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Tese Marcelo Romarco PDF
Tese Marcelo Romarco PDF
TESE
2007
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS EM
DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE – CPDA
TESE
Seropédica, RJ.
Junho de 2007
333.3181 Oliveira, Marcelo Leles Romarco de
O48r Retratos de assentamentos: Um
T estudo de caso em assentamentos
rurais formados por migrantes na
região do entorno do Distrito
Federal/ Marcelo Leles Romarco de
Oliveira. – 2007.
193 f.
Tese submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Ciências, no
Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade.
Ao fim desse trabalho foram muitos os caminhos que percorri, muitas idas e vindas e, muitas
as pessoas que encontrei, as quais me legaram prestimosas contribuições, aprendizados e
lições. Porém algumas são especiais.
A DEUS, que no seu infinito amor cobriu-me de bênçãos e fez frutuosos todos os meus
projetos. Aos meus queridos pais e familiares pela atenção e confiança depositada na minha
pessoa durante toda a minha trajetória. A minha querida companheira Eva que encontrei ao
final dessa caminhada, mas que foi fonte de inspiração e fundamental para o alcance dos meus
objetivos.
Aos professores do CPDA, que foram fundamentais para a minha formação, orientação e
ampliação dos meus horizontes acadêmicos. Aos amigos assentados da região de Pé de Serra
que com imensa paciência e presteza guiaram os meus passos em especial ao casal Kleber e
Arlete e ao Sr. Raimundo, por terem me acolhido com carinho em suas casas no
assentamento.
Aos colegas do CPDA e da Ecology Brasil que optarei por não listar seus nomes para não
correr o risco de esquecer algum, mas que foram fundamentais na troca de experiência, de
apoio e aprendizado ao longo dessa minha trajetória.
A banca examinadora que com um olhar apurado e crítico deu um retoque final ao meu
trabalho.
RESUMO
ABSTRACT
This thesis is based on a research made in Federal Distict overturn region, in the town of
Padre Bernardo – GO, in the Pé de Serra region, between 2004 and 2006, in four rural settles.
In general lines, it aims to know the daily routine and the sociability forms in these rural
settles, formed by migrant families. One of the chosen ways to understand the proposal was
the observation and the analysis of the day-by-day of settled people. This choice allowed
comprehending the relationship systems which sustain this space, or which articulate different
forms of living together in it. During the work, it was possible to notice that the settled people
are linked to multiple social universes, as the house, the neighborhood, the circulation of
people in the bus, relatives, Brasília, work relations, church, mediators group, State, and
others. This way, it is possible to state that these settles are in a continuing relation to other
spaces. It is, because of the fact that most of settled people are not from the region and have
arrived there with previously built social relations, even in other social universes, the settles,
these relations still exist. In a general way, the settled people, specially those who live and
produce in the settles, reproduce in this space relations with the earth and the work very
similar to the ones established by Woortmann (1997), when studying sites in inlands.
However, the lack of experience with the “cerrado” (open pasture with patches of stunted
vegetation), the lack of technical knowledge and the lack of infrastructure and of technical
assistance attendance are pointed by many people as the main reasons for low results in the
using of credits and for the lack of an effective production. And, finally, it is possible to
reflect if the settles are a relative final point, once the experiences live in the settles can be
subsides people need to migrate, that it, it is necessary to accept that people can go away from
the settles and that they may not be a final point for some families. Besides, the settled person
who has sold his/her site and has used the credit for another thing may have seen, in this act, a
possibility of a step to another social-economic degree in the social structure.
OLIVEIRA, Marcelo Leles Romarco. Settles Portraits: A case study in rural settles
formed by migrants in Federal District Overturn Region. 201 p Thesis (Doctorate in
Development, Agriculture and Society). Human and Social Science Institute, Development,
Agriculture, and Society Department. UFRRJ. Seropédica, RJ, 2006.
LISTA DE SIGLAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ___________________________________________________________ 1
CAPÍTULO 3 ____________________________________________________________ 76
ORGANIZAÇÃO, UNIÃO E AGRUPAMENTO _______________________________ 76
3.1. O ônibus: veículo de ligação entre o urbano – rural -------------------------------------- 77
3.2. A importância da cidade para os assentados ----------------------------------------------- 80
3.3. O bar e a pinga: diversão e perdição --------------------------------------------------------- 82
3.4. Religiosidade e a importância das práticas religiosas------------------------------------- 87
3.4.1. A igreja Evangélica Missão de Cristo Mundial ____________________________ 88
3.4.2. Festa do Divino Espírito Santo_________________________________________ 90
3.5. Organização associativista e grupos de afinidades nos assentamentos ---------------- 95
3.5.1. As associações ao longo dos anos ______________________________________ 96
3.5.2. As outras formas de organização _______________________________________ 98
3.6. As áreas de reserva dos assentamentos ----------------------------------------------------- 101
3.7 Considerações finais do capítulo -------------------------------------------------------------- 103
_____________Sumário
GLOSSÁRIO
1. Agregado: Morador antigo da fazenda que já estava na área antes da ocupação pelos
trabalhadores sem terra;
2. Almas sebosas: Termo usado por um antigo superintendente da SR 28, para designar,
acampados que estavam explorando outros acampados;
3. Barraco: Casa que não é de alvenaria; “Essa casa é um barraco porque não é de
tijolos ou de cimento. É só de madeira com lona”;
4. Bicos: Trabalhos temporários que os assentados conseguem nas cidades, sobretudo no
Distrito Federal;
5. Bulir: Exercer alguma atividade de trabalho, horta, gado, servente, freteiro, dentre
outras; “Quando eu cheguei em Brasília eu fui bulir com massa [servente], mas lá no
Piauí eu bulia com gado”;
6. Cachorra: Disco do arado pendurado em um poste, usado como sino pela guarda do
acampamento para alertar os acampados sobre possíveis invasões de pistoleiros e
convocar para as reuniões; “A cachorra a gente usava para alertar os acampados da
invasão de pistoleiros ou para convocar a turma para reuniões”;
7. Capão: Grota seca com presença de árvores;
8. Chácara: Termo utilizado pelos assentados da região para definir a parcela de terra.
Seria maior que um lote e menor que uma fazenda, o suficiente para produzir para a
família e vender o excedente. Essa classificação se deve à influência de Brasília, pois a
maioria dos assentados da região, antes de terem sido assentados nas áreas, foram
caseiros em chácaras de Brasília;
9. Cisterna: Poço perfurado para obtenção de água variando de quatro a 30 metros de
profundidade. Reservatório subterrâneo de água potável;
10. Comprador: Aquele ator que adquiriu a chácara através da compra, não participando
do período de ocupação ou da elaboração do PDA;
11. Cortar a fazenda na corda: É uma expressão comumente utilizada pelos assentados
para demarcar e lotear a área de uma fazenda, com vista a criar um assentamento. Com
um arame liso de pouco mais de 50 metros e um esquadro de 4X3 metros, os
assentados demarcaram toda a fazenda em lotes de 1000 metros de lateral com 200
metros de fundos, totalizando 20 hectares para cada família, num total de 70 chácaras;
12. Currutela: Denominação dada pelos assentados à vila ou cidade muito pequena;
13. Curral fechado: termo utilizado pelos nativos para tratar do número de votos que
uma liderança local conseguia para um determinado candidato a vereador ou prefeito.
14. Diversão: Ato de brincar, reunir os assentados para beber ou conversar;
15. Doador: Acampado que trabalha fora durante a semana e leva comida para os que
ficam permanentemente no acampamento; “(...) eu fui doador um tempo. Eu trazia
todo o final de semana verduras e legumes que eu conseguia na CEASA. Depois eu
passei a ser permanente”;
16. Eldorado: É um termo que se refere ao sonho dos migrantes de encontrar uma “vida
melhor e ficarem ricos em Brasília”. “Eu achei que ia chegar aqui [Brasília] e ficar
rico ganhar muito dinheiro e ajudar a minha família. Todo mundo naquela época
falava que aqui era o Eldorado”;
_____________Glossário
INTRODUÇÃO
Esta tese se baseia numa pesquisa realizada na região do entorno do Distrito Federal,
no município de Padre Bernardo-GO, na região de Pé de Serra, entre os anos de 2004 e 2006
em quatro assentamentos rurais1. Em linhas gerais, visa conhecer o cotidiano e as formas de
sociabilidade nesses assentamentos rurais.
Meu contato com essa região se deu anteriormente a esta pesquisa, durante meu
mestrado no curso de Extensão Rural da Universidade Federal de Viçosa. A época, o objetivo
da dissertação foi descrever e analisar a trajetória de vida de trabalhadores para assentamentos
rurais, no entorno do Distrito Federal. A idéia era contribuir para a compreensão desse
fenômeno migratório nesses espaços. O interesse em estudar esse fenômeno nesse local partiu
de observações em campo, durante trabalhos de elaboração de Planos de Desenvolvimento de
Assentamentos2 no município de Padre Bernardo, região do entorno do Distrito Federal no
ano de 2001. Dentre as questões abordadas procurei analisar os motivos que levaram os
assentados a migrarem de seus locais de origem para Brasília, bem como os motivos que os
levaram a migrarem para o assentamento. Portanto, o eixo central que orientou o trabalho foi
migração, analisada a partir de relatos orais dos entrevistados.
É importante ressaltar que esses assentados, antes de migrarem para a região de Pé de
Serra, deixaram parentes residindo em Brasília, que vão ser fundamentais para que essas
famílias continuem ocupando a área. Em Brasília, as cidades satélites Ceilândia, Águas
Lindas3 (GO), Recanto das Emas, Samambaia e Céu Azul, são os principais endereços dos
parentes dessas famílias. Nessas cidades, através de parentes, amigos ou vizinhos que esses
atores ficaram sabendo dos assentamentos.
Dentre os assentados entrevistados, foi possível distinguir dois grupos de migrantes
que vieram para Brasília, com características distintas. O primeiro grupo foi aquele que veio
de caminhão pau-de-arara antes dos anos 1970, para trabalhar na construção civil e, inclusive
havendo exemplo de assentados que participaram da construção de prédios públicos da nova
capital. Nesse período, esses migrantes não tiveram dificuldades para encontrar empregos.
No segundo grupo estão aqueles que vieram depois dos anos 1970 e foram trabalhar,
sobretudo, na prestação de serviços como, por exemplo, em oficinas mecânicas. A principal
característica desse grupo está relacionada à conquista do emprego, graças aos parentes. Desta
forma, a presença de parentes e conterrâneos foi imprescindível para a adaptação nesse novo
habitat, contribuindo para que Brasília fosse escolhida por causa do apoio logístico que teriam
na nova cidade.
Na cidade principalmente a partir dos anos 1990, esses migrantes passaram a ter
dificuldade em encontrar trabalho, principalmente para aqueles com baixo grau de
escolarização, além do problema da falta de moradia, que os obrigavam a percorrer longas
distâncias de casa até o trabalho. De acordo com os entrevistados, as condições de vida nessas
cidades sempre foram difíceis, principalmente por falta de infra-estrutura, da violência e do
desemprego. Além desses fatores foi possível perceber outros motivos como desestruturação
familiar e alcoolismo, entre outros.
1
Os assentamentos são: Vereda I, Vereda II, Boa Vista e Água Quente. Mais à frente abordarei a história de cada
assentamento.
2
Fiz parte de uma equipe de quatro estudantes da UFV coordenada pelo Professor José Roberto Pereira. Nesse
trabalho utilizamos de metodologias participativas para abordar junto com a comunidade o planejamento do
assentamento.
3
Águas Lindas faz divisa com Brasília, no entanto, pertence ao estado de Goiás.
1
_________________Introdução
Nessa pesquisa o que percebi foi que na cidade, o sonho do eldorado4 não foi possível
de se concretizar, sobretudo pelas mudanças que ocorreram no mercado de trabalho nas
últimas décadas, em relação, principalmente, à especialização e à qualificação da mão-de-
obra. Isso fez com que os migrantes buscassem, no assentamento, um local para viver e
trabalhar. Uma alternativa que se fez presente naquele momento de suas vidas (1998), ou seja,
naquele momento a reforma agrária surge para esses indivíduos como um campo de
possibilidades em suas trajetórias. É importante ressaltar que na época da pesquisa os
assentados entrevistados tinham em média 50 anos de idade, com baixo nível de escolaridade,
o que contribui para a sua exclusão do mercado de trabalho. Desta forma, o assentamento
torna-se para esses migrantes um campo de possibilidades dentro das estratégias adotadas por
esses assentados pesquisados, ao longo de suas vidas. Essa experiência com esses assentados
durante o mestrado me motivou a aprofundar o estudo nessa região.
Já no doutorado, tendo em mente a intenção de estudar o cotidiano e as formas de
sociabilidade em assentamentos rurais, busquei problematizar noções como união e conflito
no interior de assentamentos rurais, tomando como chave de análise as dinâmicas de
convivência cotidiana.
Observei que as múltiplas formas de agregação e desagregação no interior dos
assentamentos estão relacionadas também às formas de relação com a cidade [Brasília] e com
distintos interesses, sempre mutantes e reconstruídos no dia-a-dia dos assentamentos. As
relações de vizinhança, afinidades, solidariedade e com a terra não se desenvolvem de forma
isolada e permanente. Isso quer dizer que muitas vezes o conflito está diluído no cotidiano das
pessoas e não compõe um universo à parte, senão a própria representação sobre variadas
cisões presentes em cada contexto. Como exemplo, há os mutirões de ajuda mútua, que se
dividem em grupos de vizinhança, de afinidades, etc.
Essa dicotomia união – conflito é um dos temas trabalhados pela ciência social desde
muito tempo. Sobretudo no que diz respeito aos debates referentes às teorias de campesinato e
estudos de comunidade, a questão da união e da cisão é apontada de distintas maneiras, ora
deslocando a questão para o tamanho de um dado grupo, ora para as formas pacíficas e/ou
conflituosas de convivência e de conformação de grupos sociais.
Assim, procurei partir das informações que trazia da pesquisa anterior a esta e das
leituras que fiz e refiz no doutorado. Como foco de análise, considerei, preliminarmente, que
a região é constituída por assentados que têm uma trajetória campo-cidade-assentamento- e
uma relação estreita com a cidade.
Portanto, procuro estudar assentamentos formados por famílias migrantes. Ressalte-se
que a escolha dessa região se deu, sobretudo, pelo fato de se constituírem como um grupo
social composto por trajetórias distintas, a partir da aglutinação de pessoas que não tinham
convivências anteriores na região ocupada, ou seja, com exceção de pouco mais de 20
moradores da região5, a grande maioria veio dos mais diferentes lugares, sobretudo das
cidades satélites de Brasília. Mas é importante ressaltar que os assentamentos estão em
contínua relação com outros espaços. Isso se dá pelo fato da maioria dos assentados não
serem da região, terem chegado ali com relações sociais pré-constituídas e, mesmo estando
em outros universos sociais - os assentamentos - essas relações ainda existem, além da própria
dinâmica de relações entre o campo e a cidade.
4
É um termo que se refere ao sonho dos migrantes de encontrar uma “vida melhor e ficarem ricos em Brasília”.
5
Em sua maioria esses moradores eram trabalhadores das fazendas que foram desapropriadas.
2
_________________Introdução
Assim, privilegio migrantes que, num determinado momento de suas vidas, fizeram a
opção de lutar para ter terras e viver muitas vezes em áreas de conflito6 como foi o caso em
alguns acampamentos da região. É importante ressaltar que a reforma agrária surge para esses
migrantes como mais uma alternativa dentro de um campo de possibilidades em suas vidas,
um espaço que pode proporcionar certos recursos como moradia, terra, créditos e outros.
Portanto, acredito que compreender e dimensionar esse fenômeno são tarefas importantes para
os propósitos da pesquisa e do conhecimento científico.
Pensar no título retratos de assentamentos me levou a refletir que o trabalho tem o
enfoque na aproximação da percepção da realidade, visando à reconstrução histórica, ao
reavivar as lembranças, da vida, da memória, do cotidiano de assentados, no entorno do
Distrito Federal. Sei que estudos dessa natureza – método etnográfico- já receberam várias
críticas, mas como aponta Fonseca (2000) não existe método sem fragilidades, é pensando
assim, a autora coloca que,
“(...) em certos casos, este processo de ‘eterna auto vigilância epistemológica’
leva a uma espécie de paralisia. Ao almejar corrigir todos os defeitos possíveis e
assim evitar qualquer crítica, ao tema, o pesquisador deixa de tirar proveito da
perspectiva pela qual optou. Reconhecer os limites inevitáveis do método (seja ele
etnográfico ou não) tem efeito contrário: libera o pesquisador para explorar ao
máximo as vantagens de sua proposta” (Fonseca, 2000:11).
Nesse sentido, que procurei construir esse trabalho procurando aproveitar ao máximo
essa perspectiva de trabalho que optei, e procurando estar atento sobre suas potencialidades e
fragilidades. Assim sendo, muito mais do que uma imagem estática e parada que a idéia de
retrato pode passar, penso que o meu objetivo nesse trabalho é mostrar as significativas
transformações que esse espaço vem passando ao longo dos anos, como pude perceber em
cada ida a campo que realizei.
Para apresentação desta tese, optei por trabalhar com um fio condutor que buscasse
descrever uma trajetória de vida desses assentados, quanto, ao cotidiano, trabalho, relação de
vizinhança, moradia, usos e ocupações da terra, rotatividade, assim como a relação com os
seus mediadores.
Portanto, para discutir e trabalhar com esse fio condutor os resultados do trabalho, da
presente tese foi dividida em três partes e seis capítulos. Na primeira parte da tese vou tratar
dos aspectos introdutórios sobre o tema de estudo, do trabalho de campo, dos atores
contatados, bem como os caminhos da escrita desta tese.
Na segunda parte, trata-se do resgate histórico do período de acampamento, buscando
entender quais as razões, formas e mecanismos que esses assentados utilizaram para conseguir
conquistar a terra. Essa parte contém o primeiro capítulo e demonstra que a reforma agrária
para os atores estudados surgiu mais como uma alternativa dentro de um campo de
possibilidades em um determinado momento da vida daqueles assentados.
A terceira e última parte são os acampados tornando-se assentados. Para tanto,
apresenta o cotidiano desses espaços dando ênfase para as sociabilidades, conflitos, a relação
com a terra e os modos de vida existentes nesses lugares. Essa parte está dividida em cinco
capítulos.
6
Durante o período de ocupações, ocorreram confrontos entre jagunços e os acampados, principalmente, na
fazenda Serra Feia atual assentamento Vereda I. Como pode ser observado no relato “(...) foi a hora que
peguemos a foice, todo mundo e fomos roçar. Foi quando veio o tiroteio de lá. Isso foi na parte da manhã,
mais ou menos nove horas. Aí teve um morado de gente que correu. Teve gente que perdeu o chinelo.
Abaixamos, eles deram mais de cinco tiros em nós”. (Sr. D Pesquisa de campo, 2001).
3
_________________Introdução
4
_________________Os Caminhos da Pesquisa
Esta parte do trabalho tem por objetivo apresentar os caminhos seguidos nesta
pesquisa, procurando refletir sobre os caminhos que levaram a escolha, e demonstrar, como
diria Bourdieu (1989), um estado nascente da pesquisa. Sei que tal procedimento poderia me
expor, mas prefiro apresentar os vestígios, os toques e retoques das pinceladas que foram
necessárias serem dadas para que esse retrato fosse produzido.
“O cume da arte, em Ciências Sociais, está sem dúvida em ser-se capaz de pôr em
jogo ‘coisas teóricas’ muito importantes a respeito de objetos ditos ‘empíricos’
muito precisos, freqüentemente menores na aparência, e até mesmo um pouco
irrisórios” (Bourdieu, 1989:20).
Por isso, como aponta Bourdieu (1989), acredito que esse caminho se faz necessário
para que possamos refletir sobre as dificuldades que marcam a construção da pesquisa e tentar
aprender com elas.
Bourdieu (1989) chama atenção para eficácia de pensar um método que possibilite
construir um objeto que possa ser confrontado com a realidade empírica e ser sujeitado à
teoria; assim, tanto o empírico quanto o teórico estariam relacionados entre si. Desta maneira
essa seria uma proposta que possibilita compreender o fenômeno estudado.
Para isso, um dos caminhos seguidos para a construção do objeto foi o trabalho de
campo, que permitiu participar do cotidiano dos assentados, observando as práticas e os
discursos que emergem nos espaços formais e informais dos assentamentos - espaços esses
que geraram tensões e reformulações nas questões que tinha em mente ao iniciar o estudo.
Nesse sentido, Menezes (2004) retrata que o trabalho de campo além de ser um
importante momento de coleta de informação e integração com o objeto de pesquisa, permite
múltiplos aprendizados e é também um espaço gerador de tensões e questionamentos - o que
possibilita a revelação de limites e entraves de suas proposições e contribui para a
reformulação de novas análises dos fenômenos sociais.
Assim, esse processo da pesquisa como bem coloca Alencar (1999) obedece a um
processo circular da pesquisa que permite que as pressuposições que o pesquisador buscava
ao iniciar a pesquisa possam ser alteradas durante o processo de trabalho, possibilitando
outros questionamentos. Esses demandariam novas observações, por isso a importância das
pré-análises para amenizar tais problemas que porventura possam ocorrer.
5
_________________O trabalho de campo e os bastidores da pesquisa
6
_________________O trabalho de campo e os bastidores da pesquisa
7
Clifford (1998) procura definir a etnografia como um dos principais produtos do trabalho do antropólogo.
Seria, portanto, um modo de representar um outro cultural através da escrita. Resumindo, a etnografia está, por
todos os lados, imersa na escrita.
8
O casal Kleber e Arlete, se formou em 2006 pelo curso Técnico de Unaí-MG.
