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7/31/2019 O fim da paranoia - Época

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O FIM DA PARANOIA
O dia em que começamos a sofrer de outra maneira

Vladimir Safatle
25/07/2019 - 07:00 / Atualizado em 25/07/2019 - 09:23

Foto: Sem título, 1980-82, Gego (Gertrude Goldschmidt — 1912-94), Museum of Fine Arts, Houston, Texas, USA /
Bridgeman Images / Keystone

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Isso aconteceu sem muito alarde, de forma praticamente silenciosa.


Desde 2013, não há paranoicos no mundo. Eles desapareceram. Tiveram
o mesmo destino das histéricas e dos histéricos, que sumiram de nosso
convívio desde 1980. Essa é talvez uma das dimensões mais
impressionantes das transformações categoriais no campo da psiquiatria
e de outras práticas clínicas congêneres. Ela diz respeito às reformulações
de larga escala em nossas formas de descrever e classificar o sofrimento
psíquico nos últimos 40 anos. Estamos a modificar, de forma estrutural,
nossa maneira de falar do sofrimento, mas isso ocorre praticamente sem
nos darmos conta. Assim, falamos ainda em neuróticos, em paranoicos,
em histéricas, melancólicos, psicóticos maníaco-depressivos, neuróticos
obsessivos, mesmo que essas entidades sejam algo como peças de um
museu de cera, ao menos para o olhar clínico hegemônico atual.

CELULARES MONITORAM
No entanto, é melhor corrigir o que
ATÉ O JEITO COMO VOCÊ
foi dito anteriormente. Não se trata
DIGITA — E ISSO NÃO É
BOM apenas de uma “maneira de dizer”,

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COMO ATAQUES NA pois nenhuma modificação em


INTERNET PODEM SER
“GOTA D´ÁGUA” EM nossa forma de falar é indiferente
CASOS DE DEPRESSÃO
ao objeto descrito. A linguagem
determina os modos de ser. A
verdade é que estamos mudando nossa forma de sofrer e isso deveria nos
levar a refletir. Há algo fundamental sobre nós mesmos que se modifica
quando sofremos de outra forma, quando retiramos a narrativa que antes
acompanhava as mudanças súbitas de humor, as dores corporais sem
causa aparente. E isso está a ocorrer como se fosse questão de meros
ajustes nosográficos entre especialistas às voltas com imagens de pet
scan.

Tomemos alguns exemplos. De fato, desde que apareceu a quinta e última


versão do mais influente manual utilizado por psiquiatras ( o Manual
diagnóstico e estatístico de transtornos mentais — DSM-5 ), há seis anos,
não há mais uma categoria específica que descreva o que durante quase
um século se compreendeu por paranoia. O que temos são os delírios
normalmente associados ao quadro paranoico (como delírios de
perseguição, de grandeza, de ciúmes, erotomania) descritos de forma
isolada como “transtornos delirantes”. Ou seja, daquilo que
anteriormente era um quadro de doença mental, com seu ciclo, seu
desenvolvimento, seus sintomas múltiplos e sua etiologia, restou apenas
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um conjunto de transtornos analisados de forma isolada. Da mesma


forma, com a terceira versão do DSM, publicada em 1980, a histeria havia
sido mandada embora. Em seu lugar, ocorreu o mesmo processo.

“SINTOMAS QUE FAZIAM PARTE DO


QUADRO CLÍNICO DA HISTERIA
FORAM DESMEMBRADOS E
GANHARAM VIDA PRÓPRIA”

As conversões somáticas estão nos transtornos somatoformes; a


hipersensibilidade e o comportamento mimético estão no transtorno de
personalidade histriônica.

Isso explica um pouco o fato de tal processo de eliminação de categorias


clínicas ter sido acompanhado de outro, relativo à profusão de
transtornos. Mas, como se disse, isso explica apenas um pouco. Pois há
mais coisas aqui. Quando foi publicado em sua primeira versão, em 1952,
o DSM continha 128 categorias para a descrição de modalidades de
sofrimento psíquico. Em 2013, em sua última versão, ele apresentava 541
categorias. Ou seja, em cerca de 60 anos, 413 novas categorias foram

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“descobertas”. Não há nenhum setor das ciências que tenha conhecido um


desenvolvimento tão anômalo e impressionante.

