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2 August, 2019 | created using FiveFilters.

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Uma conversa entre Inês racismo que lhes cabe. Basta dizer, “Ei! Capitalista, amiguinho, olha
pra sua cor, e agora olha quantos negros tem capital ou estão em

Maia e Douglas Rodrigues posição de destaque na sua sociedade, você é um racista!”

Barros A colonização é moralizada, não se trata mais de um projeto de


domínio pela exploração econômica que visava acabar com recursos
para transferir para metrópole, é só um processo de maldade
May 13, 2019 01:16PM
espiritual do colono que se contrapõe a moral liberal.
Transcrito por Daniel Fabre
Não é à toa, que os maiores interessados nesses líderes da
Este texto, que agora você lê, foi de uma conversa gravada representatividade sejam os que apostam no liberalismo. Ganha-se
secretamente, isto é, sem que os dois envolvidos no diálogo presente de Macron aqui, viaja para OEA ali, são financiados pela
soubessem. Depois foi transcrito, editado por mim e revisto tantas OpenSociety acolá! Por moralizar a colonização, como é que elas
vezes pelas duas pessoas envolvidas que se perdeu a coloquialidade do chamam?… Ah! Sim! Sim! Ato performático. Colocam o gesto
diálogo. Posteriormente, deram aval para a publicação. Havia mais performático como uma mera lição que será dada para Avon…
gente na noite, mas, por razões explicitas, resolvi ocultar alguns atenção futuros empreendedores hoje falaremos em: “como não ser
nomes. racista!” É miserável!

Inês, pseudônimo de uma pessoa desconhecida, sentou-se ao lado de Falam de racismo estrutural, mas individualizam o racismo como se

Douglas e daí iniciou-se a conversa que consegui gravar num ponto em fosse algo moral de uma pessoa doente. Não que um racista não seja

que as coisas já estavam mais quentes. Nós aqui do LavraPalavra uma pessoa doente, mas eu quero saber o que gera a doença e não só

sempre quisemos promover um encontro entre os dois, acreditando tratar do doente!