9
A escola agrícola de Unaí-MG, em parceria com o MDA, organizado pelo Grupo de Trabalho em Reforma
Agrária da UnB. Oferece um curso de formação de técnicos agrícolas para assentados dos assentamentos
localizados na região do entorno do Distrito Federal.
7
_________________O trabalho de campo e os bastidores da pesquisa
No restante dos dias que passei no assentamento, fiquei hospedado na casa do Sr.
Raimundo, proprietário de um bar. A escolha do local foi proposital, pois sabia que o bar seria
um lócus privilegiado para observações, o que se confirmou, pois neste local foi possível
observar eventos ocorridos somente nesse espaço. O bar é um espaço de sociabilidade em que
diversos eventos da vida cotidiana acontecem e em que as pessoas que se encontram,
estimulam a divulgação de informações, conflitos, relacionamentos. Lá, permaneci por cerca
de 10 dias.
Na residência moravam Sr. Raimundo e o seu filho de 12 anos mais ou menos, que o
ajudava no bar e estudava na escola do assentamento da Boa Vista, no período da tarde. A
esposa do Sr. Raimundo morava em Brasília, trabalhava na Unimed e vinha para o
assentamento só nos finais de semana. Outras famílias tinham realidades semelhantes, em que
um dos parceiros trabalhava na cidade e voltava para o assentamento, apenas nos finais de
semana.
Em Padre Bernardo, fiquei hospedado na casa que o Kleber e a Arlete possuem no
município. É importante ressaltar que esse casal até a presente data da pesquisa eram os
únicos assentados da região que tinham adquirido uma casa10 no município. Segundo o casal
essa decisão tinha sido tomada porque eles acreditavam que era preciso viver no assentamento
e manter um vínculo com o município.
Em sua casa em Padre Bernardo moravam, os três filhos que eram menores (duas
meninas e um menino). As crianças estudavam na cidade de Padre Bernardo. A casa de Padre
Bernardo, também, servia de guarita para os assentados que precisassem resolver alguma
pendência no banco, prefeitura ou que precisassem realizar uma consulta dentro da sede
município. Também, é importante ressaltar que, como a maioria dos assentados, o casal
possui familiares morando na cidade satélite da Taguatinga no DF.
Durante a minha estada na casa deles em Padre Bernardo o casal se encontrava
fazendo o curso na escola agrícola de Unaí-MG, portanto fiquei na residência junto com os
filhos do casal que moram na cidade para poderem estudar. Na cidade, foi possível
acompanhar o dia das eleições municipais de 2004, além de entrevistar algumas pessoas
(gerente do Banco do Brasil, presidente do Sindicato dos trabalhadores rurais do município
etc.), que, de uma maneira ou de outra, tinham algum contato com os assentados do
município. Esses momentos serão tratados analiticamente ao longo do trabalho de tese.
A segunda parte da pesquisa ocorreu no ano de 2006 no mês de fevereiro (fiquei no
assentamento 20 dias) e 10 dias do mês de julho do mesmo ano. Nesta fase, fui para o
trabalho de campo com um olhar atento às sugestões da minha banca de qualificação de
doutorado, que ocorrera em maio de 2005. A partir das observações feitas, elaborei um roteiro
que privilegiasse questões referentes, por exemplo, à relação assentados-cidade, relações de
vizinhança, relação com a política, relação com os atores externos, entre outras.
No texto da qualificação, estava com o olhar que chamarei de meio de idílio ou
romantizado sobre o campo, observação feita pela banca; mais à frente compreendi o que os
professores queriam dizer. Talvez eu estivesse idealizando muito o meu objeto de pesquisa.
Nesse sentido, penso que o pesquisador, ao enveredar em uma pesquisa, se encontra
numa situação muito difícil, de deixar as suas convicções e opiniões de lado. Hoje avalio que
foi fundamental um certo afastamento de minhas próprias pré-noções, pois permitiu-me olhar
o tema de pesquisa de outra maneira, com outra lente mais apurada e com o foco mais preciso.
Dito isso, o campo do ano de 2006, que chamarei de segunda etapa da pesquisa de
campo, procurou seguir essa orientação. Nesse campo, como no anterior fiquei hospedado na
casa do Kleber e da Arlete. Era um momento de muita festa e alegria para o casal, pois os
mesmos acabavam de se formar no curso técnico agrícola de Unaí, uma conquista para ambos
10
Para adquirir a casa em Padre Bernardo o casal vendeu uma outra casa que possuíam no Distrito Federal.
8
_________________O trabalho de campo e os bastidores da pesquisa
que na opinião deles com muito sacrifício e perseverança, tinham conseguido. Acompanhei
esse processo de longe, pois sempre nos comunicávamos por telefone para saber como
andavam as coisas na região. Em duas ocasiões duas famílias de assentados chegaram a
escrever para me colocar a par das novidades. Em uma dessas cartas uma família de assentado
encaminhou várias sementes de pimenta, pois eles sabiam que eu apreciava não só o tempero
da pimenta bem como o pé.
Como não era de se surpreender, as coisas na região aconteciam numa dinâmica
fantástica e rápida. A novidade naquele momento era o prêmio do Banco Real, patrocinado
pelo programa Universidade Solidária11 conquistado pelo assentamento Vereda I, que previa
ações de trabalho em forma de mutirão e ações coletivas. Esse prêmio, segundo as falas dos
assentados, veio num momento muito importante para os assentados daquele assentamento,
pois teria trazido esperança e reconhecimento pelos anos de luta pela terra, além de incentivar
e estimular que os outros assentamentos da região procurassem ações que privilegiassem o
trabalho coletivo. Outra novidade que trazia felicidade para os assentados era a chegada da
luz, que iniciara em meados de 2005, através do Programa do Governo Federal Luz Para
Todos. Na avaliação dos assentados até o final do ano de 2006 todas as famílias da região já
teriam luz em suas casas.
Nessa fase, também adotei a estratégia da primeira, e fiquei nas casas das famílias que
já havia ficado. A exceção é que passei a freqüentar mais intimamente outras casas dos
assentamentos, inclusive realizando refeições exigências dos assentados. Assim, nos dias em
que convivi com os assentados passei a experimentar o cotidiano dos assentados.
Como de costume, Kleber me transportou para vários lugares e passei também a
freqüentar mais os demais assentamentos. Fui convidado a participar de uma Reunião Pública
promovida por um Deputado Federal pelo PT de Goiás, na escola municipal localizada no
assentamento Boa Vista. Nessa reunião, além do parlamentar, outras autoridades municipais,
regionais e o próprio Superintendente do INCRA estavam presentes, além, é claro, de vários
assentados dos quatros assentamentos e do assentamento do Banco da Terra. Nessa reunião
tive oportunidade, mesmo que rapidamente, de entender um pouco da relação dos políticos e
da superintendência com os assentados. O tema principal da reunião era falar do programa
Luz Para Todos, tema esse abordado pelo deputado e por um representante do Ministério das
Minas e Energia que estava presente na ocasião. No entanto, os assentados que estavam
presentes na audiência chegaram a cobrar do INCRA e da prefeitura melhorias para os
assentamentos.
Durante essa fase, procurei variar na forma de coletar as informações. Além das
entrevistas, utilizei algumas técnicas de Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador
DRPE, que consiste, segundo Pereira (1998), em uma metodologia composta por uma série de
métodos e técnicas de intervenção participativa que permite obter informações qualitativas e
quantitativas em curto espaço de tempo.
11
No assentamento Vereda I em parceria com o Grupo de Trabalho de Reforma Agrária da UnB. Coordenado
pela Profª. Cláudia Valéria de Assis Dansa, participou com o seguinte projeto: Projeto Vereda Sustentável:
pensando a segurança alimentar, geração de renda e manejo ambiental no assentamento Vereda I, município de
Padre Bernardo – GO. Ao longo da tese voltarei a esse tema.
9
_________________O trabalho de campo e os bastidores da pesquisa
Dentre as diversas técnicas, utilizei o Diagrama de Venn ou Jogo das Bolas12, com o
objetivo de entender como os assentados da região se relacionam e vêem os atores externos
aos assentamentos.
Além disso, utilizei o Calendário Sazonal com vista a ampliar o entendimento dos
ciclos dentro do sistema de vida local. Isso possibilitou mostrar, mês a mês, os padrões de
precipitação das chuvas, as seqüências dos cultivos, a utilização das fontes de água, a
alimentação dos rebanhos, rendimentos, dívidas, migrações, colheita natural, demanda de
trabalho, disponibilidade da mão de obra, dentre outros. Portanto, o Calendário Sazonal foi
importante para entender a articulação dos diferentes componentes na vida dos assentados,
como mutirão ou a troca de dias, bem como qualquer característica especificamente sazonal
do ambiente.
Essa etapa foi muito proveitosa, mas ao voltar de campo e transcrever o material e
fazer as análises parciais fiquei com algumas indagações, que só puderam ser esclarecidas no
retorno que fiz em julho. Como diria Alencar (1999), a seqüência de análises facilita a
interação da pesquisa. Essa análise pode ser considerada parcial, em que a mesma pode
auxiliar na identificação de novas situações a serem observadas, de temas a serem cobertos
nas novas entrevistas, dos novos indivíduos a serem entrevistados, ou, até mesmo, das fontes
secundárias a serem consultadas, dentre outras.
A escolha do mês de julho de 2006 para o retorno foi proposital porque é o momento
das principais festas nos assentamentos, como a Folia do Divino e o campeonato de futebol
entre assentamentos da região.
Também nessa fase, outra questão que rondava a região, para não falar em todo o
Brasil, eram as eleições nacionais. Nessa época, os assentados já comentavam as mobilizações
que os cabos eleitorais estavam fazendo na região. O que mais comentavam era a
transferência do domicílio eleitoral do Deputado Federal por Brasília José Fuscaldi Tatico
para Goiás, estado em que o mesmo elegeu-se Deputado Federal pelo PTB em 2006, com
84.633 votos. Na região, pode-se dizer que ali seria um reduto do deputado. Tatico, como é
conhecido, é dono de uma rede de supermercados populares, de onde a maioria dos
assentados é cliente. Em uma dessas idas a campo, acompanhei uma família assentada
fazendo compras em um dos supermercados da rede em Taguatinga.
As conversas sobre as eleições aconteciam mais ao final do dia nas casas dos
assentados próximos a onde eu me encontrava hospedado. Nesses bate papo descontraídos os
assentados comentavam uma certa decepção com a política de reforma agrária do governo
Lula ou sobre porque alguns votariam13 no Roriz para senador. Segundo os assentados a
crença no Roriz, estaria relacionada à idéia do lote “dado” por ele em alguma cidade satélite
12
O diagrama é elaborado para ajudar na compreensão das relações que as instituições formais e informais têm
para com a comunidade. Usando a técnica: em primeiro lugar pede-se para a comunidade listar todas as
entidades ou instituições que ela acha importante para o grupo. Nesse momento, o animador tem que ter o
cuidado para não influenciar a comunidade, deixando a mesma à vontade para fazer a listagem das
instituições. Ao se iniciar o jogo, o animador tem que deixar claro que a bola de referência ou a unidade chave
sempre será a comunidade, que ficará no centro do jogo. A partir da bola de referência as demais bolas serão
jogadas considerando duas regras a primeira relacionada com a importância, ou seja, o tamanho da bola,
quanto maior a bola mais importante será a organização, e a segunda regra, relacionada com a distância da
bola em relação a bola que representa a comunidade, assim, quanto mais perto da bola da comunidade mais
atuante ou mais contato a instituição tem com a comunidade, e quanto mais distante, indica pouca atuação ou
contato nenhum que a instituição tenha com a comunidade. Observação: Com exceção da bola que representa
a comunidade, as demais bolas deverão ser feitas por pessoas presentes na reunião e não pela pessoa que
estiver puxando a técnica.
13
É importante ressaltar que grande parte dos assentados ainda vota em Brasília, “Tem gente que vota em
Brasília porque ainda tem alguma beneficio do governo e se ele transferir o título para Goiás perde o
beneficio” (assentado, vereda I, 2006).
10
_________________O trabalho de campo e os bastidores da pesquisa
de Brasília. Assim, depois de conviver por algum tempo com os assentados é que apresento
algumas impressões sobre o que foi visto vivenciado e apreendido com esses assentados.
12
_________________Pesquisa bibliográfica
PESQUISA BIBLIOGRÁFICA
Durante o doutorado, outras leituras foram aos poucos incorporadas a esse contexto
para entender a dinâmica de convivência de migrantes nos assentamentos. Além dos textos
lidos nas disciplinas cursadas, o processo de orientação e o contato com os colegas, sobretudo
nas disciplinas de Seminário de Tese, ministrada no primeiro semestre de 2004 pela
professora Leonilde Medeiros, e das disciplinas de Antropologia, ministradas pelo professor
John Comeford, trouxeram acréscimos importantes em que percebi que era necessário ampliar
o leque de temas e de leituras e que o meu foco não deveria concentrar-se só no caráter
migratório para assentamentos rurais, mas era necessário entender esse contexto dentro de
13
_________________Pesquisa bibliográfica
outros assuntos, como comunidade, campesinato, política e parentesco. Para isso, autores
como Malinowisk, Elias, Mauss, Clifford, Weber, Woortmanns, Borges, Heredia, Palmeiras,
Candido e outros foram importantes para a compreensão do que eu gostaria de entender. Uma
vez que eu proponho analisar o cotidiano e as formas de sociabilidade em assentamentos
rurais, essas leituras foram importantes para confrontar com os meus dados de campo.
Assim, longe de dar conta de todo o debate sobre a temática, procurei selecionar
autores que colocaram diante desse tema questões cujas formulações poderiam contribuir para
iluminar os meus dados de campo.
Além dos trabalhos de campo e das leituras realizadas, outra fonte de informação
importante foram os dados secundários ou “dados frios”8 que foram coletados através de
dados fornecidos pela SR (28): Superintendência Regional do INCRA, jurisdição do Distrito
Federal e do entorno, prefeitura, atas de reuniões das associações e informações fornecidas
pelo Grupo de Trabalho e Apoio a Reforma Agrária da Universidade de Brasília. Esses dados
ajudaram a compreender e a dimensionar as questões referentes aos assentamentos na região.
8
Dados frios são chamados assim porque são coletados de maneira não participativa, ou seja, as informações são
obtidas independentes de como os “atores” vêem a realidade, embora possa ser necessário consultar alguns deles
(Pereira: 1999:185).
14
_________________O ritual de escrever uma tese
Se olhar e ouvir podem ser considerados como os atos cognitivos mais preliminares no
trabalho de campo (...), é, seguramente, no ato de escrever, portanto na configuração final do
produto desse trabalho, que a questão do conhecimento torna-se tanto ou mais crítica.
(Roberto Cardoso de Oliveira, 2000:25).
Acredito que um dos maiores desafios dentro do ritual do meu doutorado foi o
momento da escrita da tese. Esse é o período de dar vida às idéias e interpretações sobre a
vida dos nativos. Como bem lembra Oliveira (2000)16, o trabalho do antropólogo consiste em
olhar e ouvir, e por fim escrever.
Acredito que o momento de textualizar é o mais desafiador, pois é nesse momento, em
que estou sozinho no escritório, que preciso dar corpo a tudo o que foi observado. Assim
sendo, creio que um dos maiores problemas é justamente a conjunção dos tempos entre estar
lá e escrever aqui, ou seja, no momento de estar lá é a fase das companhias dos nativos, das
observações, das trocas de idéias e do conhecimento; é um momento de comunhão e trocas. Já
o de escrever aqui é o momento da solidão do ritual entre o pensar e o escrever. De certa
forma, é uma fase que senti um monólogo entre os meus dados e os meus pensamentos. No
entanto, apesar de todo esse ritual, ressalto que a todo o momento os dados e os nativos estão
dialogando comigo nesse trabalho.
É nesse sentido que essa seção procura refletir sobre o desafio e o ritual de colocar no
papel todas as observações e análises feitas da vida cotidiana e das formas de sociabilidade
dos atores que proponho investigar nesse trabalho.
Como bem coloca Malinowiski (1979), um dos recursos utilizados pelo etnógrafo é a
forma diferenciada de coleta dos dados sobre os fatos observados para com isso formular as
suas análises e inferências. Essa por sua vez, passa pelo âmbito da análise e da escrita desses
fatos.
Oliveira (2000) já havia apontado a importância do momento da escrita como um
elemento do ritual de produção do conhecimento. É um exercício textualizar os nossos
pensamentos. É o momento de colocar no papel todas as análises e inferências que estão
“soltas no ar”, ou seja, é nessa fase que dialogamos mais incisivamente com a teoria,
observações e reflexões, vivenciadas no trabalho de campo, e damos carne e osso ao
documento, aqui no caso, na forma da tese.
Como todo pesquisador sabe, essa fase da escrita é marcada pela solidão e pelas
reflexões que às vezes levam ao limbo ou a um vazio. Ou ainda mais, a uma dificuldade de
colocar no papel uma experiência altamente pessoal numa análise científica e crítica da
realidade do outro.
Entretanto, com a queima de muito fosfato e o amadurecimento dessas reflexões, foi
possível conceber um texto que tem por objetivo disponibilizar aos leitores as reflexões
realizadas a partir das informações coletadas em campo, de forma simples e objetiva, da
realidade vivenciada junto aos assentados da região de Pé de Serra.
Assim sendo, procurei estruturar os capítulos dentro de um escopo de análises que
permitisse ao leitor perceber o texto numa união entre a teoria e a empiria, concebendo assim
16
Roberto Cardoso de Oliveira (2000), em seu livro o trabalho do antropólogo, capítulo 1: olhar, ouvir e
escrever destacou a importância desses três elementos para a produção do conhecimento.
15
_________________O ritual de escrever uma tese
um documento que comungasse esses elementos de forma bem descritiva dos fatos
observados naquela região.
Como aponta Clifford (1998), tentei colocar nessa tese a tradução da minha
experiência com os assentados na forma textual, ressaltando que não tenho a pretensão de dar
conta de todos os elementos existentes naquele espaço. Até porque como no caso de uma
fotografia o fotógrafo precisa focar um ângulo que ele acredita ser o ideal para capturar aquilo
que ele gostaria de mostrar, eu, como pesquisador, também procurei fazer esse mesmo
exercício. Portanto, esse material aqui apresentado é a interpretação e a recuperação de
determinados fatos etnográficos, que chamo de retratos de assentamentos.
16
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Grilheiro de Terra
17
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
CAPÍTULO 1
“Na minha cabeça, eu tinha a idéia que a gente invadia, passava lá dois a três meses e depois
ganhava a terra. Então, pra mim, era um dos melhores prêmios que podia ter era ganhar um
pedaço de terra, por isso eu resolvi acompanhar esse movimento. Isso foi em 1998, no mês de
maio de 1998. Aí quando eu cheguei na Ceilândia o pessoal estava vindo pra cá. Aí eu resolvi
vim com eles e nós acampamos na beira da ponte, lá no primeiro acampamento. Isso foi em
setembro de 1998” (Assentado da região de Pé de Serra, 2004).
Neste capítulo pretende-se apresentar uma discussão sobre o processo de ocupação das
terras na região Pé de Serra, bem como apresentar quem são esses atores que aderiram à luta
pela terra na região e o processo de constituição dos assentamentos, mostrando as estratégias
adotadas por esses atores. Para isso, esse capítulo está dividido em cinco seções e três
subseções.
18
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
17
O pároco foi fundamental na formação do antigo povoado. Por isso, em sua homenagem, a cidade leva o seu
nome.
19
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
20
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Estudos realizados por Aguiar et all (1994) mostraram que as regiões do entorno do
Distrito Federal, principalmente os municípios de Cristalina e Padre Bernardo em Goiás, que
têm uma agricultura centrada na monocultura, têm causado sérios danos ao meio ambiente
pelo uso excessivo de agrotóxico, pelo manejo inadequado e pela utilização de tecnologias
poupadoras de mão-de-obra, forçando o deslocamento da população rural para as áreas
21
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
urbanas do entorno. Paralelo a essa situação, segundo os mesmos autores, é cada vez mais
freqüente os sítios de finais de semana no entorno, substituindo áreas de agricultura de
subsistência, consideradas essenciais para a região por manter um equilíbrio mais compatível
com o meio ambiente, além de contribuir para que parte da população rural permaneça no
campo. Assim, essa transformação vem modificando as relações de produção existentes, os
antigos pequenos produtores transformando-se em trabalhadores que nem sempre são
absorvidos no local pelo mercado de trabalho rural ou urbano, forçando-os a uma mudança
para a periferia das cidades satélites.
Esses elementos associados ao processo de redemocratização do país possibilitaram
um cenário político-social favorável à reforma agrária. E a partir dos anos de 1970, com
mediadores ligados principalmente à igreja católica e posteriormente com o movimento
sindical nos anos 1980, a bandeira por reforma agrária passou a ganhar força e culminou com
a ocupação de áreas improdutivas nos estados de Goiás e Minas Gerais, próximas ao entorno
do Distrito Federal. No final da década de 1980, o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem-Terras (MST) passou a ter também uma participação efetiva na luta pela terra na região.
Desta forma, a concentração de terras e a proximidade com Brasília foram elementos
que contribuíram para que a disputa por terras e a ocupação destas acontecesse no município.
O marco dessa luta na região Pé de Serra foi o ano de 1998, quando, segundo os
entrevistados, o MST já trabalhava na possibilidade da criação de assentamentos na região. O
primeiro passo foi o levantamento das propriedades consideradas improdutivas. Em seu
levantamento os militantes do MST descobriram cinco fazendas que foram avaliadas como
improdutivas pelo MST; a partir dessa avaliação o passo seguinte foi organizar as famílias
que iriam ocupar tais fazendas. É importante ressaltar que uma das principais formas de
reivindicação pela reforma agrária no Brasil tem sido a ocupação de terra e a formação dos
acampamentos. Para muitos, essa é a principal forma de pressionar o Estado a realizar a
reforma agrária.
