasia delirante” - como
denomina Freud. Gradiva é remetida, pelo jeito de andar, desde sempre, à Zoe: um amor de
infância, a mulher que ele realmente procurava e que encontrou em Pompéia – embora fossem
quase vizinhos. É só com o trabalho de interpretação, equivocando as falas e apontando,
delicadamente, que ele poderia procurar esta mulher em outro lugar, que Norbert pode se dar
conta de seu desejo recalcado. Portanto, Norbert vai em busca de seu desejo insatisfeito, ainda
que, pelo disfarce, pela metáfora, não saiba o que procura.
Nesse sentido, vemos que Freud, em 1907, utiliza uma definição descritiva do delírio,
o que permite, neste momento da obra, aproximá-lo dos sonhos e da representação do desejo
inconsciente. É assim que, nesse sentido, torna-se possível utilizar o termo delírio para falar
de um caso de neurose.

Em 1911, ao escrever o famoso Caso Schreber, Freud apresenta uma nova concepção
de delírio que o articula estreitamente à estrutura da paranóia. Neste texto ele vincula o
surgimento da paranóia a um desejo homossexual recalcado. Assim, se, por um lado, a noção
de paranóia como defesa de um desejo homossexual continua sendo descritiva, na medida em
que se foca no conteúdo do delírio e não na estrutura do mecanismo; por outro lado, o autor
rompe com a psicopatologia descritiva, na medida em que apresenta o delírio paranóico como
uma tentativa de cura. “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na
realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”. (Freud, 1911,
p.78)
Portanto, embora a correlação entre paranóia e homossexualidade possa ser discutida 6,
é importante ressaltar que este modo de conceber a origem da paranóia contribuiu em muito
para o entendimento da posição estrutural que o paranóico ocupa em relação ao Outro. A
proximidade da psicose ao feminino - que Freud apresenta sob a forma de desejo
homossexual, e que Lacan chamará, em 1972, em O Aturdito, de empuxo-à-mulher (Lacan,
1972/2003, p.466) – deve-se ao lugar de objeto que ambos ocupariam na relação ao Outro –
ainda que este lugar possa ser ocupado de formas bastante diferentes: o paranóico é levado a
encarnar o lugar da mulher de exceção – e não o da uma mulher, aquela que é faltosa, isto é,

6
Jacques Lacan discutirá essa questão no seminário 3, dedicado às psicoses, no qual retoma o estudo do caso
Schreber. Abordaremos tal seminário no capítulo subseqüente.

20
que é marcada pela castração.
Retornando à obra freudiana, chama à atenção que a posição de objeto do paranóico já
pode ser marcada pela inversão proposicional sugerida por Freud neste mesmo texto –
inversão esta, que ocorreria ao longo do processo de projeção. Nesta inversão, pode-se
observar que o delirante passa de uma posição ativa a uma posição passiva: no delírio de
perseguição, de eu o amo a ele me odeia (persegue); no delírio erotômano, de eu o amo a ela
me ama e, no delírio de ciúmes, de eu o amo a ela o ama. Desta forma, seja objeto de ódio,
objeto de amor ou objeto de traição, no delírio paranóico o sujeito é sempre objeto do Outro.
Freud apresenta uma quarta inversão, a propósito da megalomania: inversão que “rejeita a
proposição como um todo” e que seria equivalente a “eu só amo a mim mesmo” (Freud, 1911,
p.72) . Nesta quarta inversão, o eu continua ocupando uma posição passiva – aquele que é
amado -, mas ocupa também, concomitantemente, uma posição ativa – aquele que ama.
Destaca-se este ponto, uma vez que a megalomania, ou fase de “grandeza”, compõe a terceira
fase do delírio crônico descrito pela psiquiatria clássica, assim como a fase de
restabelecimento de Schreber. Tal fato parece apontar para uma tomada de posição do sujeito
ativo, ainda que identificado ao objeto. Voltar-se-á a isso no decorrer deste trabalho.
A partir do exposto e, sobretudo, da posição de objeto que o paranóico ocupa na
construção delirante, pode-se verificar a diferença entre a fantasia delirante de Norbert -
personagem de Jansen, que pode ser localizado na posição ativa, de sujeito desejante - e
Schreber, que constrói seu delírio – ao menos inicialmente – colocando-se numa posição
passiva, posição de objeto do Outro.
Segundo Freud, isso – ocupação do lugar de perseguido, de objeto do Outro - ocorreria
através do mecanismo da projeção, que é aqui definido como próprio à paranóia. Entretanto,
no mesmo texto Freud retifica essa afirmação: “foi incorreto dizer que a percepção suprimida
internamente é projetada para o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos,
que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora”. (Freud, 1911, p.78) Esta noção
será fundamental, como será visto, para a posterior formalização, efetuada por Lacan (1955-
56/2002), do mecanismo estrutural da psicose, a saber, a foraclusão – formalização da
rejeição, isto é, Verwerfung, freudiana -, assim como para o entendimento da estrutura dos
fenômenos elementares da psicose.
Um outro ponto a ser destacado no texto em questão é o caráter megalomaníaco dos
delírios paranóicos, que Freud justifica por uma fixação no estádio do narcisismo (estádio, no
desenvolvimento libidinal do sujeito, em que ocorre o investimento no próprio eu). Segundo
ele, na paranóia, a libido liberada dos investimentos sociais anteriores vincula-se ao eu e é

