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Multiprofissional e Pós-Graduação:
A excelência na formação do
Assistente Social
Chanceler
Dom Dadeus Grings
Reitor
Joaquim Clotet
Vice-Reitor
Evilázio Teixeira
Conselho Editorial
Ana Maria Lisboa de Mello
Augusto Buchweitz
Beatriz Regina Dorfman
Bettina Steren dos Santos
Clarice Beatriz de C. Sohngen
Carlos Graeff Teixeira
Elaine Turk Faria
Érico João Hammes
Gilberto Keller de Andrade
Helenita Rosa Franco
Ir. Armando Luiz Bortolini
Jane Rita Caetano da Silveira
Jorge Luis Nicolas Audy – Presidente
Lauro Kopper Filho
Luciano Klöckner
Nédio Antonio Seminotti
Nuncia Maria S. de Constantino
EDIPUCRS
Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor
Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe
Maria Isabel Barros Bellini
Thaísa teixeira Closs
Organizadora
EDIPUCRS
Porto Alegre, 2012
© EDIPUCRS, 2012
CAPA Rodrigo Braga
REVISÃO DE TEXTO Fernanda Lisbôa
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Andressa Rodrigues
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gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial,
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Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998,
Lei dos Direitos Autorais).
Sumário
APRESENTAÇÃO....................................................................................7
INTRODUÇÃO.....................................................................................10
Maria Isabel Barros Bellini
FAMÍLIAS VULNERÁVEIS...................................................................101
Simone da Fonseca Sanghi
Maria Isabel Barros Bellini
OS FILHOS DA AIDS...........................................................................155
Luciana Basile Silva
Kelinês Gomes
Maria Isabel Barros Bellini
SOBRE AS AUTORAS.........................................................................189
APRESENTAÇÃO
voltar para casa, é meu filho. Antes, botava ele para correr e os laços
que ele formou na rua foram mais fortes”.
O estudo sobre famílias vulneráveis, suas múltiplas configurações
e formas de organização para enfrentar um cotidiano altamente adverso
oferece pistas sobre a importância da abordagem necessária para que
as políticas públicas sociais possam ser adequadamente endereçadas e
beneficiar efetivamente a quem precisa delas. E o artigo “Filhos da AIDS:
contando histórias de vida” traz depoimentos que se constituem em lição
de vida e rica fonte de reflexão sobre como se organiza a rede de atenção,
a importância de que ela seja usuário-centrada, e de que os profissionais
de saúde estejam preparados para a atenção integral, para muito além
dos saberes cognitivos, técnicos e práticos. O acolhimento e o vínculo
de que o usuário do SUS precisa só se concretizarão se os profissionais
de saúde puderem dispor em caráter abrangente, de uma formação ético-
8
política preparada para captar a complexidade da realidade em que a vida
acontece, e onde a saúde e a doença se manifestam.
Nos últimos dois anos, o Ministério da Saúde e o Ministério da
Educação, em parceria com a CAPES, têm promovido, como parte das
múltiplas estratégias que integram a política de formação dos profissionais
de saúde, apoio à criação de programas de pós-graduação em ensino na
saúde, incluindo a articulação entre a residência médica e multiprofissional
aos mestrados profissionais. A trajetória das pesquisadoras materializada
nesta publicação nos remete ao acerto deste caminho. O conjunto das
pesquisas, desenvolvidas em programa de pós-graduação stricto sensu,
constitui-se em um precioso material de investigação e registro do que
pode ser alcançado pela residência multiprofissional em saúde e, em
especial, de visibilidade sobre a inserção do profissional Assistente Social
na equipe multiprofissional de saúde.
A iniciativa dialoga também com os objetivos estratégicos
estabelecidos pelo Ministério da Saúde para a atual gestão, que
envolve o fortalecimento das redes de atenção à saúde, a atenção
básica como ordenadora da rede e a Saúde Mental (ou Atenção
Psicossocial), como prioridade.
A oportunidade de apresentar esta publicação é motivo de grande
satisfação, por tantas razões, mas principalmente pelo aprendizado
proporcionado e pela constatação de que o Brasil, em que pesem os
desafios ainda postos, pode orgulhar-se da qualidade da educação
superior que tem produzido, por contar com instituições de excelência,
como a PUCRS, e do amplo movimento em curso, com o forte
engajamento das universidades, dos gestores da saúde, da educação
e dos serviços, de integração ensino-serviço-gestão-comunidade, que
norteia a política nacional de gestão do trabalho e da educação na saúde.
do Ministério da Saúde
9
INTRODUÇÃO
11
saúde socializando a riqueza das possibilidades de investigação que
essa convergência de área proporciona.
A primeira parte é dedicada à relação do Serviço Social com
a formação em nível de residência multiprofissional, são três artigos
que abordam o exercício profissional do assistente social, a inserção
do assistente social na residência e a relação do Serviço Social e da
Educação na Saúde. Problematiza-se a contribuição deste profissional
tanto para a manutenção de um modelo de saúde superado como para a
construção de um modelo em consonância com a Reforma Sanitária e
para consolidação do SUS.
A segunda parte apresenta cinco artigos sendo três sobre
experiências em saúde mental problematizando as conquistas da reforma
psiquiátrica, o tratamento domiciliar de dependentes químicos e a
atenção em saúde mental. Sem dúvida, são exercícios que adentram “os
resistentes muros dos hospitais psiquiátricos e seus saberes instituídos”
para, assim, “começar a quebrar as correntes e abrir as portas para um
novo modelo de atenção à saúde mental” (GIOVENARDI, 2010, p. 115).
Os muros a serem vencidos não são apenas dos hospitais psiquiátricos,
mas também de práticas profissionais superadas, preconceituosas, e
discursos que se amparam em um projeto de sociedade que não considera
as conquistas da Reforma Sanitária. Os outros dois artigos abordam
a dramaticidade das vidas de famílias em situação de vulnerabilidade
e seus acordos de sobrevivência e a experiência de adolescentes que
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
12
PARTE I
SABERES CONSTRUÍDOS
X
SABERES INSTITUÍDOS:
A formação profissional em movimento
EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NA
ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE
Marisa Camargo
Maria Isabel Barros Bellini
15
ensino em serviço da RIS e, consequentemente, das configurações do
processo de trabalho em que participa o assistente social na atenção
básica em saúde, constituindo-se em tema de pesquisa.
A partir de uma pesquisa qualitativa, com caráter exploratório
e descritivo, que fundamentou a dissertação de Mestrado em Serviço
Social, defendida no ano de 2009, desvendaram-se as configurações
do processo de trabalho em que participa o assistente social na
saúde coletiva, no espaço sócio-ocupacional da atenção básica do
SUS, tendo como lócus o município de Porto Alegre, no estado do
Rio Grande do Sul (RS).11 Cabe registrar que, ainda no processo
de seleção dos participantes da pesquisa – assistentes sociais que
trabalharam em unidades de atenção básica do SUS durante o ano
de 2007 –, não foram localizados profissionais na ESF, tampouco as
informações sobre a inserção destes nas unidades de atenção básica
estavam corretas e atualizadas.
A grande maioria dos profissionais constantes como
trabalhadores de unidades básicas de saúde a partir dos subsídios oficiais
da Coordenadoria Geral de Atenção Básica à Saúde/CGRABS, órgão
da Secretaria Municipal de Saúde/SMS, era na realidade proveniente
de unidades de outros níveis de atenção no âmbito do SUS. Em virtude
disso, dos 75 assistentes sociais identificados inicialmente, somente
12, isto é, 16% realmente trabalharam em unidades de atenção básica
do SUS. Destes, dois recusaram-se a participar da pesquisa; um não
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
16
unidades de atenção básica do SUS, essa mesma característica associa-
se à transferência de profissionais a unidades de atenção secundária, a
não realização de concursos públicos ou outras formas de contratação
profissional pelas últimas gestões municipais e, ao crescente desmonte
desse espaço sócio-ocupacional (CAMARGO, 2009).
A redução do contingente profissional inserido em unidades
básicas do SUS na realidade estudada, remonta à década de 90 do
século XX, contexto de adesão do Estado aos pressupostos neoliberais
enquanto proposta teórica inspiradora das políticas econômicas e
sociais. Permeada por políticas de minimização do Estado interventor
no campo social, amplia-se a adoção do Programa Saúde da Família
(PSF) e da atenção básica como estratégias de organização do
primeiro nível de atenção no âmbito do SUS, em um contexto de
intensificação da focalização e da privatização da saúde, distanciando-
se progressivamente dos cuidados primários à população, privilegiados
na Declaração de Alma-Ata.
Em meio à polissemia de concepções adotadas nos diferentes
países para referenciar o primeiro nível de atenção em saúde das
populações, nos anos iniciais da primeira década do século XXI,
as principais agências mundiais de saúde mobilizaram as Américas
em prol da renovação da atenção primária em saúde. Em face das
recentes mudanças desencadeadas em direção à renovação do nível
primário de atenção à saúde, em nível continental, com repercussões
locais para a saúde pública, bem como a necessidade de dar
continuidade ao estudo empreendido no Mestrado em Serviço Social, EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...
o presente ensaio é produto das primeiras aproximações teóricas
com as categorias temáticas orientadoras da proposta de pesquisa
da tese de doutoramento em Serviço Social pelo PPGSS da FSS,
da PUCRS. Nesse ínterim, apresentam-se os resultados da revisão
do estado da arte sobre o tema de pesquisa: “exercício profissional
do assistente social na atenção primária em saúde”, realizada em
duas importantes fontes de informações secundárias que armazenam
produções teóricas em Serviço Social.
Essa proposta tem como objetivo identificar o direcionamento
dado às produções da área sobre o exercício profissional do assistente
social na renovação da atenção primária em saúde. Ampliar a leitura
da realidade de trabalho do assistente social pressupõe enriquecer
17
o tratamento teórico do exercício profissional considerado em suas
múltiplas determinações e mediações, o que implica “caminhar para
uma abordagem na óptica de totalidade da mesma, ampliando o foco
de análise para o trabalho em seu processo de realização no mercado de
trabalho, em condições e relações sociais determinadas” (IAMAMOTO,
2008, p. 258). O exercício profissional extrapola o foco centrado no
trabalho do assistente social, visto que esse se restringe a um dos
elementos do exercício profissional.
18
pela Organização das Nações Unidas (ONU), no ano 2000, chefes
de Estado e de governo de diversos países, dentre os quais o Brasil,
aprovaram os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM),
quais sejam: 1) erradicar a extrema pobreza e a fome; 2) alcançar o
ensino básico universal; 3) promover a igualdade entre os sexos e a
autonomia das mulheres; 4) reduzir a mortalidade infantil; 5) melhorar
a saúde materna; 6) combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças;
7) garantir a sustentabilidade ambiental; 8) desenvolver uma parceria
global para o desenvolvimento (ONU, 2000).
Durante a primeira década do século XXI pode-se constatar um
crescente interesse em renovar a APS, em nível mundial. Em 2004,
a OPAS e a OMS convocaram os estados membros a adotarem uma
série de recomendações em prol do fortalecimento da atenção primária.
Criou-se então um Grupo de Trabalho sobre APS, responsável pela
revisão de literatura dos países e elaboração de diversos documentos
que foram apresentados e discutidos em fóruns virtuais e em sessões
plenárias em reunião na Costa Rica (OPAS/OMS, 2005).
No ano seguinte, em 2005, um documento provisório foi
enviado aos países, com sugestões para conduzir o processo nacional
de consulta sobre a APS, bem como de diretrizes específicas para a
análise. O produto desse processo foi o lançamento do documento
de posicionamento da OPAS e da OMS, denominado “Renovação da
Atenção Primária em Saúde/APS nas Américas” (OPAS/OMS, 2005).
Dentre os motivos para adotar uma abordagem renovada da
APS, são destacados no documento supracitado: o surgimento de novos EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...
desafios epidemiológicos; a necessidade de corrigir os pontos fracos e
as inconsistências presentes em algumas das abordagens amplamente
divergentes da APS; o desenvolvimento de novas ferramentas e o
conhecimento de melhores práticas que a APS pode capitalizar de forma
a serem mais eficazes. Além disso, há um crescente reconhecimento de
que a APS é uma ferramenta para fortalecer a capacidade da sociedade
de reduzir as iniquidades na área da saúde (OPAS/OMS, 2005).
Nessa perspectiva, a abordagem renovada da APS é vista como
condição essencial para alcançar os compromissos da Declaração do
Milênio, abordando os determinantes sociais e alcançando o nível mais
19
elevado de saúde para todos. Contudo, a atenção primária seletiva, isto
é, aquela cujas atividades são voltadas às populações pobres, tem sido
a realidade de muitos países, ao passo que um sistema de saúde com
base na APS deveria ter como princípios: receptividade, orientação
de qualidade, responsabilização governamental, justiça social,
sustentabilidade, participação e intersetorialidade. O mesmo deve ser
composto por um conjunto central de elementos funcionais e estruturais
garantidores de cobertura e acesso universal a serviços aceitáveis à
população, que aumentem a equidade (OPAS/OMS, 2005).
Em nível nacional, há algumas medidas aprovadas recentemente
pelo Ministério da Saúde (MS) brasileiro que sinalizam a polivalência
de concepções adotadas para referir-se a estratégias e serviços
desenvolvidos no primeiro nível de atenção no âmbito do SUS. Merece
destaque a aprovação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB),
no ano de 2006, em cujo cenário o PSF, com composição de equipe
mínima médico assistencial, foi considerado a estratégia prioritária para
a sua organização no âmbito do SUS, em território nacional (BRASIL,
2006; CAMARGO, 2009). No documento preliminar divulgado pelo
MS três anos mais tarde, em 2009, tratando sobre as diretrizes do
Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), a Estratégia de Saúde
da Família (ESF) foi caracterizada como “vertente brasileira da APS
[Atenção Primária em Saúde]” (BRASIL, 2009, p. 07).
Em 2008, aprovou-se a composição de equipes multidisciplinares
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
20
apresentados na Scielo.22 A análise revelou que no período anterior à
criação do SUS “a atenção primária à saúde representava um marco
referencial para a organização dos serviços numa lógica que tinha como
proposta ser uma das principais alternativas de mudança do modelo
assistencial” (GIL, 2006, p. 1171 apud CAMARGO, 2009, p. 70).
Enquanto a atenção primária apresenta difusão internacional, a
atenção básica é uma expressão tipicamente brasileira utilizada para
definir uma forma própria de organização do primeiro nível de atenção
no âmbito da política pública de saúde. Com o advento do SUS, tem-se
tornado cada vez mais frequente a utilização da atenção básica como
referência aos serviços municipais, concepção que assim como a atenção
primária sofreu forte influência do Banco Mundial na organização das
ações (GIL, 2006). A adoção da concepção de atenção básica surgiu
permeada por políticas de redução do papel do Estado caracterizadoras
da década de 90 do século XX, diante da intensificação do processo de
focalização e privatização da saúde (DIAS, 2007).
À parte ou mesclada a essas novas medidas do Estado em
relação à saúde pública, tem-se observado a ampliação dos serviços
de atenção especializada no âmbito privado. Trata-se de um mesmo
cenário que, em suma, condensa avanços e retrocessos no que diz
respeito à efetivação do direito social à saúde sob a responsabilidade do
Estado. Na prática, a viabilização de novas diretrizes tem-se mostrado
uma tarefa extremamente difícil devido ao comprometimento histórico
do Estado com o modelo de atenção em saúde médico assistencial
privatista engendrado. EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...
2
Gil (2006) refere ter considerado essa base de dados pela acessibilidade e fluência que apresenta entre
pesquisadores e estudiosos.
21
técnica e, comumente, sob a orientação do médico” (STARFIELD,
2002, p. 162). No segundo tipo, os profissionais não médicos atuam
como “substitutos”, prestando serviços geralmente prestados por
médicos (STARFIELD, 2002). No terceiro tipo, também de caráter
“complementar”, os profissionais não médicos “ampliam a efetividade
dos médicos fazendo coisas que os médicos não fazem, fazem mal, ou
fazem relutantemente” (STARFIELD, 2002, p. 162).
Após enumerar estudos sobre os tipos de profissionais que
constituem as experiências de atenção primária em diversos países,
Starfield (2002) também observa que “nenhum estudo examinou o
potencial de profissionais não médicos para realizar ou contribuir com as
funções da atenção primária” (STARFIELD, 2002, p. 163). Contudo, o
investimento em recursos humanos é enfatizado pela OPAS e OMS como
uma área essencial e uma das barreiras à implementação da APS, desde a
Conferência Internacional de Alma-Ata (OPAS/OMS, 2005), uma vez que
a qualidade dos serviços depende dos profissionais que neles trabalham.
Nessa perspectiva, convém desvendar como vem se efetivando
o exercício profissional da categoria dos assistentes sociais no
contexto de renovação da APS. Esta proposição parte do pressuposto
de que o assistente social é o profissional privilegiado para atuar nos
determinantes sociais de saúde, produto da ação humana, responsáveis
pelas iniquidades em saúde:
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
22
Superior (CAPES), no período de 2005 a 2009; e 2) resumos das produções
publicadas nos anais do X e XI Encontros Nacionais de Pesquisadores
em Serviço Social (ENPESS), promovidos pela Associação Brasileira de
Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) e pelo Conselho Federal
de Serviço Social (CFESS), nos anos de 2006 e 2008, respectivamente.
O marco referencial adotado para delimitar o início do processo
de coleta de informações foi o ano de 2005, por se tratar da ocasião de
lançamento do documento “Renovação da Atenção Primária em Saúde/
APS nas Américas”, explicitado anteriormente. Para a conclusão, optou-
se pelo ano de 2009 para a CAPES, e o ano de 2008 para o ENPESS, por
corresponderem às suas edições mais atuais. Privilegiou-se a análise de
conteúdo de corte temático (BARDIN, 1977) dos resumos das produções
de ambas as fontes secundárias, sendo coletadas informações referentes
às categorias temáticas: 1) atenção primária em saúde; 2) atenção básica
em saúde; 3) saúde da família 4); assistente social e atenção primária; 5)
assistente social e atenção básica; 6) assistente social e saúde da família.
O expressivo número de dissertações e teses encontradas no
portal de busca da CAPES, sobre a expressão exata atenção primária
em saúde (2005-2009), demonstra que o estudo dessa temática no
âmbito das diversas áreas de conhecimento tem aumentado anualmente,
conforme se pode observar no Quadro 1. Entretanto, com essa
característica de busca, não foram localizadas produções que tratassem
do exercício profissional do assistente social na atenção primária em
saúde, ao proceder-se a leitura dos resumos.
EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...
Quadro 1 – Expressões exatas de atenção primária em saúde, no período
de 2005 a 2009.
Ano Profissionalizante Dissertação Tese Subtotal
2005 01 04 04 09
2006 01 07 04 12
2007 01 10 02 13
2008 02 10 04 16
2009 05 22 05 32
Total 10 53 19 82
Fonte: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES, 2010).
23
Na opção de busca por todas as palavras sobre assistente social
e atenção primária (2005 a 2009), emergiram duas produções, das quais
uma apresentou relação com o tema de pesquisa. Tratava-se de uma
dissertação de Mestrado em Serviço Social defendida na Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF, 2009), baseada em pesquisa qualitativa
sobre o trabalho do assistente social na atenção primária à saúde
em Juiz de Fora, estado de Minas Gerais (MG), no que se refere
à sua organização, desenvolvimento, objeto, objetivos, instrumentos
e condições de trabalho. A outra produção foi excluída por restringir
a citação do assistente social a profissional integrante dos recursos
humanos em pesquisa sobre o sistema de saúde mental no contexto de
Reforma Psiquiátrica no município de Santos, estado de São Paulo (SP).
Na análise dos cento e 34 resumos das produções encontradas
sobre a expressão exata atenção básica em saúde (2005-2009),
identificou-se três dissertações relacionadas ao tema pesquisado.
A primeira tratava-se de uma dissertação de Mestrado em Serviço
Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ (2006),
que utilizou um estudo de caso com enfoque qualitativo para analisar
o trabalho do assistente social no PSF de Ipatinga (MG). A segunda
constituía-se uma dissertação de Mestrado em Saúde na Comunidade
na Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto/USP (2008), baseada
em estudo comparativo sobre os tipos de intervenções apresentadas
ao Serviço Social pelos usuários dos modelos de prestação da atenção
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
24
Dentre as sete produções escolhidas, emergiram três novas.
Essas foram incluídas na seleção sobre o tema de pesquisa. A primeira
dissertação de Mestrado em Serviço Social na PUCRS baseava-se
em pesquisa qualitativa sobre o processo de trabalho do assistente
social no PSF da 6ª Coordenadoria Regional de Saúde, região
norte do estado. A segunda, dissertação de Mestrado em Serviço
Social na Universidade Paulista Júlio Mesquita Filho/Franca (SP),
constituía-se em estudo quantitativo sobre o perfil da população
portadora de Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) atendida nas
ESF de Franca. A terceira tratava-se de uma tese de Doutorado em
Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUCSP), objetivando: apreender as condições que favoreceram
ou restringiram a implantação do PSF em Aracaju; refletir sobre
a política de saúde construída nesse município; subsidiar o debate
sobre a inclusão, enquanto política nacional, do assistente social
nas equipes de Saúde da Família e da condição do assistente social
enquanto trabalhador da saúde.
Na opção de busca por todas as palavras sobre assistente
social e saúde da família (2005-2009), foram listadas 29 produções.