Esse processo de ocupação foi organizado por militantes do MST que atuavam em
Brasília e que já realizavam um trabalho de base junto a moradores, principalmente nas
periferias das cidades satélites de Brasília, convidando para que esses viessem a ocupar terras
na região. Além disso, os assentados que foram para região acabaram sabendo das ocupações
através do boca-boca, e das redes de amizades e parentesco ali existentes. Nesses espaços
essas redes tendem a ser mais fortes e por isso podem ser vistas como bases importantes para
a mobilização desses trabalhadores.
Esse tipo de estratégia de mobilização por parte do MST na região do entorno do
Distrito Federal também foi observada por Sigaud (2005) em acampamentos na Zona da Mata
Sul pernambucana. Lá, muitos dos trabalhadores que foram engrossar a luta nos
acampamentos o foram a partir de convites feitos por militantes do MST e sindicalistas nas
periferias das cidades da Zona da Mata pernambucana.
Assim, esses atores que participaram das ocupações vieram das cidades satélites de
Brasília e de regiões do entorno de Brasília como Luziânia, Trajanópolis, Parque da
Barragem, Taboquinha, Cristalina, lugares onde já existiam ocupações de terras18 organizadas
pelo MST e sindicato de trabalhadores rurais dos municípios.
18
Muitos foram excedentes da Fazenda Líder no município de Luziânia-GO, próximo a Brasília. A ocupação
dessa fazenda culminou com a criação em 1998 do assentamento Líder, com 31 famílias. Luziânia, por sua
proximidade com Brasília é conhecida como cidade dormitório, pois muitos de seus moradores trabalham em
Brasília e moram na cidade.
22
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
19
As cidades satélites do Recanto das Emas, Samambaia, Ceilândia e Céu Azul eram as principais cidades do DF
que os assentados moravam antes do acampamento.
20
Para entender mais sobre esses atores ver Oliveira (2002).
21
A construção de Brasília fez com que desencadeasse um conjunto de outras obras que estavam diretamente
relacionadas à nova capital, por exemplo, a construção de rodovias que davam acesso à nova sede do governo,
como a Belém-Brasília (2.000 km); Acre-Brasília (2.500 km); Fortaleza-Brasília (1.500 km); Belo Horizonte-
Brasília (700 km) e a Goiânia-Brasília (200 km), dentre outras obras viárias. Segundo Moreira (1998), no ano
de 1960 foram pavimentadas 6.202 km de estradas e construídos outros 14.970 km de rodovias. Assim,
Brasília passou a ser um ponto de integração entre os centros urbanos e a regiões agropecuárias do país.
23
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Gouvêa (1998) constatou, em estudo realizado nas cidades satélites do Gama e do Guará,
que a migração para Brasília estava diretamente relacionada com a situação difícil que o
indivíduo encontrava em seu local de origem. Constatou também que a vinda para Brasília
estava diretamente relacionada com a busca de emprego e com melhores condições de
assistência médica que na maioria das vezes, apesar das deficiências dos serviços prestados
em educação e saúde em Brasília, estes ainda eram muito superiores aos prestados na maioria
das regiões do país.
Segundo Romeiro (1994), o motivo de o trabalhador rural migrar para as cidades é a falta
de emprego no campo porque o trabalhador fica sem condições de sobrevivência. Dessa
maneira, sem emprego, ele vai para as cidades, independente das oportunidades de trabalho
que poderá encontrar. Outro fator seria a qualidade de vida que o trabalhador rural vai buscar
nas cidades, pois nestas a qualidade de vida da população favelada e subempregada pode ser,
apesar de tudo, superior à do campo, onde o trabalhador rural enfrenta problemas como a falta
de escola para os filhos, a falta de assistência médica, dentre outros.
A imagem que a cidade é um lugar melhor e com maiores possibilidades é observada
também por autores como Sayad (1998) que, ao estudar imigrantes de origem argelina na
França, constatou que as dificuldades encontradas no seu local de origem, como o
endividamento e a impossibilidade de ganhar dinheiro, fazem com que esses migrantes vejam
a França como uma alternativa para melhorar de vida e como alternativa até para parentes que
ficam na Argélia.
“Todos aqueles que têm dinheiro, todos aqueles que fizeram alguma coisa, que
compraram, ou construíram, foi porque tinham o dinheiro da França” (idem,
1998:29).
22
Em uma destas situações Woortmann (1990) analisa a migração sobre a ótica da utilização desta como um
mecanismo para evitar o fracionamento do Sítio. Ressaltando que, em muitos os casos, a família estimula
alguns filhos a migrarem para São Paulo para que esses abram mão de suas heranças, para que outros a tenham,
evitando assim o fracionamento do Sítio.
24
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
R: “Ah! Era a idéia da cidade grande, era um sonho. Eu achava que ia chegar,
arrumar um bom emprego, ter uma casa boa, aqueles sonhos da cidade. Só que é
tudo muito difícil. Você bate numa porta, ela se fecha, você bate na outra, ela
também se fecha” (Sra. E, assentamento Vereda I, 2001).
Para Gouvêa (1998), essas expectativas eram alimentadas pela intensa propaganda
existente na época, que estimulava os brasileiros a migrar para construir a nova capital. Eles
chegavam de todas as partes cheias de sonhos de encontrar na cidade a possibilidade de
melhorar de vida. A cidade era o paraíso idealizado através de estórias contadas por amigos
ou parentes que regressavam aos seus locais de origem e até mesmo através dos discursos dos
políticos da época que enalteciam o feito da construção da nova capital.
“Os candangos vinham para o Planalto Central não somente para construir uma
cidade, mas para construir a capital da esperança, pois tinham a esperança de
melhores dias para trazer suas famílias e viver com dignidade. Sonho
realimentado pela atuação dos políticos da época, incluindo o próprio presidente
Juscelino Kubitscheck, dando a ilusão de que as coisas iriam mudar realmente
com a construção de Brasília” (Gouvêa, 1998:81).
Essa situação acabava gerando, principalmente nos mais jovens23, uma expectativa e
uma vontade de migrar, de partir para o desconhecido ou conhecido apenas através dos relatos
contados pelos que voltaram. Esses relatos são sempre de sucessos e nunca de fracassos. Seria
muito mais interessante contar vantagens do que possíveis dificuldades que estariam
passando.
Em Brasília esses atores constroem uma rede de relações sociais, principalmente de
parentesco, que possibilitam que esses permaneçam na cidade e que busquem familiares que
ficaram nos locais de origem. Desta forma, o indivíduo que resolve migrar normalmente
escolhe um local em que será amparado e onde receberá ajuda de um migrante mais antigo ou
“aventureiro”. Por isso, a decisão sobre o destino do migrante, na maioria das vezes, depende
das relações de solidariedade construídas com parentes ou conhecidos que migraram primeiro.
Assim, essas redes formais e informais de parentesco, amigos ou vizinhança, servirão de
estratégias para que o indivíduo se integre no novo universo pretendido.
Nesse sentido podemos argumentar que, quando um indivíduo resolve deslocar-se em
busca de trabalho, o mesmo procura acompanhar as rotas que foram percorridas anteriormente
por parentes e amigos, indo com conhecidos ou à procura destes, normalmente sozinhos ou
em pequenos grupos, de duas ou três pessoas. Dessa forma, as relações pessoais servem de
referência para a movimentação espacial destes trabalhadores. Chegando ao local de destino o
apoio de parentes e amigos é fundamental para a adaptação dos mesmos.
23
Isso porque a migração é mais forte em certas etapas do ciclo da vida “nas idades de entrada na faixa
econômica ativa, nas idades de contrair matrimônio e de gerar filhos” (Cavalcanti, 2002).
25
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Assim, depois de anos ou até décadas morando na cidade, esses atores que
ingressaram na luta pela terra resolvem buscar, por meios da organização de movimentos
populares - no caso aqui o MST-, condições mínimas de sobrevivência. É importante ressaltar
que os assentados que entraram no processo de ocupação de terras na região inicialmente o
fizeram pela possibilidade de conseguir algo como ter uma terra, trabalho, créditos, moradia e
não por um engajamento político, estimulado pelo movimento, nos moldes ideológicos do
MST, conforme é observado em outros assentamentos no país.
“Eu nem sabia direito o que era reforma agrária, achava errado esse negócio de
invadir terras dos outros, mas como estava desempregado e sem perspectiva
24
Para os informantes, as ocupações das áreas próximas ao Plano Piloto são chamadas de “invasões”.
26
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Em outras regiões do país, como o Rio de Janeiro, situação semelhante foi observada
por outros autores, como Macedo (2003) que estudou acampamentos no Norte Fluminense,
onde este identificou que os trabalhadores que foram para o acampamento Zé Pureza o
fizeram pelas possibilidades de inserção no mercado de trabalho e na obtenção de um
emprego que oferecesse condições capazes de suprir as necessidades básicas de seus
familiares.
Nessa região do entorno do Distrito Federal, observei que a questão do desemprego e a
falta de perspectiva em relação ao mercado de trabalho, que passava por um processo de
reestruturação, contribuíram para a exclusão, sobretudo, dos mais velhos e dos com menos
qualificação, ou seja, a pessoa com idade avançada e sem estudo “não presta mais para
arrumar emprego” (Sr, C, assentamento Água Quente, 2004).
“Teve uma vez que eu cheguei lá e fiz uma ficha num abatedor de frango, em
Brasília, quando eles descobriram a minha idade, eles mandaram embora na
mesma hora. Eu tinha 55 anos na época. A vida lá é muito sofrida” (Sra. Or,
assentamento Vereda I, 2004).
“O cara com mais de 40 anos é muito difícil, você vê como o pobre sofre na
cidade. Você com mais de 40 anos, não arruma emprego, o governo vem aposentar
o cidadão com 60 a 65 anos. Quer dizer que nesse período ele tem que ralar. Ele
vai comer o que, pedra?” (Sr. B, assentamento Vereda II, 2004).
O que parece interessante é que essa violência da cidade contribuiu para que esses
atores fossem para uma área de conflito de terras, ou seja, o acampamento, e posteriormente o
27
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
assentamento. No assentamento eles acreditavam que seria mais tranqüilo do que viver na
periferia das cidades satélites.
“Eu nem quero mais saber de cidade. Hoje até os jovens estão desempregados e
outra é porque na cidade tem muito vagabundo. Nós dormimos presos e eles ficam
soltos, porque nas casas tem que ter tudo com grade e trancado de cadeado” (Sr.
D, assentamento Vereda I, 2001).
“Em 1995 eu vinha do serviço e vinha na frente. Eu peguei uma carona com um
colega. Aí foi quando os vagabundos me pegaram para assaltar e na época me
levaram uns 20 contos. Acho que na época era R$ 20,00. Eu usava uns cordões de
michelin. Levaram e me deram um tiro no pescoço e depois deram mais dois tiros.
Não morri mesmo porque não chegou o dia” (Sr. F, assentamento Vereda I, 2001).
Além disso, as desilusões com a vida (morte de parente, fim de casamentos e a própria
solidão) e a vontade de possuir um pedaço de terra, ter uma chácara ou até mesmo uma
moradia própria estão presentes nos objetivos desses atores.
O que se percebe é que a reforma agrária surgiu para essas famílias que resolveram
acamparam em Padre Bernardo como mais uma possibilidade a curto prazo de ter acesso a
recursos, emprego e outros bens que no momento da vida em que se encontravam não era
possível de se alcançar. Por isso, foram engrossar as fileiras do MST, na região.
Desta maneira, segundo Sousa (1999), uma das possibilidades que esses trabalhadores
encontram foi organizarem-se ocupando terras, buscando resolver suas necessidades
econômicas e sociais, como ter acesso a terra, lutar por direitos políticos e culturais, enfim,
um momento marcado por uma série de ambigüidades, caracterizadas pela situação limiar em
que vivem. Segundo a mesma autora, esses trabalhadores, após anos vivendo na cidade,
percebem que um dos mecanismos possíveis para que possam mudar de vida é se organizarem
junto a movimentos sociais como os sem-terra em busca dessas possibilidades.
Na opinião de Marques (2000), o processo de luta pela terra permite a esse trabalhador
a experimentação de novos elementos, como a própria contestação de suas condições. Esses
questionamentos são vivenciados na prática, através da mobilização e das ocupações. Esse
processo contribui para estimular a capacidade crítica dos trabalhadores sem-terra em relação
a sua condição subalterna.
Na região a ocupação das propriedades foi modificando não só a estrutura fundiária,
mas também o perfil da região, além de evidenciar o despreparo do município em relação ao
grande número de famílias que se deslocaram de uma só vez de Brasília ou da região para o
município, como pôde ser observado na fala de um funcionário da secretaria da Educação.
“Eu me lembro, na época foi uma confusão muito grande, porque naquela região
de Pé de Serra praticamente não morava ninguém e de repente veio para lá cerca
de 1000 famílias querendo posto de saúde e escolas para os seus filhos. A gente
não tinha nem prédio e nem professores, só com o tempo e com as pessoas
assentadas que a coisa normalizou, mas isso demorou um pouco, o município não
estava preparado para tanta gente de uma vez” (Funcionário da secretária da
Educação, 2004).
Até meados do ano de 2006, o posto de saúde não estava funcionando integralmente.
Já a escola passou a funcionar inicialmente na sede da fazenda Boa Vista em 1999 e o atual
prédio foi inaugurado em agosto de 2002, com recursos do Ministério da Educação e Cultura
(MEC) do Fundo de Fortalecimento da Escola, no assentamento Boa Vista e atende a todos os
outros assentamentos da região de Pé de Serra.
28
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
29
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Esses atores sociais que chegaram estavam organizados pelo MST, que já vinha
realizando várias ocupações na região. Segundo Silva (2004), esta organização promovida
pelo movimento é fundamental para o sucesso da ocupação, uma vez que, na maioria dos
casos os militantes realizaram um estudo prévio da área a ser ocupada, identificando a
viabilidade e os possíveis conflitos.
No mesmo período que essas famílias chegaram à região, organizadas pelo MST, outras
famílias vieram ocupar a fazenda Água Quente ou Capão do chiqueiro, bem próxima à
fazenda Boa Vista. Essas, por sua vez, estavam sendo organizadas pelo sindicato dos
trabalhadores rurais de Padre Bernardo, que, naquela época, participaram de ocupações de
terras na região.
“A gente chegou mais ou menos na mesma época do pessoal do MST em 1998,
acho que uns 20 dias antes. Todo mundo ficou acampado aqui perto do rio, até
sair às terras e o pessoal do MST ficou primeiro na ponte. (....) Mas a historia
nossa e praticamente a mesma, as dificuldades são iguais, você vê, hoje tem um
pessoal do assentamento que tem que pegar água no poço do pessoal do Vereda I,
porque até hoje a nossa situação não se resolveu. Tem muita gente que desistiu do
assentamento por causa da falta de água.” (Sr. I, assentamento Água Quente,
2004).
O cotidiano desses acampados que resolveram entrar numa ocupação de terras e fazer
parte de um acampamento para lutar por um pedaço de terra foi modificado pela nova
situação de vida. E esta nova realidade social – acampamento -, pelas suas regras, pelas suas
dificuldades, pela necessidade de lutarem juntos por uma causa comum, fez com que alguns
elementos fossem repensados. Para os acampados, a imagem que tinham de uma ocupação de
terra era de briga, baderna, e que reforma agrária era uma coisa errada. Nas entrevistas, era
recorrente lembrar da morte de Chico Mendes. Entretanto, com o surgimento dos
25
O motivo de o assentamento ser conhecido como Sindicato foi porque esse assentamento foi organizado pelo
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Padre Bernardo. (voltarei a falar do histórico desse assentamento mais
a frente).
30
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Essa expectativa de que um futuro melhor pode acontecer a partir da ocupação de terra
é um elemento importante, como aponta Sigaud (2005), para entender porque trabalhadores
decidem fazer parte de ocupações de terra.
Se considerarmos dois momentos na vida desses acampados, ou seja, local de
nascimento e o anterior à ocupação, podemos observar que a grande maioria realizou uma
migração longa. Para isso, tomo como exemplo dados dos chefes de família do último
acampamento da região, na fazenda Vereda, atual assentamento Vereda II, em maio de 2001,
existiam nesse local 96 famílias acampadas, com origem em vários estados da federação, (ver
tabela 5 logo abaixo). É importante ressaltar que antes de virem para o acampamento a grande
maioria dessas famílias viveu em algum momento de sua trajetória em cidades satélites do
Distrito Federal.
Na tabela 5 acima nota-se que mais de 50% dos acampados vieram de Estados do
Nordeste. Além disso, 71 moraram antes em Brasília e lá ficaram sabendo do acampamento.
Apenas seis eram da região e 19 vieram de municípios próximos ou eram excedentes em
outras ocupações do município de Luziânia. A rigor, a ocupação de terras se configurou numa
saída possível, numa aposta para uma situação que era tida como precária.
31
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Foto: 5– Ruas do Acampamento Vereda II, Foto: 6 – Barraca típica dos acampamentos
maio de 2001. Esse tipo de estrutura de da região. Com um elevado para o plantio
acampamento foi o mais comum na região. de cebolinha.
importante dentro do acampamento era o galpão onde eram feitas as reuniões. Tais reuniões,
de acordo com os assentados, eram feitas todos os dias: batia-se a cachorra (disco de arado),
chamando as pessoas para a reunião.
Para Comerford (1999), o termo reunião é caracterizado por um tipo de convocação
por alguma organização formalmente definida ou um grupo de pessoas em torno de um
“objetivo previamente definido”, ou seja, contando com uma pauta. Segundo os entrevistados,
no período do acampamento as reuniões eram constantes:
“Tinha período que tinha reunião o dia todo, para definir desde o local dos
barracos à expulsão de acampados baderneiros”. (Assentado do Vereda II, 2004).
Perto do acampamento existia uma igrejinha que os acampados tinham feito para
realização dos cultos. Os cultos ainda continuam sendo uma das principais formas de união
dentro dos assentamentos. Segundo diversas falas colhidas, as igrejas (evangélicas) são os
principais pilares do assentamento. Em seção futura voltarei a falar das igrejas e suas posições
na organização social dos assentados.
Além disso, teve acampado que colocou alguns roçadinhos de milho, mandioca e
feijão. Esse tipo de configuração dos acampamentos facilitava a movimentação dos
acampados. Assim, como diria Silva (2004), o espaço físico vai, aos poucos se transformando
num espaço social, e ao contrário do que possa parecer muitas vezes ao senso comum, é um
espaço que mantém uma estrutura organizacional bem articulada, como tarefas e divisão do
trabalho bem definido, sobretudo nos núcleos que são formados,
“(...) o acampamento não é um lugar de baderneiro e invasores, e sim um espaço
social; isto é, além de estar em um território determinado, as pessoas que ali estão
são obrigadas a obedecer a um conjunto de normas sociais legítimas necessárias a
vida em grupo” (idem, 2004:79).
33
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Todavia, os entrevistados reconhecem que para ser militante era necessário ter certo
molejo e ter algum conhecimento sobre reforma agrária que nem todo mundo tinha,
“Eu sei também que para ser militante não pode ser qualquer um, tem que
saber falar, não ter medo de se enrolado pelo INCRA e entender de reforma
agrária. Marcelo você já imaginou fulano negociando no INCRA? A gente
estaria acampado aqui até hoje [o assentado se referia a um assentado que para
eles era metido a falar bonito, mas na visão deles não entendia nada do
assunto]” (Assentado do Vereda II, 2006).
26
Tais categorias são classificações nativas designadas pelos acampados na época do acampamento para se auto-
identificarem.
34
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Nos assentamentos da região, no início, foi muito comum que familiares de outros
estados viessem morar com as famílias já assentadas ficando assim na casa do parente
assentado, até conseguirem tirar um lote em outras ocupações, ou até mesmo no próprio
assentamento onde se encontravam.
“Eu trouxe do Maranhão o meu pai e a minha irmã aqui para Goiás para ver se
eles conseguem ganhar terras, também, porque lá as coisas eram muito difíceis
para eles” (Assentado do Vereda I, 2004).
No caso relatado acima, no ano de 2002, o pai desse assentado conseguiu entrar em
um lote do assentamento COOPERVIDA do Banco da Terra, ou assentamento Baixão, na
mesma região onde o filho se encontrava. Em conversa com ele, o mesmo relatou que essa
ajuda do filho foi muito importante para que ele conseguisse o lote, pois por estar com a idade
35
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
avançada, as coisas seriam mais difíceis e sem essa ajuda provavelmente não teria conseguido
ficar na região.
“Meu filho já tinha vindo para Brasília há muito tempo, e eu sempre queria vim,
mas nunca tinha condição e quando ele falou desse negócio dos sem-terra, eu
peguei e falei com ele se tivesse jeito dele arrumar um lote para mim ou se eu
pudesse ficar na casa dele até sair alguma coisa eu vinha, porque naquela época
tinha muita gente tirando terra aqui” (Sr. José, COOPERVIDA, Banco da Terra
2004).
Nos relatos colhidos em campo, sobre por que houve desistência no período de
acampamento, os assentados apontaram que as desistências estavam relacionadas a três
elementos: o primeiro deles seria a demora para sair a desapropriação e a formação do
assentamento, algo que esperavam que acontecesse rápido.
A segunda foi porque tinham emprego e emprego público e isso acabava eliminando o
pretendente, pois de acordo com as normas da reforma agrária, funcionário público não pode
ser beneficiado desta.
E a terceira e última, as desistências estavam acontecendo porque teve acampado que
conseguiu emprego ou outra atividade melhor, segundo suas percepções, do que ficar de baixo
da lona preta. Portanto, surgiram outras possibilidades nos horizontes desses atores.
Nesse sentido, Macedo (2003) interpreta que a falta de trabalho pode também levar o
acampado a uma possível desistência,
“Se a falta de trabalho ou a busca por um trabalho melhor favoreceram a entrada,
essa mesma falta de trabalho ou a necessidade de obter um trabalho melhor para
sustentar a família afastaram as pessoas do acampamento” (idem, 2003:161).