21
utilizada para o engrandecimento deste, o que poderia ser caracterizado como um retorno ao
estádio do narcisismo. Desta forma, as pessoas que não se libertaram completamente desse
estádio estariam expostas ao perigo de que uma parte da libido excepcionalmente intensa não
encontrasse outro escoadouro e desfizesse as sublimações que o indivíduo pudesse ter
alcançado, desembocando na perda da realidade para o paranóico.
Desta maneira, em 1911, Freud retoma sua idéia - concebida nos Três ensaios para
uma teoria da sexualidade – de que é no desenvolvimento libidinal que estaria localizada a
referida “predisposição psíquica” para tal ou qual ‘neurose’. (Freud, 1905)
O texto que apresenta o caso Schreber, portanto, é inovador em muitos aspectos. Mas
sua principal contribuição para a direção do tratamento na psicose se deve ao reconhecimento
do delírio paranóico como uma tentativa de cura: “A formação delirante, que presumimos ser
o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de
reconstrução” (Freud, 1911, p.78). No texto, Freud chega a dividir o delírio de Schreber em
duas fases: a primeira, em que ele poderia ser identificado como um joguete inerte do Outro, e
a segunda, megalomaníaca, que designa o delírio como tentativa de cura.

Em 1914, no artigo Sobre o narcisismo, Freud retoma a questão da megalomania e do


retorno ao narcisismo. Ao abordar as duas fases pelas quais toda criança passaria ao longo de
seu desenvolvimento libidinal, a saber, o auto-erotismo e o narcisismo (primário), associa a
fixação nestes estádios à esquizofrenia e à paranóia7, respectivamente.
Sendo o auto-erotismo a fase em que o bebê ainda não diferencia seu próprio eu do
mundo externo e, com isso, as pulsões buscam satisfação no próprio corpo, ou melhor, no
próprio órgão, a esquizofrenia, com seus vastos fenômenos de desagregação do eu teria um
funcionamento pulsional próximo ao do estádio do auto-erotismo.
Já o narcisismo, fase posterior ao investimento nos objetos externos, no qual há,
novamente, um investimento em si mesmo – desta vez, com a diferenciação entre eu e mundo
externa já estabelecida - se aproximaria dos fenômenos paranóicos, sobretudo no que diz
respeito à megalomania.
O eu, enquanto representação complexa que o indivíduo faz de si mesmo, não existe
desde o início, ele é desenvolvido. Assim, o ‘narcisismo’ surgiria de uma nova ação psíquica
sobre o ‘auto-erotismo’ (Freud, 1914/2006):

7
Aqui, já se observa a influência da classificação de Kraepelin, assim como da nomeação (esquizofrenia) de
Bleuler. Destaca-se, entretanto, que no próprio delírio de Schreber ambas estas fases (esquizofrênica e paranóica)
podem ser identificadas, cada uma em um momento diferente da evolução do delírio.