Com base na totalidade de resumos, 76%, isto é, 22 das 29 produções
foram excluídas, por dedicarem-se à discussão da política de saúde; do
trabalho em equipe; de concepções de usuários e profissionais sobre
diversas temáticas; da atenção por áreas temáticas; outros níveis de
atenção no âmbito do SUS. As demais sete produções sobre assistente
social e saúde da família, foram incluídas na seleção sobre o tema EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...
pesquisado. Entretanto, seis dessas produções foram localizadas e
incluídas em buscas anteriores. A produção ímpar tratava-se de uma tese
de doutorado em Serviço Social pela PUCSP, sobre questões relativas à
temática de subjetividade do trabalho.
Do número total de dissertações e teses localizadas no portal
de busca da CAPES, referentes ao período pesquisado (2005-2009),
de acordo com as opções e expressões explicitadas, oito apresentaram
alguma relação com o tema de pesquisa “exercício profissional do
assistente social na atenção primária em saúde”. Cinco das oito
produções listadas na busca pela expressão exata de atenção básica
em saúde reapareceram na lista das expressões exatas sobre saúde
da família, conforme indicado no Quadro 2. Essa informação ratifica
25
a utilização generalizada da expressão PSF para identificar a atenção
básica na atual conformação do SUS.
3
Informa repetição da produção.
26
2. Trabalho do assistente social na atenção básica em saúde
[06]: a) prestação de serviços assistenciais: 01; b) manutenção do
modelo de atenção em saúde médico privatista: 02; c) contribuição para
a mudança do modelo de atenção em saúde, com ações inovadoras e
críticas: 01; d) mediação entre o projeto ético-político profissional e os
princípios orientadores do SUS: 01; e) complementaridade e subsídios
à equipe multidisciplinar: 01; f) manutenção do modelo de atenção
em saúde médico privatista: 02; g) atuação nas refrações da questão
social, gestão, formulação e planejamento de políticas sociais: 01; h)
levantamento de indicadores socioeconômicos da população usuária:
01; i) elaboração de estratégias de intervenção: 01; j) participação no
movimento de Reforma Sanitária: 01.
3. Trabalho do assistente social na estratégia Saúde
da Família [05]: a) prestação de serviços assistenciais: 01; b)
manutenção do modelo de atenção em saúde médico privatista: 02;
c) complementaridade e subsídios à equipe multidisciplinar: 01;
d) atuação nas refrações da questão social, gestão, formulação e
planejamento de políticas sociais: 01; e) levantamento de indicadores
socioeconômicos da população usuária: 01; f) elaboração de estratégias
de intervenção: 01; g) participação no movimento de Reforma
Sanitária: 01; h) questões relativas à temática da subjetividade do
trabalho (romantismo, família, religiosidade e política): 01.
27
Quadro 3 – Produções sobre atenção primária, atenção básica e saúde
da família por eixo temático, nos Encontros Nacionais de Pesquisadores
em Serviço Social (ENPESS) (2006; 2008).
Eixo temático X ENPESS XI ENPESS Subtotal
2006 2008
1) Fundamentos do Serviço Social 01/48 00/54 01
2) Formação profissional e o processo04/57 00/56 04
interventivo do Serviço Social
3) Questão social e trabalho 02/234 00/263 02
4) Política social 09/143 08/195 17
Total 16/482 08/568 24/1050
Fonte: Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social
(ABEPSS) e pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) (2006; 2008).
28
Quadro 4 – Núcleos temáticos e frequência dos temas nas produções
sobre Serviço Social e atenção primária, nos Encontros Nacionais de
Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) (2006; 2008).4
X ENPESS XI ENPESS
Tema Subtotal
2006 2008
1) Avaliação sobre a atuação do assistente social na 01 00 01
estratégia Saúde da Família (usuários e/ou equipe
multiprofissional de saúde)
2) A dimensão educativa do Serviço Social no Pro- 01 00 01
grama Saúde da Família (PSF) (educação em saúde)
3) Inserção do assistente social no Programa Saúde 01 00 01
da Família (PSF)
4) Serviço Social na Residência Multiprofissional 01 00 01
em Saúde da Família
5) O Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) 00 01 01
como possibilidade emergente para o trabalho do
assistente social
6) O trabalho do assistente social na atenção 00 01 01
primária em saúde (dificuldades enfrentadas pela
falta de recursos para atender as demandas)
7) Resumo e texto completo indisponível 024 00 02
Total 06 02 08
Fonte: Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social
(ABEPSS) e pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) (2006; 2008).
EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...
Das oito produções em destaque, apenas uma utilizava a
concepção de atenção primária para caracterizar o nível de atenção
em saúde. A maior parte dessas produções, isto é, 63% enfatizavam o
trabalho do assistente social junto ao PSF. As outras duas produções
não tinham resumos disponíveis. Nenhuma das IES de origem dos
autores apresentou um volume de trabalhos significativamente superior
às demais, visto que sete das oito produções eram provenientes de
universidades distintas. No entanto, prevaleceram as universidades da
Região Sudeste, seguida da Região Nordeste do Brasil, a exemplo das
produções localizadas através do portal de busca da CAPES.
4
Uma dessas produções tem título e autoria idêntica à produção localizada no portal de busca da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, 2010).
29
Considerações finais
A partir da pesquisa realizada em duas fontes secundárias para
a área de Serviço Social: portal de busca da CAPES e anais do X e XI
Encontros Nacionais de Pesquisadores em Serviço Social, realizados
nos anos de 2006 e 2008, respectivamente, localizaram-se 16 produções
referentes ao período de 2005 a 2009, que apresentaram relação com o
tema de pesquisa “exercício profissional do assistente social na atenção
primária em saúde”. Cabe ressaltar que nenhuma dessas produções
adotou como marco referencial de estudo o processo de renovação da
APS nas Américas, proposto por organismos internacionais de saúde na
primeira década do século XXI.
Percebe-se, a partir da análise da totalidade de resumos dessas
produções, que há o privilégio de um dos elementos do exercício
profissional do assistente social, qual seja: o trabalho, tendo como foco
a atividade do sujeito em ação. O desafio dessa perspectiva de análise
é traduzi-la em “suas particulares inserções nas esferas de produção
de bens e serviços [...] em suas múltiplas determinações e mediações,
no âmbito da práxis social” (IAMAMOTO, 2008, p. 258). Ratifica-se
que a grande maioria das produções enfatizou experiências específicas
de inserção do assistente social em unidades da atenção básica ou
ESF, tendo apenas uma delas ampliado a discussão para o conjunto de
serviços correspondentes à atenção primária em saúde, contudo, ainda
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
30
Nesse cenário contraditório, afirma-se a dimensão qualitativa do
trabalho do assistente social: socialmente construído e indispensável na
mediação do acesso às ações intersetoriais, bens e serviços necessários
à efetivação do direito social à saúde, de responsabilidade do Estado.
Urge, portanto, desvendar as múltiplas determinações e mediações que
perpetram o exercício profissional do assistente social no processo de
renovação da atenção primária em saúde.
31
Referências
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SOCIAL; CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Encontro
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Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
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33
INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS
MULTIPROFISSIONAIS EM ATENÇÃO BÁSICA: FORMAÇÃO
EM EQUIPE E INTEGRALIDADE
35
qualificação da atenção em saúde. Se esse sistema destina-se à garantia
da saúde da população brasileira como um direito de cidadania, ele
necessita, portanto, criar condições que fortaleçam o exercício do trabalho
em saúde orientado para a afirmação desse direito e para a materialização
do modelo assistencial que o SUS instaura.
O ordenamento da formação de recursos humanos,
conforme define a Lei Orgânica da Saúde,11 prevê a organização
de um sistema educativo em todos os níveis de ensino, englobando
formação técnica, graduada, pós-graduada e permanente, além da
especialização em serviço e a área da pesquisa. Além disso, aponta
para a concepção de que a rede de serviços do SUS constitui-se em
lócus de ensino-aprendizagem, o que implica, fundamentalmente, a
educação permanente dos trabalhadores e iniciativas de integração
entre ensino e serviço, instituindo, no interior dessa rede, práticas de
formação e de pesquisa. Trata-se, assim, de uma importante mudança
de perspectiva na abordagem dos serviços de saúde: estes como
espaços de geração de novos conhecimentos e práticas voltados para
a inovação assistencial.
Nesse quadro em que se insere a RMS. Embora respaldada
no arcabouço jurídico do SUS, somente na conjuntura recente a RMS
adquire estatuto de política, contando com normatização específica
construída através de processos de mobilização.2
A RMS constitui-se numa modalidade de formação pós-
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
36
Dessa forma, os conceitos de campo e núcleo de saberes e
práticas de saúde (CAMPOS, 2000) auxiliam na operacionalização da
interdisciplinaridade e têm sido incorporados na organização dos programas
de residência. O núcleo consiste nos saberes e práticas relacionadas à dada
profissão, enquanto o campo se constitui na área de limites imprecisos
entre as disciplinas e as profissões, conformando um território de saberes
e práticas comuns ou confluentes. Nessa linha, a interdisciplinaridade
consiste em trocas criadoras entre núcleos profissionais na construção de
interfaces de saberes e práticas visando empreender respostas aos desafios
emergentes no cotidiano do trabalho em equipe.
A formação em serviço remete à centralidade do trabalho como
polo educativo, aspecto que também demarca a particularidade e a
potencialidade da RMS. Para tal, a categoria trabalho deve ser alvo
de reflexão e crítica e, portanto, pontuaremos alguns elementos acerca
das particularidades do trabalho em saúde que atravessam o campo dos
processos da Residência.
O primeiro elemento a ser considerado é o fato de esse trabalho
ser fortemente regulado pelas lógicas nucleares das profissões, tais
como as normatizações específicas e os atos privativos, implicando
37
outros como abstrato, bem como mediarmos esses conceitos com as
particularidades do trabalho no setor saúde, de forma a construir aportes
para a formação voltada para o SUS.
No que tange à dimensão concreta do trabalho, é fundamental
relacioná-la com os produtos e o valor de uso, ou seja, identificar de
que forma estes impactam na atenção em saúde e o que representam
do ponto de vista do trabalhador dessa área. Nesta trilha, abre-se como
possibilidade a análise da dimensão concreta particular dos trabalhos
das diferentes profissões inseridas nas equipes multiprofissionais.
Outro aspecto consiste na apreensão da dimensão teleológica do
trabalho (MARX, 2004a; 2004b), ou seja, o plano da intencionalidade,
que, no caso dos trabalhadores da saúde, se insere diretamente no
campo da disputa de projetos para esse setor, indissociáveis de projetos
societários. Nesta dimensão do trabalho que se move a esfera cultural
e valorativa que pode, em parte, reforçar tendências regressivas no
campo do direito social ou, estrategicamente, fortalecer o Projeto de
Reforma Sanitária, contribuindo para a consolidação de uma contra-
hegemonia no setor saúde.
Se atentarmo-nos para a dimensão ontológica do trabalho
(MARX, 2004a; 2004b), ela também oferece aportes para a
discussão dos processos educativos a partir do mundo do trabalho.
Tal dimensão demarca o significado do trabalho como atividade
humana constituinte do ser social, que ao projetar e incidir na
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
38
os processos de precarização no interior do setor saúde, bem como a
diversificação dos vínculos contratuais, acarretando uma realidade
por vezes adversa para os trabalhadores dessa área, com importantes
impactos na qualidade da atenção.
Apreender essa dimensão abstrata do trabalho é fundamental,
tendo em vista não esvaziá-lo de historicidade e desvinculá-lo dos
processos de alienação, bem como das lutas pela superação dessa
forma determinada de trabalho (IAMAMOTO, 2008). As expressões
particulares do trabalho abstrato e dos processos de alienação
no setor saúde podem ser visualizadas nas crescentes relações
desumanizadas, na banalização e indiferença frente ao sofrimento
humano, na baixa disponibilidade para a escuta e acolhimento às
demandas dos sujeitos.
Além desses aspectos, o trabalho possui centralidade na
natureza do setor saúde, pois é este o elemento central da produção dos
serviços nessa área, materializados no cuidado prestado à população
usuária. Assim, caracteriza-se por ser trabalho vivo em ato, no qual
ganha destaque a sua dimensão relacional (campo das tecnologias
leves), posto que incide no complexo objeto da saúde, em sujeitos que
39
Na contratendência dessa realidade, a RMS procura romper com
a lógica de fragmentação entre as profissões, buscando a necessária
complementaridade entre práticas e saberes distintos. Dessa forma,
essa modalidade de formação tem-se constituído como estratégia
potencializadora da mudança do modelo assistencial. Por estar inserida
diretamente na rede de serviços e ser desenvolvida tendo como foco de
ensino o trabalho em saúde, ela própria converte-se em uma estratégia
de Educação Permanente em Saúde, pois impulsiona a crítica e a análise
dos processos de trabalho, favorecendo, assim, mudanças no modo de
fazer a atenção em saúde das equipes multiprofissionais.
A EPS baseia-se na aprendizagem no trabalho, realizada a partir
dos problemas enfrentados na realidade e considera que as necessidades
de formação e desenvolvimento dos trabalhadores devem ser pautadas
pelas necessidades de saúde concretas dos sujeitos, a partir da dinâmica
também concreta dos serviços de saúde. Constitui-se em um processo
educativo que ocorre a partir da problematização do cotidiano de
trabalho, sendo realizado através de espaços e temas que gerem
autoanálise, implicação, mudança institucional e transformação das
práticas em saúde (CECCIM, 2005).
Além do referencial da Educação Permanente, a Residência deve
ser desenvolvida de modo a articular-se a um sistema de formação de
recursos humanos ou, mesmo, contribuir para fortalecê-lo, como prevê
a Lei Orgânica. Isso implica que a Residência mantenha relações com as
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
3
A seguir, apresentamos alguns destes eixos: “II - concepção ampliada de saúde (...) IV - abordagem
pedagógica que considere os atores envolvidos como sujeitos do processo de ensino-aprendizagem-
trabalho (...); V - estratégias pedagógicas capazes de utilizar e promover cenários de aprendizagem
configurada em itinerário de linhas de cuidado de forma a garantir a formação integral e interdisciplinar; VI
- integração ensino-serviço-comunidade (...) ; VII - integração de saberes e práticas que permitam construir
competências compartilhadas para a consolidação do processo de formação em equipe (...) integralidade
que contemple todos os níveis da Atenção à Saúde e à Gestão do Sistema” (BRASIL, 2007).
40
Assim, a formação na Residência necessita dialogar e contribuir
com a afirmação da integralidade, tanto no plano dos níveis de atenção do
SUS como na gestão em saúde. De forma bastante sintética, a integralidade
implica uma abordagem totalizante das necessidades e da atenção em saúde,
o que se desdobra na análise e intervenção sobre: a relação entre demandas,
as necessidades de saúde e ofertas de serviços; a (re)organização dos
processos de trabalho das equipes, tendo como foco o usuário; o trabalho
em equipe e a afirmação da interdisciplinaridade; a relação profissional-
usuário, tais como escuta, vínculo, acolhimento, tendo em vista a abordagem
ampliada do sujeito e das suas necessidades; a acessibilidade a diversos
níveis de atenção de forma articulada visando ampliar as possibilidades de
atendimento às necessidades de saúde singulares e coletivas; a diversificação
de ações que transcendam o enfoque curativo; os modelos assistenciais e a
gestão dos serviços e políticas.
A integralidade na formação em RMS se expressa no processo
de formação em equipe diretamente nos serviços de saúde. Dessa
forma, as experiências formativas na RMS precisam ter como eixo a
integração de saberes e práticas entre os trabalhadores da saúde, de
modo que sejam construídas competências compartilhadas na formação
41
Nessa perspectiva, a formação em RMS potencializa a
constituição de competências e saberes compartilhados, os quais
tensionam a especialização do trabalho fundada em saberes utilizados
privativamente. Isto não implica a diluição da particularidade de cada
trabalho, porque isso também implicaria a perda de qualidade da atenção
em saúde, mas sim na aquisição de novas competências, construídas
conjuntamente. Essa construção passa pela preservação das atribuições
profissionais, mas as competências das profissões envolvidas na equipe
devem ser conjugadas. Contudo, as ações privativas das profissões
devem ser informadas por um conjunto de valores sintetizados nos
princípios do SUS que o sintonizem com a dimensão cuidadora na
produção de saúde (MERHY, 2007).
Assim, a formação da RMS engloba tanto a qualificação de
cada trabalho particular quanto a qualificação do trabalho coletivo em
saúde. A inserção e o trabalho em equipe multiprofissional necessitam
englobar tanto as ações relativas a cada profissão, como também as ações
coletivas, resultando em um processo de ensino-aprendizagem-trabalho
voltado para a construção de mudanças na atenção em saúde e na gestão
dos serviços. Trata-se, assim, de apreender as requisições que o processo
de qualificação do SUS coloca para o trabalho coletivo em saúde –
em especial na ênfase em dadas áreas do sistema, conforme a área de
concentração do programa – e também para o trabalho de cada profissão.
Nesse horizonte, uma das áreas do SUS com maior concentração
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
42
e no primeiro contato, que se refere ao acesso preferencial e facilitado
da população a serviços de saúde; a longitudinalidade, constituída
pelo estabelecimento de cuidado e relações contínuas entre equipe e
população; a coordenação, que consiste na responsabilização pelo
cuidado em saúde, mesmo quando o usuário acessa outros níveis de
atenção do sistema; a abrangência do cuidado, relativa à adequação das
ações programadas pelo serviço frente às necessidades de saúde e à
capacidade de resolutividade dessas ações.
Dessa forma, esse nível do SUS tem assumido certa centralidade
nas agendas governamentais, o que se expressa na implantação expansiva
dos Programas de Saúde da Família (PSF) e de Agentes Comunitários
de Saúde (ACS), que vem operando uma reestruturação desse nível de
atenção. Atualmente esses programas integram a Estratégia de Saúde
da Família (ESF), diretriz prioritária da Política Nacional de Atenção
Básica (BRASIL, 2006b).
Desde a sua implantação, o debate sobre esses programas tem
congregado tensões, passando a ser alvo de distintas abordagens,
aglutinadas em dois polos de análise. O primeiro problematiza a
tendência de precarização e focalização de serviços sociais contida
43
pode limitar as possibilidades de trocas criadoras que fortaleçam
os saberes do campo da Saúde Coletiva. Neste sentido, acreditamos
que um aspecto a ser adensado de reflexões é a contradição entre a
ampliação do objeto saúde e do escopo de ações, proposta pela ESF,
com a redução da multiprofissionalidade das equipes, frequentemente
denominadas de “equipes mínimas”. No entanto, é questionável se a
presença de outros profissionais na composição básica dessas equipes
não seria uma estratégia potencializadora do modelo de atenção à saúde
buscado por essa política.
Neste horizonte, torna-se premente a necessidade de criação
de estratégias de suporte a essas equipes, que vão desde arranjos que
ampliem a sua composição, ancoradas nas necessidades de saúde loco-
regionais, bem como a implantação dos Núcleos de Apoio à Saúde da
Família (NASF). Essa necessidade se coloca também como um desafio
para a formação em residência na atenção básica, tendo em vista
impulsionar a vivência de novos arranjos de equipes, voltados para
a ampliação da resolutividade e adequação às necessidades de saúde
prevalentes no território, subsidiando também a inserção dos egressos
das Residências nos NASFs.
No que tange especialmente aos NASFs, entendemos que
este é um debate que necessita ser aprofundado, em especial, em
relação ao trabalho pautado no apoio matricial4/assessoria. Afinal, que
particularidades adquirem o trabalho desse profissional vinculado aos
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
44
Entendemos que os NASFs representam um novo espaço sócio-
ocupacional a ser explorado pelos assistentes sociais, elucidado em suas
potencialidades e contradições. Questões implicadas no processo de
implantação (composição das equipes, priorização das áreas/equipes de
ESF) e na dinâmica de funcionamento (o grande número de equipes de
ESF vinculadas a cada NASF, a tendência deste de assumir o papel de
um serviço de média complexidade e funcionar na lógica tradicional da
referência e contrarreferência) necessitam ser debatidas, serem alvo de
pesquisas, bem como privilegiar relatos de experienciais profissionais
sobre a atuação em apoio matricial.
Nesse quadro de transição e mudança na atenção básica, a
integralidade em saúde se coloca como premissa fundamental, diretriz
que, compondo a tríade de princípios doutrinários do SUS junto
com a universalidade e equidade, necessita ser explorada e adensada
na formação nas RMS. A integralidade ancora-se na perspectiva
de necessidades em saúde como conceito-chave para a análise da
materialização da Política de Saúde, em suas diferentes dimensões, de
modo a efetivar o conceito ampliado de saúde no cotidiano do SUS.
Dessa forma, as necessidades de saúde podem ser apreendidas em
45
Podemos também nos valer da discussão de Cecílio (2006)
sobre a integralidade, o qual destaca que essa pode ser apreendida
tanto em uma dimensão ampliada, no plano do conjunto do Sistema,
como também numa dimensão focalizada, no plano de dado serviço
e equipe de saúde. Ressalta o autor que o atendimento integral às
necessidades de saúde não se realiza somente no âmbito de um serviço
de saúde – por mais competente e compromissado que ele esteja com
tais necessidades – e sim deve ser pensado e efetivado através da
articulação entre os demais níveis do sistema e do acesso a serviços e
políticas para além do setor saúde, visando à melhoria e à ampliação
da qualidade de vida dos usuários.