Pereira (2000) analisou o acampamento como uma fase que define a composição do
grupo “mais ou menos coeso, que enfrenta um processo de luta pela terra por um período de
tempo variável, exigindo dos trabalhadores desprendimento de suas relações sociais
anteriores”. Na região, o acampamento, para os assentados, foi visto como um período de
incertezas e dificuldades na conquista da chácara. A cada mês que passava muitos desistiam e
percebiam que não seria tão rápida a desapropriação das fazendas.
37
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
É possível pensar que esses acampados, a partir desse senso prático, começaram a
adquirir novas condições materiais e simbólicas enquadrando-se num novo sistema de
posições sociais, ou seja, passam adquirir outros papeis sociais perante aos demais
acampados. Entretanto, é importante ressaltar que essas novas lideranças necessitam
incorporar os interesses dos acampados além de fazer com que os acampados se reconheça
nessas novas lideranças.
Nesse sentido, Bourdieu (1989) chama atenção para a necessidade do exercício da
liderança partir da articulação entre a competência social e prática dos indivíduos, e da
capacidade do grupo em analisá-las e avaliá-las e, a partir dessa avaliação, dar-lhe maior
suporte ou, ao contrário, rejeitá-las. Para tanto, Bourdieu (1989) coloca:
“(...) a concentração do capital político nas mãos de um pequeno grupo é tanto
menos contrariada e, portanto mais provável, quanto mais desapossados de
instrumentos materiais e culturais necessários à participação ativa na política estão
os simples aderentes − sobretudo, o tempo livre e o capital cultural”. (idem,
1989:164).
Outra questão importante de ser frisada é que esse aprendizado seja ele formal ou
informal, pode levar um longo processo.
“É, em primeiro lugar, toda a aprendizagem necessária para adquirir o corpus de
saberes específicos (...) produzidos e acumulados pelo trabalho político dos
profissionais do presente e do passado ou das capacidades mais gerais tais como o
domínio de uma certa linguagem e de uma certa retórica política (...)” (Bourdieu,
1989:169).
38
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
28
Sobre o curso técnico de Unaí abordarei no capítulo 5
39
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
O período de acampamento durou até final de 1998, época em que o INCRA adquiriu
a fazenda e transformou em assentamento Água Quente, ou como também é conhecido
assentamento do sindicato. Foram assentadas 66 famílias. Uma característica que distinguia
dos outros assentamentos foi à adoção de uma área coletiva, situação que perdurou até 2002
mais ou menos,
40
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
“(...) na época que criou o assentamento cada família ganhou oito hectares de
terra, e ficou uma área coletiva muito grande, mas por problemas internos e
porque a terra era pouca, nós resolvemos dividir a terra e hoje cada família tem 28
hectares” (Sr. I, assentado no Água Quente, 2004).
Segundo o que foi apurado, a continuidade da área coletiva não foi possível porque as
famílias se queixaram de não conseguirem trabalhar de forma coletiva, pois esses não estavam
acostumados com esse tipo de forma de trabalho. E essa proposta tinha partido do sindicato
junto com o INCRA, mas por não terem costume de trabalhar dessa forma esse modelo não
deu certo. Além disso, eles acharam a área individual muito pequena para uma família. Por
isso negociaram com o INCRA até dividir toda área coletiva em lotes individuais para as
famílias residentes no assentamento.
Como foi dito em seções anteriores, o primeiro acampamento organizado pelo MST na
região foi na fazenda Boa Vista e conseqüentemente, lugar da primeira conquista dos
acampados, que aconteceu em dezembro de 1998. Na época, os acampados conseguiram fazer
um acordo com o proprietário da fazenda Boa Vista, o senhor Zico, que concordo com a
ocupação desde que as famílias agregadas na propriedade fossem incluídas na lista dos
possíveis assentados. As lideranças que mediavam às negociações acabaram concordando
com a proposta do proprietário e cerca de cinco famílias de agregados foram assentadas na
Boa Vista.
Com a ocupação da sede da fazenda Boa Vista, o INCRA acabou adquirindo a fazenda
junto com a fazenda Buriti da Espingarda, que somavam uma área de 4.380,0339 hectares,
para criar o assentamento Boa Vista, no qual foram assentadas 145 famílias. Aquelas famílias
que não foram contempladas com esses assentamentos ficaram de olho nas fazendas Serra
Feia e Vereda. Com a mobilização exercida por essas famílias acampadas, o INCRA acabou
comprando essas fazendas e transformando-as em assentamentos rurais.
Com a definição das famílias contempladas no assentamento Boa Vista e Água
Quente, os acampados que se tornaram excedentes na região, cerca 600 famílias, resolveram
ocupar a fazenda Serra Feia, atual assentamento Vereda I. Nessa época, foi realizada uma
reunião para escolher 70 famílias que iriam ocupá-la. Porém, mais de 80 famílias se
dispuseram a realizar a ocupação, e as demais famílias resolveram não participar por causa
dos pistoleiros que o arrendatário da fazenda havia contratado. Essas famílias, então,
continuaram acampadas esperando a fazenda Vereda, atual assentamento Vereda II.
O primeiro acampamento na fazenda Serra Feia foi montado na divisa das fazendas
Serra Feia e Buriti da Espingarda, na beira do rio Quente, local escolhido por causa do acesso
fácil à água e pela proximidade com a fazenda Buriti, que faria parte do assentamento Boa
Vista. O local era estratégico, pois facilitaria uma fuga rápida em caso de necessidade. Neste
local, foi construído um galpão comunitário, onde eram preparadas e realizadas as refeições,
até que todas as famílias construíssem seus barracos.
41
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
A partir desse episódio os próprios acampados elegeram uma comissão que ficou
responsável pelas negociações com o INCRA. E com a entrada no acampamento definitivo,
adotaram postura diferente dos acampamentos anteriores, não se dividindo em grupos, porém
mantendo uma coesão maior. Eram mais de oitenta famílias e o acampamento foi denominado
por eles de 25 de julho, que é o dia do trabalhador rural. Neste novo acampamento, as famílias
cozinharam, ou seja, preparam suas refeições, durante um mês e meio, de forma coletiva, até
que todos os “barracos” estivessem prontos. A segurança tinha sido reforçada, mas não
ocorreram muitos problemas. O único problema que os acampados enfrentaram foi à tentativa
29
Essas três lideranças regionais foram expulsas do MST acusadas de praticar a venda de lotes.
42
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
de invasão da fazenda por parte de indivíduos que não estavam acampados na área e tinham
vindo para região com o apoio das antigas lideranças do MST que tinham sido expulsas.
Porém, um confronte explícito não chegou a acontecer.
Após o rompimento definitivo com o MST, o passo seguinte foi cortar a fazenda na
corda30 para que a mesma fosse totalmente ocupada pelas famílias que moravam no
acampamento 25 de julho, evitando, dessa forma, a possível volta do MST. O trabalho foi
coordenado pelos próprios acampados e levou 11 dias para ser realizado, com média de cinco
a seis acampados que se revezavam na abertura das picadas. Apenas o coordenador da
medição foi quem acompanhou o trabalho desde o início. As mulheres ajudaram cozinhando e
levando a comida ao local de trabalho. A medição foi iniciada no fundo da fazenda, na divisa
com a fazenda Marajá, de propriedade do grupo ENCOL.
Os acampados se orientaram pela cerca da fazenda e pelo lado da fazenda Buriti
(assentamento Boa Vista), sendo os marcos de aroeira que estavam na divisa utilizados para a
orientação dos mesmos. A área total da fazenda é de 2.063,7804 ha (dois mil, sessenta e três
hectares e setenta e oito ares), fazendo divisa com os assentamentos Boa Vista, Água Quente
e com a Fazenda Marajá, ao sul.
“A medição surgiu para que nós entrássemos depressa nas chácaras para que a
fazenda fosse toda ocupada. O pessoal me deu para que eu medisse na corda. A
idéia de como seria veio por si mesmo na cabeça. Eu não tinha nem idéia de
quanto mil metros era um hectares, ai eu aprendi, eu tinha medido muito alqueire,
quadra, litro e tal coisa. Hectare eu não entendia, ai falaram que era dez mil
metros quadrados, ai eu disse, pode deixar comigo. Só perguntei quantos hectares
era para cada família. Eles falaram que seriam 20 hectares. Essa foi a minha
primeira fazenda que medi na corda. Já tinha medido outras coisas mas fazenda
não. Essa sabedoria acredito que veio de Deus porque agente ora muito e pede
sabedoria e inteligência para Deus” (Assentado responsável pela medição da
fazenda, 2001)31.
30
Cortar a fazenda na corda: é um termo comumente utilizado pelos assentados para demarcar e lotear a área
de uma fazenda, com vista a criar um assentamento. Com um arame liso de pouco mais de 50 metros e um
esquadro de 4X3 metros, os assentados demarcaram toda a fazenda em lotes de 1000 metros de lateral com
200 metros de fundos, totalizando 20 hectares para cada família.
31
Um fato que me chamou a atenção em relação a esse assentado foi o grande processo de migração que ele
impôs a até chegar ao assentamento. Natural de Goiás viveu em diversas regiões do país e até no exterior no
Iraque, trabalhando na construção de rodovias naquele país, pela empresa brasileira Andrade Gutierrez. Ele é
muito conhecido na região principalmente porque chegou ao assentamento de bicicleta vindo de Anápolis –
GO.
43
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Em recente pesquisa de campo, foi possível apurar que na época do sorteio houve
certos acordos para que as pessoas que tivessem familiares dentro do assentamento tivessem
prioridade de ficarem próximas uma das outras, pois isso facilitaria o processo de organização
das famílias no interior do assentamento.
Segundo Oliveira (2002), na época de assinatura dos contratos em julho de 2001 o
assentamento era constituído por famílias vindas de vários estados da federação, com
destaque para o estado de Minas Gerais com 27,14% e para alguns estados da região
Nordeste, que totalizam 40% dos moradores do assentamento. Dentre os estados da região
Nordeste, o Maranhão se destaca com 12,86%. Mas ressalta-se que 90% tinham como
domicilio anterior ao assentamento alguma cidade satélite de Brasília. Além disso, outra
característica importante do grupo do Vereda I é que 82,86% têm origem rural, mas viveram
na cidade por um período médio de 15 anos, antes de migrarem para o assentamento.
O nome do assentamento ficou definido como Vereda I pelo INCRA. Porém, de
acordo com os assentados, o INCRA não respeitou a vontade dos mesmos quanto à escolha do
nome. Eles gostariam que o assentamento fosse chamado de 25 de julho, data da entrada
definitiva na terra e, também, dia comemorativo do trabalhador rural. Atualmente, se referem
ao assentamento como assentados da fazenda Serra Feia e não Vereda I que, segundo eles, é
apenas um nome que serve para tratar com o INCRA.
No primeiro semestre de 2001 foi elaborado o Plano de Desenvolvimento do
Assentamento e a confirmação da demarcação da fazenda pelos topógrafos contratados pelo
INCRA. Foi respeitada a “medição na corda” realizada pelos assentados, com pequenas
alterações nas áreas consideradas pelo IBAMA como reserva permanente e legal.
Conforme ouvi dos assentados, depois de muita luta, no dia 20 de julho de 2001, os
mesmos assinaram os contratos e começaram a receber o Crédito Instalação, ou antigo
Crédito Apoio. Em 2001 o valor do crédito instalação era de R$ 1.400,00 (um mil e
quatrocentos reais) sendo R$ 400,00 (quatrocentos reais) destinados à compra de gêneros
alimentícios e R$ 1.000,00 (um mil reais) para a compra de ferramentas ou para o pagamento
de horas de trator para o plantio.
44
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
proprietário, a polícia foi acionada e retirou as famílias acampadas que foram para a beira da
estrada e continuaram negociando com o INCRA a compra da fazenda.
Em Janeiro de 2000, depois de muita insistência, as famílias entraram novamente na
fazenda e não saíram até a imissão de posse, data que aconteceu em fevereiro de 2000. Estas
famílias ficaram acampadas na entrada principal da fazenda, próxima à sede da propriedade,
onde ficavam acampados os principais interlocutores32 do acampamento. Esses por sua vez,
vendo a possibilidade de conseguir tirar proveito da situação começaram a usar a posição que
tinham de interlocutores com o INCRA e passaram a manipular os acampados. Esse artifício
utilizado por parte desses interlocutores, foi visto pelos acampados como abuso,
“Você vê, o pessoal [interlocutores] não deixou a gente plantar, a gente tinha
que trabalhar para eles porque se não eles ameaçavam tirar os nossos nomes da
relação de beneficiário, isso aqui, foi um horror, só depois que o doutor
Cardoso [superintendente do INCRA na época] veio que a coisa melhorou,
porque a gente pode plantar” (trecho de um relato dos assentados durante a
reunião de PDA em maio de 2001).
No entanto, apenas uma área comunitária foi destinada para o plantio de hortaliças,
mas não se obteve resultado, pois os acampados não concordaram com a escolha da área feita
por acampados que estavam ligados aos interlocutores do acampamento. No entanto, esses
acampados que ocupavam o papel de interlocutor plantaram uma área de milho. “Mas acabou
não dando certo porque o pessoal do acampamento não quis ajudar” (Sr. D, Vereda II,
2004). Essa situação mostra uma cisão interna entre os acampados, que trará conseqüências
futuras na organização desse assentamento.
Por volta de novembro de 2000, o próprio INCRA questionou a falta de plantio por
parte das famílias, e estas alegaram que não haviam plantado ainda porque quem estava
organizando o acampamento não havia permitido plantar. Isso fez com que algumas famílias
mudassem do acampamento, dirigindo-se para o interior da fazenda onde começaram a
plantar, com autorização do INCRA. Na avaliação dos técnicos do INCRA, todo processo de
desapropriação da fazenda e seleção dos assentados do Vereda II foi confuso e tumultuado.
Ademais, existiram denúncias, feitas pelos próprios acampados, de irregularidades de
acampados cadastrados que não deveriam ser beneficiários33. Essa situação fez com que a
Relação de Beneficiários (RB) demorasse meses para ser definida pelo INCRA, o que deu
margem para denúncias, sobretudo daqueles que se sentiam injustiçados. Dentre as denúncias,
a mais grave foi a de que um interlocutor estava submetendo vários acampados a trabalhos
forçados, o que foi motivo para o deslocamento do Superintendente da SR (28) da época até
ao acampamento, acompanhado da polícia federal, para apurar as denúncias e instaurar
inquérito criminal.
Esse evento ocorreu em março de 2001 e ficou conhecida na região como a expulsão
das almas sebosas do lugar34. A partir de então, aqueles acampados que estavam sendo
acusados de utilizar a RB como barganha tiveram que sair do acampamento, porque passaram
32
No caso especifico do Vereda II, julgo interlocutor o termo mais apropriado, pois por ter sido o último
acampamento da região de Pé de Serra, os acampados já não falavam tanto lideranças e sim quem fala com o
INCRA, quem é responsável pelo acampamento ao se referirem a aqueles que tinham ficado responsáveis por
negociar a Relação de Beneficiários (RB), a desapropriação e demarcação da fazenda junto ao INCRA.
33
Pois muitos eram funcionários públicos, comerciantes e empresários da região.
34
Almas sebosas foi o termo utilizado pelo superintendente do INCRA ao referir sobre aqueles acampados
interlocutores, que estavam manipulando os demais e que tinham sido acusados de utilizar o trabalho dos
acampados em troca da garantia da manutenção do nome destes na lista de benefeciários (RB) que seria
encaminhada ao INCRA.
45
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Em julho de 2001, os acampados fizeram uma mobilização maior para que o INCRA
realizasse a demarcação da fazenda. Logo em seguida, foi feito o trabalho topográfico de
demarcação da área, parcelando-a em 150 lotes de 12 hectares, [número de lotes na avaliação
dos técnicos do PDA, exagerado pelo tamanho da fazenda, além disso, 12 hectares eram
insuficientes para as famílias] além das áreas de reservas legal e permanente. Um mecanismo
encontrado para que as famílias ocupassem as parcelas foi através da mão na cumbuca, ou
seja, do sorteio, que foi vista pelos acampados como a maneira mais adequada para a
distribuição das chácaras. No entanto, algumas famílias se sentiram prejudicadas. Isso porque
já tinham feito plantio no local onde estavam acampados e saíram do local sem nenhuma
indenização.
46
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Essa época de sorteio das chácaras foi marcada por muita confusão, pois quem tinha
ido para a cidade voltaram para reivindicar o direito de posse de uma chácara. Nas palavras
deles, o superintende que já não era o mesmo, tinha garantido um lugar na fazenda
independente se estavam acampados ou não. Isso provocou muita revolta por parte dos que
ficaram acampados e estavam ficando de fora. Essa situação serviu para verificar a pouca
habilidade do INCRA para lidar com a situação. O resultado foi o aumento de algumas
parcelas na fazenda e a falta de infra-estrutura para o assentamento que estava começando,
além do deslocamento para outros assentamentos criados na região do entorno do DF. No
entanto, a maioria desses assentamentos, apesar de serem considerados região do entorno,
ficam muito mais distantes de Brasília.
Para os acampados e inclusive os técnicos do INCRA, essas confusões todas
envolvendo interlocutores, superintendente, denúncias, INCRA, causaram marcas profundas
no assentamento Vereda II, sobretudo no aspecto de organização.
“(...) aqui ninguém confia em ninguém, todo mundo tem medo de acontecer igual
na época de acampamento, que foi aquela cachorrada toda. E para piorar o
INCRA, não ta nem ai pra gente” (Assentado do Vereda II, 2006)
47
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
Durhan (1978) chama atenção que no caso de famílias de trabalhadores rurais sem
terras, freqüentemente a migração dessas famílias se dá em direção a agrupamentos de
parentes e amigos, pois a zanzação que essas famílias fazem está relacionada com os laços
pessoais e de solidariedade que unem diferentes famílias. Assim, segundo a autora, as famílias
chamam outras quando as condições são favoráveis, ou mudam-se para onde estão outras,
quando as condições não o são:
“Conservam-se, portanto as mesmas formas de relacionamento interpessoal. Com
laços de parentesco e compadrio se definem como relações virtuais, que são
mobilizadas na medida das possibilidades e necessidades, elas se mantêm mesmo
quando são destruídas as bases territoriais que garantiam um mínimo de
estabilidade aos bairros caboclos”. (idem, 1978:122).
Assim, se por um lado, os assentados se igualam na luta pela terra e por melhores
condições de vida, por outro, eles possuem características heterogêneas forjadas nas
trajetórias de vida que cada um passou individualmente, desde o momento da desagregação
em seus locais de origem até os assentamentos.
Nesse contexto, pode-se considerar a reforma agrária como uma estratégia de mudança
para esses atores sociais, podendo representar uma saída não só para minimizar as penúrias do
cotidiano, mas também para buscar um lugar social que se possa driblar a exclusão. Portanto,
os assentamentos rurais podem se tornarem o lugar, o território, o espaço onde poderão
ancorar seus valores culturais e estabelecer sua reprodução social. Além disso, os
assentamentos podem ser uma porta para alcançar outras possibilidades.
Para Silva (2003), a construção do novo espaço social incorpora traços do mundo
tradicional. Isso não significa simplesmente retornar ao passado, mas recriam-se valores do
passado e do presente formando uma simbiose. Assim, a vida cotidiana é formada por laços
de solidariedade com referência na tradição, no parentesco e na ajuda mútua.
Desta maneira os assentamentos tornam-se lugar para construção de novos elementos
e de outros rearranjos sociais. Nesse sentido, como diria Carvalho (1999) o assentamento
passa a ser uma encruzilhada social, onde novas formas de socialização, novos saberes serão
adquiridos, e muito dos saberes que foram se acumulados ao longo de suas trajetórias de vida,
poderão ser reproduzidos neste ambiente. A partir desse momento, passam a se encontrar
“face a face” nesse espaço físico, social, político, ambiental e econômico que irão reproduzir
seus meios de vida e de trabalho.
“O assentamento de Reforma Agrária é uma encruzilhada social onde a
interação social entre as pessoas e famílias de grupos socialmente heterogêneos
alcança considerável intensidade e novidades, se comparada com a rotina que o
cotidiano dessas pessoas e famílias lhes proporcionava” (idem, 1999:13).
48
____________O município de Padre Bernardo e a criação dos assentamentos na região Pé de Serra
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________________Tornar-se assentado
50
________________Tornar-se assentado
CAPÍTULO 2
TORNAR-SE ASSENTADO
“O preconceito dos sem-terra é igual, é igualzinho o do preto. Eu gosto muito duma linha que
a Maura [assentada na Boa Vista] defende. Já tem várias outras pessoas que estão na mesma
linha da Maura e é uma linha que eu também adotei ela pra mim, o quê que nós aqui na região
estamos fazendo? Estamos organizando em grupos de afinidades, você entendeu? E
produzindo, tentando colocar o produto no comércio, pra essa região aqui, esse multidão de
gente aqui ser reconhecido como agricultor familiar. Não como sem-terra, em vez de a gente
estar indo comprar verdura na cidade, comprar tudo na cidade a gente estar levando pra ver a
cidade, por exemplo, Padre Bernardo, pra comprar o produto daqui. Né. Porque Padre
Bernardo, por exemplo, as verduras, os verdurão, compra tudo na CEASA de Brasília. Então
daqui a um tempo quando as pessoas tiverem produto, aqui pra estar abastecendo ali, nós
vamos estar sendo reconhecido como agricultor e não como sem-terra” (Assentada do Vereda
I, 2006).
Este capítulo tem por objetivo refletir sobre os assentamentos como um espaço
composto de um conjunto de elementos que formam as diferentes relações presentes nos
assentamentos da região. É nesse sentido que elementos como vizinhança, moradia, cotidiano,
identidade, fofoca, são importantes para entender as múltiplas relações que são construídas
nesses assentamentos.