que teriam figurinhas para trocarem. Só que esse encontro, no


Daí para os linchamentos virtuais e o processo catártico de punição é
entanto, se deu de maneira espontânea na saída do último aniversário
um passo, sem contar a essencialização da raça, a adoração do negro
de Marx, promovido pela editora Boitempo, quando algumas pessoas
como o selvagem de Rousseau. Acho até que você fala disso no livro
foram conversar no vale da Santa Cecília.
quando demonstra que Fanon dizia que é tão racista o que despreza o
Inês – O que eles querem é identitarizar o capitalismo… Aliás, elas negro pela sua cor quanto aquele que o adora pelo mesmo motivo…
nem falam em capital. Aí como a gente fica?… você dá uma identidade nada mais bonito, não é? “Se cada um de nós, nos conscientizarmos do
ao capital que pode ser disputada, o capital some das vistas e a luta mal que fazemos ao outro ao perpetuar ações, pensamentos e falas
anticapitalista também. O problema vai para a suposta cor que detém racistas iremos ter um mundo melhor”. We are the world!
o capital. Ai! Ai! ai!… Já vimos esse filme antes. Vira uma disputa que
Mas que merda é essa? O racismo nas ex-colônias fundamentou o
não se trata de contrapor ao processo, mas de disputar espaço no
processo de produção e reprodução do capital. Se são os negros daqui
interior do processo mesmo.
hoje, amanhã serão os refugiados do Haiti, que aliás no movimento
Claro! É mais fácil, você junta um bando de seguidores porque é mais negro hegemônico nunca cruzaram o batente, se não são os negros do
fácil falar da cor do capitalista do que do processo de produção e Haiti, serão os bolivianos e assim o capital segue criando seu exército
reprodução do capital que é muito mais sútil e fundamental. O que elas de homens e mulheres supérfluos. Olha hoje pra África do Sul… uma
fazem? Não falam nada sobre capital, capitalistas, elite econômica, elite econômica filha da puta! Saiu os capitalistas brancos, entraram
talvez porque perderão o financiamento, já pensou um anticapitalista os capitalistas negros e a miséria dos trabalhadores continua!
aparecer na Globo?
Douglas – Tá certo, Inês! Concordo com sua crítica em muitos
E qual o preço disso? O esquecimento total da história intelectual aspectos, mas, sinceramente acredito que escapam alguns detalhes
negra do último período de revolta anticolonial. As políticas radicais importantes e olha só: não estou defendendo o movimento negro
da década de 60 foram reformuladas em nome do identitarismo. Uma hegemônico. Aliás, você leu o livro, sabe bem disso…
ação de controle do establishment que quer apagar tudo o que
Meu livro tinha como objetivo tratar quatro coisas importantes para
aconteceu. Agora é tudo “Black Power” e, primeiro, esquece-se da
tentar combater essa hegemonia da direita no interior do movimento
grande diversidade das tradições que surgiram naquele período;
negro: primeiro, eu quis demonstrar como a noção de raça não é só
segundo, abstraem esse período de insurreição do seu contexto
uma camisa de força de controle pela desigualdade inerente ao
internacional e; por fim, separam o particular do universal, a
capital, como também, que não é algo consistente em nível global; não
resistência nacional da resistência global. As teorias racialistas lidas
se trata do mesmo negro, que se identifica simplesmente pelo suposto
agora por boa parte da juventude tem sido a morte da solidariedade. A
sangue, mas das experiências coloniais que foram determinantes e
imaginação política da galera regrediu.
contrastantes entre si. Diferenciando o negro do sul do negro do norte
De repente, a própria Angela Davis nem é anticapitalista pra esse e ambos do negro da África. Enfim, é nisso que consiste a ideia de
povo! – risos altos – Esse discurso casa bastante com os anseios abstração racial que eu invoco pensando em Marx. Uma abstração de
liberais porque acredita, assim como os liberais, que se você se característica que produz realidades múltiplas.
esforçar terá seu lugar ao sol. Se você é preto, e retiraram seu lugar
Segundo, quis argumentar ainda que a negritude não é uma categoria
ao sol por causa de sua cor, basta então tornar visível para eles o
estável e que o processo de violência colonial não foi necessariamente
igual e nem manteve um elo ligado por uma etnia comum; terceiro,
quis dizer também que o processo de racismo dirigido aos negros não Não sei se você leu o textinho de Marx falando sobre a revolução
é uma exceção especial que se diferencia de outras experiências de americana e os vários processos de luta em seu interior? Bom, sabe
racismo como as atuais contra os palestinos e os árabes na Europa, ou que Marx trocava cartas com Lincoln, né!? Foi num desses textos que
contra os bolivianos aqui. E, por fim, que a luta contra o racismo pode Marx deixou claro que: “o trabalho não pode se emancipar nas peles
ser feita por qualquer pessoa. brancas nos lugares onde a pele negra continua marcada”, quer dizer
Inês eu compreendo sua crítica, mas devemos levar em consideração
Todas essas pontuações eram evidentes, antes da nova moda de que um esboço é uma abertura para uma discussão maior. A meu
importada dos EUA. ver, o estrago que as teorias liberais, supostamente emancipatórias,
vem fazendo em nosso meio marca não só nosso colonialismo atual
Inês – Eu li seu livro e concordo com os pontos que você traz. São
com referência ao império, como ainda é sinal de um atraso radical
fundamentais para refletir sobre a situação atual. Agora, você se
em relação aos países onde essa discussão já se coloca há algum
ancora muito no Fanon do “Peles negras” e esquece daquele mais
tempo. Quanto a ser bonzinho com o MNU, bem… acho que tem gente
engajado lutando pela libertação da Argélia. É nesse Fanon que
valorosa ali e que não se rende facilmente ao discurso liberal…
encontramos a noção de que o capitalismo é um sistema econômico
assentado na exploração e que por sua natureza privada, privatiza a Inês – olha só, eu estou de acordo nos pontos que você trouxe. Agora
riqueza. tem pontos frágeis no livro. Por exemplo, a questão da dialética do
senhor e escravo como algo distópico. Você utiliza o desdobramento
Com isso temos a desigualdade que para se sustentar apoia-se em
da Fenomenologia do Espírito, na frágil leitura de Butler, para explicar
diversas ferramentas ideológicas como forma de organizar… digo….
a distopia do processo de trabalho e falar da suposta adoração pelo
melhor!… Racionalizar a desigualdade para dividir uma maioria que
trabalho do marxismo ortodoxo… no livro você chama de tradicional,
precisa se unir! E é claro que você chegou nesse ponto, mas, às vezes
mas a mim você não engana. Você está dialogando com o Lukács que
acho que deveria ter sido mais direto.
foi seu mestre no mestrado, né!?
Porque, repare bem, para falar igual ao Jones, a galera precisa saber
Douglas – É isso, sim! Mas tem mais coisas…
que o significante racial é um dos vários mecanismos de opressão que
servem ao propósito de cerceamento e controle do proletariado. O Inês – Então, sei… mas, deixe-me falar sobre a fragilidade de sua
racismo brasileiro, por exemplo, é de outro corte. É diferente do argumentação… você não pode só ver nesse processo, uma matriz
racismo Norte-Americano. Como deixou evidente Gilberto Freyre, no coberta pela palavra da alienação. Perai!… que peguei pesado, né!? –
clássico conservador, é um racismo sútil que funciona inclusive com o Inês coça a cabeça, toma um gole de cerveja e continua:
pressuposto democrático, quer dizer, democrático-liberal. E
sinceramente achei você bonzinho demais! Algumas coisas têm que Vou tentar explicar: na sua argumentação é como se ao trabalhar a
ser ditas a seco, na lata!… não me olhe descontente – Inês ri. consciência do escravo se desenvolvesse como um devir-Outro para
voltar a si mesmo e não escapar da lógica Senhor barra Escravo, ou…
Você faz um caminho interessante que vai do mais abstrato ao mais veja só… você mesmo deixa claro no início que devemos buscar o fim
concreto. Não poupa o leitor. Isso é bom, numa época em que cada da dialética da Casa Grande barra Senzala, só que depois, ao falar do
vez mais se infantiliza o leitor, e que as pessoas no geral – e aqui falo trabalho você não mantém fidelidade ao projeto inicial.
especialmente da esquerda – são mimadas e agem como se a teoria
fosse uma mercadoria que deve ser comestível, tragável quase um Vê o trabalhador como um escravo preso à lógica do senhor….
meme; um livro que pegue pesado coloca o debate noutro nível. Agora
você foi bonzinho com MNU.[1] O que você deixa escapar aí é que o processo de trabalho cria um
excedente não só na produção, mas na própria sociabilidade que abre
Douglas – Mas, mulher, não se esqueça que o livro é só um esboço. a possibilidade de organização do escravo para pôr em xeque o
Eu tinha só que demonstrar como eram furados os pressupostos dos próprio mundo do senhor!
negros de direita, ou como chamam agora, os negros da esquerda
liberal. Mas veja ao que me parece, eu deixei claro como funciona a Você sabe que Butler é foucaultiana, né!? E que Foucault não
ideia racial sob o capitalismo. A desumanização radical dos negros que conseguiu escapar a ideia geral de que a opressão gera a resistência
foram alijados do processo produtivo quando nos tornamos uma porque não conseguia olhar para esse excedente que iria para além da
república e como isso é parte da dinâmica atual do processo de resistência, quer dizer: a possibilidade revolucionária! Daí você, um
trabalho, empregabilidade, essas coisas. hegeliano-marxiano de primeira, bruxo de Itaquá, caí num engodo
desses? Poxa! Douglas!
Acho que deixo evidente como a marca racial possibilitou uma
invisibilização do sofrimento negro e estabeleceu as bases para uma Douglas – Eu sabia, Inês! Que uma hora ou outra essa crítica viria.