Já no espaço do serviço de saúde, conforme Cecílio (2006), a
integralidade corresponde ao movimento empreendido pela equipe, no
contato profissional-usuário, no sentido de realizar a melhor escuta,
apreensão e atendimento das necessidades de saúde, frequentemente
travestidas em demandas simplificadas, ou moduladas pela oferta dos
serviços. Deve-se, segundo o autor, investir na confluência de saberes
das equipes multiprofissionais, na organização e capacitação dessas
equipes, no sentido de ampliar esse processo de escuta, apreensão e
atenção às necessidades de saúde.
Diante do exposto, podemos ressaltar que a integralidade
em saúde possui como eixos analisadores para sua materialização
a intrassetorialidade, a intersetorialidade e interdisciplinaridade,
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
46
entre saúde e questão social. Além disso, a configuração particular da
atenção básica em saúde, as diretrizes e políticas que a norteiam também
apontam tendências para o trabalho e a formação dessa profissão nesse
âmbito do SUS. Dessa forma, o primeiro aspecto a ser enfatizado
consiste na centralidade do conceito ampliado de saúde5 como norteador
do trabalho e da formação nas Residências. Tal conceito permite-nos
dialogar com a questão social em suas diferentes expressões, bem como
sinaliza para a importância de considerarmos a determinação social
do processo saúde/doença, apreendendo “a influência da cultura, das
relações sociais e econômicas e das condições de vida nos processos
saúde-doença” (NOGUEIRA, MIOTO, 2006, p. 228).
Tal perspectiva é fundamental, tendo em vista fortalecer que
esse trabalho esteja atento às refrações da questão social no âmbito
dos processos saúde/doença e às demandas emergentes no cotidiano
profissional, de forma a potencializar a produção e a garantia da saúde
através da defesa e da ampliação de direitos. Adensar as mediações
entre saúde e questão social, tendo como foco de problematização os
determinantes sociais do processo saúde/doença, consiste num dos
principais eixos do trabalho e da formação dos assistentes sociais
47
com valores emancipatórios referentes à conquista da liberdade, situando
a centralidade do trabalho na (re)produção da vida social (BARROCO,
2006). A valoração ética desse projeto remete, prioritariamente, ao campo
da ação profissional frente à questão social, balizando a intencionalidade
e a direção do trabalho do assistente social.
Na pesquisa realizada, os dados indicam claramente a direção
social do trabalho referendada em ambos os projetos. Através dos
dados7 quantitativos, podemos constatar uma predominância dos
princípios do SUS sobre os do atual Código de Ética, dentre os
princípios elencados pelos residentes como norteadores do trabalho
e da formação. Contudo, devemos ponderar sobre a implicação entre
tais princípios, pois, por exemplo, tanto o Projeto de Reforma Sanitária
como o Projeto Profissional têm como direção social a consolidação
da democracia, da cidadania e a premissa de universalização de
direitos. Outro ponto é que a particularidade dessa formação também
contribui para uma valorização dos princípios desse Sistema como
norteadores das ações, o que por sua vez também contribui para
fortalecer finalidades comuns entre os trabalhadores das equipes,
necessárias para a materialização da interdisciplinaridade.
Dadas essas considerações introdutórias que balizam a discussão
da inserção profissional no SUS, passaremos à discussão de possibilidades
de materialização do trabalho profissional na atenção básica frente à
diretriz da integralidade, de forma articulada com a formação nas RMS.
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
7
Na abordagem quantitativa de nossa pesquisa sobre intencionalidade profissional, os três princípios com
maior frequência de escolha pelos residentes, selecionados dentre o Código de Ética e dentre as diretrizes
do SUS, foram: a participação popular/controle social (13), a integralidade em saúde (12), a saúde como
direito social (12), a universalidade do acesso (12). A análise comparativa dos dados, entre princípios do
Código e do SUS, demonstra que os princípios priorizados pelos residentes no trabalho são: a participação
popular/controle social (13), seguido da integralidade e da saúde como direito social (12); o posicionamento
em favor da equidade e justiça social (9), seguido da ampliação e consolidação da cidadania (8).
48
profissional em equipes de ESF, contudo, condicionada às configurações
locais da rede de saúde, em que esta garanta a inclusão de outros
profissionais além dos previstos na equipe mínima; sua participação direta
em equipes de outros serviços de atenção básica onde não foi implantada
a ESF, voltando-se para o atendimento da população adstrita, juntamente
com o atendimento “especializado” de referência para a ESF e também
participando de iniciativas de apoio matricial; a inserção direta em equipes
de apoio matricial, em especial os NASF, na qual a atuação ocorre a partir
da interface com as equipes ESF e territórios vinculados ao NASF.
A formação dos assistentes sociais nas Residências necessita
dialogar com essas tendências atuais de inserção na atenção básica.
Implica apreendê-las e problematizá-las, sobretudo, de forma articulada
com uma análise conjuntural sobre a própria configuração da rede básica
no contexto dos sistemas locais de saúde. É a partir deste debate mais
amplo – a configuração da rede básica nos sistemas locais e o desafio
da sua qualificação – que o tema candente da inserção do assistente
social nas equipes mínimas de ESF ganha densidade política, pois se
articula ao processo de construção de novos arranjos de equipes que
qualifiquem a atenção em saúde.
49
incidam sobre a melhoria das condições de vida da população com a
luta social pelo acesso igualitário e universal aos serviços de saúde
(MATOS, 2005; 2006).
Conforme Paim (2008), a integralidade nas bases conceituais
da Reforma Sanitária brasileira incorpora quatro perspectivas,
compreendendo-a:
50
princípio dotado de vários sentidos que consistem tanto na
abordagem do indivíduo na sua totalidade como parte do
contexto social, econômico, histórico e político, quanto na
organização de práticas de saúde que integrem ações de
promoção, prevenção, cura e reabilitação (NOGUEIRA;
MIOTO, 2006b, p. 278).
51
desafio de aprofundamento da gestão democrática da Política de Saúde,
mas também um campo de possibilidades de disputa da organização do
sistema através de um modelo assistencial integral. Do ponto de vista do
ensino na Residência, trata-se de construirmos experiências formativas dos
assistentes sociais, pautadas na gestão e no planejamento da atenção básica,
que tomem como eixos a participação, a sistematização de demandas da
população e a construção de interfaces entre serviços de diferentes políticas.
Além disso, a integralidade no âmbito da organização dos
serviços e processos de trabalho desafia-nos a superar a lógica privatista
hegemônica que orienta o trabalho em saúde. Isso implica mudanças
nas instituições, na democratização dos serviços e na adoção de uma
organização do trabalho aberta às demandas da população: uma relação
dialética entre necessidades de saúde e oferta de serviços. São necessárias
também estratégias permanentes de apreensão da realidade vivida
pela população, do território/comunidade no qual se insere o serviço,
de modo a impulsionar ações contínuas e planejadas. Esse desafio
necessita, sem dúvida, permear o processo de ensino-aprendizagem dos
assistentes sociais nas Residências, podendo ser adensado através do
debate e do estudo sobre modelos assistenciais em saúde,9 de forma
conjunta com as demais áreas profissionais.
Outro aspecto fundamental, como já referimos, consiste no fato
de que o fortalecimento do trabalho coletivo realizado pela equipes
multiprofissionais não “exclui” a qualificação do trabalho de cada
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
52
problematize as ações profissionais, bem como nos espaços com ênfase
teórica, que agreguem os assistentes sociais residentes e preceptores.
Na pesquisa realizada junto aos programas de Residência, os
dados quantiqualitativos obtidos indicam a construção de mediações
sistemáticas, por parte dos assistentes sociais, que conformam a
particularidade profissional na abordagem da saúde, as quais mobilizam
e se traduzem em estratégias profissionais frente aos desafios de
afirmação da integralidade.
Tais mediações ancoram-se nos fundamentos teórico-metodólogicos
e ético-políticos do Serviço Social, da produção recente desta área, e podem
ser denominadas como: mediações fundamentadas no método dialético-
crítico, as quais se evidenciam na abordagem da saúde que prima pela
totalidade, na perspectiva de desvelamento e reflexão crítica da realidade;
nas mediações relativas ao campo de valores do projeto profissional,
nas quais ganha destaque a centralidade para a garantia de direitos,
indissociáveis da busca pela ampliação da cidadania e democratização;
e as mediações articuladas ao campo das Políticas Sociais, ou seja, que
expressam o acúmulo de saberes teórico-práticos que essa categoria vem
produzindo sobre a esfera da prestação de serviços sociais, seja no campo
53
Com base nos expostos até então, ressaltamos a importância
da construção do trabalho do assistente social no sentido de efetivar
abordagens socioeducativas junto a indivíduos, famílias e grupos,
que superem intervenções pontuais centradas apenas em demandas
emergentes dirigidas pela população ou equipe multiprofissional, para
o seu trabalho, de forma a efetivar ações integradas, seja com a equipe,
com demais serviços e/ou políticas.
Assim, buscamos identificar em nossa pesquisa a participação dos
residentes no conjunto das ações em saúde desenvolvidas pelas equipes
de atenção básica. Os dados referentes às ações profissionais indicam que
há uma inserção ampla e contínua dos assistentes sociais em diferentes
ações da atenção básica, com destaque para as abordagens relativas ao
controle social/mobilização comunitária e à saúde da família. Essas ações
possuem enfoque interdisciplinar, operacionalizadas através de interfaces
entre as áreas profissionais inseridas na equipe. Identificamos que as
principais ações realizadas continuamente, por ordem de frequência são:
o acompanhamento a famílias e a participação no controle social (100%),
a realização de visitas domiciliares (91,6%), o acolhimento aos usuários
(83,3%), a participação em projetos interdisciplinares e a realização de
práticas grupais (75%).
Neste horizonte, a partir das experiências profissionais
pesquisadas nas Residências, da revisão de produções e pesquisas
sobre a atenção básica, podemos ressaltar alguns eixos fundamentais
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
54
Outro ponto é a ampliação da acessibilidade do serviço como
desafio permanente do trabalho que se pauta pela universalidade do
direito. Implica, assim, a organização do processo de trabalho da equipe e
da dinâmica do serviço, tendo em vista a realidade da população/território.
A participação ativa na implantação de acolhimento, englobando a escuta,
identificação de necessidades e inserção nos atendimentos ofertados pelo
serviço, ou da rede, é uma estratégia importante. O acolhimento também
está associado à mudança da organização da atenção em saúde centrada
somente na demanda espontânea (Pronto Atendimento), ampliando o
acesso e também qualificando a atenção.
Nesta linha, também se coloca como estratégico afirmar a
atenção em saúde longitudinal, voltada para o grupo familiar. Esta
atenção necessita da construção de estratégias que favoreçam o
acompanhamento continuado da família e a superação do atendimento
pontual de agravos em saúde e de grupos populacionais/recortes
geracionais. Uma possibilidade para fortalecer esse processo é a
definição de profissionais de referência para famílias por microáreas do
território. Outro eixo de atuação consiste no enfoque para a promoção
em saúde. A perspectiva da promoção parte de uma concepção ampla da
55
a criação de “protocolos” que favoreçam o enfoque interdisciplinar,
bem como a atenção voltada para a família.
Os aspectos abordados anteriormente se articulam com o
modelo assistencial Vigilância da Saúde,10 pois levam em consideração
a centralidade do território, o enfoque para a promoção da saúde e
seus determinantes sociais, sendo uma perspectiva que auxilia na
operacionalização do trabalho do assistente social. Para tanto, é
fundamental aprofundar competências relativas à utilização de dados
socioepidemiológicos em articulação com indicadores sociais, de forma
a subsidiar o planejamento e a avaliação das ações de saúde.
Como último ponto, mas transversal ao exercício profissional,
destacamos o controle social em saúde. O desenvolvimento permanente
de ações que fortaleçam a participação e mobilização dos usuários deve
compor as estratégias de trabalho do assistente social, juntamente com
o estímulo à criação de conselhos locais de saúde e à participação/
articulação sistemática destes com os conselhos distritais, municipais,
fóruns e movimentos pela defesa do SUS.
Considerações finais
Entendemos que o debate sobre as Residências coloca em cena
o desafio de imprimir mudanças nas práticas em saúde, como um dos
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
56
acessibilidade efetiva, orientar sua atuação para a equidade, valorizando
abordagens diferenciadas para a população com déficits históricos de
acesso e cuidados em saúde, são perspectivas importantes, juntamente
com a busca pela afirmação da integralidade.
Por tanto, é fundamental apreender essa diretriz do SUS
através de um enfoque amplo que abarque diferentes planos
do Sistema, compreendendo da atenção à gestão, do trabalho à
formação. Tal diretriz associa-se a valores sociais emancipatórios e,
como uma noção prenhe de sentidos, nos interroga sobre que modelo
assistencial queremos construir com base na Reforma Sanitária.
Destacamos, ainda, que a intrassetorialidade, a intersetorialidade e
interdisciplinaridade podem se converter em eixos analisadores da
integralidade, porque voltados para empreender respostas ampliadas
às necessidades sociais, premissa fundamental para concretizar o
direito social à saúde.
Nessa direção, o foco de atuação do Serviço Social – as refrações
da questão social e suas interfaces com os determinantes sociais do
processo saúde-doença – delineia a relevância dessa profissão no SUS,
porque relacionada com o conceito amplo de saúde e também dotada de
57
sociais, nos seguintes âmbitos formativos: 1) o ensino em serviço,
ou seja, a formação realizada diretamente nas equipes; 2) as aulas/
espaços de reflexão teórica desenvolvidos com o grupo de assistentes
sociais; 3) a pesquisa e sistematização de saberes e práticas, ou seja,
o adensamento de conhecimentos e dados que subsidiem os dois
primeiros âmbitos da formação.
58
Integralidade que contemple todos os níveis, da atenção à gestão:
Ações que contribuam para o acesso e atendimento integral
das necessidades sociais em saúde na rede SUS (intrassetorialidade)
e demais Políticas Públicas (intersetorialidade). Ações no âmbito da
gestão do serviço e estágios especializados em gestão relativos à ênfase
do programa de RMS.
Discussão e estudo sobre modelos de atenção e gestão, sobre as
interfaces entre os serviços de saúde e demais políticas públicas que
garantam a integralidade, com destaque para linhas de cuidado.
Sistematização de necessidades sociais da população e
estratégias intrassetoriais e intersetoriais para seu atendimento
(fomento às linhas de cuidado).11
Esta breve sistematização trata-se de uma possível contribuição
para a construção de eixos norteadores da formação dos assistentes sociais
nas Residências. Tal construção consiste num dos desafios centrais para o
debate da inserção do Serviço Social nesta formação, ou seja, debatermos
parâmetros que subsidiem a qualificação dos processos de ensino/
trabalho vivenciados pelos assistentes sociais, residentes e preceptores,
no cotidiano das Residências. Consideramos que se trata de um caminho
11
Para discussão de linhas de cuidado, ver Ceccim e Ferla (2006).
59
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Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
62
SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO NA SAÚDE: CONSIDERAÇÕES
SOBRE A INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NOS PROGRAMAS
DE RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE1*
3
A opção pela escrita (trans)formação busca destacar o objetivo de transformar a realidade das práticas de
saúde, através da formação de profissionais, baseada na educação permanente.
64
Transformações Societárias e Educação na Saúde para o
Serviço Social
O contexto atual das políticas sociais no Brasil revela
características de fragmentação e subordinação à lógica econômica.
Iamamoto (2008b, p. 39) afirma que “são instituídos critérios de
seletividade para o atendimento aos direitos sociais universais,
constitucionalmente garantidos”. Há um desmonte de direitos já
conquistados, através da focalização da política social, da precarização
dos serviços pela diminuição do financiamento.
Correia (2007) afirma que as contrarreformas implementadas a
partir da década de 90 vão demandar da Política de Saúde brasileira:
1) o rompimento com o caráter universal do sistema público de
saúde, com o Estado encarregando-se da parte não lucrativa e a rede
privada complementando os serviços; 2) a flexibilização da gestão
dentro da lógica custo/benefício, privatizando e terceirizando serviços
de saúde, com repasse para Organizações Sociais, Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), Fundações de Apoio
e Cooperativas de profissionais de medicina e com a criação de
Fundações Estatais de direito privado; 3) estímulo à ampliação do
setor privado na oferta de serviços de saúde.
O projeto político-econômico neoliberal, consolidado no
Brasil confronta-se com o Projeto da Reforma Sanitária. A perspectiva
da Política de Saúde, articulada ao mercado, tem como tendência
a contenção dos gastos com a racionalização da oferta. O Projeto
de Reforma Sanitária sofreu desmobilização, e outras concepções
teóricas passaram a influenciá-lo, com postulações pós-modernas,
SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO NA SAÚDE...
65
Conforme o Ministério da Saúde/MS (BRASIL, 2009), a
Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS)
“visa contribuir para transformar e qualificar as práticas de saúde,
a organização das ações e dos serviços de saúde, os processos
formativos e as práticas pedagógicas na formação e desenvolvimento
dos trabalhadores de saúde”. A Educação Permanente reconhece a
vivência como significativamente importante para a possibilidade
de aprender, parte do pressuposto da aprendizagem significativa,
considerando que o fato de dialogar com conhecimentos prévios
permite que as pessoas desempenhem papel ativo e se apropriem
de novos elementos. A aprendizagem significativa ocorre quando há
necessidade de buscar responder um questionamento real ou quando
o conhecimento novo é construído a partir de um diálogo com o que
já existia. A Educação Permanente ocorre no cotidiano do trabalho,
a partir dos problemas enfrentados na realidade.
Na aprendizagem de adultos é muito importante partir do que
inquieta: o que provoca curiosidade é o que estimula a busca por
aprender. Também é importante destacar que a Educação Permanente se
faz no coletivo, pois o olhar do outro sempre levanta questões diferentes
entre os sujeitos. São ideias trabalhadas por Freire e por outras correntes
construtivistas no campo da educação (FEUERWERKER, 2005).
Ceccim (2005, p. 162) identifica que, na saúde, a educação
permanente, configura, para alguns autores, o “desdobramento de
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
66
identificamos as expressões da questão social e a intencionalidade do
fazer profissional, dando direcionamento e sentido às práticas.
Assim, na Educação Permanente,
67
Assim, a construção de parâmetros, a partir da discussão entre
os profissionais, é significativa não somente pelo resultado alcançado,
que será avaliado posteriormente, mas principalmente no seu processo
de elaboração, que traz a reflexão sobre a prática e possibilidades de
organização profissional.
O Assistente Social, permanentemente, busca o significado
da sua prática e analisa os objetivos alcançados através de sua
intervenção. Essa busca permanente é decorrente do entendimento de
que, nos diferentes espaços de atuação do Serviço Social, o profissional
convive com a tensão entre projetos político-institucionais distintos.
Segundo Iamamoto (2008), o primeiro projeto norteia os princípios
da seguridade social na Constituição de 1988, apostando no avanço da
democracia. Implica partilha e deslocamento de poder e supõe politizar a
participação. O segundo, de inspiração neoliberal, parte das políticas de
ajuste recomendadas pelos organismos internacionais, comprometidas
com a lógica financeira do grande capital internacional, num contexto
de crise e fragilização da organização dos trabalhadores.
Na área da saúde, é possível identificar dois projetos políticos
em disputa, relacionados aos já descritos, requisitando diferentes
demandas aos assistentes sociais (BRAVO, 1998): o Projeto da
Reforma Sanitária, com demandas de busca de democratização do
acesso às unidades e aos serviços de saúde, atendimento humanizado,
estratégias de interação da instituição de saúde com a realidade,
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
68
projeto da reforma sanitária. Já, as produções direcionadas à ação
profissional, as autoras salientam as contribuições de Costa (2000),
Matos (2003), Vasconcelos (2002), Wiese (2002), Mioto (2004),
Nogueira (2003), que têm pautado em suas análises os desafios para
a materialização do atual projeto ético-político da profissão e do
próprio SUS. Nogueira e Mioto (2006a) apontam ainda a ampliação
da preocupação com a especificidade do Serviço Social, a partir
da concepção ampliada de saúde e o novo modelo de atenção dela
decorrente, preconizado na PNEPS. Segundo as autoras, é evidente
a força que a temática do social e do trabalho com o social vem
ganhando no âmbito da saúde, à medida que outras profissões
alargam suas ações nesse sentido. Mas é possível identificar uma
desqualificação pela qual vem passando os aspectos relacionados
ao social. No entanto, na concepção ampliada de saúde, indicada na
VIII Conferência Nacional de Saúde (Brasil, Ministério da Saúde,
1986), o Serviço Social adquire um novo estatuto para o trabalho na
área da saúde. Mas deve ser protagonista de um novo modelo, que
deve ser construído na discussão interdisciplinar, dando visibilidade
ao projeto de formação profissional e ao projeto ético-político
(NOGUEIRA, MIOTO, 2006b). No entanto,
69
A inserção do Serviço Social nos Programas de Residência
Multiprofissional em Saúde
Considerando os pressupostos da Educação Permanente é
possível identificar, na formação através de Programas de Residência
Multiprofissional em Saúde, uma organização propícia para atender
à concepção pedagógica que a fundamenta. Neste caso, a modalidade
de Residência Multiprofissional em Saúde (RMS) como proposta de
formação pode constituir-se como um espaço significativo para projetos
contra-hegemônicos que buscam uma transformação de práticas, a partir
da reflexão crítica da realidade. Significativo porque a formação deve
articular experiência do trabalho no cotidiano da área da saúde e discussões
relacionadas a essa experiência, em seminários, aulas ou outros espaços
de debates, subsidiados por referenciais teóricos, em alguns momentos,
em conjunto com os diferentes profissionais da área da saúde e, em outros,
entre os trabalhadores da mesma categoria profissional.