51
________________Tornar-se assentado
35
Esse assentamento foi criado no inicio de 2003, onde foram assentadas 68 famílias pelo programa Banco da
Terra, que foi implantado pela Lei Complementar nº. 93, de 1998, e pelo Decreto nº. 3.475, de 2000, que
possibilita a aquisição de imóvel rural, incluídos os custos da documentação de transferência da propriedade e
as despesas cartoriais de registro do contrato de financiamento e também a infra-estrutura comunitária. Assim,
o Banco da Terra foi criado com a proposta de oferecer crédito para a compra de terras e construção de infra-
estrutura básica para trabalhadores rurais. No entanto, existem sérias críticas sobre essa modalidade de
assentamento. Entre estas o Banco da Terra surge como uma forma de desmobilização do movimento, uma
vez que a fazenda comprada pelo Banco da Terra dificilmente será ocupada, tendo ainda como objetivo
desmobilizar e se opor aos movimentos sociais como o MST, CONTAG entre outros.
52
________________Tornar-se assentado
Para ocupação dos espaços dos assentamentos, as famílias optaram por parcelas
individuais. A única exceção no início foi o assentamento Água Quente, que tinha optado por
áreas coletivas, mas mesmo antes de saírem os créditos do PRONAF A em 2002, as famílias
resolveram passar para parcelas individuais, por acreditarem que trabalhar no coletivo era
muito difícil e não estavam acostumados com esse tipo de organização. E segundo narrativas
desses assentados, essa teria sido uma estratégia adotada pelos interlocutores do acampamento
na época para conseguir sensibilizar o INCRA mais rápido.
A negação de um projeto coletivista de uso da terra por esses assentados me conduz a
pensar no estudo realizado por Pereira (2000) em assentamentos organizados pelo MST.
Nesse estudo, o autor aponta que os trabalhadores que rejeitam o modelo coletivista, o fazem
porque os ideais coletivistas não dão respostas aos problemas e interesses desses
trabalhadores; apesar de expressarem atitudes de amizade, solidariedade e união, os mesmos
não abririam mão da posse privada da terra. A idéia de posse privada da terra é muito comum
entre os assentados. Para eles, dizer que são proprietários de uma terra seria muito
importante, pois traria um status há muito almejado. Além disso, ser individual significaria
ser dono do seu próprio tempo.
Todavia, é preciso ressaltar que mesmo optando por parcelas individuais, em alguma
medida os assentados da região tentam experiências que envolvem valores de cunho coletivos
e dentre estas podemos citar amizade, solidariedade e união para desenvolverem determinados
projetos que necessitam da participação de um coletivo, ou seja, há que se considerar na
análise do coletivo presente um grupo social a partir de outras variáveis, que não apenas a
divisão de chácaras e relações de posse da terra.
Na configuração do espaço das chácaras, os 16 hectares em média foram divididos
entre moradia, terreiro, e em algumas residências é possível avistar a presença de pomar
próximo às casas, área de plantio e pastagem e uma área de reserva como foi acordado entre
assentados INCRA e IBAMA, a obrigatoriedade de deixar 20% das áreas em cada chácara
para as reservas legais e permanentes.
Além disso, nos assentamentos existem as áreas de reservas que são de
responsabilidade de toda a comunidade. Em relação a essas áreas não tenho a informação de
quantos hectares cada área ocupa dentro dos assentamentos. Também nos assentamentos
foram destinadas áreas para uso coletivo com objetivo de construir espaços de usos comuns
como igreja, galpão de reunião, campo de futebol, casa de farinha, entre outras. Essas áreas
geralmente têm em média o tamanho de uma chácara.
Antes da criação dos assentamentos nas cinco fazendas, apenas duas possuíam sede,
que eram as fazendas Boa Vista e a fazenda Vereda. A primeira virou escola municipal de
ensino fundamental, até a construção da escola definitiva, que aconteceu em 2003, próxima à
sede. Até a presente data, a sede da Fazenda era espaço destinado a reuniões dos assentados
da Boa Vista e alojamento para uma guarnição policial, que circula na região.
Na fazenda Vereda, a sede virou instalação da Escola Família Agrícola, abrigando sala
de aula e alojamento, além de uma biblioteca chamada Sala Verde, destinada a atender as
famílias dos assentamentos e os agricultores da região. Essa biblioteca foi inaugurada em
maio de 2006, a maior parte dos livros foi doada pelo Ministério do Meio Ambiente. Também
no assentamento Vereda II foi formada outra biblioteca na casa que antes era do caseiro da
fazenda, tal biblioteca foi financiada pelo Programa Arca das Letras36.
Durante o trabalho de campo os assentados ainda não tinham definido como
funcionaria a biblioteca da Sala Verde, mas o mais provável é que a administração da
biblioteca ficasse sob responsabilidade da direção da EFA.
36
O Programa de Bibliotecas Rurais Arca das Letras foi criado em 2003 pela Secretaria de Reordenamento
Agrário do Ministério do Desenvolvimento Agrário para incentivar a leitura e facilitar o acesso aos livros em
assentamentos, comunidades de agricultura familiar e de remanescentes de quilombos. (MDA, 2006).
53
________________Tornar-se assentado
Logo abaixo encontra-se a planta geral da região na visão de seis assentados dos
assentamentos Vereda I, Boa Vista e Vereda II. É importante ressaltar que os assentados
escolhidos para a confecção dessa planta foram aqueles que conheciam melhor a área dos
assentamentos.
54
________________Tornar-se assentado
Figura 2. Planta Geral da Região de Pé de Serra com a presença dos seis assentados*
Fonte: Pesquisa de campo, 2006. * O desenho final foi confeccionado pelo assentado Kleber do assentamento Vereda I
55
________________Tornar-se assentado
Os créditos para a construção das casas foram uma das principais reivindicações dos
assentados depois da conquista da terra. Durante o trabalho de elaboração do PDA nos
assentamentos Vereda I e II, a importância de conseguir dinheiro para construir as casas eram
falas recorrentes entre os entrevistados. Isso me conduz a refletir que a casa teria um papel
essencial na vida desses atores.
Nesse sentido, Bachelard (1978), aponta que a casa é um dos maiores poderes de
integração para os pensamentos, sonhos e lembranças do homem, pois sem a casa ele seria um
disperso.
“(...) A casa na vida do homem afasta contingências, multiplica seus conselhos de
continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem
através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o
primeiro mundo do ser humano (...) E sempre em nossos devaneios, a casa é um
grande berço (...). A vida começa bem; começa fechada, protegida, agasalhada no
seio da casa (...)” (idem, 1978:201).
A moradia também pode ser vista como um espaço de tradução das relações sociais
onde, através da forma e da utilização conferida aos seus espaços, podem-se identificar os
agentes sociais e seus valores em determinado período histórico. (Bachelard,1978).
Portanto, a moradia constitui uma das necessidades fundamentais do ser humano, um
primeiro mundo. Para Lemos (1989), a função básica de uma moradia é a chamada função
abrigo, sendo esta entendida como um invólucro seletivo e corretivo das manifestações
climáticas, enquanto oferece as mais variadas possibilidades de proteção. Porém, a simples
relação de cômodos numa moradia pouco exprime as questões referentes às funções da
habitação, tais como atividades ligadas ao lazer, ao repouso noturno e aos serviços em geral.
A enumeração destes espaços especializados pode ser a mesma para qualquer comunidade e
para qualquer família, independente das condições sociais.
Por ser uma das principais reivindicações dos assentados, as casas foram construídas
no primeiro ano depois da definição de quais famílias seriam assentadas. Os recursos para a
construção das casas vieram do Crédito Habitação37. Inicialmente, como foi abordado no
capítulo acampamento, as moradias eram feitas de armações de madeira, revestidas com
plásticos e folhas de buritis – uma palmeira comum na região.
No período da pesquisa, as casas eram de alvenaria com tijolos furados (25x20x10
cm), com telhados de duas águas cobertos por telhas de amianto, as portas e as janelas são de
metalon sem pintura e o chão de cimento grosso. Em sua maioria, as casas não foram
embolsadas por causa do valor baixo dos recursos. Na construção das casas foi utilizado
também material do lugar, tais, como madeira e pedras. De uma maneira geral, as casas foram
construídas próximas à entrada das chácaras e conseqüentemente mais perto das estradas de
acessos às casas, o que facilita a locomoção de seus moradores.
Para Marcelin (1999), ao construir uma casa os moradores consideram uma série de
fatores, como onde construir, qual o material a ser utilizado, com quem construir; isso pode
ser uma atividade que reúna a comunidade. Assim, construir acaba sendo uma decisão
coletiva que coloca em:
“Jogo negociações matrimoniais, organização ou reforço de um espaço físico no
qual exerce a experiência familiar, estratégias individuais, coletivas, recursos
econômicos e humanos” (idem, 1999:36).
37
Em 2002 o Crédito Habitação era de R$ 2.500,00 destinados à compra de material de construção e a
pagamento de mão-de-obra relativa à construção.
56
________________Tornar-se assentado
38
Houve variação entre tamanhos de planta sugerida pelo INCRA, nos assentamentos da região, mas em média o
tamanho da planta era de 31 m2. Um tamanho muito pequeno para as pretensões e necessidades das famílias ali
assentadas.
39
Na época em que os assentamentos não tinham luz, o rádio era o meio mais utilizado para saber as notícias do
mundo externo. “Eu gosto muito de ouvir a voz do Brasil, informa tudo que o governo esta fazendo” (Sr. Ad,
2004, Vereda II).
57
________________Tornar-se assentado
os espaços que me recebiam, local onde também realizei boa parte das conversas. Assim,
podemos apontar como a cozinha é um espaço importante na sociabilidade desses assentados.
Em todas as casas existem banheiros, uma exigência da Caixa Econômica Federal, que
financiou as construções e exigiu que todas as casas tivessem banheiro. No entanto, o que eu
pude perceber é que uma pequena parcela das famílias não utiliza o banheiro dentro da casa,
por acreditarem que um banheiro dentro da casa seria algo desagradável, por causa do cheiro
ou do constrangimento do usuário fazer as suas necessidades e algum morador sentir o cheiro.
A alternativa encontrada por eles foi construir fossa perto da casa ou até mesmo recorrer ao
mato para fazer as necessidades. O lixo em algumas residências é queimado em buraco
destinado a essa finalidade, em outras situações o lixo é jogado a céu aberto no meio da
chácara.
O quintal é o local onde se encontram vasilhames de todos os tipos, inclusive de
agrotóxico e óleo diesel, para o armazenamento de água; em algumas casas essas vasilhas
ficam postadas em baixo de um sistema de aproveitamento das águas das chuvas. É no quintal
que se encontram as pequenas criações que ficam soltas ou presas em chiqueiros ou
galinheiros construídos de madeira e revestidos de tela
Ainda no quintal, normalmente se planta alguma árvore de ciclo de vida menor, como
a bananeira e ou as pimenteiras. Em algumas casas os assentados plantam verduras destinadas
a tempero, como a cebolinha, em plataformas suspensas para evitar que os animais como
aves, porco ou bode, as comam. Mas esses roçadinhos não são muito comuns por causa da
escassez de água. Outro elemento que é encontrado em alguns quintais são os fornos de barros
para o cozimento de determinados alimentos. Assim, o quintal passa a ser uma extensão da
casa.
Além disso, na parte lateral ou de frente das casas é comum encontrar pequenos
jardins decorativos, vasos de flores que são cuidados principalmente pelas mulheres. Esse
jardim pra mim é uma benção deixa a casa mais bonita a gente se sente morando num lugar
melhor né! (Assentada do Boa Vista, 2006)
58
________________Tornar-se assentado
Tipo semelhante a essa configuração de casas também foi encontrada por Marcelin
(1999) ao estudar a linguagem da casa no recôncavo baiano. Nesse estudo, o autor classifica a
casa como um conjunto de relação entre ordem de natureza e ordem social, compondo um
conjunto formado por uma estrutura de micro-espaços que estariam ligados a outros pontos,
que envolveriam circuito social fundamental do bairro que ele estudou.
Em relação à variação do tamanho das casas, ela estaria relacionada à limitação do
valor do crédito; aqueles que tiveram ajuda de familiares ou que exerciam o oficio de
pedreiro, fizeram casas maiores ou mais sofisticadas, já aqueles que não tiveram ajuda externa
tiveram que seguir quase a planta sugerida. No caso de quem era pedreiro não houve a
necessidade de pagar pela mão-de-obra utilizada na construção e tiveram assentado que era
pedreiro trabalhou na construção das casas de outros assentados.
A luz começou a ser instalada nas casas dos assentamentos entre o final de 2005 e
primeiro semestre de 2006. Segundo as narrativas colhidas em campo, a chegada da luz só foi
possível graças ao programa do governo Federal, Luz para Todos40. Em muitas residências de
todos os assentamentos, ainda é grave o problema da falta de água, isso porque nem todas as
casas têm água encanada, apesar dos recursos para instalação da água terem sido destinados
entre os anos de 2002 e 2003. No capítulo cinco voltarei a essa questão.
A frase que dá título a essa seção foi uma frase muito comum que ouvi em campo em
diversas vezes que fui aos assentamentos. Geralmente, ela era acionada para se referir à
importância que o núcleo de vizinhança, ou seja, aquelas famílias que estariam próximas uma
40
"O governo federal iniciou em 2004 o desafio de acabar com a exclusão elétrica no país. É o programa LUZ
PARA TODOS, que tem o objetivo de levar energia elétrica para 10 milhões de pessoas do meio rural até
2008. O programa, coordenado pelo Ministério de Minas e Energia com participação da Eletrobrás e de suas
empresas controladas, atenderá uma população equivalente aos estados de Piauí, Mato Grosso do Sul,
Amazonas e do Distrito Federal" (MME, 2006).
59
________________Tornar-se assentado
das outras, sendo parentes ou não, teriam. Além disso, atribuem a boa convivência no
assentamento a uma boa relação com os vizinhos.
Como é a relação com os vizinhos?
“Eu mesmo, a minha relação com os vizinhos é muito boa, não só com eles, mas
com a comunidade toda do assentamento. Eu tenho um dom de conseguir
amizades muito fácil com as pessoas. Aí então os meus vizinhos aqui é uma
benção, porque a melhor coisa é você ter uma vizinhança boa, porque no aperto e
na necessidade os primeiros que a gente recorre são os vizinhos” (Sr. AD, 2004,
Vereda I).
“Os vizinhos da gente é como uma família quando a gente precisa, sempre ajuda e
também, sempre que eu posso, eu ajudo eles. (...) porque como você mesmo vê as
casas não são tão próximas, as que ficam mais próximas são de nossos vizinhos.
Se eu quiser falar com a minha sogra eu tenho que andar muito, então numa
emergência eu acabo recorrendo ao vizinho” (Sra. ML, 2004, Vereda II)
Nas narrativas acima, é possível perceber que existe uma preocupação em manter uma
boa relação com a vizinhança, porque em caso de necessidade são os primeiros que teriam
condições de ajudar, principalmente nos casos associados a problemas de saúde. Outro caso
que presenciei quando estava com os assentados do Vereda I foi de um garoto que cortou a
perna com o machado, mas a família não tinha dinheiro para levar o garoto ao hospital.
Rapidamente os assentados que estavam ali presente se dispuseram a realizar uma vaquinha41
para conseguir a quantia necessária para levar o garoto ao hospital e para comprar os
medicamentos.
Portanto, a rede de vizinhança construída é um elemento de integração que envolve
compensações e retribuições, características próprias de determinados grupos sociais. Além
disso, pude observar que existe uma grande circulação de empréstimos de bens, trocas de
serviços e outro tipo de ajuda mútua que contribuiria para:
“Aqui é muito comum, a gente ir ao vizinho pedir emprestado uma enxada, uma
foice até panela e quando eles precisam a gente também empresta, é assim que
funciona” (Sra. BT: 2006, Boa Vista)
“Eu empresto muito as minhas ferramentas, para o pessoal aqui, porque a gente
nunca sabe quando vai precisar da ajuda dos outros, né?” (Sr. At, 2006, Vereda I)
Essa relação de vizinhança, segundo Vianna (1988), é uma relação social considerada
essencial, porque os vizinhos participam de diversas atividades como troca de bens e troca de
dias, que auxiliam não só na realização dos trabalhos, mas nas diversas formas de
sociabilidade.
Nas narrativas acima é possível perceber que é mais interessante disponibilizar algo
que o vizinho precise do que negar, pois funcionaria como um ciclo, e a negação ao
empréstimo significariam a quebra desse ciclo. Essa relação de empréstimo entre vizinhos
pode ser chamada de um ciclo de dádivas semelhantes às analisadas por Marcel Mauss (2003)
em sociedades tradicionais, quando o autor analisou a presença da dádiva como um valor que
estabelece conexões entre indivíduos e grupos.
Outra observação importante em relação à vizinhança está relacionada com a quase
inexistência de relações comerciais entre vizinhos ou parentes. Essa preocupação, segundo os
41
Uma arrecadação de dinheiro feita através de contribuições espontâneas pelos assentados.
60
________________Tornar-se assentado
No entanto, é preciso relativizar essa narrativa acima, porque a maioria dos assentados
entrevistados acha que a configuração existente hoje nos assentamentos é a mais correta, pois
daria mais privacidade, além da moradia ficar dentro do espaço de produção.
42
E importante ressaltar que a escolha pela opção por esse modelo de assentamento foi dos assentados. Nenhum
dos quatros assentamentos optou por agrovila. E em alguns casos é comum encontrar chácaras mais isoladas,
sem vizinhos por perto.
61
________________Tornar-se assentado
“Marcelo no ônibus, é o lugar que eu encontro o pessoal dos outros assentamentos, é lá que a
gente põe a conversa em as coisas em dia, (...) o pessoal usa muito ônibus para fazer isso para
dar recados” (Sra, MD, Vereda I, 2006).
Esse costume já estava presente antes mesmo de terem vindo da cidade e, apesar de
não terem ficado no mesmo assentamento, não se deixou de reproduzir tais costumes morando
em assentamentos distintos.
62
________________Tornar-se assentado
O interesse por prestar mais atenção nas observações feitas pelos assentados sobre a
fofoca surgiu a partir da leitura da obra de Elias e Scotson (2000) Os Estabelecidos e os
Outsiders. Nesse estudo, os autores demonstram como a fofoca pode representar, mesmo que
em parte, a estrutura social de uma comunidade enquanto elemento de identificação de dois
grupos, ou seja, os estabelecidos versus outsiders.
“(...) o grupo estabelecido atribuía aos seus membros características humanas
superiores; excluía todos os membros do outro grupo de contato social não
profissional com seus próprios; e o tabu em torno desses contatos era mantido
através de meios de controle social como a fofoca elogiosa no caso dos que o
observavam, e a ameaça de fofocas depreciativas contra os suspeitos de
transgressão” (idem, 2000:20).
63
________________Tornar-se assentado
Além disso, os autores apontam que a fofoca permite construir uma rede de intriga ou
de solidariedade que servirá de conexão entre estabelecidos e outsider, permitindo, no campo
simbólico, o mínimo de contato entre os diferentes, com o objetivo de se fortalecer como
pessoa integrante de um grupo, residente a mais ou menos tempo na comunidade. Dessa
forma, a fofoca também age como instrumento estigmatizador dentro da comunidade.
Nas observações de Fonseca (2000) sobre a fofoca em bairros periféricos de Porto
Alegre, fica claro que a fofoca seria um instrumento de definições e limites de grupo, que
serviria para informar sobre a reputação dos moradores do lugar através de relatos de fatos
reais ou imaginários sobre o comportamento alheio. E que poderia ser utilizada para
prejudicar ou enaltecer o ator alvo da fofoca perante o grupo. A fofoca vista dessa maneira,
pode ser acionada como instrumento de rivalidade e disputas entre indivíduos.
“A fofoca é uma força niveladora; é, sobretudo, o instrumento dos que se sentem
inferiores e que só podem realçar seus status rebaixando o dos outros” (Fonseca,
2000:49).
A frase que carrega essa seção era utilizada recorrentemente para dizer que um dos
principais motivos que os assentados não eram unidos se referia às fofocas que eram feitas
dentro dos assentamentos. Além disso, a desconfiança mútua contribui para essa pouca união.
A fofoca, segundo relatos, era tanto entre os assentados quanto entre técnicos do INCRA e
assentados.
“Rapaz, aqui a coisa é feia, eu vejo direto o pessoal ai roubando madeira da mata,
mas eu não vou denunciar no INCRA, não! Sabe por que, porque o pessoal do
INCRA é muito linguarudo. Teve um caso aqui no Vereda II que um assentado
quase matou o outro porque fulano do INCRA, quis saber porque o assentado não
estava ficando na chácara, e o assentado foi tirar satisfação com técnico, como ele
poderia saber que ele não estava ficando na chácara ai o cara do INCRA pegou e
contou que era um vizinho dele que tinha contado para ele, quase deu morte. Por
causa dessa fofoca do pessoal do INCRA” (Assentados do Vereda I, 2004).
64
________________Tornar-se assentado
apontados acima são dentro da lógica de representações sociais vista pela maioria dos
assentados como uma coisa desleal e imoral.
A exceção a esse julgamento seriam os casos em que as denúncias são feitas com
intuito do assentado de proteger sua família ou seu próprio patrimônio. Nesse sentido,
segundo o que o técnico responsável por receber as denúncias me relatou, entraria no rol
dessas denúncias o deslocamento de cercas, roubos, utilização indevida das áreas coletivas
como as áreas de reserva. Além disso, há também as denúncias referentes à ausência do
morador na chácara ou a venda desta.
É importante considerar que o estigma de ser fofoqueiro pode ser ruim para a
reputação de quem carrega, pois, nos termos dos nativos, ser fofoqueiro é ser uma pessoa que
não se deve confiar. Por isso, certos assuntos devem ser evitados perto das pessoas
consideradas fofoqueiras.