22
posso ressaltar que estamos destinados a supor que uma unidade comparável ao ego não
pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. As pulsões auto-
eróticas, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja
adicionado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo .
(Freud, 1914/2006, p.84 [grifo nosso])

Neste momento do desenvolvimento libidinal, como afirma Freud (1914/2006), tudo é


ab-rogado em favor da criança, que é ‘Sua Majestade o Bebê’, aquela que concretizará os
sonhos dourados que os pais jamais realizaram. Ou seja, a criança encarna aqui o ideal dos
pais. Freud (1914/2006, p.99) nos aponta - ainda que não desenvolva - que este é o ponto mais
importante quanto aos distúrbios aos quais o narcisismo original de uma criança estaria
exposto. Afinal, seria só com o Complexo de Castração que essa identificação ao ideal
poderia ser abalada. Neste mesmo texto, embora Freud (1914/2006) não explicite a separação
entre eu ideal e Ideal de eu, podemos, com a ajuda da leitura de Lacan, destacar no texto
freudiano a importância da formação destas instâncias psíquicas para o advento do
mecanismo do recalque. “Para o ego, a formação de um ideal seria o fator condicionante do
recalque” (Freud, 1914/2006, p.100) “O que ele [o indivíduo] projeta diante de si como sendo
seu ideal [Ideal de eu] é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o
seu próprio ideal. [eu ideal]” (Freud, 1914/2006, p.101)
Se levarmos em consideração que o que diferencia psicoses e neuroses é o mecanismo
de defesa - ou seja, na neurose, recalque e, na psicose, rejeição, ou como sugeriu Lacan,
foraclusão – então a afirmação de Freud (1914/2006), de que a formação de um Ideal de eu
(simbólico) como substituto ao eu ideal (imaginário) perdido da infância seria fator
condicionante para o recalque, nos é muito preciosa. Afinal, o que se vê na proposição
gramatical do megalômano, proposta por Freud em 1911, é exatamente a ausência de um Ideal
(simbólico) que não seja a própria imagem do sujeito: eu só amo a mim mesmo.
Freud (1914/2006, p. 81-82) afirma que a concepção “de um narcisismo primário e
normal” surgiria da tentativa de explicar a psicose (então chamada de parafrenia) – cujas
principais características seriam a megalomania e o desvio de seus interesses do mundo
externo – pela teoria da libido.
E, para pensar na característica megalomaníaca da paranóia, basta pensar no exemplo
tão comum de descrição da paranóia: o sujeito que se diz Napoleão. Do mesmo modo, na
clínica não é raro vermos sujeitos paranóicos que se intitulam pessoas importantes, ou pelo
menos pessoas que julgam importantes (donos de grandes negócios, médicos, Jesus Cristo,
Buda, Deus...), como é o caso de Alberto - aquele que faz chover.