Conforme Portaria Interministerial nº 1.077, de 12 de novembro
de 2009, a RMS é uma modalidade de ensino de especialização, de pós-
graduação lato sensu, com duração mínima de dois anos, em que os
profissionais da área de saúde vivenciam a prática, inseridos no universo
de trabalho e atuando efetivamente, com uma carga horária semanal
de 60 horas, com períodos específicos (20% do total da carga horária)
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
70
integral à saúde em serviços e atividades de estudo, em conjunto com
outras categorias profissionais. Assim, o trabalho pode ser um espaço
privilegiado de formação, onde é possível compartilhar conhecimentos
para a consolidação do projeto ético-político do Serviço Social.
Na proposta do Programa, o Assistente Social participa da
formação pelo cotidiano de práticas no mundo do trabalho. Mas o
trabalho, no contexto do sistema capitalista, é transformado em valor
de troca (ANTUNES, 1999) e o trabalhador, mesmo na área da saúde,
sofre essa influência. Nessa lógica, o trabalhador da área da saúde,
muitas vezes, não vê significado social no seu trabalho, mas só o sentido
da prestação de serviço para o “patrão” (Estado ou iniciativa privada),
vendendo a sua força como mercadoria.
Dessa forma, é preciso elucidar a tensão e a disputa entre projetos
distintos no campo da saúde, a partir da análise das propostas de debates
teóricos previstos no Programa de Residência Multiprofissional em
Saúde e do processo de trabalho dos Assistentes Sociais nele inseridos.
Os diferentes riscos e desafios colocados para o Assistente Social no
cotidiano da sua atuação profissional na área da saúde precisam ser
analisados, buscando identificar possibilidades de superação.
Para Iamamoto, essa análise supõe articular uma dupla dimensão:
71
nas articulações com outras entidades de Serviço Social ao nível
latino-americano e internacional e outras categorias profissionais e
movimentos organizados, d) no trabalho profissional desenvolvido
nos diferentes espaços ocupacionais, e) no ensino universitário,
responsável pela qualificação teórica nos níveis de graduação e
pós-graduação. Assim, o Programa de Residência Multiprofissional
contempla diferentes dimensões desse universo no qual o projeto
profissional pode ser realizado.
No entanto, a apropriação do projeto ético-político na prática dos
Assistentes Sociais ainda é bastante fragilizada pelas diferentes tensões
vivenciadas nos espaços sócio-ocupacionais. O projeto profissional
diverge dos interesses do projeto societário hegemônico. É importante
considerar esse enfrentamento,
72
na prática profissional, para a materialização do projeto ético-político
da profissão, diz respeito também às opções teóricas e ideológicas.
Nesse sentido, Bravo (2007) aponta questões que indicam uma
ofensiva conservadora à tendência hegemônica do Serviço Social,
iniciada na década de 1990, que passa pelo discurso do distanciamento
entre teoria e prática, pela descrença da possibilidade da existência
de políticas públicas e da suposta necessidade da construção de um
saber específico na área, com ênfase numa dimensão subjetiva e/ou
fragmentada conforme especialidades da medicina. Para a autora, o
problema não é o fato de os profissionais buscarem estudos na área
da saúde, mas sim quando obscurece a função social da profissão na
divisão social e técnica do trabalho e desconsidera a importância de
formar trabalhadores de saúde para o SUS com visão generalista.
Através da educação pelo trabalho, o Assistente Social
inserido no Programa de Residência, pode analisar criticamente as
práticas desenvolvidas, buscando aproximá-las com os princípios
fundamentais do Código de Ética Profissional. No entanto, com a
lógica de racionalização de gastos na área da saúde, o financiamento
desse Programa de formação atualmente também sofre cortes,
em favorecimento de outras estratégias de educação que reduzem
as possibilidades de processo de ensino-aprendizagem-trabalho
significativo, entre elas, a educação à distância, por exemplo.
Considerações finais
A reflexão construída buscou problematizar conceitos que
podem ser operacionalizados de forma estratégica para a construção do
SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO NA SAÚDE...
73
Sociais, mas principalmente buscando compor com as demais categorias
profissionais, a partir do necessário diálogo constante. É importante
destacar que essa aproximação com os diferentes trabalhadores da saúde,
que também vivenciam as consequências do enxugamento das políticas
sociais, é condicionada por uma disposição para o debate, mesmo entre
posicionamentos que representam projetos societários distintos.
Assim, articulado ao demais trabalhadores, o compromisso
assumido na educação pelo trabalho dos Assistentes Sociais
residentes deverá contribuir para a garantia da defesa do projeto ético-
político, bem como para a defesa do Projeto da Reforma Sanitária
e os pressupostos da educação permanente na formação para a
transformação da realidade social – grande bandeira do movimento
sanitário nos anos 80 e intencionalmente atenuada no contexto atual
da política de saúde brasileira.
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
74
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77
PARTE II
FAZERES CONSTRUÍDOS
X
FAZERES INSTITUÍDOS:
A concretude da formação
A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE
QUÍMICO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES NO ÂMBITO DA
SAÚDE PÚBLICA1*
80
A dependência química, seus reflexos sociais e a política de
saúde pública no Brasil
É com o olhar crítico para o contexto, e em meio a este, que se
faz a discussão acerca do tema da pesquisa. Em se tratando do âmbito
da saúde, é preciso destacar que a Constituição Federal de 1988, do
artigo 196 ao 200, promoveu uma verdadeira revolução, criando um
novo sistema de saúde pública no país. A Legislação Federal e Estadual
do SUS (2000, p. 14) determina que
81
controlar a epidemia de usuários de drogas injetáveis. A medida gerou
polêmica nacional, sendo a intervenção enquadrada como crime, antes
de ser referência para uma política brasileira de redução de danos pelo
uso indevido de drogas (MESQUITA, 1994).
A ideologia que permeia o Estado em suas intervenções no
campo referente às drogas seja no atendimento à dependência química
ou no enfrentamento ao tráfico, nos remete ao Estado de Polícia,
instaurado no período medieval. Tratava-se de um “setor subsidiário
da atividade do Estado, visando, sobretudo, à prevenção e punição dos
ilícitos, mediante o emprego de um aparelho rígido e autoritário de
investigação e intervenção” (BOBBIO, 1999, p. 410) que se estende até
fins do século XVIII.
Na própria conduta tomada a partir da primeira discussão do
programa de redução de danos e nas demais situações de repressão,
vistas em nosso atual sistema de “segurança” pública, e se formos mais
a fundo com nossa visão sobre as políticas públicas, em seus diferentes
setores, veremos ainda que as ideologias se parecem com as dos Estados
de Polícia e Liberal.
Essa percepção se dá ao tomarmos a conduta repressiva e
moralista do Estado atual em relação ao abuso de substâncias em
nossa sociedade. Observa-se, de acordo com (BUCHER, 1997), o
processo de demonização e de criminalização dos drogadictos, que
serve de balizamento para práticas normativas de correção de desvios,
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
82
atendimento domiciliar e a internação domiciliar”, constando ainda
do parágrafo 1.º que “na modalidade de assistência de atendimento e
internação domiciliares incluem-se, principalmente, os procedimentos
médicos, de enfermagem, fisioterapêuticos, psicológicos e de
assistência social, entre outros necessários ao cuidado integral dos
pacientes em seu domicílio”.
O suporte social é fundamental para a melhora do prognóstico
dos dependentes de substâncias psicoativas (RUSCH, 1989, p. 35). Uma
investigação completa deve abordar a situação do sujeito em seu meio
de convivência, a estabilidade do núcleo familiar e a disponibilidade
deste para cooperar no tratamento, devendo-se organizar uma rede de
suporte social (DEPARTMENT OF HEALTH, 1999, p. 162).
Kern (2003) aporta uma importante discussão acerca do
trabalho do assistente social via mediações em redes, discutindo a
importância das redes sociais para o homem; na verdade, entendo-
as como essenciais para o tratamento, uma vez que o homem é por
natureza um ser social.
Nessa perspectiva, o autor trabalha o sentido da potencialização
das redes que constituem as relações humanas e aborda a subjetividade,
quer dizer, o potencial encontrado nas redes através da subjetividade,
tanto a individual quanto a coletiva, transmitida uma para a outra
instância em um movimento constante de relações intersubjetivas.
83
Seguindo com a leitura deste autor, em se tratando da questão da
dependência química, aponta que
84
interpessoais influenciadas pela estrutura externa e por sua própria
estrutura interna.
85
padrões compartilhados de comportamento a partir da
sistematização de hábitos e do “mergulho” em conhecimento
por vezes inconsciente ou de níveis mais arcaicos, a ecologia
das ideias, que são determinantes no entrelaçamento das
relações familiares.
86
Nesse sentido, o atendimento ao sujeito dependente químico
e sua família é entendido como um processo que implica uma escuta
ativa, visando à criação de um espaço para o diálogo com avaliação
de interesses e necessidades, com uma análise de causas e soluções,
e planejamento de ações inovadoras a partir das possibilidades e
circunstâncias que estão sendo vivenciadas no momento.
A pesquisa
Nesta pesquisa de mestrado investigamos as vantagens e
desvantagens identificadas pelas famílias no Modelo de Internação
Domiciliar para Dependentes Químicos, bem como pela equipe
responsável pelo Programa de Dependência Química do Ambulatório
Melanie Klein, de Porto Alegre.
A primeira fase foi realizada em 2004 enquanto projeto de
pesquisa desenvolvida no terceiro ano do Programa de Residência
Integrada em Saúde Mental/RIS/ESP. Na época foram acompanhados
quatro sujeitos os quais foram internados no seu domicilio.
Nossa pesquisa buscou esses sujeitos e suas famílias dois anos
após para avaliar com eles a experiência de internação domiciliar.
Conhecer o que pensam os sujeitos a respeito da proposta
de atendimento realizada em seu domicílio em conjunto com seus
87
marxista que, ao referir-se à abordagem da questão social, objeto do
Serviço Social, aponta que,
88
a agosto, sendo esses os mesmos sujeitos entrevistados para o
aprofundamento da análise desse modelo de tratamento. Foram
feitas entrevistas enquanto instrumentos para análise, bem como
as entrevistas colhidas no primeiro ano da sua realização, a fim de
verificar se houve mudanças quanto aos aspectos apontados.
A equipe constituída dos técnicos do Ambulatório Melanie
Klein, sendo uma psicóloga, uma psiquiatra, um médico clínico e uma
assistente social, também foi entrevistada, assim como os residentes
que na época eram cinco médicos psiquiatras, um enfermeiro, uma
assistente social, duas terapeutas ocupacionais e uma artista plástica.
As abordagens foram realizadas no espaço do ambulatório
Melanie Klein, conforme acordado com a Coordenadora do Programa de
Dependência Química. A respeito das intervenções que foram realizadas
nos domicílios dos sujeitos na primeira fase em que foi implantado o
modelo, essas foram realizadas diariamente, em duplas, composta
pela pesquisadora e por mais um membro da equipe. O tempo para a
internação domiciliar neste modelo foi de um período médio de sete
dias, de acordo com as necessidades de cada sujeito, podendo chegar a
10 dias. Para os acompanhamentos diários do modelo, foram utilizados
roteiros, para que a equipe estivesse voltada aos aspectos que devem ser
contemplados, de acordo com os objetivos da pesquisa e os cuidados
ao sujeito que devem ser observados. A metodologia utilizada para a
89
Assim, serão descritos trechos importantes das falas dos sujeitos
que contêm os que indicarão as categorias principais que estão sendo
interpretadas em relação aos objetivos da pesquisa.
O primeiro sujeito do sexo masculino, com 37 anos de idade,
residia com a esposa e três filhos. Possuía segundo grau completo,
profissional de Técnico em Enfermagem, estando em licença saúde no
período da internação domiciliar. Dependente de álcool desde os 12 anos
de idade, com consumo de meio litro de cachaça por dia, relatava estar a
três meses sem fazer uso da bebida. Buscou atendimento ambulatorial,
pois “se sentia muito nervoso com a família e estava com medo de
agredir os filhos” (sic).
Desde sua avaliação inicial, de acordo com os seus relatos
e avaliação da equipe interdisciplinar, trabalhou-se com a hipótese
diagnóstica de este sujeito ter uma comorbidade psiquiátrica21 de
depressão com sintomas psicóticos. A investigação então da equipe
buscava identificar se essa era primária ou secundária à dependência
química. Seus familiares não queriam que fosse realizada uma
internação hospitalar, optando, assim, pela internação domiciliar,
onde ficou sendo acompanhado durante cinco dias, quando apresentou
sintomas psicóticos graves, sendo então encaminhado para internação
hospitalar devido ao risco de suicídio avaliado pelos profissionais.
No reencontro, encontrava-se exercendo sua atividade profissional
de auxiliar de enfermagem em um hospital da rede pública de Porto
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
90
“problema” (sic). Relatava sua própria historia como: iniciou o consumo
de álcool aos 12 anos de idade e a depressão foi decorrente, dentre
outros fatores, da dependência. A esposa compartilhara deste ponto e
relatara o “medo” que sentiu, vendo a doença do marido se agravando
em casa, mas, ao mesmo tempo, “amparada”, porque “vocês iam todos
os dias lá” (sic), referindo-se à equipe. Ambos relataram que o fato de
ter sido atendido por uma equipe especializada em saúde mental foi
esclarecedor, tanto para o seu diagnóstico como para o tratamento, o
que o ajudou nas recaídas.
A segunda participante, do sexo feminino, com 44 anos de
idade, divorciada, residia sozinha nos fundos da casa de um de seus
filhos. Possuía terceiro grau incompleto e era professora aposentada.
Dependente de benzodiazepínicos desde os 29 anos e de álcool desde
os 36 anos. Consumia diariamente meio litro de vinho ou cachaça.
Apresentava comorbidade psiquiátrica de Transtorno Afetivo Bipolar
que se caracteriza por alterações do humor, com episódios depressivos
e maníacos ao longo da vida, para o qual já recebia acompanhamento
interdisciplinar no Ambulatório Melanie Klein, sendo encaminhada
para a internação domiciliar para a realização da desintoxicação do
álcool, o que não conseguiu realizar em nível ambulatorial. Continuava
vinculada ao Grupo de Dependência Química do Ambulatório Melanie
Klein, o qual frequentava semanalmente. No período de dois anos e
91
institucional de apoio que deve atendê-la, uma vez que os serviços de
rede devem localizar-se próximos à moradia do usuário do serviço.
O terceiro sujeito do sexo masculino, com quarenta anos de
idade, divorciado, residia com a mãe e dois irmãos. Possuía o primeiro
grau incompleto e estava sem trabalhar a quatro anos, não possuía renda
pessoal mensal e contava, portanto, com a renda familiar proveniente
da aposentadoria da mãe e da prestação de serviço de um dos irmãos.
Foi morador de rua em momentos alternados em que não se sentia
em condições de voltar para casa, segundo seu relato. Sua situação
caracterizava-se por dependência cruzada, 4 utilizando-se de álcool,
solventes e cocaína (crack), diariamente.
Não foi encontrado e a entrevista foi realizada com sua família
pela visita domiciliar. Segundo sua mãe e seu irmão, que participaram
do tratamento da internação domiciliar, ele havia voltado para a rua após
permanecer seis meses em abstinência ao término do tratamento. Em
seus relatos, acreditavam que, devido ao fato de ele não ter conseguido
“emprego fixo”, sentia-se frustrado em não colaborar com as despesas
da casa e “não aguentou” (sic). No entanto, nesse intervalo de tempo,
a família conta que “ele vai e vem”. Ambos apontam que, com a
internação domiciliar, puderam acompanhar seu familiar “de perto” e
compreender sua doença. “Hoje, deixo ele voltar pra casa. É meu filho.
Antes, botava ele pra correr” (sic). O vínculo familiar ficou mantido
da forma “possível”. Eles entendem que o fato de ele não ter renda
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
92
Sua esposa inicia a conversa: “Continua a mesma coisa... Tem dias
que ele bebe mais, outros menos, mas, pelo menos, voltou a fazer os biscates
dele” (sic). Ele, com um gesto afirmativo com a cabeça, consente. Quanto
ao relacionamento com os filhos, ambos afirmam que, com a internação
domiciliar, foi possível que entendessem a doença do pai. “Eles não têm
mais medo dele, quando tá muito bebum, todo mundo sai de perto”, diz a
esposa. Ambos dizem que procuram a UBS, conforme lhes foi encaminhado
no período após a desvinculação com o Ambulatório Melanie Klein, nos
momentos em “que a coisa está demais” (sic). É uma forma de retomar
as orientações acerca dos prejuízos do alcoolismo e das estratégias que
podem utilizar para diminuir o consumo, sendo orientados na perspectiva
da Redução de Danos, ou seja, minimizar os agravos individuais e sociais
na medida em que não apresente condições de modificá-los, indicação mais
adequada a ser trabalhada pelos profissionais da saúde de acordo com a
situação deste usuário do serviço.
93
relatos obtidos após a internação domiciliar, é possível perceber que,
independentemente da manutenção da abstinência, o envolvimento
familiar durante o tratamento teve destaque enquanto vantagem dessa
modalidade de tratamento. A possibilidade de o grupo familiar entender
a dependência química enquanto doença, bem como os prejuízos que
decorrem dela desmistificando julgamentos morais, possibilitou outras
formas de relacionamento intrafamiliar, calcadas em sentimentos de
cuidado, respeito, tolerância. Como ainda o fato de os membros da
família do dependente químico falarem de seus sentimentos e percepções
em relação às situações vivenciadas deu-lhes também possibilidade de
organizarem as suas questões.
Não se trata de a família ser a “cuidadora de seu doente”, mas
de ela receber atenção em sua integralidade, como forma de fortalecê-
la em períodos de crises e conflitos, nos quais comumente perpassam
sentimentos de derrota, culpa, enfim, sentimentos punitivos, presentes
em situações de familiar de dependente químico. As experiências
negativas que são vivenciadas em meio à dependência química podem
ser muitas e traumáticas, pois, como vimos nos casos pesquisados, ela
se inicia precocemente na vida dos sujeitos. Portanto, os sentimentos
negativos e mesmo doloridos que ficam para cada membro da família,
de acordo como cada um assimila tais vivências, não são apagados, ao
contrário, eles podem ir acumulando-se.
Schabbel (2004, p. 420) refere que as disputas que surgem em
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
94
tipo de intervenção sinaliza que há laços e sentimentos positivos ainda
presentes, fato que, por ele próprio, dá início ao fortalecimento da
família, pois se reconhece a importância que um membro tem para o
outro. Caso contrário, poderiam abster-se dessa intervenção e optar por
um tratamento individual do dependente químico.
Quando alguém se torna dependente de uma substância, muda
seu modo de ser, seus hábitos e suas relações; passa a girar em volta de
um contexto particular ao universo das drogas, o que, gradualmente,
vai modificando seu estado natural enquanto ser humano e, assim,
sua forma de se relacionar com o mundo. Essas modificações podem
causar estranhamento às pessoas mais próximas e implicar mudanças
também de sua parte. Tal situação pode transformar-se em um ciclo de
conflitos em que as partes não se reconhecem mais e vão distanciando-
se ou culpando uns aos outros pelas transformações, com dificuldades
de manter ou restabelecer os vínculos que um dia os uniu – fato que
também foi relatado pelos familiares entrevistados.
Nesse contexto, trabalhar em uma perspectiva de rede de apoio
à família significa trabalhar para que os vínculos da família e sua rede
sejam reconectados, na construção do fortalecimento da autonomia dos
sujeitos a partir do reconhecimento de sua rede de pertencimento, na
tentativa de auxiliar as pessoas a contatarem com aqueles que fazem
parte da sua história.
95
a tratamento em regime de internação, informou que: 1) quase dois terços
daqueles que recaíram reconheceram falhas em tomadas de decisão e
em planejamento de atividades (fatores cognitivos); e 2) mais da metade
indicou que algum estado de humor negativo precedeu à recaída. O estudo
salientou ainda que, frequentemente, esses fatores ocorriam juntos.
Nesse sentido, a respeito de se verificarem as contribuições
desse modelo no que concerne à redução de danos e prevenção de
recaída, em dois dos casos atendidos, trabalhar as estratégias de
prevenção de recaída contribuiu para que ambos fizessem uso dessas
ao longo do período de tempo após a internação domiciliar. Sendo
que para um significou utilizá-las nos momentos em que teve as
recaídas, e para outro, nas situações em que essa sentia vontade de
recair que são identificadas na dependência química como situações
de risco. Vale lembrar que a Prevenção de Recaída se refere ao
conjunto de habilidades para antecipar, prevenir, modificar, enfrentar
e lidar com situações que a coloquem em risco para a recaída, isto é,
situações que façam com que ela volte a consumir álcool ou outras
drogas (KNAPP et al., 1994).