Uma observação importante a fazer sobre o fofoqueiro nos assentamentos é que
quando alguém quer espalhar um boato ou falar mal de alguém as primeiras pessoas
procuradas são os fofoqueiros oficiais do assentamento. Isso porque, por um lado, o
fofoqueiro é mais eficiente em espalhar a notícia e o portador da fofoca não ficaria tão mau
com os assentados, uma vez que o fofoqueiro nem sempre tem credibilidade com os mesmos.
Em relação ao estigma de ser fofoqueiro, dificilmente uma pessoa assume que o é.
Entretanto, esse estigma é maior se o indivíduo for um homem. Eis o trecho de um
depoimento típico, onde fofoca é coisa de mulherzinha.
P: Aqui tem muita fofoca?
R: [risos] tem um moçado, tem gente aqui que é conhecida como rádio peão da
notícia da vida de todo mundo.
P: E quem mais faz fofoca?
As mulheres, essas quando juntam, sai de tudo, tem uma aqui que a gente chama
de jornal do assentamento, sabe da vida de todo mundo! E fofoca não é coisa de
homem não! Porque homem que faz fofoca é mulherzinha, o homem que é
homem tem que falar na cara do sujeito. (Assentados do Vereda I, 2004)
Por outro lado, a fofoca de maneira mais positiva, pode servir de elemento importante,
dentro dos assentamentos, no que se refere à divulgação de informações e situações gerais de
interesses dos assentados que circulam entre os assentamentos. Essa observação ficou
evidente para mim quando os assentados se referiam ao ônibus como um espaço que as
pessoas põem a fofoca em dia e a onde as pessoas têm oportunidade de dar notícias de suas
vidas ou de seus parentes.
65
________________Tornar-se assentado
à necessidade dos pais de enviarem os filhos para cidade para que esses possam estudar em
escolas consideradas melhores. Por isso, é muito comum encontrar famílias que deixaram os
filhos na cidade para dar continuidade aos estudos. Em relação aos estudos, percebeu-se a
importância que os pais dão para os estudos dos filhos. Para eles seria inadmissível uma
criança fora da escola. Estudar hoje significa uma forma de alcançar um futuro melhor para
seus filhos.
Os pais entrevistados relataram que na época deles, as crianças iniciavam o trabalho na
roça muito cedo, por volta dos sete anos. E por isso deixavam de estudar para ajudar os pais
nas atividades da roça ou até mesmo para trabalhar para terceiros.
“Eu comecei a estudar com nove anos, só que fiquei só três meses na escola,
porque quem estudava era preguiçoso, era porque não queria trabalhar, e nós era
muito pobre e precisava de trabalhar para os outros para comer porque a gente não
tinha terra, a gente morava numa currutela que a prefeitura tinha dado, então a
gente trabalhava na terra dos outros (...)Eu trabalhava com cultura [milho,
mamona, feijão andu e feijão de catar])” (Assentado do Vereda I, 2004).
Para eles, o estudo naquela época não era tão útil como é hoje, era para filho de rico
que podia deixar de trabalhar para estudar, e aqueles que tiveram a oportunidade de estudar
eram tratados pelos de fora43 como preguiçosos. O saber era passado de pai para filho,
desenvolvendo atividades como plantar, cuidar da terra, pescar, caçar. Segundo os
entrevistados, eram os pais que ensinavam tudo o que eles precisavam saber sobre a terra, pois
era da terra que eles tiravam o sustento.
Na opinião dos pais desses jovens, sem estudo não se chegaria a lugar nenhum. E por
isso, faziam questão que seus filhos estivessem estudando, pois o estudo é visto como uma
alternativa de conseguir empregos ou empregos melhores essa realidade tinha sido vivenciada
por eles na cidade, onde nos últimos anos foi ficando mais difícil de arrumar emprego,
sobretudo pela falta de estudo e qualificação, principalmente a partir da década de 90, com as
transformações tecnológicas, sociais e econômicas que aconteceram em todos os setores da
economia. De acordo com Montali (2000), essas transformações ocorridas no mercado de
trabalho dos anos 90 já se faziam presentes na década de 80.
“Na última década eleva-se o nível de desemprego, cresce a informalização do
trabalho, ou seja, torna-se tendencialmente menor a parcela dos ocupados que se
inserem no mercado através de emprego regular e regulamentado, ocorre a
redução e o assalariamento” (idem, 2000:56).
43
O significado de “fora”, para os entrevistados, está relacionado com as pessoas que não fazem parte da
parentela.
66
________________Tornar-se assentado
Assim, foi possível perceber no discurso dos jovens que a cidade tem grandes
vantagens sobre o assentamento na medida em que pode oferecer uma gama mais
diversificada de diversão e maiores possibilidades de estudo e emprego.
Diante dessa constatação, resolvi elaborar uma dinâmica com cerca de 30 crianças e
adolescentes entre 12 e 15 anos, do ensino fundamental, da Escola da Boa Vista. Essas
crianças foram escolhidas aleatoriamente durante a minha visita á escola no início do ano
letivo de 2006.
Assim sendo, foi solicitado a elas que elaborassem uma redação que procurasse
abordar como era a vida nos assentamentos, contando o cotidiano, as brincadeiras e o que elas
mais gostavam de viver ali e do que elas menos gostavam. O resultado desses textos foi
dividido em pontos negativos e pontos positivos de viver no lugar; em síntese, se resumiram
aos seguintes aspectos:
A escola é vista como o principal ponto de socialização das crianças, porque como na
região o número de crianças e adolescentes é de certa forma pequeno, é na escola que as
crianças brincam mais e conhecem o cotidiano dos outros colegas. O número exato de criança
e/ou adolescente na região não foi possível de levantar precisamente porque sempre tem
alguma criança saindo ou chegando à região, trama da dinâmica vivida por esses atores. Mas
se basearmos em dados da escola municipal da Boa Vista44, escola essa em que a quase
totalidade de seus alunos são assentados, teríamos a seguinte tabela,
O papel da escola na vida desses atores pode ser visto por um lado, como um espaço
onde irão aprender o conhecimento formal e se preparar para a vida de adultos. Como gostam
de falar:
44
A escola surgiu em 1999, funcionando em salas improvisadas na antiga sede da fazenda Boa vista. O prédio da
escola só foi inaugurado em agosto de 2002, com dinheiro do FUNDEF.
67
________________Tornar-se assentado
“Aqui eu vou aprender a ler, fazer conta, brincar e mexer no computador para
quando eu crescer arrumar um bom emprego e ajudar a minha família”
(Adolescente, 15 anos do assentamento Boa Vista, 2006).
Por outro lado, e escola é vista como o espaço por excelência das brincadeiras, do
divertimento, do convívio com crianças dos outros assentamentos e um espaço de troca de
experiência. Normalmente é na escola que fazem a principal refeição e é aonde muitos comem
coisas diferentes. Geralmente as crianças passam um turno na escola, e fazem de duas a três
refeições. Para se chegar até a escola a prefeitura disponibiliza ônibus que leva e busca os
mesmos, pois apesar da escola ficar em um dos assentamentos, as distâncias percorridas são
muito grandes, sendo necessário o transporte escolar.
Outro aspecto apresentado como ponto positivo para esse público estaria relacionado à
liberdade que têm de ficar mais à vontade, de estar perto da natureza e de brincadeiras que
para esses adolescentes, antes de irem para os assentamentos, eram estranhas, como andar a
cavalo, nadar no rio; e até mesmo certos tipos de trabalho são encarados como uma forma de
diversão.
Em 2006 com a chegada da luz, as crianças acreditavam que a vida delas iria melhorar,
porque poderiam assistir TV e se sintonizar com o mundo. No trecho de uma redação uma
criança faz essa análise:
“O assentamento é um lugar legal bom para morar, para quem gosta um pouco de
paz. Com a chegada da energia, esta vai facilitar muito o trabalho das pessoas e
com luz ficou bem maravilhoso, a gente vai pode ver desenhos e novelas”
(Criança de 12 anos, do Vereda I, 2006).
Em relação à violência que vivenciaram na cidade, foi possível perceber que repetem o
discurso dos adultos ou até mesmo dos telejornais; como vieram das cidades satélites mais
violentas de Brasília, quase todos têm uma historia de violência para contar, como a morte de
um parente por assalto, ou um conhecido que virou traficante. Assim, viver no assentamento
significa para eles o distanciamento desses fatos ou episódios. Estar mais livres, não
precisarem ficar preso em casa.
“No assentamento, a gente tem mais liberdade, pode brincar, correr, não precisa
ficar cercado por grades. (...) tem dia que eu pego o cavalo e saio por esse mundo
todo ai, eu gosto muito de fazer isso [andar a cavalo]” (Criança, de 13 anos
Vereda I, 2006).
que ficam sem saber que novela está passando, que filme passou, é como se vivessem em um
mundo paralelo.
O ar de descontentamento é maior entre os adolescentes, que sentem falta das
paqueras, das festas da cidade, dos passeios na esplanada dos ministérios. É importante
ressaltar que esses adolescentes ou crianças não tinham qualquer vínculo com a terra até irem
morar num assentamento. No trecho de uma redação, um adolescente deixa bem claro o seu
descontentamento em morar ali.
“Eu odeio morar no assentamento, porque não tem lugar para ir. E só estou aqui
porque eu fui obrigada. Aqui não tem lazer e nem festa, não tem energia e a pior
coisa que tem e morar nesse lugar” (Adolescente, 14 anos Vereda II, 2006).
Além desses fatores abordados por esses atores, é importante destacar o medo de
serem reconhecidos como assentados, porque quase sempre as pessoas de fora dos
assentamentos associam os assentados a baderneiros ou a bandidos. Esse tipo de preconceito
os adolescentes vivenciaram principalmente quando foram estudar no município de Padre
Bernardo. Em seções futuras voltarei a tratar o tema de estigmatização dos jovens.
“No começo, quando a escola aqui não tinha todas as series e a minha filha foi
estudar na cidade, foi muito difícil porque o pessoal ficava insultando a minha
filha, a chamando de sem-terra, falava que quem morava aqui não era gente de
bem, foi ruim isso, a minha filha ficou até traumatizada com isso”. (Assentada, do
Vereda I, 2006).
Outro aspecto importante sobre a vida nos assentamentos diz respeito aos pais. Esses
jovens entrevistados sentem os problemas na hora dos pais conseguirem recursos para manter
a família, a falta de emprego, ou até mesmo quando eles precisam buscar condições para a
manutenção da família. Esses jovens que passam por isso, são os que mais acabam sentindo
porque passam a ficar boa parte do dia sozinhos em casa.
Mais recentemente uma preocupação que tem assolado os pais desses adolescentes é o
envolvimento de jovens com o crime. Existem relatos na região de traficantes aliciando esses
adolescentes para o tráfico e até mesmo para o acometimento de crimes menores. Essa
situação vem trazendo preocupação aos assentados da região. Por causa disso, os assentados
formaram uma comissão e cobraram providências às autoridades competentes. Depois dessa
cobrança e de um assassinato bárbaro45 na região, a Policia Militar disponibilizou para rondas
freqüentes uma viatura, com dois PM´s para circular sempre na região. Esse crime não foi o
primeiro na região, mas teria chocado os moradores da região pelo caráter de frieza como
aconteceu. Podemos observar no depoimento de uma assentada.
“Marcelo foi muito triste, foi uma barbaridade o pessoal pegou quebrou as pernas
da velhinha e bateu muito nele, querendo o dinheiro que ele tinha vendido umas
cabeças de gado uns dias antes. Quem era ele? Era aquele senhor que estava na
casa do V, naquele dia que você foi fazer a entrevista, lembra? Ele era assentado
na Boa Vista, aqui perto da Buriti da Espingarda. Pois é, mas quem fez já foi
preso, porque esse homem já tinha trabalhado para gente importante e o antigo
patrão dele, apertou a policia que prendeu o pessoal e eles estão tendo o que
merece!” (Assentada do Vereda I, 2006).
Além disso, um dos técnicos do INCRA relatou que se descobrirem quem são os
infratores e se esses forem reincidentes, quem será punido será o pai, ou seja, o pai ficará sem
45
Em abril de 2006 um casal de assentados foi assassinado a porretadas por cerca de quatro rapazes assentados
na região que estavam interessados em roubar o dinheiro da negociação da venda de gado, feito pela vítima.
69
________________Tornar-se assentado
a chácara. Dessa forma, o técnico acredita que, ameaçando o pai, o mesmo teria mais
responsabilidade nas ações dos filhos, e por isso coibiria esses maus feitos.
Assim, ao longo desta seção procurarei trazer um debate de quais os mecanismos que
os assentados constroem para se identificar, ou seja, as suas múltiplas identidades que os
relacionem em distintas fases de suas vidas: antes, durante e perspectivas para o que seria o
futuro da condição de assentado. Portanto, falar da busca de uma identidade por parte de
assentados abre um leque de indagações no campo do saber; além de ser um tema complexo e
provocante, leva-nos a refletir sobre as principais transformações que influenciam a formação
das identidades desses atores. É importante ressaltar que trato aqui da idéia de identidade
como algo longe de uma visão semelhante e sim de um olhar de múltiplas resoluções, que vão
contribuir para uma auto-identificação dos assentados estudados.
Uma característica importante dos assentados estudados é a heterogeneidade resultante
de histórias de vidas distintas entre si. Carvalho (1999) chama atenção que no assentamento
não estão presentes os assentados, mas sim atores de diferentes origens e formações que
70
________________Tornar-se assentado
seriam portadores de uma biografia com toda diversidade psicosocial e conhecimentos (idem,
1999:11).
O assentamento seria, portanto, um espaço social onde os atores estranhos entre si
começam a atuar uns sobre os outros. E essa atuação permite a construção de novas relações
sociais dinâmicas. Assim, portanto, no assentamento, esses atores passaram a se orientar em
novos processos de interação social que são construídos e compartilhados entre si,
contribuindo para o surgimento de novas identidades.
Essas possibilidades é que permitem a transformação contínua em relação às formas
pelas quais somos representados e nos representamos o que Hall (2000) definiu como o
sujeito pós-moderno ou o sujeito contemporâneo.
Nesse sentido, podemos pensar na questão que Bourdieu (1989) aponta em que todo
indivíduo traz consigo a história incorporada que se cristalizou nas mentes e nas coisas antes
dele vir ao mundo e, também, porque estaremos, para nos auto-referir como sujeitos, sempre
necessitando do outro para nos identificarmos.
Nos assentamentos da região, é possível refletir que num primeiro momento, na fase
de acampamento, os atores se identificavam como sem-terra, uma identidade construída num
espaço político e de reivindicações. No entanto, ao longo dos anos, depois da conquista da
terra, essa identidade é rejeitada e outras tipificações vão surgindo.
Nesse sentido, Heller (1999) menciona que o indivíduo contemporâneo tem a
possibilidade de exercer funções que não são mais determinadas por uma estratificação
hierárquica fechada; o indivíduo teria a possibilidade de definir sua posição na hierarquia
social, com mais “liberdade”. Assim, portanto, poderíamos argumentar que o indivíduo no
mundo contemporâneo não tem uma identidade fixa ou imutável, e que nossas identificações
são continuamente deslocadas e ou transformadas.
Já Berger e Luckmann (1985) colocam que a identidade é formada através de
processos sociais que, uma vez cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada
pelas relações sociais:
“A identidade é um fenômeno que deriva da dialética entre o indivíduo e a
sociedade. Os tipos de identidades, por outro lado, são produtos sociais tout court,
elementos relativamente estáveis da realidade social objetiva” (idem, 1985:230).
71
________________Tornar-se assentado
como sem-terras. Esta designação de sem-terra traria estigmas46 que esses indivíduos querem
esquecer. Essa realidade pode ser observada nas narrativas de dois assentados logo abaixo.
“A gente tá conversando muito bem, até alguém tocar assim, ah, você é sem-terra
não é verdade? Menino sabe onde é que eu estava que eu ouvi essas críticas? Lá
na Bahia. Lá todo mundo me conhece há mil anos, aí chega um infeliz daqui, aí ó
cara, lá na Bahia, num assentamento, ele chegou eu to lá com um pessoal, ele
chegou e disse, e aí? Tá tudo bem? Tá. Tá tudo bom. Ele disse, você também
como gado dos outros? (risos) Aí eu olhei pra ele e falei que não porque eu não
matava. Os outros é que matam e eu como, aí ele falou, não, eu tô falando porque
eu sei que sem-terra come gado dos outros. Ele foi embora e me deixou só. Eu
falei que história é essa que sem-terra come gado dos outros? Teve um que falou
isso, eu acho que ele perdeu é a cabeça. Perdeu os gados e perdeu a cabeça (risos).
Menino, ô coisa horrorosa! Até hoje eu não fui mais nem na casa dele” (Assentada
do Vereda I, 2006).
Nos relatos acima, percebemos que a idéia de serem identificados como sem-terra
aciona noções de que eles deveriam ser evitados, indesejável. Portanto, esse estigma de sem-
terra é visto como algo ruim, que de certa forma é alimentado pelos canais de comunicação,
que depõem contra o processo de reforma agrária no país. Essa realidade faz com que os
assentados recusem essa classificação para identificá-los.
Goffman (2004) já havia apontado que a sociedade institui um modelo de classificação
e de categorias para identificar os indivíduos de acordo com determinados atributos. Assim, a
sociedade determina um modelo ou um padrão externo o qual os grupos devem seguir, ou
seja, prevenindo as categorias, os atributos, as identidades sociais e as relações com o meio.
Podemos entender que os assentados da região, por pertencer a uma categoria de
trabalhadores que para entrarem na região tiveram que ocupar terras, sejam pouco aceitos
num local onde se predomina a grande propriedade ou até mesmo pela influência da imprensa,
que faz com que esses assentados sejam vistos como baderneiros ou perigosos. Essa realidade
tem levado os assentados a serem estigmatizados e convertidos em pessoas perigosas.
No entanto, a imagem que se cria pode não corresponder de fato à realidade, mas sim
aquilo que Goffman (2004) definiu como identidade social virtual, ou seja, é o caráter que
imputamos ao indivíduo, ou até mesmo a categoria à qual o indivíduo pertenceria a partir de
classificações. Ainda segundo o autor, o estigma é um atributo que produz um descrédito na
vida do indivíduo em situações extremas, sendo designada também como defeito, falha ou até
mesmo desvantagem em relação ao outro.
É importante ressaltar que, apesar do termo sem-terra na região ser encarado de
maneira geral como forma depreciativa e por isso os assentados rejeitariam serem
reconhecidos como tal, em outras regiões do país, ser sem-terra pode ser visto como uma
identidade importante para determinados grupos de assentados, traria reconhecimento pelas
lutas que tiveram de passar até conquistar a sua terra. Além de ser uma identidade política
46
Goffman (2004) aponta que os gregos já utilizavam o termo estigma para se referirem a sinais corporais com
os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre os estatus moral de quem os
apresentava. (idem, 2004:5)
72
________________Tornar-se assentado
forte e representativa. Isso constituiria aquilo que Goffman (2004) classifica como uma
linguagem de relações.
“Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem,
portanto ele não é em si mesmo, nem horroroso nem desonroso Por exemplo,
alguns cargos nos Estados Unidos obrigam seus ocupantes que não tenham a
educação universitária esperada a esconder isso; outros cargos, entretanto, podem
levar os que os ocupam e que possuem uma educação superior a manter isso em
segredo para não serem considerados fracassados ou estranhos. (idem, 2004:6)
Acredito que essa forma de ver o mundo por parte dos assentados na região estaria
relacionada à própria trajetória de vida deles. Por virem da capital Federal, estavam
acostumados com grandes manifestações que eram promovidas pelos movimentos sociais de
luta pela terra como o MST, MLST e outros na capital, quase sempre classificados pelos
órgãos de imprensa como algo ruim ou desordeiro; ser sem-terra seria depreciativo.
Essa imagem perpetuou-se principalmente quando foram rotulados de sem-terra. O
interessante é que isso acontece mesmo depois de terem passando por todo processo de
acampamento e depois de conseguirem a chácara. No entanto, grande parte dos assentados
passou a rejeitar a classificação de sem-terra. Isso aconteceria por um lado, por uma estratégia
adotada pelos assentados de que num primeiro momento aceitaram a identidade de sem-terra,
pois esta estava relacionada com a garantia de conseguir a chácara; findada essa etapa eles
acreditam não ser mais preciso ser confundidos com sem-terras. Podemos entender um pouco
dessa explicação na fala de uma assentada logo abaixo.
“Depois que eu ganhei a chácara eu não sou mais sem-terra, esse negócio de sem-
terra é para que esta na lona eu não!” (Assentada, Vereda I, 2004).
E por outra, o próprio caráter político da categoria sem-terra teria sido pouco
trabalhada e até mesmo discutida pelos assentados na fase de acampamento, como foi visto no
capítulo um. Além disso, vários problemas de ordem moral e política, causados por antigas
lideranças levaram os assentados a desacreditarem no caráter político da classificação de sem-
terra.
“E como sr. Viu a ocupação? A gente foi muito enganado pelo MST, porque eles
falaram que a fazenda estava negociada e não estava nada. Foram muito sujos, e
depois eles tinham umas maneiras de resolver as coisas que eu não concordo.
Como teve uma vez que eles roubaram um boi para fazer um churrasco. E isso eu
não concordo, porque baderna não dá certo, tem que ser organizado e esse negócio
de ficar fazendo bagunça não é comigo. Tem que fazer as coisas certas”.
(Assentado, Vereda I, 2004).
47
Elias e Scotson (2000) apontavam à idéia de estigma nesse estudo quando estudou uma comunidade com duas
divisões, onde um grupo se julgava indivíduos superiores, fazendo com que os indivíduos considerados
inferiores se sentissem carentes de virtudes e consequentemente humanamente inferiores.