23
Num momento anterior, quando a castração evidencia-se na vida de um sujeito
psicótico, isto é, quando algo torna evidente que o eu daquele sujeito não corresponde ao
Ideal, então o supereu surge com toda a sua força - não recalcado, mas vindo de fora.
Podemos localizar este momento que é o do desencadeamento psicótico, no caso de Alberto,
na ocasião em que ele levou o tiro no pescoço. Freud (1914/2006) assinala que a medição
entre o eu e o Ideal de eu é feita pela instância crítica do supereu, e nos diz que o fenômeno
psicótico das ‘vozes’ denuncia a existência dessa instância.
Mas, se o famoso Schreber pôde se organizar minimamente e ter seus direitos civis
concedidos de volta, foi graças à sua construção delirante, na qual ele identifica-se à nada
menos que a mulher de Deus, capaz de gerar uma nova humanidade. (Freud, 1911)
Sem entrar nos detalhes do caso, tão conhecido, do presidente Schreber, destaquemos
a importância de que a identificação de Schreber à mulher de Deus é uma identificação a um
ideal imaginário. É através da assíntota, isto é, a postergação, pelo tempo, do grande
acontecimento prometido, que pode haver uma distância entre Schreber e seu ideal
imaginário: ser a mulher de Deus. Este ideal é, portanto, diferente do Ideal de eu; já que não
suporta a falha evidenciada pela instância crítica e, consequentemente, não carrega a
duplicidade de sentido do simbólico, mas sim a encarnação imaginária.
Dessa forma, através do estudo do narcisismo, podemos perceber uma diferença
crucial no desenvolvimento libidinal do sujeito quando, através da substituição do eu ideal
pelo Ideal de eu - momento apontado por Freud como sendo o do Complexo de Castração e
desenvolvido por Lacan como momento da castração simbólica – o mecanismo do recalque se
instaura – e, com ele, a possibilidade da dialética do desejo.
Esta noção parece ser essencial para a compreensão da noção de desejo congelado,
estabelecida por Lacan (Lacan, 1974-75/inédito), pois, não havendo separação, não havendo
lacuna entre o eu e o Ideal de eu, base para a constituição do desejo, não há dialética; e o
desejo acaba por permanecer congelado. Voltaremos a este assunto no segundo capítulo. Por
enquanto, retomemos a obra freudiana.
Em 1915, no texto As pulsões e suas viscissitudes, o autor diferencia as neuroses de
transferência (histeria, neurose obsessiva) das neuroses narcísicas (esquizofrenia, paranóia) a
partir da teoria da libido. Neste momento, ele considera que as neuroses narcísicas seriam
conseqüência de uma fixação no estádio do narcisismo. Portanto, embora haja uma divisão, as
psicoses ainda ocupam um lugar de termo descritivo. Apenas a neurose opera
conceitualmente.

24
No mesmo ano, no texto O inconsciente, o autor traz uma importante contribuição
para o entendimento do delírio psicótico: ele associa o investimento libidinal da apresentação
da palavra - que não ocorreria no mecanismo do recalque – ao delírio paranóico – chamado
por ele de tentativa de cura, em referência ao texto de 1911. Segundo Freud, em sua tentativa
de cura, na direção de tentar recuperar os objetos perdidos, o esquizofrênico é conduzido a ter
que contentar-se com palavras no lugar de coisas.

“a catexia da apresentação da palavra não faz parte do ato de recalque, mas representa a
primeira das tentativas de recuperação ou de cura que tão manifestamente dominam o quadro
clínico da esquizofrenia. Essas tentativas são dirigidas para a recuperação do objeto perdido,
e pode ser que, para alcançar esse propósito, enveredem por um caminho que conduz ao
objeto através de sua parte verbal, vendo-se então obrigadas a se contentar com palavras em
vez de coisas. [...] Podemos, por outro lado, tentar uma caracterização da modalidade de
pensamento do esquizofrênico dizendo que ele trata as coisas concretas como se fossem
abstratas.” (Freud, 1915b, p.208)

Em 1916, no artigo Suplemento metapsicológico da teoria dos sonhos, o autor avança


nesta relação do psicótico com a palavra, diferenciando-a dos sonhos. Segundo ele, na
esquizofrenia:
“o que se torna objeto de modificação pelo processo primário são as próprias palavras nas
quais o pensamento pré-consciente foi expresso; nos sonhos, o que está sujeito a essa
modificação não são as palavras, mas a apresentação da coisa à qual as palavras foram
levadas de volta. Nos sonhos, há uma regressão topográfica; na esquizofrenia, não. Nos
sonhos existe livre comunicação entre catexias da palavra (Pcs.) e catexias da coisa (Ics.),
enquanto é uma característica da esquizofrenia que essa comunicação seja interrompida.”
(Freud, 1916[1915], p.235)

Nos anos 1950, Jacques Lacan, retomando Freud e Clérambault, avançará no estudo
das psicoses, assim como no estudo do delírio enquanto tentativa de cura, partindo exatamente
deste ponto (do predomínio dos fenômenos verbais nas psicoses não oníricas – isto é,
funcionais), como veremos no segundo capítulo.