Diante de tal fenômeno, algumas questões merecem ser objeto de


reflexão. Por exemplo, o que se perde quando uma categoria clínica
desaparece, o que se ganha quando outras novas são apresentadas? Por
que isso está a ocorrer agora? Estaríamos a passar, neste exato momento,
por uma verdadeira revolução científica que teria nos permitido enxergar
aquilo que não conseguíamos enxergar antes? Como se, em um passado
recente, estivéssemos a agir como botanistas que não conseguiam
perceber as distinções entre várias espécies, criando com isso monstros
nocionais que não expressavam espécie natural alguma? Como se,
durante décadas, não tivéssemos percebido que havia entre nós pessoas
sofrendo dos novos “transtorno de acumulação” (comportamento
caracterizado por excesso de aquisição de itens e incapacidade de
descartá-los) e “transtorno desafiador opositivo” (comportamento
excessivo de quem está geralmente raivoso, irritado ou questionando
figuras de autoridade)?

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Foto: Sem título, 1970, Gego (Gertrude Goldschmidt — 1912-94), Museum of Fine Arts, Houston, Texas, USA /
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Desenvolvimento ou reação?

Alguns gostam disso que poderíamos chamar de “descrição redentora” do


desenvolvimento das ciências em geral e da psiquiatria em particular.
Tais descrições passam, inicialmente, pela defesa de alguma forma de
“salto tecnológico” que teria impulsionado modificações decisivas no
campo de uma ciência determinada. Modificações estas que colocariam
tais saberes em um processo de ajuste especular ao mundo, ou seja, de
aproximação realista ao mundo fora de nós. Como se o destino das
ciências fosse serem verdadeiros espelhos da natureza. No caso da

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psiquiatria e das clínicas do sofrimento psíquico, tal salto tecnológico


teria sido dado pelo desenvolvimento da farmacologia a partir,
principalmente, dos anos 50.

No entanto, há um dado cronológico que merece atenção. O


desenvolvimento de neurolépticos a partir da síntese da clorpromazina,
que teve efeitos fundamentais no tratamento da esquizofrenia, e de
antidepressivos data do início dos anos 50, graças principalmente às
pesquisas de Henri Laborit, Jean Delay e Pierre Deniker. Mas a guinada
na reconfiguração em profundidade das categorias clínicas só ocorreu em
1980, quando veio à luz o DSM-3 . Nesses 30 anos em que o
desenvolvimento farmacológico não chegou a abalar nossa forma de falar
do sofrimento psíquico, dois fatos dignos de nota ocorreram. Eles talvez
digam mais a respeito do que ocorre atualmente na psiquiatria do que a
teoria do impacto do salto tecnológico.

O primeiro deles foi a transformação do hospital psiquiátrico em um


verdadeiro campo de batalha.

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“A PARTIR DO FIM DA SEGUNDA


GUERRA MUNDIAL O SABER
PSIQUIÁTRICO CONHECEU
MOVIMENTOS CADA VEZ MAIS
FORTES DE QUESTIONAMENTO DE
SUA PRÓPRIA NATUREZA”

Algumas questões que nunca haviam sido postas começaram a aparecer:


o que é um hospital psiquiátrico e em que medida ele não é solução, mas
parte do problema? As relações médico-paciente, nesse caso, não
deveriam ser também compreendidas como relações de poder que
reproduzem dinâmicas de poder em outras esferas da vida social? Não
haveria uma dimensão fundamental de revolta na loucura que deveria ser
abordada em sua força produtiva, que diz muito a respeito dos limites
próprios a nossas formas de vida? Pois, se aceitarmos que a vida psíquica
é na verdade um setor da vida social, com suas dinâmicas de
internalização de normas, ideais e de princípios de autoridade...,

“...POR QUE NÃO SE PERGUNTAR


COMO TAIS PROCESSOS SOCIAIS
NOS FAZEM SOFRER, COMO ELES
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PODEM ESTAR NA BASE DAS


REAÇÕES QUE LEVARÃO SUJEITOS A
HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS E
CONSULTÓRIOS?”