73
________________Tornar-se assentado
“Já no início da vida, eles se viam confrontados com uma situação conflituosa,
quando começavam a intuir que as normas e valores implícitos nas experiências
intra-familiares não se coadunavam com os do mundo lá fora. As vozes e gestos
das pessoas ordeiras que os cercavam, inclusive da polícia, ensinavam-lhes desde
a infância quão pouco eles e seu familiares eram apreciados. Não havia como
extrair muito orgulho e um grande sentimento de orientação do fato de se saberem
idênticos e identificados com famílias pouco respeitadas pelos outros”. (Elias e
Scotson, 2000:143).
Procurando relativizar a situação dos jovens nos assentamentos, é preciso ressaltar que
o que se percebe é que os jovens, ao acompanharem os pais para região, sofreram um
processo de ruptura com seus projetos de vida. Além disso, perderam não só as suas raízes
espaciais, como também as relacionais. Esse processo é mais sentido entre os adolescentes do
que nas crianças, que já chegaram ali ainda pequenas e os impactos foram menores.
A proposta desta seção não foi a de chegar a conclusões ou fazer afirmações
verdadeiras e muito menos polarizar ou assumir os discursos dos atores ouvidos, mas sim
procurar interpretar e entender como esses assentados se colocam e se percebem dentro da
sociedade.
74
________________Tornar-se assentado
estratégia, que surgiu para que eles pudessem galgar outras condições, sociais e econômicas,
e, portanto, não por um engajamento político, estimulado pelos os moldes dos movimentos
sociais de luta pela terra em outras regiões do Brasil. Essa relação pode ser mais
compreendida, por exemplo, quando percebemos que esses assentados mantêm um forte
vínculo com a cidade. Questões dessa natureza será fruto de análises no próximo capítulo.
75
________________Organização, união e agrupamento.
CAPÍTULO 3
“É uma forma de unir, e a gente luta para isso convida o povo, por exemplo, a gente tem um
culto no N que vai muita gente mesmo, foi um culto maravilhoso. Aqui no Z mesmo tem
sempre muita gente, ai vai arrebanhando o povo para conseguir um caminho que compensa.
Porque o que a gente vê aqui é cachaça demais, é coisa errada de mais então a gente leva as
pessoas para o lado positivo. (...) As pessoas podem pedir um culto na casa e solicitar para o
pastor que o culto é feito. Nos cultos, são comuns as pessoas comentarem, a preocupação com
os irmãos que estão passando necessidades (não só da igreja, mas de toda a comunidade), ai a
gente arrecada algum alimento para aquela família necessitada. Nos cultos vem gente da
acidade também que tem algum parente ou amigo aqui no assentamento. A igreja é um ponto
de encontro das famílias do assentamento” (Membro da igreja Missão de Cristo Mundial,
assentamento Vereda I, 2006).
76
________________Organização, união e agrupamento.
“O ônibus leva notícia, traz notícia algumas coisas que a gente tem para vender ele leva,
algumas coisas que a gente compra ele traz. Então o ônibus é muito importante. Ele é o
correio é o mercado, é tudo aqui” (Assentado no Vereda II, 2006).
Ao entrar no ônibus comecei a perceber que ali era um espaço especial e que
mereceria uma atenção maior, porque a todo o momento chegavam assentados com sacos de
compras, mercadorias as mais diversas e recados entregues ao motorista, que por sua vez
também é assentado no assentamento Água Quente. Aquelas atitudes começaram a despertar a
minha atenção. Ao meu lado, sentou-se uma senhora do assentamento Vereda II, e foi logo
conversando comigo, contando um pouco da vida, e aquela cena se repetia por todo veículo.
Percebi que o ônibus faz parte da paisagem daquele lugar.
48
A Rodoferroviaria é o terminal de ônibus (rodoviária) que recebe os viajantes vindos dos diversos estados do
país.
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________________Organização, união e agrupamento.
Quando foi as 14h40 mais ou menos o ônibus partiu com destino à região de Pé de
Serra, uma viagem que durou cerca de três horas e meia, e foram percorridos 136 km e boa
parte do percurso feito em estradas de chão. Segundo o motorista, ele sempre atrasa alguns
minutinhos para esperar os possíveis retardatários e, como só tem um ônibus por dia para a
região, quem perder dificilmente chegará ao seu destino naquele dia.
Durante a viagem comecei a perceber que aquele ônibus era muito mais que um
veículo que transportava passageiros: era um ponto de integração muito importante entre os
assentados. No ônibus, percebi cartazes colocados convocando para reuniões e avisando sobre
a presença de médicos em determinados locais dos assentamentos.
Ao indagar à senhora que estava ao meu lado sobre o que significava o ônibus para
eles, ela me disse:
“O ônibus sem ele aqui as pessoas não iriam nem comer porque ele é tudo, teve
uma época que o ônibus quebrou o pessoal ficou com os pés e as mãos amarradas.
E no ônibus que eu encontro o pessoal dos outros assentamentos, porque aqui por
causa das distancias é muito difícil a gente encontrar o pessoal dos outros
assentamentos, (...) só se vê no ônibus e no ônibus é o lugar de encontro.”
(Assentada Vereda II, 2004).
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________________Organização, união e agrupamento.
Eu sou motorista do ônibus e assentado aqui no assentamento Água Quente, eu faço viagem
todo os dias, saio daqui do assentamento as 6:30 do assentamento até o supermercado Tático
na Ceilândia, são 136 km, são quatro horas de viagem. Quando são duas e meia da tarde eu
saio da frente do Tático na Ceilândia e venho para o assentamento. No domingo eu saio do
assentamento uma e meia da tarde e chego lá e volto, por volta das cinco e meia. Essa é a
minha rotina. Fico mais no ônibus que aqui no assentamento, aqui fica a minha família.
Bom eu saio daqui do assentamento Água Quente, passo aqui na Serra Feia (Vereda I), Boa
Vista, pelo lado do Buriti da espingarda, passo no assentamento Baixão do Banco da Terra,
Boa vista de novo e saio no Vereda II.
Hoje tem dois, mas só usa um. O outro só usa se um quebrar, ai usa o outro.
A passagem aqui o pessoal paga é R$ 10, 00, por enquanto. Mais tem muita gente reclamando
do preço. E como só tem esse ônibus o jeito é o pessoal pagar.
Quando é comida ou gênero alimentícios eu não cobro não, se for outra mercadoria é cobrado
R$ 2,00 até 50kg. Passou de 50 kg ai o preço é outro ai tem que combinar. Quando é gasolina
eu não trago não, só se o pessoal trazer escondido. Às vezes eu até intero do meu dinheiro,
quando pede para comprar alguma coisa e o dinheiro não dá eu intero e depois quando chega
aqui o pessoal me paga o que eu interei. Mas a obrigação da gente é trazer passageiro, a
mercadoria é por conta da gente. Porque o ônibus tem que trazer é passageiro.
Levo para alguém que fica no ponto lá na Ceilândia esperando, o pessoal já combina, tem
gente que sabe ó dia tal vou mandar mandioca com o motorista, ai quando eu chego lá o
pessoal já ta esperando e as vezes essa pessoa que esta esperando manda alguma coisa pra
família que ficou.
Tipo o que?
Ah! Recados, mantimentos como mandioca, abóbora, galinha e o que pessoal manda. Tem
gente que leva o que tem para vender aqui do assentamento no ônibus.
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________________Organização, união e agrupamento.
Tem gente que pede, fala que paga depois ou quando chegar na cidade o parente paga. Hoje
eu já sei quem pode e quem não pode vim fiado. Mas o dono da empresa não gosta de fazer
fiado, se o cara der o cano quem paga sou eu. Porque eu tenho que prestar contas.
Antes até eu dava de um assentamento pro outro, ou até mesmo até a estrada, mas o dono
cortou quem entrar no ônibus tem que pagar, mas quando é pertinho eu levo, não custa nada.
49
Malinowiski (1978) definiu o Kula como uma forma de comércio primitivo complexa de características
intertribal realizado por comunidades na região da Nova Guiné e Papua, formando um circuito fechado de
trocas. Os dois principais artigos de troca do Kula seriam: os braceletes de conchas (Mwali) e os colares
(Soulava). E a canoa seria um dos elos dos atos do Kula.
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________________Organização, união e agrupamento.
suficiente à gente precisa ir à cidade, para comprar é uma roupa a gente precisa ir
à cidade para comprar, arrumar trabalho tudo é na cidade”. (Assentados do Vereda
I e II, 2006).
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________________Organização, união e agrupamento.
até professores não viam com bons olhos os filhos dos assentados. Por isso os assentados
preferem o anonimato da cidade grande, lá ninguém saberia que eles são moradores de um
assentamento rural, portanto não seriam um sem-terra ou invasor.
Durante a pesquisa foi possível identificar que em todos os assentamentos da região,
apenas um morador adquiriu um imóvel na cidade de Padre Bernardo. Mesmo assim, essa
família é vista pelos demais como bobos, pois é em Brasília que estariam as oportunidades.
Outro dado importante é que, apesar de morarem na região há oito anos, grande parte dos
assentados entrevistados foram à cidade de Padre Bernardo pouco mais de duas vezes, mesmo
assim, para tratar de assuntos referentes aos empréstimos do PRONAF A no Banco do Brasil.
Outra dificuldade apontada por todos para terem uma vida mais intensa em Padre
Bernardo seria o transporte que praticamente não existe para a cidade. Como vimos o ônibus
faz um importante papel de ligação com o DF e é apontado como um mecanismo essencial na
vida deles, como bem diz um assentado.
“Teve uma vez que eu presencie um camarada levando uma caixa de quiabo para
vender em Brasília e quando eu votei no ônibus aquele camarada estava lá com
umas comprinhas. Que dizer ele foi levando a caixa de quiabo e voltou com as
comprinhas e por isso que eu acho que o ônibus é muito importante para nós.
Todo mundo depende da cidade todos nós e ônibus e quem leva para lá”
(Assentados do Vereda II, 2006)
“Com a marvada pinga é que me atrapaio / Eu entro na venda e já dou meu taio
Pego no copo e dali num saio / Ali mesmo bebo ali mesmo eu caio
Só prá carregar é que eu dou trabaio oi lá (...)”
(Marvada Pinga, Ochelsis Laureano / Raul Torres)
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________________Organização, união e agrupamento.
entrevistados que queria que a avenida fosse Canaã me relatou que não se sentia satisfeito em
morar numa rua que levava um nome de marca de cachaça, mas se era a vontade da maioria
ele não podia fazer nada, mas ele não reconhecia tal despropósito.
Já para os “cachaceiros”, a Avenida, ao ser chamada de Pirassununga, daria a eles uma
identidade maior com o lugar, uma vez que os principais “cachaceiros” do assentamento
Vereda I residiam na avenida e pela primeira vez a vontade deles estava prevalecendo. Os
demais moradores do assentamento acabaram achando graça do episódio, que era visto de
certa forma como uma disputa entre os assentados crentes, que moravam na avenida, e os
assentados “cachaceiros”.
A influência dos bares na vida dos assentados é tão grande que os entrevistados
relataram que ali seria o único espaço de diversão dos assentamentos, uma vez que naquela
época [2004], não existia luz e por isso não teriam condições de assistir TV, que era a
diversão do pobre.
Num levantamento feito por mim, em conjunto com os freqüentadores50 dos bares dos
assentamentos, conseguimos contabilizar em fevereiro de 2006, 13 estabelecimentos que
estavam divididos da seguinte forma. Ver (Tabela 7) logo abaixo.
50
Esse levantamento foi feito no Bar do Raimundo no assentamento Vereda I.
83
________________Organização, união e agrupamento.
Esse período em que saíram os créditos, de acordo com os assentados, foi um período
de muita fartura para todos, não só para os donos dos bares locais, como também para os
cabarés da cidade. Foi o momento em que puderam pagar bebidas a vontade, comprar e
gastar. Como diz um assentado tinha muito tempo que eu não via uma onça, referindo-se a
uma nota de R$ 50,00.
“Teve muita gente que gastou o dinheiro com farra, com bebida porque não estava
acostumado com o dinheiro, e quando viu aquela quantidade o povo ficou doido,
para gastar. Na época que saiu o PRONAF A, foi uma festa só”. (Sr. Z,
assentamento Vereda I, 2006).
É importante destacar que a utilização do dinheiro para essa finalidade era ilegal, mas
aqueles que o fizeram deram um jeito de conseguir burlar as normas do financiamento e
aplicar os recursos em outras coisas.
Além da bebida alcoólica, os bares comercializam gêneros de urgência, tanto para
higiene como para a alimentação, além de botijões de gás que são usados para cozinhar ou
para abastecerem carros que circulam nos assentamentos.
Uma observação que passei a perceber com as minhas idas ao assentamento é que o
assunto bar, nos últimos anos, ficava cada vez mais delicado em tocar com os seus
proprietários. Esse temor de certa forma tinha fundamento, porque circulava um boato na
região que os técnicos do INCRA já haviam alertado que aqueles estabelecimentos que
estivessem vendendo principalmente bebida alcoólica seriam fechados e os seus proprietários
seriam desligados do lotes. Por isso, na minha última ida a campo o assunto bar com os
proprietários era mais delicado, pois esses temiam ter que fechar os seus estabelecimentos ou
perder a morada porque na verdade eles não produziam em suas terras e, além disso, a
principal mercadoria que comercializavam eram a pinga. E, por via das dúvidas, querendo ou
não, eu era um estranho que fazia perguntas.
Outro problema que de uma maneira indireta estaria relacionado com os bares é o
alcoolismo. O que pude perceber já durante a minha pesquisa para o meu mestrado é que, nos
assentamentos pesquisados, o índice de pessoas alcoólatras, tanto homens quanto mulheres, é
muito alto Mas, infelizmente, não levantei uma estatística precisa porque é um assunto difícil
de tratar, um tabu que os assentados têm. Percebi que o alcoolismo era uma doença bastante
84
________________Organização, união e agrupamento.
presente entre os assentados. Não foram poucos os casos que deparei com assentados caídos
no mato dormindo, ou com assentados me pedindo para pagar uma pinga, porque precisavam
beber e não tinham dinheiro para sanar a vontade.
Ouvi relatos tristes, recheados de pessoas que tinham sido esfaceladas pelo álcool. Os
relatos em sua maioria caminhavam para direções parecidas: assentados que foram
abandonados pela família no assentamento por causa do alcoolismo, assentados que foram
para o acampamento porque a família não os queria por perto na cidade, assentados que não
tinham mais parentes e por isso tinham se apegado à pinga, assentados que não tinham o que
comer e bebiam para esquecer a fome ou a condição de vida que levavam.
No entanto, o que eu pude perceber é que aqueles que se encontravam no limiar da
indigência procuravam viver, parafraseando Comerford (2004), como uma família, pois
estavam sempre juntos e sempre resolvendo os problemas do cotidiano, contando com a ajuda
um do outro. Em trecho de um depoimento logo abaixo percebemos essa conotação.
E a família de vocês?
R: A família nossa somos nós que estamos juntos diretos, bebendo e sofrendo
juntos. Aqui quando um cai o outro ajuda, teve um dia desse que esse ai já ia
morrendo de tanto beber, ai foi preciso a gente corre pedir para o fulano levar ele
no hospital para se medicar, tai com cirrose, mas não quer parar, eu já falei para
ele parar, mas não para” (Sr. H, assentamento Vereda I, 2006).
Para isso citarei um grupo de cerca de cinco assentados do Vereda I que pude
acompanhar em vários momentos sóbrios e bêbados - o último estágio era o mais comum.
Essas pessoas foram fontes riquíssimas de informações, não sei se foi por causa do estado em
que se encontravam ou porque viram que eu não nutria preconceito em relação à condição
deles. Sobre isso percebi que quase sempre que algum assentado queria referir-se sobre o
grupo, procurava palavras pejorativas ou negativas, como os pinguços, os pés inchados os
preguiçosos, sem vergonha, dentre outras. No entanto, para mim esse grupo trouxe bastante
esclarecimento sobre alguns pontos que queria abordar e até então não conseguia com os
demais assentados.
Esse grupo se identifica basicamente entre si por beberem, como eles gostam de falar,
por semanas a fio. Geralmente tem um que está mais sóbrio e vai cuidando um do outro.
Dificilmente o grupo freqüenta os espaços públicos do assentamento a exceção do bar, que
também é freqüentado só na hora de comprar a pinga, porque a maioria gosta de beber em
casa, entre eles. Os assentados comentam que eles têm essa postura porque quando estão
sóbrios eles têm vergonha das condições em que ficam quando estão bêbados.
Sobre a vergonha La Taile (2002), aborda que o termo abrangeria um campo muito
diversificado e rico de significados como humilhação, pudor, embaraço e etc., mas o seu
conceito estaria associado principalmente a significados que são opostos, a honra/desonra.
Além disso, o autor aborda que a vergonha associada à moralidade envolve uma relação entre
o juízo do envergonhado e o juízo alheio, ou seja, seria alguma ação que praticamos e estaria
relacionada à censura feita por terceiros.
“Um problema essencial do sentimento de vergonha é o lugar do juízo alheio.
Uma forma comum de pensar este sentimento é afirmar que ele é simplesmente
desencadeado pela opinião de outrem e que, portanto, ele pertence ao domínio da
heteronomia, pois corresponderia à dimensão afetiva relacionada a um controle
externo” (idem, 17:2002).
Elias (1994) em seu estudo sobre o processo civilizador, entre meados do século XV
até o final do século XVIII, apontou que a vergonha seria uma forma que passará a
acompanhar os sentimentos humanos. Para isso, ele fez uma alusão sobre as maneiras de se
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________________Organização, união e agrupamento.
O grupo estudado por Bourdieu (1965) encara a honra como um fundamento ligado à
moral própria do indivíduo que é medido sempre pelo olhar dos outros. Nesse sentido é
preciso a existência dos outros para existir, isso porque a imagem que forma de si próprio não
pode ser diferente da imagem de si que lhe é devolvida pelos outros. “O homem é homem
pelos homens, só Deus, diz o provérbio, é Deus por si mesmo” (idem, 1965:164).
Pitt-Rivers (1971) ao estudar a reputação conclui que honra e vergonha seriam
sinônimos, porque a falta de vergonha seria algo desonrável. Além disso, a honra em seu
último nível seria o lugar de esclarecimento para os conflitos na estrutura social. Uma pessoa
de boa reputação teria os dois valores, assim elas se constituiriam como virtudes.
Numa noite fui convidado a beber com eles na casa deles, chegando lá fui muito bem
recebido, percebi que eles já estavam bastante embriagados, mas conversaram, cantaram e
contaram histórias sobre as suas vidas, sobra a família que já tiveram, sobre a vida no
acampamento e no assentamento e sobre a solidão que era viver no assentamento, sem
família, sem mulher e sem sexo. O depoimento de um integrante desse grupo ajuda a entender
como essa situação se da.
“Aqui no assentamento não tem nada, então tem que beber para passar o tempo.
(...). Aqui nós bebe por causa do desgosto, não tem mulher, não tem dinheiro, não
tem diversão, não tem nada só solidão”. (Sr.Z, assentamento Vereda I, 2006).
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________________Organização, união e agrupamento.
Foi nesse dia que eles me revelaram que entre eles não existia tempo ruim; que eles se
sentiam como irmãos e que um dava conselho para o outro para sair daquela vida. Mas
ninguém conseguia porque viver num assentamento sozinho era muito difícil e a solidão fazia
com que a pinga fosse à única companhia, apesar de saber que isso os levaria para uma outra
vida. Outra condição que pude perceber em relação a eles era a condição física em que se
encontravam, pálidos e bastante magros, efeitos de dias a fio bebendo e se alimentando mal.
Com os depoimentos dos assentados católicos, foi possível perceber que poucas
famílias costumavam ir à missa aos domingos, quando estavam em Brasília. Já no
assentamento a condição que inviabilizava essa ida constante era o fato de morarem distantes
da Igreja. Em outros depoimentos, os assentados entrevistados do Vereda II narraram que já
existia um local, um projeto de construir uma igreja católica na região, que seria erguida no
assentamento Vereda II; enquanto isso não acontecia, as novenas faziam o papel de
ritualização da fé católica nos assentamentos. É importante ressaltar que entre os assentados
católicos geralmente são as mulheres que procuram organizar os grupos de novena e organizar
as festas dos santos, como a folia do Divino Espírito Santo que será descrita ainda nesse
capítulo.
Foto: 19 – Igreja Assembléia de Deus, Foto: 20– Igreja Missão de Cristo Mundial,
assentamento Boa Vista. assentamento Vereda I.
51
Na região apesar de ter um número grande de católicos, ainda não existe igreja católica, nesse caso os
assentados realizam novenas em suas casas para suprir a necessidade das missas.
87
________________Organização, união e agrupamento.
Uma característica importante das igrejas evangélicas é que a maioria de seus pastores
são moradores dos assentamentos, tendo inclusive ocupado cargos na diretoria das
associações, como no caso do Vereda I em que o seu primeiro presidente era o pastor da
igreja. Que logo depois que saíram os créditos, abandonou a associação para cuidar dos
interesses da igreja.
Além do culto e “de cuidar das almas” dos fiéis, as igrejas têm um papel importante:
servem também como uma atividade de lazer e de comunhão entre aqueles que participam.
Geralmente, as atividades realizadas pelos grupos religiosos não estão voltadas para trabalhos
referentes à política ou à dinâmica de produção, mas sim para reuniões religiosas. No entanto,
é comum durante os cultos que os assentados discutam alguns problemas da comunidade. E
em determinado casos resolvem realizar campanhas para ajudar assentados com dificuldades,
arrecadando alimentos para estes, ou até mesmo para aconselhamentos para quem tenha
algum problema.
“Nos cultos, são comum as pessoas comentarem, a preocupação com os irmãos
que estão passando necessidades (não só da igreja, mas de toda a comunidade), ai
a gente arrecada algum alimento para aquela família necessitada. (Pastor no
Vereda I, 2006).