Em 1924, no artigo Neurose e Psicose, Freud introduz pela primeira vez na teoria
analítica a psicose enquanto conceito teórico. Aqui, o termo psicose não é mais usado como
termo descritivo de determinadas patologias e, nem mesmo, como um tipo de neurose. Nesse
texto, o autor distingue, pela primeira vez, a neurose da psicose através da perda da realidade
que ocorreria nesta última. Ou seja, é exatamente no ponto de reconstrução delirante da
realidade, após o encontro com uma realidade externa indesejável ao eu, que a psicose seria
distinguida da neurose. Aqui, ele define o delírio como “um remendo no lugar em que
originalmente uma fenda apareceu na relação do ego com o mundo externo” (Freud,
1924[1923], p.169). E retoma a afirmação de que o delírio seria uma tentativa de cura,

25
acrescentando que esta tentativa encobriria as manifestações do processo patogênico - isto é, o
conflito com o mundo externo.
A neurose seria o resultado de um conflito entre o eu e o isso, no qual o sujeito
permaneceria fiel ao mundo externo; enquanto a psicose, o resultado de um conflito entre o eu
e o mundo externo, permanecendo fiel ao isso. “O efeito patogênico depende de o ego, numa
tensão conflitual desse tipo, permanecer fiel à sua dependência do mundo externo e tentar
silenciar o id, ou ele se deixar derrotar pelo id e, portanto, ser arrancado da realidade.” (Freud,
1924[1923], p.169)
Entretanto, no mesmo ano, no artigo Perda da realidade na neurose e na psicose,
Freud afirma que esta diferença não seria tão simples assim de ser estabelecida, já que a perda
da realidade, assim como o substituto da realidade, existiria em ambas as estruturas.

Uma neurose geralmente se contenta em evitar o fragmento da realidade em


apreço e proteger-se contra entrar em contato com ele. A distinção nítida entre
neurose e psicose, contudo, é enfraquecida pela circunstância de que também na
neurose não faltam tentativas de substituir uma realidade desagradável por outra
que esteja mais de acordo com os desejos do indivíduo. Isso é possibilitado pela
existência de um mundo de fantasia, de um domínio que ficou separado do mundo
externo real na época da introdução do princípio de realidade. (...) É deste mundo
de fantasia que a neurose haure o material para suas novas construções de desejo
(...) [grifo meu]
Dificilmente se pode duvidar que o mundo da fantasia desempenhe o mesmo papel
na psicose, e de que aí também ele seja o depósito do qual derivam os materiais ou
o padrão para construir a nova realidade. (...) Vemos, assim, que tanto na neurose
quanto na psicose interessa a questão não apenas relativa a uma perda da
realidade, mas também a um substituto para a realidade. (Freud, 1924, p.208 e
209) (grifos do autor).

E acrescenta, ainda, que, tal qual na neurose, haveria um conflito entre a realidade
substituta e o fragmento de realidade rejeitado.
O fato de em tantas formas e casos de psicose as paramnésias, os delírios e as alucinações
que ocorrem, serem de caráter muito aflitivo e estarem ligados a uma geração de ansiedade, é
sem dúvida sinal de que todo o processo de remodelamento é levado a cabo contra forças que
se lhe opõem violentamente. Podemos construir o processo segundo o modelo de uma
neurose com o qual estamos familiarizados. [...] Provavelmente na psicose o fragmento de
realidade rejeitado constantemente se impõe à mente tal como a pulsão recalcada faz na
neurose (Freud, 1924, p.207).