Sobre como a equipe de residentes do Programa de Dependência
Química avalia o envolvimento familiar nessa modalidade de
tratamento, compartilham do potencial que a internação domiciliar
possui para mediar as relações familiares dos sujeitos, bem como no
fortalecimento das estratégias de prevenção de recaída na medida em
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
96
Considerações finais
Aproposta de internação domiciliar, assim como outras modalidades
de tratamento, apresenta vantagens e desvantagens. A proximidade com
a família possibilita a realização de um trabalho em conjunto com essa
através de uma escuta estendida a todos que se incluem no grupo e da
mediação das situações conflitantes, como na identificação de situações
que são consideradas como risco para a recaída, a partir do entendimento
dos demais e não só do dependente químico e no fortalecimento das
estratégias de prevenção para essa. Possibilita ainda, que o sujeito possa
permanecer em seu meio com um atendimento especializado para sua
necessidade. Mas é necessário considerar que esse envolvimento familiar
pode, também, apresentar algumas dificuldades que destacam o cuidado
de estar atento para não responsabilizar unicamente a família no cuidado
ao dependente químico, desresponsabilizando as políticas públicas.
É necessário ressaltar que a internação domiciliar é uma estratégia
que não exclui a internação hospitalar ou o atendimento ambulatorial,
devendo cada indicação de tratamento ser cuidadosamente avaliada
pela equipe de atendimento juntamente com o sujeito e seus familiares.
O SUS deveria, portanto, disponibilizar para os dependentes químicos
as diferentes modalidades de tratamento para que assim possa ser
respeitada a necessidade de cada pessoa.
97
articulando e viabilizando a conscientização e o acesso às políticas
públicas, bem como intervindo diretamente nas mais diversas expressões
da questão social, nas suas refrações e particularidades, promovendo a
emancipação dos sujeitos e o fortalecimento da autonomia, rompendo
com possíveis práticas de assistencialismo e negligência em programas
sociais, promovendo novas ações e dando novos sentidos à sua prática.
Por fim, a pesquisa que foi descrita partiu de uma experiência
prévia no campo da saúde mental no Programa de Residência Integrada
em Saúde Mental Coletiva da Escola de Saúde Pública/RS, a qual se
constitui local estratégico para a reflexão sobre o ensino e o serviço
em saúde coletiva, na medida em que essa propicia aos residentes o
conhecimento do SUS, as possibilidades de planejamento, o trabalho
em grupo e os programas de prevenção e promoção em saúde através
da educação em saúde.
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
98
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Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
100
FAMÍLIAS VULNERÁVEIS: A CONSTANTE BUSCA POR PERTENCER...1*
(ainda que isso significasse não ter dinheiro para sustentar mais um
membro na família), silenciar diante de crimes em troca de proteção.
Tudo isso por uma busca de pertencimento social, de reconhecimento
em sentirem-se pertencentes aquele local.
Essa necessidade de reconhecimento era algo que me
chamava a atenção e me inquietava muito, reconhecer a importância
de aceitação, do pertencimento a um território. E, foi pensando na
diversidade de estratégias que as diferentes configurações familiares
Secretaria Estadual de Saúde do RS.
4
O Programa Saúde da Família – PSF estrutura-se em unidades de saúde, com equipe multiprofissional,
que assume a responsabilidade por uma determinada população, em território definido, onde desenvolve
ações de saúde. Integra-se numa rede de serviços, de forma que se garanta atenção integral aos indivíduos
e famílias. Atualmente chama-se Estratégia Saúde da Família.
5
Sistema Vivo: é todo organismo – animal, planta, microrganismo ou ser humano – integrado, um sistema
vivo. Em toda a natureza encontramos sistemas vivos dentro de outros sistemas vivos. Os sistemas vivos
também incluem comunidades de organismos, que podem ser sistemas sociais como uma família, uma
escola, uma cidade – ou ecossistemas (CAPRA, 1998).
102
utilizavam, assim como na necessidade de serem reconhecidas em seu
contexto social, econômico, cultural e político, que uma pesquisa de
mestrado começou a ser pensada.
Compreendia que conhecer as pessoas e as famílias impõe
conhecer as comunidades onde elas vivem, entendendo que elas
se relacionam das mais diferentes formas, podendo se ajudar ou se
prejudicar mutuamente, dependendo dos interesses que as mobilizam.
Afinal, que relações socioculturais são estabelecidas? Qual a importância
do espaço territorial para o grupo familiar?
Esses questionamentos me levaram a refletir e ampliar a
discussão sobre exclusão/inclusão a partir das ideias de Sawaia (1999,
p. 09) para explicar esse processo complexo e multifacetado, uma
configuração de dimensões materiais, políticas relacionais e subjetivas.
Complemento este pensamento baseada nas ideias de Edgar Morin
(1997), que salienta que o princípio da exclusão comporta de maneira
complementar e antagônica o princípio da inclusão.
Nesse sentido, aponto para a dialógica (dois princípios que
deveriam excluir-se reciprocamente, mas são indissociáveis em uma
mesma realidade, Morin, 2000, p. 96). Portanto, a exclusão/inclusão
são focos de análise antagônicos e complementares, uma realidade não
pode ser pensada sem a outra (GOMES, 2005, p. 80).
103
privações, mas destacando o princípio dialógico (MORIN, 1997) em
que a comunidade se constitui de múltiplas formas complementares,
concorrentes e antagônicas.
Assim, conforme avançava a minha caminhada, meu pensamento
também mudava e minha armadura foi desprendendo-se, fui incorporando
à minha bagagem conhecimento, vontade, persistência, curiosidade pelo
novo, pelo desconhecido, me reconhecendo nas palavras de Fischer
(2006, p. 105): “Embora possua este universo, nada possuo, pois não
posso conhecer o desconhecido, se ao conhecido me agarro”.
Cada caminho percorrido, cada conhecimento construído, cada
página escrita me subsidiaram na construção deste estudo, em meio ao
incerto, ao acaso, ao inesperado, o caminho foi constituindo-se como
nas palavras do poeta Antônio Machado (1964) “Caminhante, não há
caminho, o caminho se faz ao andar”.
E, inspirada na história do cavaleiro e nas palavras do poeta,
é que esta pesquisa foi realizada a fim de satisfazer inquietações
surgidas no período em que participei da Residência e que se
mantiveram vivas dentro de mim até que pudesse voltar a explorá-las.
E daí surge este artigo que reitera as discussões realizadas no período
da pesquisa e muitas inquietações que ainda me acompanham. Cabe
agora apresentá-las a vocês!
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
A descoberta do caminho
104
A globalização tem redimensionado a noção de espaço e tempo,
ultrapassando fronteiras, extrapolando as barreiras nacionais e locais.
Essa nova realidade de transformação, impulsionada pelas novas
tecnologias de informação, projeta uma reorganização na sociedade,
atingindo todos os segmentos de forma geral. E está entre os conceitos
mais discutidos da atualidade se apresentando sob as mais diversas
dimensões como: econômica, política, social, ambiental, cultural, entre
outras. É um complexo de processos e forças de mudanças (HALL,
2005). Nesse sentido, Vieira (1998, p. 103) aponta que,
105
viver em comum, e está associado a um modo de vida. De acordo com
Magnani (1998, p. 69):
106
Portanto, conhecer o meio social6 no qual a família está inserida
permite identificar suas demandas, bem como os recursos do grupo
familiar, importantes para entender as estratégias utilizadas pelas
famílias na comunidade, mas para isso é preciso conhecer aspectos da
vida comunitária como costumes, crenças, hábitos.
Além disso, é necessário dar visibilidade de como as famílias vêm
se autoeco-organizando – termo usado para designar um dos princípios do
Paradigma da Complexidade onde é preciso primeiro cuidar de si para
depois cuidar do outro – no espaço comunitário, onde necessitam de
estratégias e da legitimidade de um conjunto de práticas para garantir o
seu pertencimento social. Vale ressaltar que a comunidade escolhida para
a aplicação da pesquisa sempre foi estigmatizada pela sociedade, sendo
constantemente associada ao tráfico de drogas, não se percebendo os
movimentos sociais e participativos existentes dentro daquele espaço, onde
uma série de serviços, projetos e programas funcionavam ao mesmo tempo
em prol de seu desenvolvimento social, comunitário, cultural e econômico.
A pesquisa qualitativa foi desenvolvida na Comunidade do Campo
da Tuca, localizada no bairro Partenon, zona leste do município de Porto
Alegre/RS, que conta hoje com uma população de aproximadamente
10.000 pessoas que, em sua maioria, vivenciam situações de adversidade.
A amostra contou com 10 famílias representadas pelas mulheres-mãe
6
Meio social aqui é entendido, como a comunidade ou o território onde vive a família, onde ela estabelece
seus laços de amizade, sua rede primária (LIMA, 2003).
107
violência no local. A comunidade é visivelmente dividida, existindo as
ruas dos trabalhadores, formada em sua maioria por carroceiros que
trabalham como catadores de lixo, e as ruas dos traficantes, ou “bocas
de fumo”, como são popularmente conhecidas.
Assim, a partir da minha imersão neste contexto, e das
inquietações trazidas em minha bagagem, fui procurando entender
como se davam as relações nessa comunidade, como se estabeleciam
as interações, e isso me permitiu soltar um grande pedaço da minha
armadura e vislumbrar melhor o horizonte que se descortinava diante de
mim. E, diante dessa perspectiva, minha principal indagação foi: Como
famílias moradoras da Comunidade do Campo da Tuca, se autoeco-
organizam, dando visibilidade ao processo de pertencimento social?
O prazer de caminhar
108
Entre as singularidades da pesquisa destaco a convivência,
o cotidiano, os ritos, hábitos, costumes que circundam a vida em
comunidade e, principalmente, o quanto isso representava para as
famílias que estavam inseridas naquele espaço. Minhas observações
já iniciavam no caminho para comunidade aonde ia interagindo com
aquele local, percebendo as pessoas sentadas na frente das casas, as
crianças brincando soltas em meio aos cães e às fezes de cavalos;
aglomerações nas esquinas; olhares desconfiados sobre todos que se
aproximavam e que não eram reconhecidos como parte daquele local.
As mulheres sentadas nos pátios das casas em meio aos filhos
menores, chimarreavam7 e conversavam como quem, simplesmente,
espera o tempo passar e não tem muitas aspirações sobre o futuro. Seus
olhares não eram desconfiados, nem confiantes, apenas indiferentes.
No entanto, durante o estudo foi possível perceber a busca de
uma relação de pertencimento que se estabelecia: desde uma simples
troca de favores até o comprometimento e/ou envolvimento com o
círculo do tráfico em troca de proteção. Isso é evidenciado na fala de
uma moradora que conota positivamente a forma como as pessoas
envolvidas com o tráfico auxiliam os moradores da comunidade. A
situação referida por ela diz respeito ao momento do parto de seu sexto
filho onde foram os “trabalhadores do tráfico” que providenciaram um
7
“Chimarrear” é um termo do vocabulário tradicionalista gaúcho referente ao ato de tomar chimarrão
(bebida feita à base de erva-mate e água quente), costumeiramente acompanhado de prosas entre amigos.
109
da autoeco-organização, pois muitos dos moradores entrevistados
silenciavam para se proteger e, por conseguinte, protegerem seus filhos,
sua família. A autoeco-organização se expressa no momento em que as
famílias cuidam de si para cuidar do outro, a partir de suas competências
e possibilidades em meio a um contexto marcado pela imprevisibilidade.
E, dessa forma, o contexto das famílias moradoras do Campo da Tuca vem
sendo permeado por um cotidiano de adversidades onde, muitas vezes, se
utilizam de estratégias de inserção no espaço comunitário, como uma forma
de proteção, a fim de potencializar uma relação de pertencimento social.
Mas, afinal, por que o pertencimento é tão importante?
Historicamente o homem tem sobrevivido, em todas as sociedades,
pertencendo a grupos sociais. Desde o nascimento de uma criança já se
pressupõe a existência de alguém para alimentá-la, cuidá-la e ampará-la
na chegada a este mundo novo. De acordo com Kaloustian (2002, p. 48),
110
Este traço importante da sociabilidade local se reafirma com
a disponibilidade para a cooperação, já que há uma mobilidade e
um compromisso moral em ajudar e ser ajudado por aqueles que se
consideram iguais. Nessa “rede de solidariedade é estabelecida a
colaboração entre familiares, amigos e vizinhos” (LIMA, 2003) e, mais
do que isso, estabelece estratégias de sobrevivência e cooperação.
Sendo assim, não pode haver comunidade sem a presença do
sentimento de pertencimento. Esse sentimento é inerente à condição
humana, pois todos nós de alguma forma buscamos pertencer a algum
espaço e/ou lugar, seja por uma questão geográfica, cultural, social,
étnica etc. Segundo Amaral (2006),
111
Mais uma vez, o que se vê é a relação de reciprocidade estabelecida
entre os moradores e o tráfico, criando relações sociais ancoradas em
práticas comuns com sentido de sobrevivência e de partilha de sentimentos,
gostos, hábitos e valores próprios do seu modo de vida. A construção
desta relação faz parte da autoeco-organização das famílias no espaço
comunitário onde através da rede de solidariedade, da intensa troca de
informações e de experiências, há um estreitamento de vínculos, respeito,
medo, subalternidade, cordialidade que estabelece valores, costumes e
padrões de comportamento fundamentados no cuidado mútuo.
As famílias dentro da comunidade se autoeco-organizam
das mais variadas formas, através de suas interações locais, de suas
demandas, de seus conflitos, de suas articulações, estabelecendo a
construção de regras internas de vivências e convivências. E, nesse
tensionamento entre o que é vivenciado no espaço comunitário e o que
é percebido pela sociedade em geral, é que surge a possibilidade de
compreensão deste contexto complementar, antagônico e concorrente,
estabelecido pela comunidade e que deve ser abarcado nas práticas e
políticas sociais, a fim de torná-las mais efetivas para essa população.
O processo de autoeco-organização comunitária vem contribuindo
para a constante ordem/desordem/organização/reorganização nas
relações familiares. E isso não quer dizer que seja bom ou ruim, certo
ou errado, mas vem sendo vivenciado pela família e influenciado na
construção de novas formas de viver e conviver, o que, muitas vezes, é
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
112
Mas não é apenas a autoeco-organização das famílias que
merece ser vista como um novo elemento dessa discussão, mas também
a necessidade de mudança nas práticas dos profissionais que atendem
essa demanda, em particular os Assistentes Sociais, que necessitam
constantemente acolher novas questões que surgem na sociedade
contemporânea e que, se abarcadas nos programas, projetos e políticas,
podem trazer resultados mais efetivos à população.
Considerações finais
113
pode desconhecer que a organização e condições de vida das famílias
não são só definidas por fatores externos a elas, isto é, por fatores
como a dinâmica da economia e as oportunidades ocupacionais,
mas também precisam ser compreendidas em seu contexto cultural,
inclusive levando em conta suas origens.
Portanto, ao falar de comunidade, principalmente a do Campo
da Tuca, não posso esquecer-me de falar de questões que circundam
esse território e ajudam a estabelecer as relações de convivência e
vivência nesse espaço, como a violência e o poder do tráfico. Algumas
opiniões sobre esta questão afirmam que nas comunidades que
apresentam maiores índices de vulnerabilidade social o crime consegue
instalar-se mais facilmente. São os chamados espaços segregados, em
que a infraestrutura urbana de equipamentos e serviços apresenta-se
precária ou insuficiente.
Não busco generalizações, mas faço uso das palavras do
sociólogo Souza para reiterar essa discussão: “A pobreza não é causa
da violência, mas quando aliada à dificuldade dos governos em oferecer
melhor distribuição dos serviços públicos, torna os bairros mais pobres
mais atraentes para a criminalidade e a ilegalidade”.
E, não é só isso, outros aspectos importantes na formação do ser
humano, como constituição de vínculos, afeto, além de oportunidades
ocupacionais podem ter relação direta com o aumento da violência, pois
aqueles que não obtêm sucesso em nenhum desses aspectos, tornam-se
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
114
o crime organizado até burlar programas sociais para suprirem suas
demandas e sentirem-se pertencentes.
Portanto, perceber o espaço comunitário para além da violência é
também perceber que por trás do crime organizado vive uma população
que clama por autonomia, cidadania e emancipação. E o que há de novo
nesse cotidiano são justamente as possibilidades que essas famílias
encontram de enfrentar a violência sem o embate, através do processo
de conscientização de que eles não vivem na melhor das comunidades,
mas isso não quer dizer que eles não almejam uma comunidade melhor,
como aponta Morin (2001, p. 15), “acreditar que a renúncia ao melhor
dos mundos não significa renunciar a um mundo melhor”.
E, ao concluir este artigo, me remeto novamente à fábula do
Cavaleiro e sua armadura, pois ao longo da minha trajetória como
pesquisadora e assistente social pude muitas vezes sentir partes da minha
armadura se desvencilhando. Nesse caminho construí e desconstruí
conhecimentos, avancei e retrocedi nas minhas ideias e principalmente
aprendi que caminhos óbvios levam sempre aos mesmos lugares. E
eu não queria chegar a um lugar conhecido, pelo contrário, queria me
aventurar no desconhecido, nas incertezas, assim minha busca teria
realmente sentido... e teve.
115
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117
ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL: IDENTIFICANDO
CAMINHOS DO (DES)CUIDADO EM SAÚDE1*
1
Artigo baseado na Dissertação de Mestrado intitulada As possibilidades de inclusão social dos usuários
da saúde mental nas políticas de seguridade social, orientada pela Professora Dra. Berenice Rojas Couto,
apresentada para o PPGSS no ano de 2003.
2
Nos anos 2000 a 2002, a autora fez parte do Programa de Residência Integrada em Saúde Mental
Coletiva: Saúde Mental, pela Escola de Saúde Pública -ESP- da Secretaria Estadual de Saúde do Estado do
Rio Grande do Sul (SES).
acesso aos direitos. No que tange a vivência de formação em serviço, isto
é, do processo de Residência Profissional, como assistente social, esse
suscitou, ainda, diferentes inquietações no âmbito da saúde mental. Nesse
sentido, a inserção num Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
– Mestrado – garantiu uma possibilidade concreta de realizar pesquisa de
campo, bem como o aprofundamento teórico no campo da saúde pública.
Nesse sentido, este artigo compõe parte da dissertação de Mestrado
apresentada no ano de 2005 que teve a preocupação de desvelar como
ocorre a garantia dos direitos sociais – no âmbito da seguridade social –
para o usuário da saúde mental dos Centros de Atenção Psicossocial.
119
Numa sociedade capitalista onde as relações se
fazem a partir de diferenciação de classes, da desigualdade
na distribuição e atribuição de riquezas, a concepção saúde/
doença está marcada por essas contradições. Contradições
marcam as representações da classe dominante que informam
as concepções mais abrangentes da sociedade como um todo
(MINAYO, 1994, p. 179).
120
O instrumento utilizado para a coleta de dados, elaborado
pela pesquisadora, foi um formulário32 semiestruturado,43 contendo
perguntas abertas e fechadas,5 utilizou-se, também, a técnica de
observação. Para a análise dos dados qualitativos fundamentou-se na
análise de conteúdo de Bardin (1977), a fim de se poderem problematizar
os resultados, relacionando-as com construções teóricas já produzidas.
Respeitando os parâmetros éticos apontados pelas Ciências
Humanas e Sociais, no caminho para a efetivação da pesquisa,
houve passos a serem cumpridos dentro do contexto institucional
da Secretaria de Saúde do Município de Porto Alegre, bem como na
aprovação do Projeto no Programa de Pós-Graduação. O projeto
foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética da Assessoria de
Planejamento (Assepla), que autorizou o processo de pesquisa. Após
essa aprovação, ocorreu o contato com os serviços de saúde mental
selecionados – CAPS II – Centro e CAPS II – Cruzeiro, que também
sofreu avaliação e aprovação de suas coordenações, direcionado para a
equipe de profissionais sua aceitação. Na equipe de serviço do CAPS II,
Centro, houve a apresentação do projeto pela pesquisadora, em reunião
de equipe. A partir do consentimento para a coleta dos dados, iniciou-se
o processo de pesquisa, evidenciando-se a proposta dos CAPS II, bem
como as contradições expressas nessa realidade.
Anteriormente ao processo de entrevista, os participantes assinaram
o Termo de Consentimento Informado, autorizando fazer parte do estudo.
Após a coleta de dados iniciou-se o processo de análise. Num primeiro
momento os formulários foram fichados. Os profissionais receberam uma
identificação com números e os usuários foram identificados por letras,
sexo e idade. Ainda, entendeu-se, num primeiro momento, a necessidade
de buscar dados sobre a região onde os serviços estão instalados, bem
como sobre a demanda atendida pelos serviços.
ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...
3
É um dos instrumentos essenciais para a investigação social cuja coleta de dados consiste em obter
informações diretamente do entrevistado (MARCONI; LAKATOS, 2002, p. 114).
4
Característica dada ao instrumento que possibilita a formulação de perguntas previamente elaboradas
acerca do objeto, sendo possível a construção de indagações do pesquisador no momento da entrevista
(MARCONI, LAKATOS, 1999).
5
As perguntas abertas e fechadas são utilizadas na construção do formulário, contendo dados referentes
ao objeto de estudo, problematizando as questões norteadoras. A pesquisa qualitativa prevê a construção de
instrumentos que possibilitem o sujeito pesquisado apresentar sua concepção frente ao problema de pesquisa.