Para muitos, essas questões atualmente parecem imersas em certo


romantismo e ingenuidade. Tanto é assim que elas pouco são ouvidas em
nossos departamentos de medicina. Mas principalmente entre os anos 50
e 70 elas tiveram um impressionante impacto no desenvolvimento da
psiquiatria. Movimentos como a antipsiquiatria de David Cooper, Ronald
Laing e Thomas Szasz, a análise institucional de François Tosquelles, do
grupo de La Borde, de Enrique Pichon-Rivière, as reformas propostas no
sistema manicomial italiano por Franco Basaglia: todos eles pareciam
indicar a emergência de um processo irreversível de reconsideração do
lugar social da loucura, assim como da relação entre normalidade e
patologia. Isso implicava modificar radicalmente os modos de
tratamento.

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Foto: Sem título, 1966, Gego (Gertrude Goldschmidt — 1912-94), Museum of Fine Arts, Houston, Texas, USA /
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O segundo fenômeno ocorrido no campo da clínica até o início dos anos


80 foi a prevalência da psicanálise como horizonte fundamental de
referência clínica, inclusive para a psiquiatria. No início dos anos 60, mais
da metade dos chefes de departamento de psiquiatria das universidades
americanas eram membros de sociedades psicanalíticas. A noção
psicanalítica do sofrimento psíquico como expressão de sistemas de
conflitos e de contradições nos processos de socialização e de
individuação, conflitos esses que mostravam muitas vezes a natureza
contraditória e problemática de nossas próprias instituições e estruturas
(como a família, o casamento, o mundo do trabalho, a escola, a igreja), foi
um elemento decisivo não apenas para compreender o que era o
sofrimento psíquico, mas para mobilizar certo horizonte crítico a respeito

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dos custos de nosso processo civilizacional, dos problemas imanentes a


nossas formas de vida.

Esses dois fenômenos praticamente desapareceram, sem que as questões


que eles traziam fossem realmente respondidas.

“MAS ELIMINAR AS PERGUNTAS


NUNCA FOI UMA BOA MANEIRA DE
RESOLVER PROBLEMAS. A NÃO SER
QUE OS RESULTADOS ADVINDOS DE
NOVOS PARADIGMAS NO
TRATAMENTO DO SOFRIMENTO
PSÍQUICO SEJAM SUPERLATIVOS E
INQUESTIONÁVEIS. INFELIZMENTE,
ESSE NÃO É O CASO”

Por exemplo, estudos desenvolvidos por Michael Hengartner e Martin


Plöderl e publicados neste ano na revista Psychotherapy and
Psychosomatics defendem que adultos começando tratamento com
antidepressivos para tratar de depressão têm 2,5 chances a mais de
cometer suicídio do que aqueles que se servem de placebos. Outro estudo
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levado a cabo por Kate Allsopp, John Read, Rhiannon Corcoran e Peter
Kinderman, pesquisadores da Universidade de Liverpool e da
Universidade de East London, questionaram a “relevância científica” do
DSM em identificar e distinguir transtornos mentais. Fatores como
traumas têm papel causal limitado no DSM , mesmo que evidências
clínicas mostrem o contrário.

Ou seja, o mínimo que se pode dizer é que a narrativa do salto tecnológico


irresistível, que funciona tão bem nas ciências exatas, não parece
facilmente aplicável na psiquiatria. Até porque a psiquiatria conhece um
fenômeno bastante singular que a diferencia de outras ciências. Depois da
descoberta da clorpromazina vieram antidepressivos tricíclicos,
ansiolíticos, lítio, entre outros. Esses fármacos tinham efeitos síndrome-
específicos, o que significa que eles atuavam apenas em um grupo
específico de sintomas. Em vários casos, as categorias clínicas foram
reconstruídas a partir do espectro de atuação dos medicamentos. Algo
como reconfigurar os problemas a partir das respostas que já temos. Uma
estratégia não muito recomendável.