Neste mesmo artigo, o autor estabelece uma diferença entre estes dois conflitos.
Diferença esta que não se colocaria na segunda etapa (da substituição da realidade), mas na
primeira, isto é, a fase de negação da realidade: “a neurose não repudia a realidade, apenas a
ignora; a psicose a repudia e tenta substituí-la”. (ibidem, p.207)
Vale destacar, ainda, que Freud reitera, em ambos os artigos de 1924 – tal como se
observou desde os primeiros textos - a importância de saber qual seria o mecanismo

26
específico da psicose: “Resta a considerar a questão de saber qual pode ser o mecanismo,
análogo ao recalque, por cujo intermédio o eu se desliga do mundo externo.” (Freud,
1924[1923], p.171)
Chamamos a atenção para a importância desta diferenciação, que será retomada por
Lacan: ambas possuem mecanismos de defesa análogos: um mais radical que o outro. Se na
neurose há o recalque, isto é, a fuga da realidade; na psicose, há o repúdio, a rejeição. Este
ponto é essencial para o entendimento posterior do que Lacan formalizará como o mecanismo
de defesa da psicose: a Verwerfung - a foraclusão.
Neste artigo, Freud observa, ainda, que as diferenças em relação à fuga/repúdio da
realidade (primeira fase) e às formas de substituto da realidade (segunda fase), que pode-se
entender por fantasia/delírio, se devem às diferenças topográficas do conflito – tal qual havia
assinalado no artigo Neurose e Psicose.

A pulsão recalcada é incapaz de conseguir um substituto completo (na neurose) e a


representação da realidade não pode ser remodelada em formas satisfatórias. [...] Na psicose,
ela [a ênfase] incide inteiramente sobre a primeira etapa, que é patológica em si própria e só
pode conduzir à enfermidade. Na neurose, por outro lado, ela recai sobre a segunda etapa,
sobre o fracasso do recalque, ao passo que a primeira etapa pode alcançar êxito. [...] Essas
distinções, e talvez muitas outras também, são resultado da diferença topográfica na
situação inicial do conflito patogênico – ou seja, se nele o eu rendeu-se à sua lealdade
perante o mundo real ou à sua dependência do isso. (Freud, 1924, p.208)

Portanto, pode-se assinalar o avanço de Freud, ao estabelecer semelhanças e


diferenças na perda e também na reconstrução da realidade na neurose e na psicose. Se no
primeiro artigo de 1924, Freud enfatiza a diferença entre neurose e psicose na segunda fase
(de reconstrução da realidade); no segundo artigo, ele enfatiza a diferença na primeira fase (de
negação da realidade).

Em 1937, no artigo Construções em análise¸ Freud parece retomar as diferenças entre


neurose e psicose existentes tanto na fase de negação da realidade quanto na de substituição,
assinalando a relação entre as duas fases: ele faz uma analogia entre a construção neurótica –
fantasística - e a construção psicótica – delirante - e afirma que em ambas haveria uma
tentativa de explicação e de cura, com a diferença de que, na psicose, não seria possível
recuperar o fragmento de experiência perdida, que haveria sido rejeitado e que, portanto, o
delírio portaria um elemento de verdade histórica – aquilo que se torna verdade através do
tempo – inserido no lugar da realidade rejeitada.

não pude resistir à sedução de uma analogia. Os delírios dos pacientes parecem-me ser os
equivalentes das construções que erguemos no decurso de um tratamento analítico –

27
tentativas de explicação e de cura, embora seja verdade que estas, sob as condições de uma
psicose, não podem fazer mais do que substituir o fragmento de realidade que está sendo
rejeitado no passado remoto. Será tarefa de cada investigação individual revelar as conexões
íntimas existentes entre o material da rejeição atual e o do recalque original. Tal como nossa
construção só é eficaz porque recupera um fragmento de experiência perdida, assim também
o delírio deve seu poder convincente ao elemento de verdade histórica que ele insere no
lugar da realidade rejeitada. Dessa maneira, uma proposição que originalmente asseverei
apenas quanto a histeria se aplicaria também aos delírios, a saber, que aqueles que lhes são
sujeitos, estão sofrendo de suas próprias reminiscências. (Freud, 1937, p.286) [grifos nossos]