cidadania de terceira classe aqui no Brasil. O que não contavam, Mas fui fiel a minha formulação e mostrarei pra você. – O rapaz ri seu

porém, é que o processo de miscigenação ao invés de embranquecer o riso característico e continua. – A questão é a seguinte: você tem toda

país tornou ele negro e como a dinâmica da classe trabalhadora foi razão, se ler o que escrevi pela lógica ortodoxa. É claro que o

totalmente absorvida pelo componente racial, já que é comprovado processo histórico é imprevisível, mas a questão do trabalho é que a

que os casamentos interraciais se dão no final da pirâmide social, isto luta da classe trabalhadora é desaparecer enquanto classe e não criar

é, entre os mais pobres. O que isso demonstra? É a elite desse país que um mundo do trabalho. A classe se ergue para desaparecer na luta e

é profundamente racista. Não que o racismo não seja uma cultura, e não para se consolidar. Lutamos contra a sociedade de classes porque

faça parte até da cultura popular, mas quem o defendeu a ferro e fogo as classes são produzidas pela desigualdade. Com a cisão processada

até pouco tempo atrás foram estes que invisibilizaram os negros. na identidade abre-se caminho ao sujeito, e com esse caminho aberto
abre-se o caminho para o sujeito político, quer dizer, para a classe
como processo de luta, e não limitada a matriz sociologizante. Com o Aliás, é inegável como os trabalhadores em alguns lugares passaram a
triunfo dos Condenados da Terra não haverá mais condenados! Esse é se ver como negros. Anda hoje no Itaim Paulista! Você vai ver as
nosso motor! minas afirmando sua negritude. Tendo orgulho em meter um cabelo
Black. É claro que aqui temos aquela besteirada de representatividade
Agora, para levar a conversa aonde você levou…Você deve ter se que é ideológico, mas pensemos para além dela!
perguntado: “mas por que esse capítulo?”. Vou tentar responder:
existem duas formas de se pensar a dialética. A primeira, você já Não se trata de representatividade mas sim de se reconhecer como
disse: a ideia do escravo que ao trabalhar se desenvolve em seu devir- um ser invisibilizado, nadificado mesmo. E quando isso se dá, minha
Outro, para voltar a si mesmo. A segunda, e espero aqui ser o mais amiga… quando um ser-nada afirma sua existência, ele pode ser tudo.
simples possível, já que estamos numa mesa de bar, é pensar a É a velha verdade da Internacional! Se nada somos, sejamos tudo!
dialética como uma operação sobre a cisão: não existe identidade que
não esteja dilacerada. Sem a menor chance de repousar sobre si Veja só, isso abriu possibilidades dos negros se verem como frutos
mesma. É quando a identidade se cinde que o sujeito começa a se históricos violentados pela ideia de raça. Se me afirmo como um
processar. A questão que o Império não quer, é demonstrar a cisão negro estou mais perto de entender como o processo racial foi
permanente operada na identidade, pois ela possibilita a emergência desenvolvido para nos controlar e nos submeter a fim de gerar
do sujeito. riqueza privada de uma classe. E como é o próprio processo de
desigualdade social necessária do capital que gera as questões de
Quer dizer, é quando somos expulsos de qualquer ponto de repouso, violência racial.
sobre a consciência que temos de nós mesmos, que se inicia o
dilaceramento e com ele o processo-sujeito, como chama Badiou. O Uma palestina não é menos negra que você! Esse afinal é o devir