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Foto: Sem título, 1980-82, Gego (Gertrude Goldschmidt — 1912-94), Museum of Fine Arts, Houston, Texas, USA /
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Somos seres que sofrem por valores

Notemos o que está em jogo nessa mudança de grande envergadura e por


que devemos prestar mais atenção em tais mudanças. Muitas dessas
categorias clínicas não têm marcadores biológicos precisos e certamente
nunca terão. Afinal, apenas para ficar em um exemplo pedagógico, seria
possível encontrar marcadores biológicos para o já citado transtorno de
personalidade histriônica? Seus critérios diagnósticos são, entre outros,
“desconforto em situações em que ele ou ela não é o centro das atenções”,
“uso constante da aparência física para chamar a atenção para si”,

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“demonstração de autodramatização, teatralidade e expressão exagerada


de emoções”. Tais critérios não podem ser avaliados como expressão de
marcadores biológicos específicos, mas como comportamentos de recusa,
inconsciente ou não, a padrões de socialização que, por sinal, são bastante
imprecisos. Pois se estamos a falar em “expressão exagerada de emoções”
há de perguntar onde estaria a definição de um “padrão adequado” de
emoções, a não ser na subjetividade do médico.

Nesse sentido, seria importante começarmos a nos perguntar de forma


sistemática se o horizonte de intervenção clínica comportaria sistemas de
valores que não são exatamente clínicos, mas indicam empréstimos que a
psiquiatria e a psicologia tomam de campos alargados da cultura. Nossas
definições de saúde estão prenhes de termos como “equilíbrio”,
“proporção”, “controle”, “regulação”, “ordem”, “rendimento”,
“performance”. São esses termos clínicos ou termos que a clínica toma
emprestados de campos como a estética, a economia e a política? E se o
segundo caso for verdadeiro, não seria o caso de perguntar em que nossas
noções de saúde e de normalidade são dependentes de sistemas de
valores sociais que procuramos implementar por meio das práticas de
intervenção clínica?

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Bem, mas a pergunta que não quer calar vem a seguir, pois o que dizer
então dessa impressionante reengenharia a ocorrer no interior da
psiquiatria nas últimas décadas? Não seria ela o resultado de alguma
forma de recomposição do núcleo de valores que orientam, de forma
silenciosa, o horizonte normativo da clínica? Se esse for o caso, seria
interessante saber quais os eixos dessa reorientação, o que está de fato a
ocorrer na configuração de nossa vida psíquica, na produção de nossas
subjetividades. Quais são as forças que atuam nesse processo?

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Voltemos, por exemplo, ao começo, ao desaparecimento dos paranoicos.


A paranoia foi a categoria fundamental da clínica psicanalítica das
psicoses. Uma das razões para tanto era que ela fora pensada a partir de
uma visão da doença como degenerescência, ou seja, a doença faria o
caminho inverso do desenvolvimento normal. Por mais que tal definição
tivesse seus problemas, havia algo de significativo aqui, a saber, a
patologia não era uma ordem outra em relação à normalidade. Ela era
uma fixação ou regressão dentro de um processo comum. Por isso, a
doença dizia sempre algo a respeito da normalidade, ela deixava visíveis
processos que na normalidade ficavam relativamente escondidos. Havia
uma certa proximidade entre as duas, um terreno movediço.

Essa solidariedade relativa entre normalidade e patologia desapareceu


com a hegemonia da esquizofrenia, que agora representa praticamente
todo o espectro do que entendíamos por psicoses. Pois, nesse caso, a
distinção é funcional. Há um princípio de unidade das condutas, de
organização da experiência e de síntese que não está presente. Na
esquizofrenia, os processos estão dissociados, pois não há mais a unidade
sintética da personalidade. A linha entre normalidade e patologia é
funcionalmente definida, e a personalidade é o verdadeiro marcador
desse processo. Tal linha é clara, e nada passa de um lado a outro. Linhas
claras, divisões estritas, lugares determinados. Mesmo que a
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personalidade não seja um fator biológico, mas uma construção social.


Dessa forma, vai-se construindo um certo modelo de sociedade, um certo
modo de adesão a seus princípios. Que modelo é esse?

Por fim, pode-se estranhar que tais discussões sejam propostas por um
professor de filosofia, e não por um psiquiatra. Mas talvez seja o caso de
lembrar que tais problemas nunca poderiam ser compreendidos como
reserva privilegiada de certos grupos de profissionais. Pois o que está em
questão são decisões a respeito do que entendemos por razão e pelo seu
outro, sobre qual o sentido e o nome do sofrimento. Essas questões
sempre mobilizaram e sempre mobilizarão a capacidade que as
sociedades têm de refletir sobre si mesmas.

Vladimir Pinheiro Safatle, de 46 anos, é filósofo, escritor e músico. É


professor titular de teoria das ciências humanas na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(USP)

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