Se, em Neurose e Psicose Freud fala da construção delirante (segunda fase do


processo patogênico) enquanto diferenciadora da neurose e da psicose e, no mesmo ano, em
Perda da realidade na neurose e na psicose ele pondera tal diferenciação, dizendo que na
neurose também haveria um “mundo de fantasias” e delimitando a diferença na primeira fase,
a da negação da realidade (fuga, na neurose/rejeição, na psicose); em 1937, ele retoma ambas
as fases (de perda da realidade e de reconstrução da mesma), baseando as diferenças da
segunda nas diferenças da primeira e, fazendo, a partir disso uma analogia entre as duas: na
“tentativa de explicação e de cura” que a análise opera na neurose, ocorre a recuperação do
fragmento de realidade perdido - que havia sido apenas ignorado; enquanto na construção
psicótica - em que o fragmento havia sido negado mais radicalmente, isto é, rejeitado - ocorre
apenas a substituição deste fragmento perdido, sem que ele seja recuperado.
No caso de Alberto, o fragmento de experiência perdido não seria recuperado por ele,
sendo o elemento de verdade histórica o “apagão”.
O encontro com a morte vivido por Alberto, isto é, a tentativa de homicídio sofrida,
tentativa de "apagá-lo", corresponde à experiência perdida que - embora tenha desencadeado
o surto - não aparece em suas construções. Vale destacar que, nesta experiência perdida,
Alberto encontrava-se em posição passiva, de objeto.
Já o apagão elétrico - no qual, segundo sua própria explicação, ele passaria a ter sido
visado - pode ser entendido como o elemento de verdade histórica de seu delírio, uma vez que
permite a Roberto inverter esta posição, controlando-a, de certo modo. É só a partir deste
elemento que Roberto pode construir seu delírio e se localizar no mundo enquanto sujeito,
aquele que faz chover: sujeito ativo, que pode, ou não, evitar um novo apagão - apagão aqui,
em ambos os sentidos, já que, fazendo chover, ele evita, por um lado, a falta de água e energia
e, por outro, evita que as pessoas queiram "apagá-lo", isto é, matá-lo.
É neste sentido que se considera a importância do delírio paranóico, junto ao
mecanismo de defesa psicótico, para a formalização da psicose enquanto estrutura clínica e
para a direção do tratamento. Qual a importância, para a clínica, do elemento de “verdade

28
histórica” que pode retomar aquilo que foi rechaçado? Este elemento indica algo do sujeito,
algo que, por ser inapreensível, foi recusado. Algo que precisaria ser elaborado, contornado,
mas que, por se tratar de algo insuportável para o sujeito, precisará ser abordado com muito
cuidado. Este ponto será retomado no capítulo seguinte e, sobretudo, no terceiro capítulo, no
qual será abordada a questão da direção do tratamento.
Enfim, a partir do exposto pôde-se observar que, ao longo do estudo freudiano, a
psicose foi, paulatinamente ganhando um lugar ao lado da neurose, e não dentro da mesma –
isto é, a psicose foi se diferenciando da neurose, ainda que em analogia a esta. E, se
inicialmente os termos delírio e psicose eram termos descritivos, utilizados em seu sentido
psiquiátrico, nos últimos textos estes termos são propriamente psicanalíticos: a psicose não é
mais uma neurose e o delírio é uma tentativa de cura própria à psicose.
Observamos, ainda, que, desde cedo, Freud aborda a psicose em analogia à neurose,
mas sempre tentando diferenciá-la por um mecanismo de defesa particular. Isto é o que
Jacques Lacan fará: através de um retorno a Freud, ele formaliza as três estruturas clínicas
formuladas por Freud, a saber, psicose, perversão e neurose, cada uma com seu mecanismo de
defesa específico: foraclusão, renegação e recalque, respectivamente. É só a partir desta
conceituação que a psicanálise conta com a possibilidade da formalização de um diagnóstico
propriamente psicanalítico: o diagnóstico estrutural – que não opera descritivamente, mas, a
partir da suposição de uma etiologia psíquica e do mecanismo estrutural específico utilizado
frente à castração.
Veremos, no segundo capítulo, algumas contribuições lacanianas que permitem
avançar no estudo da função do delírio para o sujeito psicótico.

29
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