Para Marconi e Lakatos, as perguntas abertas são chamadas de livres, que irão permitir ao informante
responder livremente, usando a própria linguagem e emitir opiniões. Já as fechadas caracterizam-se pela
escolha do informante às respostas entre as opções apresentadas (1999, p. 101).
121
Para analisar a pesquisa, elencaram-se categorias que se
mostraram essenciais para a problematização em relação ao tema:
Integralidade da Atenção;6 Seguridade Social7 compondo a Assistência
Social,8 Saúde,9 Previdência Social10 e Cidadania.11 Essas categorias
foram de fundamental importância, uma vez que a compreensão das
políticas sociais e dos direitos historicamente construídos irá permitir
visualizar as concepções de acesso e cuidado em saúde para população
usuária da política de saúde mental.
6
A integralidade da atenção é o reconhecimento na prática dos serviços de que: cada pessoa é um todo
indivisível e integrante de uma sociedade; as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde formam
também um todo indivisível e não podem ser fragmentados; as unidades prestadoras de serviços, com seus
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
diversos graus de complexidade, também formam um todo indivisível configurando um sistema capaz de
prestar assistência integral (SUS, 1990).
7
“A Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações iniciativas dos poderes públicos e
da sociedade, destinados a assegurar os direitos relativos a saúde, a previdência e a assistência social”
(BRASIL, 1988, art.194).
8
“A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é a política de Seguridade Social não contributiva,
que prevê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações da iniciativa pública e da
sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas” (LOAS, 1993, art. 1º).
9
“A saúde não é um conceito abstrato, define-se num contexto histórico de determinada sociedade e num
dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser contestada pela sua população em suas lutas cotidianas
(...) saúde é o resultante das condições de alimentação, habitação, renda, meio ambiente, transporte, lazer,
emprego, liberdade, acesso (...) é o resultado das formas de organização social de produção que pode gerar
desigualdades” (MENDES, 1994).
10
A previdência será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação
obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e atenderá, nos termos da
lei: “I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; II - proteção à maternidade,
especialmente a gestante; III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; IV -
salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; V - pensão por morte
do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes” (BRASIL, 1988, art. 201).
11
“cidadania entendida como a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou por todos os indivíduos,
de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização
humana abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinada (COUTINHO, 2000, p. 50).
122
• nos séculos XVII e XVIII, o período das grandes inter-
nações, quando a loucura ocupou o lugar da lepra no mundo da
exclusão; e,
123
uma sociedade dela faz” (FERRAZ, 2000, p. 34). Para a “sociedade
perfeita”, todos devem estar habilitados a nela permanecer. Como Rosa
aborda: “a seletividade funciona como um processo perverso de acentuar
a exclusão e aumentar a desigualdade entre os desiguais” (1995, p. 87).
124
com direções burocráticas, autoritárias e assistencialistas (GOFFMAN,
1974). “O controle de muitas necessidades humanas pela organização
burocrática de grupos completos de pessoas – seja ou não uma
necessidade ou meio eficiente de organização social nas circunstâncias
– é o fato básico nas instituições totais” (GOFFMAN, 1974, p. 18).
A prevalência desse modelo macro-hospitalar, característico
dessas instituições, perdurou por muitos anos, onde as decorrentes
cronicidades de práticas caracterizadas pela burocratização e pela
verticalização das relações pessoais no cotidiano se dirigiam,
prioritariamente, para a manutenção e a perpetuação do modelo
excludente, através da máquina administrativa que exclui, manipula e
ameaça a cidadania.
A existência de pobreza e de diferentes condições do vivido é
sentido por distintos segmentos todos os dias: os “loucos”, a população
de rua, as crianças desnutridas, a questão social expressada nas mais
diferentes formas. As realidades são fugidias, quando se precisa
enfrentá-las. O padrão hegemônico exclui e, mais que isso, não permite
existir a diferença. E, quando essa existe, esse mesmo padrão, não dá
nenhuma contribuição para que ela sobreviva: “as discriminações são
formas de exercício de poderes para excluir as pessoas do acesso a
certos benefícios ou vantagens, a do próprio convívio social da maioria
através da rotulação ou etiquetagem desses esteriótipos socialmente
fabricados” (FALEIROS, 1995, p. 124).
Assim, podem-se verificar avanços em relação ao tratamento
dispensados aos usuários da saúde mental, representados pelo
envolvimento dos trabalhadores da área, dos usuários e de seus
familiares a respeito do significado do manicômio como instituição de
exclusão, bem como sobre a possibilidade de construir uma cidadania.
ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...
125
porque é aí onde, paradigmaticamente, tem lugar o processo de
exclusão; a existência do manicômio é a configuração, na fantasia
das pessoas, da inevitabilidade deste estado de coisas, que é
impossível lutar contra esta situação, que as coisas são sempre
assim e serão sempre igual. Existirá sempre a necessidade de
um lugar para se depositar as coisas que são rejeitadas, jogadas
fora e que servem para que nos reconheçamos pela diferença?
Este papel pedagógico, no sentido negativo, do hospital
psiquiátrico é o que nós técnicos devemos por em discussão se
não quisermos avalizar com nossas ações uma perversão que
é política, científica, mas sobretudo cultural (ROTELLI apud
AMARANTE, 1998, p. 2-3).
126
A partir da proposta por uma sociedade sem manicômios, tendo
como norte a proposta da política de saúde mental do Estado, que propõe
a cada município o atendimento à sua população, e concretizando a
Lei da Reforma Psiquiátrica Estadual, foram construídos modelos de
atenção integral, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), a partir
das Conferências Nacionais de Saúde Mental, tendo em vista:
127
Desvelando as possibilidades de concretizar uma nova cultura
de assistência em saúde mental
A trajetória da assistência em saúde mental efetivou-se com práticas
excludentes, numa perspectiva manicomial. Essa prática tinha como
propósito o isolamento dos usuários, tirando-os de seu meio de convívio.
Foi somente com a organização dos movimentos sociais, representados
pelos usuários, seus familiares e trabalhadores, que se iniciou a luta por uma
assistência mais digna e que se puderam traçar novos modelos de cuidado
para os usuários da política de saúde mental. A partir da contextualização
histórica apresentada no item anterior, foi possível desvelar como os serviços
de saúde mental têm assistido os usuários na proposta do atendimento
integral, fundamentado nas legislações legais vigentes.
A caracterização dos serviços conforme apontado no caminho
metodológico permitiu visualizar a composição das equipes e das
diferentes modalidades de atendimento. Compreende-se que esses itens
possuem uma relação estreita na forma de assistir os usuários, valendo-
se das premissas da reforma psiquiátrica que nega práticas individuais,
excludentes e institucionalizadas.
Os dois serviços (CAPS Cruzeiro e CAPS Centro) pesquisados
eram devidamente cadastrados no Ministério da Saúde. Possuíam
uma equipe interdisciplinar, sendo referência de atendimento para
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
128
com idade entre 30 e 40 anos. Desses, a maioria possuía benefício
da Previdência Social e já estive internada em hospital psiquiátrico
pelo menos duas vezes. Todos os usuários entrevistados pertenciam à
região do Distrito Glória, Cruzeiro e Cristal.
O CAPS II Centro era considerado pela Secretaria de Saúde
municipal referência no atendimento aos usuários da saúde mental, no
modelo de serviço substitutivo. Criado desde 1996, contava com uma
equipe 18 profissionais, que dão conta dos atendimentos à população do
Distrito Centro, da cidade de Porto Alegre, com diferentes modalidades
de atendimento, conforme preconiza a Portaria nº 336/2002. Esse
CAPS destaca-se por um direcionamento no que se refere ao
atendimento aos moradores de rua do Município de Porto Alegre. Esse
atendimento era oferecido em conjunto com outros órgãos, dentre eles,
a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), articulados no
processo de atendimento. O CAPS II Centro realizava em média de
400 atendimentos/mês, dividindo-se em cuidados intensivos, semi-
intensivos e não intensivos.
Os usuários do serviço CAPS II Centro eram, a partir da
amostra eleita, na maioria mulheres, com idade entre 20 e 30 anos de
idade. Dessas, a maior parte possui benefícios da Previdência Social
ou da Assistência Social e com histórico de internação em hospital
psiquiátrico, pelo menos cinco vezes. Um dado destacado é que a
minoria dos entrevistados não pertence à região/território que compõe
o Distrito Centro, e sim a outros bairros do Município, como da Região
Norte, Sul e Restinga.
No que se refere à análise dos dados em relação às categorias
centrais da pesquisa pode-se reconhecer que a política de saúde mental
mostra-se incipiente, apesar dos movimentos construídos no próprio
Estado. Não há uma política de referência e contrarreferência, o
ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...
129
conjunta, as ações de promoção, proteção, prevenção, tratamento, cura e
reabilitação, tanto no nível individual como no coletivo. No individual,
no sentido de ser capaz de atender a cada usuário singularmente,
propondo-se um plano terapêutico individualizado, e no coletivo à
medida que se garante a proposta institucional do serviço, buscando
uma nova cultura de assistência. Porém irá aparecer que a integralidade
da atenção recai sobre o próprio serviço, onde o usuário é atendido de
forma completa, não acessando as outras políticas sociais. Argumenta-
se que não existem equipamentos suficientes para contrarreferenciar os
usuários na rede de atendimento: “A rede não está adequada: há falta
de medicação, a demanda é muito grande o que dificulta o atendimento
aos usuários, entram muitos [...] poucas altas, por causa da dificuldade
da rede” (Profissional 7).
A integralidade sugerida pela Política de Seguridade Social não
atinge diretamente o cidadão usuário da saúde mental, uma vez que não só
a saúde mental como expressão da questão social dá conta de ser atendida
de forma integrada pelo sistema. O Sistema de Seguridade Social, apesar
de 12 anos de existência, apresenta deficiências concretas de acesso à
população, necessitando de uma análise mais ampla de como ele vem
“ajustando-se” frente à lógica neoliberal, imposta no final da década de
90 do século passado. Essa lógica coloca para os cidadãos brasileiros a
dificuldade de proteção social, subjugando o sistema construído com
princípios de igualdade e cidadania, ao ser relegado pelo viés econômico
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
130
saúde, porém não o do próprio bairro, por se sentirem estigmatizados em
relação à doença; ele não querem ser reconhecidos como doentes mentais.
Referente a isto a usuária diz: “Eu não gostaria de ir para o posto, lá eles
não sabem que eu sou doente, se fosse num outro bairro que não o meu,
sim” (Usuária J, 48 anos). Eles também definem a doença como incômodo
para as famílias: “A doença incomoda o familiar, porque eu tenho que
estar esmolando, mendigando” (Usuário N, 27 anos). Os usuários sentem
o preconceito da sociedade quanto à loucura, que os caracteriza fora dos
padrões estéticos e normais. A sociedade perfeita determina padrões não
admitindo que um “usuário louco” esteja inserido no mesmo: “o louco
tem que andar feio, molambento, tem que fazer alguma coisa errada; a
gente não pode se arrumar...” (Usuária P, 37 anos).
A nova lógica de assistir os usuários da saúde mental na
comunidade rompe, com a lógica manicomial, mas não rompe com
a lógica dos critérios de acesso restritos às demais políticas sociais,
reforçando, de certa forma, a segregação do “doente mental”, que se
sente acolhido apenas nos programas específicos da saúde mental.
Dessa forma, a cidadania fica comprometida, veiculando-se apenas o
direito de acesso ao programa.
O estudo apontou que havia uma precária articulação das
políticas sociais no Município, revelando um esvaziamento de propostas
no âmbito social, as quais são ainda norteadas por concepções arcaicas,
sob a égide do neoliberalismo, sendo estimulado a criar modelos de
assistência de cunho paternalista e com noções de caridade, uma vez que
a sociedade civil se divide com o Estado para dar conta das necessidades
da população. A partir dessa análise, se entende que há emergência
de se integrarem as políticas sociais, de se criarem mecanismos que
permitam a inclusão desses sujeitos na comunidade, com direito a
trabalho e renda, e não apenas de criação de programas que somente
ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...
131
buscar novos caminhos, reforçando a sua institucionalização em espaços
específicos e não contribuindo, dessa forma, para desmistificar a loucura
e promover a sua inclusão social no cotidiano da comunidade. Os
profissionais, ao entenderem a dificuldade de articulação na sociedade
para atender às demandas dos usuários acabam inclusive por colocar
em discussão os princípios da reforma psiquiátrica. À medida que o
próprio serviço não articula a inclusão social e a promoção da cidadania
nos espaços da cidade, ele não possibilita a legitimação dos serviços
substitutivos em contraponto à lógica manicomial, segrega a identidade
dos sujeitos e limita a pluralidade de ações no âmbito das políticas sociais.
Embora a perspectiva de assumir um modelo assistencial seja
extremamente positiva, com concepções de liberdade e autonomia, o
CAPS II ainda é embrionário como modelo que garanta um atendimento
que assegure características de reforço do acesso como cidadão. Para que
isso aconteça, faz-se necessária uma nova cultura a respeito do significado
de serviço substitutivo, contextualizado na dimensão legal dos direitos
sociais. A Constituição Federal de 1988 criou premissas fundamentais
no que tange ao compromisso real de constituir cidadãos e os caminhos
a seguir. A partir da seguridade social, foi possível vislumbrar o acesso
aos direitos sociais, mas a atual conjuntura desmantela a possibilidade de
firmá-los, elegendo as prioridades e quem deve ser assistido.
O desafio é o de criar estratégias que legitimem a cidadania,
na perspectiva de articular realmente as políticas de seguridade
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
Considerações finais
A inserção dos usuários da saúde mental nas políticas sociais
brasileiras foi marcada pela ausência de direitos. A trajetória histórica
dos modelos de atenção em saúde mental fundamentou-se na noção
de seletividade, primando pela segregação dos doentes mentais. Foi
somente com a Constituição de 1988 que se pôde inovar o conceito
de direito social ao criar as bases da seguridade social como sistema
de proteção social, direito do cidadão e dever do Estado. Dentre as
significativas inovações, trouxe para a área da saúde o dever de assistir
a todos de forma universal; do reconhecimento das diferenças de cada
132
sujeito; de a população poder usufruir níveis de atenção em saúde de
forma a dar conta do cuidado em saúde; de compreender o sujeito como
um todo, isso é composto por diferentes necessidades.
Neste sentido pesquisar e dar visibilidade a Política de Saúde
Mental é o que se pretendeu ao traçar incipientes discussões neste momento
histórico. Incipiente, pois se sabe que não são verdades absolutas acerca do
tema, ao contrário, são movimentos do desvelar da realidade que permitem
o surgimento de novas inquietações acerca do objeto estudado.
Ao revelar os dados da pesquisa pode-se perceber uma dificuldade
de materializar os preceitos da reforma psiquiátrica. Mesmo com os avanços
legais existe ainda uma cultura “intra” e “extramuros” institucionais que
irão compor práticas tuteladoras, paternalistas; centralizando um cuidado
legitimado pelo acesso do próprio serviço de CAPS, não potencializando
os recursos sociais. Dessa forma a condição de cidadania fica tangenciada
ao próprio campo da saúde, com a inserção do usuário a programas
determinados, sem potencializar o acesso a bens e serviços oferecidos
pelas políticas públicas, prevendo a condição de sujeito de direitos. Nessa
perspectiva, se assim for feito, há uma possibilidade de institucionalizar
novos espaços da cidade, apenas ocupando territórios diferentes, em
vez da instituição total, mantendo o modelo manicomial. As práticas
burocráticas, cronificadas no conteúdo histórico do “louco” que não tem
autonomia, que não têm condições de pensar ou opinar, que não possuem
identidade; devem ser substituídas todos os dias pelo conteúdo da vida
desses usuários, vida essa que deve ser compreendida a partir daquilo que
é de significado para essa população.
As possibilidades de construir processos de trabalho condizentes
se dão no cotidiano que é real, que é dinâmico e que permite ser
superado. Caminhos como, por exemplo, a discussão de conceito
da desinstitucionalização, do que é cuidado em saúde mental, do
ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...
133
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135
VIVÊNCIAS DESENCADEADAS PELA REFORMA
PSIQUIÁTRICA: DAS CORRENTES ÀS PORTAS ABERTAS1*
Maíra Giovenardi
Maria Isabel Barros Bellini
137
Outro marco importante no que diz respeito à política de
saúde no Brasil foi o desenvolvimento do setor industrial, suscitando
uma “preocupação” com os trabalhadores, devido à necessidade de
conservá-los – força de trabalho – com saúde suficiente para participar
na produção. Dessa maneira, com o processo de industrialização
vivenciado no Brasil a partir da década de 50, o importante era atuar
sobre o corpo do trabalhador, mantendo e restaurando sua capacidade
produtiva (MENDES, 1999).
A política na área da saúde surge vinculada ao mundo do
trabalho e, concomitantemente, com seu desenvolvimento a partir do
privilégio do setor privado e a extensão da cobertura previdenciária,
evidenciavam-se as desigualdades no acesso quantitativo e qualitativo
entre as diferentes clientelas.
No final de 1970, diversos setores da sociedade iniciaram um
questionamento sobre o sistema de saúde, na busca por um atendimento
mais igualitário e menos excludente, gerado pela insatisfação popular.
Há um crescimento em número e intensidade de denúncias da área da
saúde e organização da sociedade que reivindicavam a reforma do setor
de saúde. Surge então o Movimento Sanitário, configurado como um
grupo restrito de intelectuais, médicos e lideranças políticas do setor
saúde provenientes do Partido Comunista Brasileiro, difundindo o
pensamento crítico da saúde.
Portanto, a Reforma Sanitária tinha como propostas: a criação de
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
138
de universalidade, equidade, integralidade e organizado de maneira
descentralizada, hierarquizada e com participação popular.
O conceito de saúde foi por muito tempo entendido como ausência de
doenças, onde os sistemas de saúde possuíam como características práticas
centradas no adoecimento, marcadas por medidas pontuais e fragmentadas.
O SUS amplia este conceito quando concebe promoção, intersetorialidade,
integralidade e interdisciplinaridade através da articulação das ações de
saúde e com outros setores do município – como educação, meio ambiente,
segurança, geração de renda e emprego, entre outros –, elevando a qualidade
de vida da população e garantindo sua cidadania.
No contexto brasileiro, até 1988, a saúde era um benefício
previdenciário, um serviço comprado na forma de assistência médica ou
uma ação de clemência oferecida à parcela da população que não tinha
acesso à previdência ou recursos para pagar assistência privada. Com a
promulgação da Constituição Federal de 1988 e a criação do SUS, esse
cenário mudou, sendo garantido legalmente o acesso da população aos
serviços públicos de saúde.
Contudo essa mudança na conjuntura é de grande complexidade,
sendo marcada por avanços e retrocessos os quais se deram por meio
de enfrentamentos ao modelo vigente, desempenhado pelas forças
reformistas tais como os movimentos sociais, sindicatos, partidos
políticos progressistas, intelectuais e a própria sociedade.
139
O primeiro conforma e inscreve na legislação boa parte
de um ideário democrático da saúde. O segundo, tendo
como pano fundo o fenômeno da “universalização
excludente”, hegemoniza-se à custa de sua dinâmica
própria e de mecanismos de racionamento. O principal
deles é a inquestionável queda de qualidade do subsistema
público de saúde (MENDES, 1999, p. 93).
140
uma prática clínica que objetiva unicamente a remissão dos sintomas,
desconsiderando que portador de sofrimento psíquico é um sujeito
possuidor de desejos, necessidades e com características singulares em
seu sofrimento psíquico.
Nos últimos anos do século XX a assistência centrada no hospital
psiquiátrico e pautada na perspectiva de isolamento do diferente ganhou
grande ênfase. Foucault, em seu livro A História da Loucura (1972),
descreve em diversos momentos da história o lugar ocupado pelo louco na
sociedade, sendo que a loucura não era entendida como uma doença, mas
como a revelação divina. Durante a Antiguidade e idade média, o louco
circulava sem grandes preocupações na sociedade e a intervenção do
Estado se dava em assuntos pontuais, como por exemplo, em casamentos.
Porém, no século XVII, dá-se o enclausuramento da loucura através
do afastamento dos então denominados doentes mentais da sociedade,
sendo que a loucura estava estreitamente ligada a uma ameaça ao mundo
dos ditos “normais” e, consequentemente, o manicômio era o lugar dos
“insanos”, tendo como função a organização e o estabelecimento de
métodos de controle das condições insalubres e de contaminação e como
um local terapêutico e de predomínio da medicina, ocupando o lugar dos
religiosos na sua administração (DIAS, 1997).
Assim, o tratamento oferecido aos denominados “loucos” teve,
por muito tempo, como único recurso o hospital psiquiátrico. Este se
141
dos sujeitos internados em manicômios, ou seja, a superação gradual
da internação nos manicômios através da criação de serviços na
lógica da inserção social. Já no Brasil, organizou-se o Movimento dos
Trabalhadores de Saúde Mental em 1970, com o intuito de uma nova
lógica de atenção em saúde mental, baseada nos princípios do SUS
(VASCONCELOS, 2006).
Nesse cenário, em que diversos segmentos da sociedade iniciam
uma crítica ao modelo de tratamento oferecido em hospital psiquiátrico,
ao portador de sofrimento psíquico e, através de movimentos
significativos ocorridos nas Conferências Nacionais, cria-se a Lei da
Reforma Psiquiátrica (Lei Federal 10.216, de 06 de abril de 2001),
sendo o Rio Grande do Sul o primeiro Estado Brasileiro a promulgar a
Lei 9.716 em agosto de 1992 que trata da Reforma Psiquiátrica.