mais desafiador e o verdadeiro exercício de liberdade é se dar conta negro do mundo, a tentativa de criar um mundo em que relações de

de que: não precisamos ser quem dizem que somos. Melhor ainda, não semi-escravidão e morte dos supérfluos seja algo naturalizado.

somos o Um, somos o dois que se volta para o Um.


Inês – Estou de acordo que esse passo seja fundamental, mas essa
O mundo moderno é o mundo do dilaceramento, da cisão entre o Eu e turma não quer dar esse passo decisivo. Você nesse ponto é muito
o Mundo e, por isso, é o mundo onde cabe o sujeito. Não que em ingênuo. Você sabe que eles preferem ficar em sua posição de
outras épocas não pudesse ter algo como essa ideia de sujeito, mas acomodação, de representantes autonomeados dos negros de um
sem dúvida é no mundo moderno que ele se desenvolve de maneira modo geral e abstrato no qual o fator epidérmico é mais decisivo do
radical. Depois a psicanálise vai se debater nisso. que a condição histórico-social. E dai meu filho… é claro que não se
interessam e nem tem o interesse dos trabalhadores.
Por que estou dizendo isso? Porque se você me acompanhou quando
falo de Fanon quero mostrar como ele mostrou uma espécie de Douglas – Talvez, eu seja mesmo ingênuo, mas acompanho a
fenomenologia da consciência de ser-negro. Primeiro você não se militância, e acredito ainda na disputa dos rumos do movimento. Mas,
sabe negro, daí você se descobre negro, geralmente por um processo é óbvio que se houver um movimento comunista que observe a
violento, alguém te grita: NEGRO. Então chega o momento de se questão racial, de gênero e de sexualidade como motor subjacente ao
afirmar: negro. Isto é, afirmar uma identidade como possibilidade de modo de produção e reprodução do capital… eu entro”
criação simbólica que possibilita o conhecimento sobre Si. No entanto,
Inês – Então vamos fundar um! – Inês pega a garrafa e num gesto
tudo que se afirma sobre ser-negro faz parte de um processo
engraçado com o isqueiro batendo como um sino encerra. – Hoje
histórico. Daí se descobre que o negro não existe senão no processo
aniversário de 201 anos de Karl Marx, reunidos nessa mesa de bar,
de violência chamado raça, então aquele processo de identidade
nós fundamos o movimento o Movimento Internacionalista dos
simbólica passa a ruir e chegamos à conclusão que para a violência do
Condenados da Terra, o MICT!
significante racial deixar de se processar é necessário implodir o
espaço sociossimbólico no qual ele foi fundado e se mantém. Douglas – Saúde! E vida longa ao MICT!

Enfim, o próprio capitalismo precisa ser superado por uma nova forma [1] Movimento negro unificado.
de sociabilidade porque ele se baseia na desigualdade e com ela
precisa separar e dividir os povos através das religiões, nacionalidade Compartilhe isso:
e da criação contínua das raças.
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Inês – Pois é, você é certeiro neste ponto… Agora não entendo
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porque você passa um pano para a galera que para naquele ponto…
como você disse mesmo?… poxa, foi até bonito!… Ah! Sim! Afirmar
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uma identidade como possibilidade de criação simbólica?
https://lavrapalavra.com/2019/05/13/uma-conversa-entre-ines-maia-e-
Douglas – Eu não passo pano! – Ri e bebe cerveja – só que são passos
douglas-rodrigues-barros/
constitutivos, ilusões necessárias para que a gente comece a se ver
como sujeitos do processo. Olha só, do ponto de vista prático, se não
fosse essas afirmações iludidas sobre a identidade, não estaríamos
hoje discutindo sobre a questão racial.

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