A Lei da Reforma Psiquiátrica reforça o estabelecimento de uma
rede de atenção integral em saúde mental em que sejam respeitados os
princípios de equidade, integralidade e humanização, sendo composta
por Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais
Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência, Ambulatórios de Saúde
Mental, Hospitais Gerais, Atenção Básica, entre outros. Essa rede de
atenção à saúde mental é também composta por atores que contribuíram
em seu processo de implantação: os trabalhadores dos serviços que
compõem a rede, os familiares e/ou cuidadores e os próprios portadores
de sofrimento psíquico.
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
142
perspectiva de que o profissional trabalhador na área da saúde mental
deve contribuir para que haja um processo de cuidado considerando a
subjetividade do sujeito.
143
seus atos e decisões, ao tempo que admite ser responsabilizada
pela população e a responsabilizar o conjunto do aparelho do
Estado (NOGUEIRA, 2005, p. 46).
Caminhos percorridos
Esta pesquisa foi orientada pelo método dialético-crítico, que,
segundo Kosik (1995, p. 15), “a dialética é o pensamento crítico que
se propõe a compreender a ‘coisa em si’. Entretanto, a realidade não
se manifesta, se revela de forma imediata devido a complexidade dos
fenômenos”. As categorias do método utilizadas foram a historicidade, a
totalidade e a contradição e como categorias temáticas têm-se o processo da
Reforma Psiquiátrica, a Política de Saúde Mental e o sofrimento psíquico.
O tipo de estudo é qualitativo, pois “os estudos qualitativos podem ser
definidos como aqueles que trabalham com o universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um
espaço mais profundo das relações” (MINAYO, 2000, p. 21-22).
Na etapa de coleta de dados foi utilizada uma pesquisa exploratória
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
144
conhecer as vivências dos atores a partir da implantação da Reforma
Psiquiátrica, então passado e futuro tiveram sua razão nesta pesquisa.
Foi utilizada a análise de conteúdo dos dados qualitativos
(CHIZZOTTI, 1995) e, para que os aspectos éticos fossem resguardados,
os sujeitos participantes, na ocasião da entrevista, assinaram o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido.
145
Tais categorias se expressam no conjunto das falas presentes nas
diversas unidades de análise, compondo os subcapítulos a seguir: o primeiro
nomeado como “Das correntes...”, o segundo como “... às portas abertas” e
o terceiro intitulado “Para as portas continuarem sendo abertas”.
Das correntes...
Aqui era ruim, para morar aqui não dá, aqui é ruim
[referindo-se ao hospital psiquiátrico]. A gente passa a semana
toda, às vezes chega fim de semana sozinha, não tem nada
aqui, é muito parado [...] era fechado, antigamente a gente não
andava no pátio, não podia andar no pátio, era tudo fechado
assim no pátio, não podia sair do pátio (Yasmin).
4
Nome de origem árabe, significa flor branca. Nasceu para ser feliz. Transpõe todas as barreiras.
146
década de 1960 e seguiu tendo internações até sua vida adulta, num
total de aproximadamente 34 internações. Na década de 1990 passou
a residir em uma unidade de moradia no hospital psiquiátrico,
permanecendo nessa por nove anos.
A longa permanência em internação em hospital psiquiátrico
foi uma prática muito comum utilizada, sendo que as pessoas que por
ela passaram ficaram com as marcas registradas em suas memórias
para o resto da vida.
147
por ela vivenciada na situação de interna em um hospital psiquiátrico.
Porém, com a Reforma Psiquiátrica, Yasmin pode vivenciar o processo
das portas abertas, termo aqui utilizado para designar um novo olhar
dirigido à área da saúde mental e aos portadores de sofrimento psíquico.
148
O Serviço Residencial Terapêutico (SRT) foi outro disparador
utilizado na trajetória de Yasmin na efetivação da Reforma Psiquiátrica.
149
a ver. E neste momento politicamente não tem, não está tendo
interesse e nem investimento para a saúde, muito menos mental.
(Profissional do hospital psiquiátrico)
Eu acho que a pior parte entre nós, foi difícil, foi a abertura
dos manicômios mentais, foi a questão da sexualidade e da
saída de dentro dos muros [...] esses grandes manicômios que
estão dentro da nossa cabeça, essa é a questão. O fechamento
do manicômio inclui a nossa cabeça, nosso pensamento, uma
mudança de ideologia, uma mudança de paradigma.
150
sobre o sofrimento psíquico com ações de mobilização e sensibilização
no meio comunitário através de atividades como campanhas abordando
a temática sobre a Política de Saúde Mental no sentido de desmistificar
e desestigmatizar o sofrimento psíquico e seus tratamentos.
Reflexões finais
Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou
construir um castelo.
Fernando Pessoa
151
já se abriram, outra ainda não, com isso, destacaram-se as contribuições
da pesquisa em forma de proposições no intuito que a Política de Saúde
Mental possa continuar avançando: investimento financeiro e político,
ampliação dos recursos humanos nos serviços de atenção à saúde mental,
educação permanente e ações globais em saúde mental.
Destarte, muito já se fez, porém há ainda um longo e importante
trabalho a ser feito, que não compreende somente as ações dos gestores,
mas da população como um todo e assim, de pedra em pedra recolhida
no caminho, o castelo pode enfim ser construído coletivamente.
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
152
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MELMAN, J. Família e doença mental: repensando a relação entre
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
154
OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA1*
156
o que faz com que os adolescentes escondam sua condição sorológica
como forma de proteção, buscando aceitação na sociedade, que ainda
trata a AIDS com preconceito, atribuindo-lhes o status de estranhos,
como salienta Bauman (2005).
Para este estudo, foram utilizados dois autores: Bauman e Morin.
Esses autores, apesar de abordarem visões diferenciadas, serviram para
embasar meu conhecimento a respeito do fenômeno estudado. Em seus
livros “ácidos”, Bauman me inquietou e também, muitas vezes, parecia
escrever para mim. A cada livro, a cada página, havia a sensação de
encontrar uma ferramenta para discutir e situar a pesquisa. Porém, na
maioria das vezes, em seus textos, Bauman passava a ideia de que não
havia possibilidade de mudança e que estamos condenados a viver em
uma sociedade perversa. E é aqui que utilizo Morin para resgatar o que
“não teria jeito”. Dessa forma, a complexidade não está presente neste
artigo apenas como um referencial, mas como uma escolha para a vida,
escolha que me auxilia a compreender os fenômenos a partir de um
universo mais amplo, com diversas articulações e que rompe com um
paradigma cartesiano de simplificação.
Para investigar como a AIDS repercute na vida de quem nasceu
com o vírus, é necessário explicitar a problemática em estudo. Assim,
discorro sobre alguns aspectos acerca da AIDS, dentro da sociedade
atual, e também apresento a história da transmissão vertical: via pela
qual os adolescentes desta pesquisa se contaminaram.
Ao se falar em AIDS, automaticamente pensamos na existência de
excluídos, eleitos por uma sociedade regada de preceitos e regras, na qual OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA
quem não “se ajusta”, é visto como diferente. Conforme Baumam (1998),
157
E é nesse contexto complexo, no qual a sociedade produz e
reconhece como estranhos pessoas com doença mental, com deficiências,
homossexuais, entre tantos outros, que discuto a AIDS: uma doença
carregada de preconceitos e esteriótipos, reforçada por quem busca
no outro a culpa do que “não é certo”. O surgimento da AIDS e sua
associação com uma conduta sexual desviante, uso de drogas e morte,
fez com que essa nova doença assumisse o papel de castigo para os
transgressores de alguns valores morais.
Com o passar do tempo, a epidemia alastrou-se rapidamente,
atingindo outras camadas populacionais até então “livres”, como o caso
de indivíduos heterossexuais com relacionamentos estáveis. Assim, viu-
se que a AIDS não pertence a um ou outro grupo, mas o desconhecimento,
aliado ao imaginário coletivo que acompanha a síndrome, reforça
inúmeros estigmas refletidos no isolamento e no anonimato que cerca
muito de seus portadores. A mídia divulgou amplamente tais estereótipos,
contribuindo com a incorporação no imaginário da população. Tais
sentimentos foram e ainda são reforçados na sociedade em que vivemos,
pois essa determina quem são os “estranhos”, quem está dentro e quem
está fora, o que determina padrões e valores.
Na sociedade atual, as pessoas, antes de serem sujeitos, são
mercadorias (BAUMAN, 2008), o que contribui para a fragilidade
dos laços humanos, o que torna as relações cada vez mais “flexíveis”
(BAUMAN, 2004). Soma-se ainda o fato de que, ao darmos prioridade
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
158
de crianças nascidas com HIV, na década de 80/90, hoje chega à
adolescência. Em uma fase já conturbada por si só, esses adolescentes
carregam um desafio a mais: a AIDS, impregnada de mitos, associada
à morte e ao isolamento social.
Mas o que é ter AIDS? Ou melhor: o que significa ter AIDS hoje?
A AIDS não tem cura, mas tem tratamento. Quais as consequências do
tratamento? Qual o perfil das pessoas que têm AIDS hoje? Os serviços
de saúde estão preparados para atender esses indivíduos?
Para responder a essas questões, é necessário recorrer à história.
Tudo começa nos anos 80, época em que a Medicina acreditava na
eficácia das vacinas e dos remédios. Aos poucos, as doenças virais
e bacterianas vinham sendo vencidas pela medicina: tuberculose e
hanseníase. Tais doenças fizeram inúmeras vítimas e deixaram um rastro
de preconceito e sofrimento. Elas já estavam saindo da percepção das
pessoas como doenças incuráveis, e entrando nos registros da história.
Surge então a AIDS: e a sociedade se vê novamente diante de uma
doença infectocontagiosa fatal e sem perspectivas de cura.
E, em um movimento equivocado, a humanidade, no século XX,
retrocede ao século XVII, e volta a discutir o destino dos infectados pelas
pestes (PAIVA, 1992). Em seu livro, Paiva (1992) fala da importância,
na época, de combater a lepra e o leproso,
159
que descobrir ser soropositivo era uma situação que represento pelas
equações: AIDS = morte e AIDS = estigma de promiscuidade.
Com tais associações, é impossível desconsiderar o impacto que
o diagnóstico positivo causa na vida de um indivíduo. A ideia de “doença
incurável e morte” inevitavelmente se constrói no imaginário de quem se
descobre portador do vírus HIV. A angústia, o desespero, a sensação de
impotência e a ideia de incurabilidade, entre outras, passam a invadir o mundo
subjetivo do indivíduo (FERREIRA, 2003). Sofrer o peso do preconceito
de uma doença carregada de estigmas, fundamentalmente relacionados a
comportamentos considerados socialmente “incorretos”, é quase inevitável.
A história nos aponta que os primeiros casos de AIDS, notificados
no Brasil, foram de homossexuais masculinos, de bissexuais, prostitutas,
travestis e drogadictos, refletindo um estereótipo de “marginalidade
social”. Com o passar do tempo, outras populações foram sendo atingidas,
desmistificando a questão do grupo de risco. Incluem-se, nesses grupos,
mulheres contaminadas através de relações heterossexuais, permitindo
o surgimento de uma nova forma de contágio: a transmissão vertical.
Em função disso, em 2001, o Ministério da Saúde estabeleceu condutas
profiláticas, buscando o controle das formas de transmissão. Apesar
de tais iniciativas, ainda existem contaminações por meio dessas vias,
ainda que em menor grau.
No início da epidemia, não existiam recursos de tratamento que
permitissem uma ampla sobrevida a partir da descoberta do diagnóstico.
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
160
era necessário fazer algo. Por desconhecimento ou por medo, havia uma
rejeição prévia à ideia. A residência de Pediatria foi a única que aceitou
enfrentar o desafio, dos pediatras preceptores assumi a responsabilidade
de levar adiante a ideia de formar um ambulatório para atendê-los. Eu
precisava saber muito mais a respeito da doença para atender e ensinar,
fiz cursos, treinamentos, no Brasil e nos Estados Unidos, e ainda assim me
sentia inseguro em diversas ocasiões. Não havia informações suficientes na
literatura e os medicamentos disponíveis eram formulações para adultos,
além de restritos a três ou quatro drogas. Precisávamos transformar
comprimidos com altas dosagens em medicação para crianças pequenas.
Lidávamos constantemente com doenças oportunistas que representavam
o fracasso de muitos tratamentos que instituíamos. Acompanhar a evolução
da doença era bastante difícil, pois os poucos exames laboratoriais que
havia demoravam alguns meses para ficarem prontos, isso depois de muita
burocracia para solicitá-los. Era a época pré-coquetel, e a sobrevida dos
pacientes era muito baixa. Recordo que eram muito raros os pacientes
que completavam 10 anos de idade. Era muito frequente, no início, fazer
o diagnóstico do HIV em uma criança e com isso fazer o diagnóstico de
uma mãe também infectada. Não poucas vezes havia também a revelação
de infidelidade. Eram situações muito delicadas que desencadeavam
reações extremas. Exigiam toda nossa habilidade para manter a família
como pacientes. Usávamos todos os recursos necessários para permitir
que aquelas pessoas pudessem se organizar para poder seguir em frente e
receber tratamento. Em cada caso usávamos nossa ciência, mas recebíamos
de volta ensinamentos que jamais teríamos aprendido na universidade. OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA
Formaram-se vínculos que persistem até hoje. As relações de confiança
e respeito que se criavam eram, seguramente, uma parte importante do
tratamento. Os adolescentes que hoje permanecem em tratamento conosco
representam nossa própria história frente à epidemia. Após tantos anos de
convívio desenvolveu-se paralela e reciprocamente um afeto muito grande.
Tenho hoje liberdade para conversar com eles sobre quase tudo, mas isso
não me torna um especialista em adolescentes. Aprendo com eles sobre
muitas coisas. Tendo criado quatro filhos, hoje adultos, posso chegar bem
perto. Por considerar que não era correto, aos 12 anos, por exigências
burocráticas transferi-los para a clínica de adultos, recentemente criei um
serviço exclusivamente para adolescentes. Localizado na Infectologia de
adultos do hospital, faço o atendimento acompanhado pelos residentes,
161
procurando tratá-los não mais como crianças. Estão aprendendo a consultar
sem os cuidadores para que se tornem responsáveis por suas atitudes.
Tenho observado que para eles foi muito bom continuarem a serem
tratados por quem já os conhece há tanto tempo. A adolescência por si só
é uma etapa difícil da vida. Muitas transformações acontecem em todas
as áreas, trazendo insegurança, sentimentos contraditórios, e muitas vezes
sofrimento. É preciso que sejam estimulados para o exercício da vida, da
expectativa de futuro e principalmente da prática da cidadania. A grande
maioria traz na memória perda de familiares, o convívio com a pobreza,
situações de discriminação e o peso de carregar uma doença crônica e grave.
A cumplicidade estabelecida no consultório deve servir para que acreditem
que vale a pena viver e serem boas pessoas. Como serão no futuro não
sei, mas espero e trabalho para isso, que entendam que podem ser felizes
sabendo cuidar de si e dos outros (CARDOSO, 2009).
Esse relato apresenta, de forma clara, os imensos desafios, os limites,
as raras possibilidades, a ansiedade dos profissionais envolvidos diante do
novo e da falta de perspectiva de cura. Sendo assim, surge a necessidade
de buscar alternativas para o tratamento de uma doença grave e até pouco
tempo desconhecida. Os mesmos sentimentos de insegurança e dúvidas
presentes nas equipes médicas para com o tratamento dessa população
foram identificados durante a pesquisa nos adolescentes em relação à
convivência com a doença, que lhes é imposta assim como o medo do
preconceito. A narrativa do médico mostra também, como salienta Morin
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
(2000), que se abrir para a vida é se abrir também para as nossas vidas.
A metodologia que adotei, bem como o referencial teórico,
conduziu o meu olhar para a realidade que busquei desvendar. Assim,
ambos passaram a ser cúmplices e não um corpo estranho a ela.
Para o desenvolvimento deste estudo, utilizo a complexidade,
enfocada por Edgar Morin, que dá sustentação à reflexão sobre a temática
proposta. Busco uma visão multidimensional do fenômeno a ser desvendado,
reunindo, agregando, sem perder o individual, o singular. Ao adentrar neste
universo e avançar nos estudos, percebi que na história de vida de Morin
havia semelhanças entre o autor e os adolescentes que conheci.
Morin nasceu em 1921, em Paris, filho único de um casal de
judeus. Seu pai, Vidal, era comerciante. Sua mãe, Luna, foi um capítulo
à parte de sua vida. Luna tinha um grave problema no coração, o que
lhe impedia de engravidar. Porém, o improvável aconteceu, e Luna
162
escondeu a gravidez de seu marido. Morin nasceu em difíceis condições,
estrangulado pelo cordão umbilical:
163
os conflitos oriundos da divisão da sociedade em classes
persistem, embora num contexto de maior complexidade das
demandas sociais, eles convivem com temas emergentes,
conforme coloca a análise da diversidade humana. Os homens
não se dividem apenas em classes, mas também entre homo e
heterossexuais, entre homens e mulheres, entre jovens e idosos,
entre brancos, negros e amarelos. Assim, chamamos a atenção
para o conjunto de demandas colocadas na sociedade atual que
se articula com as demandas tradicionais dadas pela situação
de exploração do trabalho pelo capital. A análise marxista é
determinante para a compreensão da sociedade capitalista,
porém insuficiente para analisar toda a complexidade das
demandas sociais no atual contexto histórico. O mundo no
século XXI é mais complexo, o número de habitantes do
planeta é maior, a vida humana nunca foi tão longa, o volume
de produção e a dinâmica tecnológica nunca foram tão intensos,
a vida humana nunca foi tão interdependente embora o homem
nunca tenha sentido tamanho isolamento.
164
AIDS e de que forma a doença está inserida em suas vidas. A escolha
pela história de vida, como instrumento de pesquisa, privilegia a
coleta de informações contida na vida pessoal dos entrevistados. Para
essa pesquisa, foi utilizada a modalidade descrita por Meihy (2006),
“relato de vida como narrativa aberta”, em que o pesquisador aborda o
sujeito de modo mais aberto possível, interferindo o mínimo durante a
narrativa. Após explicar a pesquisa e obter a anuência dos adolescentes
e de seus responsáveis, fiz a seguinte pergunta: “como é ter HIV e de
que forma isso interfere na tua vida?”. Assim, os adolescentes ficaram
livres de roteiro, o que lhes permitiu falar abertamente sobre suas vidas.
As entrevistas foram longas, e, após realizá-las, mantive contato com os
adolescentes por e-mail e cartas. E era isso que precisava: estabelecer
um contato para que eles pudessem participar da construção da pesquisa.
Não foram apenas entrevistas. Eles puderem acrescentar, retirar,
escolher os nomes fictícios, modificar o texto e, assim, construir suas
próprias histórias que se entrelaçam entre as vividas e as contadas.54
A seguir, as histórias contadas e construídas por três adolescentes
que tiveram a oportunidade de falar sobre algo intocável, escondido de
todos e até deles mesmos, e que mostram que direitos, na vida de quem
tem AIDS, não se garantem por si só.
História 1
Por ter feito uma arte de criança, meu castigo foi pior
do que dos outros meninos porque naquele dia a tia me contou
que eu tinha AIDS – Princípio da Recursividade. OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA
5
Durante as entrevistas, foi possível perceber que os adolescentes possuem duas histórias: as vividas – que
foram as reveladas durante as entrevistas e que são suas histórias “reais” – e as histórias contadas – que são
as histórias “modificadas” e “alteradas” em que o diagnóstico da AIDS não aparece.
165
aquilo. Após a entrevista e de me despedir dele e de seus familiares,
precisei conversar com a médica que o acompanha. Tentar entender
tudo aquilo, tamanha violência. A história de Breno mostra uma prática
profissional desrespeitosa, desumana. Depois desse encontro, trocamos
alguns e-mails e Breno me ajudou a construir sua história.
166
poderia ser qualquer um. A minha mãe morreu quando eu ainda
era neném. Naquela época não tinha tratamento para AIDS que
nem tem atualmente, e a minha mãe também tinha depressão.
Acabei indo parar na FEBEM. As funcionárias é que me
trouxeram para fazer o tratamento aqui no hospital.
167
Meu nome é Bárbara. Tenho 17 anos e moro em
Montes Claros, uma cidadezinha a uns 500 km daqui. Moro
com meu tio, minha tia e minha avó. Terminei o colégio ano
passado, mas não fiz vestibular... meu psicológico não tava
legal. Sei que é difícil as pessoas entenderem, mas não tava
com cabeça para isso. Quis fazer um curso de secretariado,
mas meu tio me abriu os olhos: o curso é todos os dias e me
trato aqui em Porto Alegre... ia acabar faltando muito.
É nessas horas que lembro que tenho HIV. Quando era
criança eu vinha pouco, mas conforme o tempo foi passando,
as complicações aumentaram, sem falar na medicação que
insiste em não fazer efeito. Aí minhas vindas para cá ficaram
bem mais frequentes. Antes vinha de manhã e ia embora para
minha cidade de tarde. Agora acabo ficando mais dias, porque
tenho que consultar com outras especialidades. Na minha
cidade não tem como eu fazer tratamento. Primeiro porque não
tem condições e segundo porque tem muito preconceito. Aqui
ninguém me conhece, lá é diferente. A única ginecologista que
tem lá já sabe que eu tenho HIV. Fico mal com isso. Por mais
que eu seja acostumada, isso me chateia.
Minha família ficou sabendo que eu tenho HIV
quando minha mãe descobriu que tinha também. Eu tinha uns
cinco anos e ela morreu dois anos depois que soube. Naquela
época não tinha tratamento como tem hoje e ela também se
entregou. Minha mãe sempre deu muito valor à aparência, e
a AIDS acabou com ela. Ninguém sabe quem é meu pai, isso
morreu com a minha mãe. Deve ter tido um motivo para ela
nunca ter contado. Não sei quem infectou quem, ou se os dois
tinham AIDS, não tem foto, não tem pista, não tem nada. Eu
queria que ela voltasse na terra para me contar, é meu direito,
é minha história e eu queria saber.
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
168
deixa viva. Tomo qualquer coisa, independentemente do gosto.
Eu avisei o doutor que mudei o horário da minha medicação
para poder tomar tudo certinho. Antes eu tomava uns às 6h e
às 19h, mas sempre tinha alguém para me acordar. Agora não
vou acordar cedo à toa só para tomar um remédio. Aí mudei
para as 11h e a meia-noite. Dia desses fui dormir na casa de
uma amiga. Ela se apavorou. Eu tomo 15 comprimidos por
dia. Até a injeção eu já tomei. O que mais me incomodava com
a Fuseon eram os nódulos que ficavam cada vez que aplicava.
Parecia que eu tinha levado uma pancada. Teve uma vez que
eu fui com uma blusinha e um casaco pro colégio. Acabou
esquentando e eu não me dei conta e tirei o casaco. Meus
braços tavam com uns roxos e aí me perguntaram o que era.
Eu disse que tinha me batido no armário de casa. Na época,
eu tinha um namorado e quando ele me pegava pela cintura
sentia os nódulos. Bah, era uma saia justa... tinha que ficar
dizendo... aí eu me bati, eu tô com uma alergia.
Sei que a medicação vai mudar de novo, e provavelmente
tenha que vir mais vezes a Porto Alegre. Ainda bem que a
minha dinda mora aqui, senão ia ser mais complicado. Ela é
legal, gosto muito dela. Só que, às vezes, ela diz umas coisas
que afugentam meus sonhos. Aprendi a ficar só com as coisas
boas que ela fala. Eu tenho outros parentes aqui, mas eles não
me procuram. Hoje, com 17 anos, eu descobri que eles não me
procuram por preconceito, e nunca ninguém tinha me contado.
Aliás, agora que cresci, fiquei sabendo de várias coisas, do
preconceito da família, das coisas que eu vou ter que enfrentar e
que meus tios já enfrentaram. Meu tio me disse que uma vez uma
mãe fez de tudo para me tirar do colégio porque ela descobriu
que eu tinha HIV, e não queria que o filho dela estudasse na
mesma escola duma criança com AIDS. E, no segundo grau, eu
pedi para os meus tios me colocarem no colégio Chaves, que
é o melhor colégio que tem em Montes Claros. Na época eles
disseram que não dava porque não aceitavam alunos do bairro
que a gente morava. Há pouco, descobri que isso era mentira. OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA
O colégio não me aceitou porque já sabiam do meu problema, e
meus tios não me contaram para não me machucar.
Com 17 anos eu estou vendo como é a vida, tenho
que começar a andar sozinha. Na minha família não me
olham com pena. E isso é muito bom, porque sentir pena é a
pior coisa que tem. Eu preciso de carinho, não de pena. Isso
tudo foi me amadurecendo, me alimentando para encarar as
coisas que eu vou ter que enfrentar... e eu sei que ainda vou
passar por muitas. Sei que hoje tem uma legislação que me
protege, por exemplo, não vão poder me barrar se eu passar
na faculdade. Mas o preconceito sempre vai existir. Para mim,
a AIDS é normal, para os outros que não é e eu sei que vou ter
que continuar esse jogo.
Eu tiro uma força não sei da onde e Deus me ajuda
muito. Nesses 17 anos que o HIV me acompanha, aprendi que
tinha que fazer uma escolha: me entregar ou viver. E eu escolhi
viver. Eu tô participando de um grupo de jovens numa igreja
169
lá perto de casa. É bem legal, eu gosto bastante. A gente faz
passeios, ri, canta, ajuda uns aos outros. Às vezes, tem alguém
que dá um depoimento sobre algum problema que enfrentou, ou
tá enfrentando, e a gente ajuda falando coisas boas, positivas.
O líder do meu grupo, que sabe que eu tenho HIV, perguntou se
eu teria coragem de dar meu depoimento. Disse para ele que,
se eu tivesse câncer, aí sim, mas o HIV não. É tipo... hoje tu
ouve a minha história mas amanhã já sai contando. E eles vão
me evitar. Não quero isso porque lá eu sou a Bárbara, não sou a
guria que tem AIDS. Para eu poder contar, tenho que sentir que
tem um laço de amizade, mas tem que ser um laço verdadeiro,
porque se ele se rompe, vem a vingança. Há pouco tempo
uma senhora mudou com a filha lá para perto de casa. Eu fiz
amizade com a filha dela. Bastou para uma vizinha ir dizer:
toma cuidado porque eu tenho visto a Bárbara andar muito
com a tua filha, e ela tem AIDS. Aí ela mentiu, disse que já
sabia porque eu tinha contado. Ela me deixou à vontade... que
um dia eu contei. Elas me conheceram primeiro, por isso me
aceitaram. Eu não tenho só AIDS. Eu sou muito carismática,
converso, cativo as pessoas. Se tem uma meia dúzia que não vai
com a minha cara, tem o dobro que vai.
Com meus namorados que as coisas ficam mais
complicadas, porque envolve as famílias. Os pais sempre vão
se preocupar com o filho. Vão ficar com medo porque, se ele
casar comigo, não vou poder dar netos. Se bem que vi na TV
que uma mulher que tem AIDS teve um nenê. Com o meu último
namorado, os pais dele quando descobriram o que eu tenho
praticamente obrigaram ele a terminar comigo, e me esquecer.
Sofri tanto que não gosto nem de lembrar. Mas isso infelizmente
faz parte de um caminho que está apenas começando.
Hoje estou apaixonada por outra pessoa. Quando eu
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
170
o que pensei nessa hora. Até que ele me falou que já sabia, aliás,
os pais dele também já estavam sabendo.
Te confesso que um medo tomou conta de mim.
Imaginei: perdi o Matheus, os pais dele jamais vão permitir
nosso namoro. Engoli o medo e perguntei o que eles tinham
falado. Ele me respondeu que disseram apenas para ele se
cuidar e que confiavam muito nele. Essas palavras foram tão
importantes para mim! Nesse mesmo dia, ele me contou que
o pai dele tinha sido transferido para o Pará e que ficariam
pouco tempo em Montes Claros. Resolvi deixar as coisas
rolarem. Foram os três meses mais felizes da minha vida. A
gente conversava muito, nos divertíamos, tínhamos muita
sintonia. Eu ia na casa dele, jantava lá e todos eram um amor
comigo. Ele despertou em mim algo que eu nunca havia sentido
antes. Comecei a sentir um desejo íntimo por ele e ele por mim.
O nosso problema era que não tinha lugar onde rolar. Foi aí
que me dei conta que dessa vez era mais intenso.
Com ele aprendi a não temer o amor, e sim vivê-lo.
Aprendi a viver mais, a não temer o amanhã, e sim encará-lo
de frente. Apesar de estarmos longe, eu tenho ele dentro do meu
coração. Hoje, sou mais feliz por saber que tenho um amor que
me ama, respeita e me aceita. E é com ele que se Deus permitir
viverei a minha eternidade.
História 3
171
tratamento e os efeitos da Fuseon, ela me disse: “foi muito importante
tu me dizer isso... toda vez que eu pensar em não tomar remédio, vou
lembrar de ti. Eu achei que ia te ajudar com a tua pesquisa, mas tu não
sabe o quanto tu tá me ajudando e talvez me dando mais tempo de vida”.
Foi nesse momento em que percebi a importância do papel que
temos enquanto pesquisadores.
172
Não sei como e quando eu descobri a minha doença.
Quando criança eu fui muito doente, com feridas, secreções no
nariz, mas não lembro o dia exato em que soube. Na verdade o
HIV cresceu comigo. Acho que é por isso que tenho uma vida
normal... só tenho que ter atenção em dobro para não ficar
doente. Se uma pessoa normal já se cuida eu tenho que me
cuidar muito mais. Se uma gripe é ruim para ti, para mim ela
pode ser muito pior, pode virar uma pneumonia. Mas o HIV não
me atrapalha no meu dia a dia. Eu estudo, estou no segundo
ano e sou monitora num curso de informática de tarde. Adoro
ir em festas. Já fiquei com alguns guris, e na hora de beijar
sempre penso se tenho algum corte na boca. Eu nunca transei,
mas sempre penso como vai ser. No início, com certeza, vou usar
camisinha, mas depois de um tempo ele não vai mais querer usar.
E aí vou ter que pensar como contar. Eu tenho medo de contar
e ele me deixar por causa do HIV. Se fosse ao contrário, e eu
gostasse realmente, eu continuaria o namoro. Mas isso eu sei
que vai depender de cada pessoa. Talvez eu tenha sorte.
Minhas amigas gostam de conversar comigo... acham
que eu tenho que fazer psicologia. Eu gosto de escutar as
pessoas. Do grupo eu sou a mais cabeça, mais madura. Elas
têm a mesma idade que eu, mas eu sou bem diferente. Acho que
é porque eu amadureci muito cedo. Nunca tive ninguém para
me dizer: faz assim. Aprendi a me virar sozinha.
Mesmo gostando muito das minhas amigas, nunca
contei para ninguém. Não confio nas pessoas. No colégio
ninguém sabe o que eu tenho. Tem umas vizinhas que moram
perto de casa que sabem. O problema não é saber... é que as
pessoas saem falando para todo mundo e não se dão conta
que isso machuca a gente. Quando eu era criança eu lembro
que uma vizinha que sabia ficava dizendo “olha lá... aquela
coitadinha tem HIV”, eu era pequena mas lembro. Numa das
vezes que internei, quando voltei para o colégio, uma amiga
veio me dizer que todo mundo tava comentando que eu tinha
AIDS e que meus pais tinham morrido disso. Aí tive que dizer OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA
que era mentira, que eles morreram num acidente de carro e
que eu tinha internado porque descobriram que eu tenho um
problema no coração e que por isso também eu ia começar
a tomar remédios. Para sorte ou azar elas acreditaram...
até ficou mais fácil agora porque posso levar a medicação
quando saio com elas e tomar sem problemas.
E eu já troquei a combinação dos remédios umas
quatro, cinco vezes. Não posso mais bobear. Na minha família
sim, todo mundo sabe e não tem preconceito. Mas tem um
supercuidado que também me incomoda. Se eu sinto uma
dor, todos ficam preocupados, já acham que eu não tomo os
remédios direito, não deixam eu fazer certas coisas porque eu
sou doente. E eu digo para eles que eu não sou uma pessoa
doente, eu sou assim. Sei que é para o meu bem, mas não
gosto disso. Há pouco tempo a gente ficou sabendo que meu
primo também está com AIDS. Ele tem 24 anos e acho que
ele pegou pela seringa porque ele usa droga injetável. Ele
173
está preso. Acho que ele não dura muito tempo não. Nem
medicação ele queria tomar. E dentro do presídio tudo é mais
difícil, judiam muito dele, batem, o lugar é sujo. A minha tia
disse para ele fazer um esforço e tomar os remédios. Não
entendo como meu primo foi se contaminar. Hoje em dia as
pessoas sabem como que pega e tem a escolha de se cuidar
ou não. Foi burrice dele, já eu não fiz nada para ter HIV e
sofro o mesmo preconceito. Acho que tinha que ter um lugar
para atender só os adolescentes. Às vezes tenho dúvidas,
tenho medo e não sei para quem perguntar. Tipo um grupo
com alguém do hospital, sabe? Ia ser bom. Mas teria que ser
aqui, lá na minha cidade não tem condições. Todo mundo ia
ficar sabendo... e também lá não tem recurso para nada. Até
a medicação eu tenho que vir retirar aqui. Mas isso não me
incomoda. É até bom porque o doutor já me conhece há 11
anos. Sei que é ele que tá me segurando aqui nesse hospital.
Já era para eu ter ido para clínica adulta... mas eu não quero.
Lá a gente vê as pessoas mal mesmo, magras, acabadas pela
AIDS. Eu me sinto muito mal de ver aquelas pessoas e saber
que um dia eu vou ficar daquele jeito.
Aqui nesse hospital quem decide que eu tenho que
passar para clínica adulta não pensa nisso, não sabe como é
sofrido. Os médicos de lá nem me conhecem, não sabem da
minha história. Podem até ler o que tá no prontuário, mas a
minha vida eles não conhecem. Aqui é diferente, o doutor já me
conhece. Mas vou ter que esperar. Não sei até quando o doutor
vai conseguir me deixar aqui.
174
AIDS, buscando relacionar como eles vivem em sociedade e quais as
estratégias utilizadas para a autoeco-organização.
Para uma melhor aproximação da história de vida desses
adolescentes e da teoria da complexidade, analisei alguns fragmentos
de falas dos entrevistados, utilizando o princípio sistêmico em que
considera impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto
quanto conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes
(MORIN, 2000, p. 94).
175
Nas famílias, em que ocorreu transmissão vertical, podem
existir dificuldades relacionadas a perdas de familiares e sentimentos
de culpa e de raiva. Nas famílias dos adolescentes que nasceram com
o vírus HIV encontramos, frequentemente, situações que aumentam a
vulnerabilidade, principalmente a orfandade ou o desconhecimento do
pai, como exemplificado nas falas a seguir:
176
tratamento, ou seja, idas frequentes a hospitais e ingestão de medicamentos,
facilitam para a criança a percepção de problemas em sua saúde. O
recebimento precoce do diagnóstico permite que o indivíduo o perceba
como algo que faz parte de seu crescimento, como referem Bárbara e Lívia:
177
A resposta para essa questão está extremamente ligada
às influências externas que a família sofre. Com tanta pressão e
estigmatizada pela sociedade, a família pode tornar-se imunodeficiente,
em um processo recursivo, uma vez que sofre um desequilíbrio interno.
Como consequência, a família pode fechar-se e restringir as redes sociais,
isolando-se e oprimindo-se. Por outro lado, novamente em um movimento
de recursividade, essa imunodeficiência pode auxiliar os membros
familiares a reestabelecerem as relações internas e se fortalecerem para
enfrentar o mundo externo. Ambas as possibilidades influenciam na
construção da identidade e nas relações que serão estabelecidas.
Com o conhecimento do diagnóstico, surge um novo questionamento:
a quem contar? A revelação de sua condição constituiu importante fonte
de dificuldades para os jovens, que se mostraram divididos quanto ao que
fazer com esse segredo: livrar-se do seu peso, convivendo com os riscos de
possíveis rejeições, ou suportá-lo e ter de se haver com os prejuízos dessa
escolha, como exemplificado na fala de Breno:
178
princípio da recursividade, uma vez que foram produzidas interações de
confiança em que o adolescente se sentiu seguro para contar sua história.
A relação estabelecida entre pesquisadora e entrevistados gerou um
sentimento de cumplicidade que possibilitou ouvir as histórias de vida.
Essa relação de cumplicidade não é exercida no dia a dia, no
meio social em que vivem. Entretanto, ao estabelecer relações mais
próximas, é possível ultrapassar a questão da AIDS e construir vínculos
sólidos, como refere Bárbara:
179
do sujeito, uma vez que o médico rompe com o protocolo de idade e
continua o atendimento, como fica evidenciado no trecho a seguir:
180
Concomitantemente a tantas mudanças, nas estruturas sociais
cada vez mais inconsistentes, os adolescentes sentem suas vidas
marcadas por crescentes descontinuidades, como exemplificado na
história de Bárbara, que busca em seus relacionamentos meninos mais
novos como maneira de adiar o início da vida sexual.
Essa vida de “inconstâncias” ainda é agravada pelo medo de sobrar
e o medo de morrer. De serem vistos como estranhos, conforme Bauman,
que não se encaixam na sociedade atual já descrita anteriormente.
No que se refere ao medo da morte, apesar de não ser mais tão
presente, ainda é lembrado em momentos de doenças e internações
hospitalares sofridas por esses adolescentes, quando lidam também
com outros fatores estressantes, como as exigências do tratamento, o
estigma, o medo, o preconceito, as mentiras. Tudo isso aliado a um
contexto em que os adolescentes estão realizando a travessia para o
mundo adulto com questões que ultrapassam as esperadas para os
adolescentes em geral.
Segundo Blum (1992), para os adolescentes com doença crônica,
como é caracterizada a AIDS, hoje em dia, esta fase pode estar associada
à depressão e à rejeição de si próprio, por se sentirem diferentes das
outras pessoas, tanto física como nos seus comportamentos. Porém,
o que foi constatado com a pesquisa contrapõe o autor, já que os
adolescentes mostram lidar de forma que a infecção, não interfira na
autoestima. Vejamos o relato a seguir:
181
Nesses 17 anos em que o HIV me acompanha, aprendi
que tinha que fazer uma escolha: me entregar ou viver. E eu
escolhi viver.
Se uma gripe é ruim para ti, para mim ela pode ser
muito pior, pode virar uma pneumonia. (Lívia).
182
Aqui é possível identificar o Princípio da autoeco-organização,
pois a medicação, que faz parte do cotidiano de Bárbara, não é um fator
impeditivo para sair ou dormir na casa de amigas, assim como dormir
na casa de amigas também não é um fator impeditivo para tomar a
medicação. O mesmo princípio também é identificado na fala de Breno:
183
Perceber o adolescente, através da sua muldimensionalidade, é
compreendê-lo em todas as suas dimensões: psicológica, emocional,
física, biológica, cultural, espiritual entre outras. Portanto, o modo de
vida, a rotina, as crenças pessoais, religiosas e as transformações dessa
fase precisam ser considerados durante o tratamento, pois a adesão é
um processo permanente e contínuo, conforme mostra o relato de Lívia:
184
Porém, com tantos avanços nas políticas públicas e na ciência,
algo parece não evoluir: o pensamento humano. As pessoas que
vivem com HIV/AIDS ainda sofrem com o preconceito e o estigma.
A AIDS ainda ‘despersonaliza’, descaracteriza o sujeito. Dessa
forma, além de se preocupar com a saúde e com a possibilidade
de morte, quem vive com AIDS ainda tem que se preocupar com a
exclusão da sociedade e até mesmo da família, aumentando ainda
mais o sofrimento.
O enfrentamento da AIDS pelos adolescentes infectados
por meio da transmissão vertical representa um grande desafio. As
crianças se transformaram em adolescentes, e essa transformação vem
acompanhada de manifestações de ordem biológica, psicológica e
social peculiares na adolescência, agravadas por uma doença crônica
e limitante. A adolescência é um período marcado por ambivalências,
contradições, conflitos, com as regras sociais e as figuras de autoridade,
um despertar para novas formas de viver e um modo de ser no mundo
(BLOS, 1985; ABERASTURY, 1983). A infecção pelo HIV pode
ser vista como “uma figura de autoridade”, impondo limites na vida
cotidiana e nas relações sociais dos adolescentes.
Nesta pesquisa, os adolescentes mostraram uma relação com a
AIDS diferenciada da relação estabelecida pelos adultos. A primeira
geração de adolescentes que nasceram com AIDS mostra que não há
limites para a sobrevivência, fazendo com que haja uma mudança de
discurso: a AIDS desvincula-se da morte a associa-se à vida.
Eles mostraram também que essa sobrevivência está garantida OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA
clinicamente, devido ao avanço da medicação, pois a sobrevivência na
sociedade é uma luta diária. E é aqui que revelo o principal achado desta
pesquisa: para esses adolescentes, histórias vividas e histórias contadas
se complementam dentro do princípio da autoeco-organização como
estratégia necessária de sobrevivência.
O referencial da complexidade, que norteou esta pesquisa,
possibilitou conhecer as particularidades de como é viver com AIDS,
além de conhecer as histórias paralelas existentes na vida dos três
adolescentes participantes. Foi através do referencial que compreendi a
invisibilidade, que antes para mim era algo imposto e que, ao aprofundar
minhas leituras, em Morin, passei a compreendê-la como um direito de
quem sofre ainda com o preconceito e a exclusão.
185
A minha leitura dessa história mudou, e não pretendo finalizar
essa discussão, e sim mostrar que existem possibilidades de realizar
outras leituras, buscando novas perspectivas de compreensão do
fenômeno aqui estudado.
Assim, finalizando, quero compartilhar o melhor retorno que
poderia ter desta pesquisa: a confiança de Bárbara, Breno e Lívia, que
revelaram a mim as suas histórias – as vividas e as contadas! E, embora
saiba que existem muitos outros adolescentes enfrentando os mesmos
desafios, para os três participantes foi possível falar de algo escondido,
e que, a partir de agora, este estudo poderá servir para socializar o que
era até então desconhecido.
Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação
186
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SOBRE AS AUTORAS
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