No caso do Vereda I, como a igreja Missão de Cristo é a que tem cultos freqüentes, foi
possível perceber a presença de assentados de outras religiões participando dos cultos. Para
um assentado essa participação é explicada porque ali seria um local para ouvir a palavra de
Deus, então a religião não importava, ali seria um local de estar bem com o sagrado.
Os cultos iniciam-se com um som geralmente de violão, com algum cântico e depois o
pastor agradece a presença de todos e pede a Deus saúde e proteção. Em seguida é lido um
trecho da bíblia e é feito o debate com a comunidade. Nesse momento, é comum que algum
assentado faça uma relação entre o que foi lido com algum problema do cotidiano que esteja
enfrentado.
Quando existe a presença de algum visitante esse é convidado a dar algum
testemunho. Além disso, aqueles assentados que tem algum problema como alcoolismo e
participam dos cultos são recebidos com carinhos e vistos como pessoas que estão tentando se
livrar do vício. E os membros da comunidade procuram incentivar a participação na igreja,
pois, na visão deles, só assim que eles ficariam longe do álcool.
Nesse primeiro aniversário da igreja foram realizadas diversas cerimônias, envolvendo
assentados da região e fiéis vindo da cidade da Ceilândia-DF, que acompanharam todo o
evento. No final das celebrações foi realizado um almoço comunitário na casa do pastor. Para
o almoço foram convidados todos assentados, participantes ou não da igreja. Segundo os
entrevistados esse tipo de evento seria importante para integração dos assentados e deveria
acontecer mais vezes.
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________________Organização, união e agrupamento.
Uma das características marcante das populações rurais é a fé em Deus e o nos santos.
No caso dos assentamentos estudados essa característica não é diferente. Diversos autores que
trabalham com o meio rural (Candido, 1987, Brandão, 1981, e outros) dão destaque para a
importância das festas religiosas dentro da organização social desses grupos.
Antonio Candido (1987) ao estudar comunidades caipiras no interior de São Paulo
demonstra que as festas são, ao lado da ajuda mútua, um dos elementos de definição da
solidariedade vicinal que liga os moradores a uma dada localidade, a um determinado espaço.
Essas atividades acontecem num complexo conjunto de relações que ultrapassam o espaço
familiar.
Assim, a própria localidade seria a unidade de referência da manifestação. Para
concretizá-las, entram em jogo formas sutis e bem desenvolvidas de cooperação vicinal,
consciência de grupo e coordenação de atividades. As festas, dessa maneira, envolveriam toda
a localidade e seria uma forma de integrá-la.
No município de Padre Bernardo estas festas religiosas são: a folia de Reis e do
Divino, festa do Muquém, as festas dos Santos como a da Padroeira da Cidade Nossa Senhora
da Abadia e na Igreja do Divino realiza-se, entre maio e junho, a tradicional quermesse, com
folias, novenas e missas dominicais.
Nos assentamentos da região, uma forma de expressar essa fé é através da
comemoração da folia do Divino Espírito Santo, que é marcada por um lado, pelo caráter
religioso como as novenas, as ladainhas ou o pagamento das promessas e por outro, pela festa
que é realizada na casa da festeira52 onde se reúnem vários assentados da região e convidados
que moram na cidade e vem para participar do evento. Na última festa em 2006 foram cerca
de 400 pessoas que participaram do festejo.
Segundo Prado (1977), as festas dos Santos representam a maneira mais forte de se
provocar o milagre do Santo. Geralmente os mais escolhidos para esse tipo de “contrato” são
Santo Antônio, São Benedito, São João e o Divino Espírito Santo.
A festa do Divino nos assentamentos da região começou há cerca de quatro anos,
quando uma assentada estava muito doente e com risco de morte, resolveu fazer uma
promessa ao Divino Espírito Santo, em que ela se dispunha a organizar a folia por sete anos
nos assentamentos da região. A partir dessa promessa, ela relatou que sua melhora foi
acontecendo e em pouco tempo saiu do hospital. Retornando ao assentamento ela resolveu
pagar a promessa.
“Eu fiz a promessa de organizar a folia e fazer a caminhada durante sete anos, mas
eu pretendo fazer a festa até morrer. E espero que os meus filhos quando eu
morrer continuem a festa. (...) há primeira festa do Divino que aconteceu aqui a
gente fez uma novena levantou a bandeira, mas não foi feita a caminhada, isso já
tem uns quatro anos. Mas a caminhada mesmo tem uns dois anos” (Festeira do
Assentamento Vereda II, 2006).
52
Festeira designação dada àquela pessoa que organizada, todos os preparativos para folia do Divino Espírito
Santo, seria o administrador da festa.
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________________Organização, união e agrupamento.
Vista. Segundo a festeira, a cada ano que passa mais casas são visitadas e a esperança dela é
que em breve todos os assentamentos tenham casas visitadas.
A festeira, para organizar a folia, conta com ajuda de outras famílias dos
assentamentos, sobretudo daquelas de orientação católica, que acreditam na fé do santo e por
isso fazem questão de ajudar na organização da folia, tanto no ponto de vista de logística
como em doações para que a festa possa acontecer.
Em seus estudos Brandão (1981) procura mostrar que a folia seria um grupo
consolidado de trabalho ritual que durante o período que antecede a festa arrecadaria
contribuições para a realização desta e, em troca, a folia distribui bênçãos, auxilia no
pagamento de suas promessas, atualiza a devoção ao Divino e contribui para a reunião de
pessoas em torno de lanches, almoço e do jantar e baile de encerramento da folia. Assim, a
folia seria construída como um empreendimento coletivo por parte dos assentados católicos, e
que envolveria vários outros assentados.
A rigor esse evento pode ser entendido, como classificou Mauss (2003), como um
grande sistema de prestações totais, nos quais assentados e famílias são inscritos a uma
corrente obrigatória em que bens de natureza econômica, social e religiosa são dados,
recebidos e retribuídos.
“(...), essas prestações e contraprestações se estabelecem de uma forma,
sobretudo voluntária, por meio de regalos, presentes embora elas sejam no
fundo rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerra privada ou pública.
Propusemos chamar tudo isso o sistema de prestações totais” (idem,
2003:191).
De acordo com Brandão (1981), a folia tem um papel importante dentro do espaço do
camponês. Para ele, a folia seria um espaço que é reconstruído simbolicamente, dentro de um
espaço de tempo, através de rituais que possibilitam a realização de trocas de bens e serviços
entre um grupo fixo de moradores e um grupo de foliões.
No caso aqui em questão a folia seguiria aqueles espaços do cotidiano da vida dos
assentados, como as casas, as estradas, os atalhos; a trajetória da folia é realizada a partir de
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________________Organização, união e agrupamento.
uma lista feita pela festeira que convida aquelas famílias que são devotas do Divino, ou até
mesmo algum devoto que entra em contato com a festeira, solicitando a presença da folia em
sua casa.
Na região, a folia sai da casa da festeira que fica no assentamento Vereda II. A jornada
inicia na alvorada rezando o terço e invocando saúde e proteção ao Divino Espírito Santo ou a
outros santos que os foliões são devotos. Isso ocorre num altar improvisado na casa da
festeira. É importante ressaltar que em todas as casas que a folia visita, também são feitos
altares improvisados que geralmente ficam na sala.
Casa da
festeira
Assentamento
Assentamento
Vereda II
Vereda II
Assentamento
Boa Vista
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________________Organização, união e agrupamento.
A jornada aqui pode ser compreendida como um conjunto de visitas rituais às casas
dos moradores dos assentamentos que tem devoção ao santo. Por causa das distâncias serem
muito grandes de uma casa a outra, maior parte do trajeto é feito de camionete e caminhão e
os foliões vão em cima desses carros.
Para Brandão (1981), a folia contribuiria para estabelecer um amplo ritual religioso
por onde circularia um conjunto de dádivas entre um grupo de assentados cujas casas ela
passa. Desta forma a folia pode ser vista como um conjunto de rituais onde os assentados se
relacionam entre si e com o Divino Espírito Santo num amplo sistema de trocas.
É importante ressaltar que na Folia de 2006 foram visitadas 16 casas incluindo a da
festeira e todas as casas visitadas eram de famílias da religião católica, envolvendo devotos
dos assentamentos Vereda II e Boa Vista. No entanto, durante a festa de encerramento que
acontece na casa da festeira, todos os moradores dos assentamentos da região são convidados,
católicos ou não, e os assentados de outras religiões acabam participando. No relato da
festeira logo abaixo essa posição fica mais bem explicitada,
“Aqui todo ano depois que hasteada a bandeira, e que a festa começa vem todo
mundo, católico, crente, macumbeiro, quem vier será bem recebido (...) eu acho
que esse ano deve vim umas 400 pessoas, que comem, dançam até o dia raiar”
(Festeira, assentamento Vereda II, 2006).
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________________Organização, união e agrupamento.
evangelização. E cada família da aquilo que pode e não é obrigado a dar, mais
praticamente todo mundo dá alguma coisa para o Divino” (Sr. JB. Assentamento
Boa Vista, 2006).
“Eu faço questão que a folia passe na minha casa, porque sempre da proteção e
benção, para toda a minha família. (...) o que eu puder fazer para que a festa
aconteça todos os anos eu vou fazer” (Sra. P. Assentamento Vereda II).
E antes de iniciar o baile todos vão para o redor da mesa de jantar, rezam e agradecem
ao Divino por mais um ano com saúde e fartura. Depois dessa celebração inicia-se o jantar e a
festa se encerra com um forró e um bingo que dura a noite toda. Durante a festa é possível
perceber assentados de todos os credos que se juntam e participam das comemorações dessa
festa, além da participação de moradores da cidade.
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________________Organização, união e agrupamento.
Com a definição de quais famílias seriam assentadas na região, foi necessário formar
as associações e constituir as diretorias de cada assentamento da região. Essa medida era uma
exigência do INCRA, que determinava que os assentados se organizassem segundo um
modelo específico de representação, ou seja, através das associações de assentados.
Essa medida visava evitar a pulverização das reivindicações e facilitaria na visão do
órgão a negociação com um grupo de representantes dos assentamentos constituídos
legalmente. Assim, o órgão evitava tratar reivindicações individuais ou de cunho pessoal.
Ademais, as associações tiveram o incentivo do superintende da SR (28) da época, que
explicou para os futuros assentados a necessidade de se fundar uma associação para facilitar a
relação com o INCRA, pois pouparia trabalho e tempo na visão dele.
Para Castro (1995), o reconhecimento por parte do órgão dessas associações seria uma
forma do Estado perceber os assentados como beneficiários e não como agentes. Desta forma,
o órgão acaba considerando estes como incapazes de definir quais os benefícios que eles
querem receber, e assim o Estado liberaria o mínimo e evitaria maiores conflitos.
“O PNRA propunha algo que parecia novo, baseado num suposto diálogo do
qual sugeria o atendimento às demandas dos assentados. No entanto, o diálogo
se efetiva concretamente, não de forma geral, mas através de canais que o
próprio INCRA define como legítimos e que geralmente são as associações e
em casos extremos, as lideranças dos movimentos.” (idem, 1995:141).
Diante dessa exigência legal por parte do INCRA, os assentados não tiveram
alternativas a não ser reunirem-se e definir uma diretoria para representar cada assentamento.
Depois de constituição das associações, o INCRA passou a atender apenas as reivindicações
dos representantes eleitos pelos assentados. Esses representantes passaram a ter um peso
grande nos assentamentos. Normalmente cada assentamento formou apenas uma chapa para
representar cada assentamento.
No entanto, é importante ressaltar que no caso do assentamento Vereda II houve uma
disputa entre dois grupos que pretendiam representar o assentamento: o primeiro, daqueles
acampados que tinham ficado quase todo o período na área; e o segundo, de um grupo que
reivindicava o direito de representar os demais por julgarem acampados excedentes53 nas
outras ocupações. Esse grupo formou a Associação dos Trabalhadores Rurais do Vereda II,
enquanto o primeiro formou a associação das famílias acampadas no Vereda II. Por causa
dessa disputa o assentamento rachou e duas associações foram formadas. Essa situação no
Vereda II levou desconfiança e desrespeito entre eles, ocasionando sérios conflitos de
convivência que os entrevistados atribuem a esse período conturbado de formação do
assentamento.
É importante ressaltar que nas reuniões que tive a oportunidade da acompanhar nos
quatro assentamentos, percebi que a participação das mulheres nas assembléias acontece de
forma bastante ativa na hora da tomada de decisões. Além disso, muitas mães vão para as
reuniões com os filhos menores no colo e participam intensamente. Essa participação,
segundo elas, é algo que existia desde o período de acampamento, pois as mesmas não
ficavam responsáveis só por atividades do lar, mas em muitos casos, em participar das
negociações com o INCRA.
53
Excedente é um termo muito comum utilizado pelos assentados e técnicos do INCRA para definir as pessoas
cadastradas como beneficiários da reforma agrária, que não foram contempladas num determinado
assentamento e que, pela menor pontuação obtida, ficaram na lista de espera para serem assentadas.
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________________Organização, união e agrupamento.
Segundo foi levantado nos quatros assentamentos foram realizadas reuniões para que o
estatuto fosse modificado e que se permitisse a inclusão e ou a supressão de parágrafos que
melhor atendesse os interesses dos assentados.
Nos primeiros anos, a união entre os assentados e a participação nas assembléias era
grande. Com o passar do tempo, as associações foram quase desmobilizadas. Para os
assentados a explicação estaria relacionada a dois fatores: o primeiro, por causa do período
que viveram no acampamento onde o hábito de fazer reuniões era freqüente; E por outro,
apontado como o mais importante, estava relacionado com a liberação dos créditos, tanto o
crédito habitação quanto o PRONAF A e PRONAF A/C, pois quem levava e trazia notícias
sobre a situação dos créditos eram os representantes das associações. Para Zimmermann
(1989), isso aconteceria porque com a efetivação no assentamento, os assentados acabavam
ficando desmobilizados.
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________________Organização, união e agrupamento.
Esse período de definição dos créditos é apontado como um dos mais tensos nas
assembléias, pois nos assentamentos pesquisados existiam assentados que queriam uma
assistência técnica que favorecesse a utilização dos créditos para outra finalidade que não
fosse aquela aplicada na propriedade. Para exemplificar essa situação, apresentarei os casos
dos assentamentos Vereda I e Vereda II que tive a oportunidade de acompanhar o desfecho
dessa história.
Para os assentados do Vereda I, um período de muito embate nas assembléias da
região foi na época de definição da assistência técnica: de um lado, existia um grupo apoiado
pela maioria dos membros da diretoria da associação, que queria que a assistência técnica
fosse feita por uma empresa particular (SINUELO), e do outro um grupo de assentados que
queriam que assistência fosse feita pela EMATER-DF.
Depois de muitas reuniões e embates o grupo que queria a empresa SINUELO acabou
ganhando, pois a empresa tinha prometido aos assentados que facilitaria a utilização dos
recursos conforme os assentados desejavam, ou seja, eles poderiam utilizar os recursos em
outros locais e não somente em seus projetos54. Atualmente os assentados, reconhecem que a
escolha da empresa particular foi um desastre, pois não houve acompanhamento; e essa
decisão só aconteceu porque os assentados foram influenciados por aqueles que queriam
facilidade para aplicar o dinheiro em outra coisa, principalmente àqueles que tinham interesse
de vender seus lotes ou os que não ficavam no assentamento.
No caso dos assentamentos estudados a organização econômica e da assistência
técnica foram as mais tensas, o que me leva a pensar no estudo de Silva (2001), que percebeu
que o momento de organização econômica dos assentamentos poderia refletir relações
conflituosas, que são vivenciadas historicamente no cotidiano de consolidação da organização
social e política dos assentamentos.
A EMATER por sua vez alegou que não poderia trabalhar com o assentamento
dividido: assistia a todos ou a nenhum. Isso porque, segundo um técnico da EMATER, os
trâmites com o INCRA seriam mais fáceis. Esse caso mostra que a decisão do órgão de tratar
os assentados como grupo coeso e que teriam que ter uma representação única mostra a
ineficácia desse modelo imposto de cima pra baixo, ou seja, da constituição das associações
sem uma prévia discussão do que isso significa.
Sobre essa questão os próprios assentados reconhecem o desconhecimento do que
seria associativismo ou como deveriam fazer para constituir uma associação. Mas, na época, a
exigência por parte do INCRA para que as associações fossem formadas fez com que os
assentados aceitassem essa regra sem nenhum questionamento.
“A única discussão que houve foi igual a eu te falei ninguém, entendia o que era
associação o que era um estatuto, como a associação é uma exigência do Incra
para facilitar a conversa com a comunidade, ai ele exige uma associação para se
organizar, ai quando tem problema o assentamento, associação que vai lá resolver.
E na época como o Incra tinha pressa para assentar ai, que conhecia um pouco que
era a Iv e o P foi lá e arrumou um estatuto e trouxe. (...) Então as pessoas aqui
quando montou essa associação aqui nem sabia o que era, foram no cartório
pegaram um estatuto, copiou o que achavam o que era bom para o assentamento, e
não discutiram com a gente, ninguém teve direito de discutir uma clausula se quer.
É tanto que até hoje o estatuto nosso é grande muita gente leu mas ninguém
entendeu o documento. Agora que começamos esse negócio de associativismo no
curso, que vimos que todo mundo dos outros assentamentos no curso tem
54
Segundo as normas do financiamento do PRONAF, cada assentado teria que apresentar um projeto, com
acompanhamento da assistência técnica. Por outro lado, essa ficaria responsável de acompanhar os projetos e
ganharia 10% do valor total dos projetos, ou seja, no caso dos assentamentos da região a empresa ganhou
cerca de R$ 1.200,00 por projeto.
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________________Organização, união e agrupamento.
55
Segundo os assentados o termo afinidade estaria relacionado a objetivos e a semelhanças em comuns.
56
As associações a que me refiram nessa seção são aquelas constituídas não com interesse de representação do
assentamento mais para a representação de grupos de assentados como a Associação dos Produtores da
agricultura familiar solidário do cerrado e APFSAC, entre outras.
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________________Organização, união e agrupamento.
A idéia dos grupos de afinidades surgiu no curso Técnico de Unaí,57 onde alguns
assentados da região eram alunos. A concepção dos grupos de afinidade seria organizar os
assentados para que produzissem de forma coletiva algumas culturas que fossem de
prioridade para a alimentação da família, como no caso do arroz.
Desta forma, alguns grupos foram se formando nos assentamentos da região e a
experiência mais bem sucedida foi no Vereda I, que formou um grupo de assentados para
plantar arroz e constituir uma casa de farinha. Para formação do grupo, todos os assentados
foram convidados; no entanto, a participação no início foi pequena, mas com o tempo chegou
a 20 famílias, em sua maioria daquelas famílias que ficam direto no assentamento. Outra
característica desse grupo é que em sua maioria os participantes são mulheres do
assentamento.
Na justificativa deles, por um lado, as mulheres gostariam de trabalhar mais no
coletivo do que os homens e por outro, as mulheres que participam do grupo de afinidade
construíram uma amizade durante o período de acampamento ou até mesmo anterior a essa
fase, pois muitas já foram vizinhas em cidades satélites de Brasília.
Para Carvalho (1999), é muito comum nos assentamentos rurais que as interações
entre grupos aconteçam considerando a socialização construída anteriormente à fase de
assentamento - como no caso do Vereda I, onde os assentados tinham construído na cidade as
relações sociais que se reproduziram no assentamento.
A partir da experiência do grupo de afinidade os assentados participaram de um
concurso promovido pela Comunidade Solidária, sagrando-se vencedores através de um
projeto que previa a utilização do prêmio em ações coletivas, coordenado pelo Grupo de
Trabalho e Apoio a Reforma Agrária da Universidade de Brasília. No capítulo cinco voltarei a
esse assunto.
O grupo de afinidade na época da pesquisa era visto como um instrumento que
proporcionava a união entre os assentados. Isso porque, depois dessa experiência do plantio e
da casa de farinha, os assentados passaram a buscar outras formas de integração, como a
realização de jogos de futebol e almoço coletivos, trazendo para participar dessas ações não só
as famílias que participam do grupo, mas até mesmo assentados dos outros assentamentos.
“O campo de futebol da Boa Vista foi uma boa idéia porque vem o pessoal jogar e
também vem à família assistir o campeonato é uma festa que vem todo mundo, o
campo foi uma boa”. (Assentado do Vereda I, 2006).
57
No capítulo cinco falarei do curso técnico de Unaí.
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________________Organização, união e agrupamento.
Nesse sentido, cito os estudos realizados por Zimmermann (1989), em que a autora
observou que uma das principais dificuldades encontradas pelos atores estudados por ela foi a
forma de definir a equivalência entre a força de trabalho empregada e a remuneração que os
indivíduos participantes dos grupos teriam direito. Para ela essa seria um das principais
motivos para que as famílias abandonassem esse tipo de organização.
De acordo com os participantes do grupo de afinidade a idéia de se organizar em
grupos foi despertada a partir da experiência com a elaboração dos PDA’s na região e com
algumas práticas realizadas durante o período de acampamento. Mas a orientação principal foi
a partir da inserção do Grupo de Trabalho de Reforma Agrária da UnB, que passou a
incentivar esse tipo de organização nos assentamentos da região. É importante ressaltar que
GT-UnB é o principal e talvez o único mediador que incentiva a prática de organização
coletiva nos assentamentos da região.
No caso da casa de farinha, as mulheres são as responsáveis por quase toda a
fabricação da farinha; a exceção seria arrancar a mandioca, que é considerado um trabalho
pesado e, assim, essa parte do trabalho é realizada pelos homens do grupo. A casa de farinha
tem sido considerada um espaço não só destinado à produção, mas também como um espaço
de discutir os problemas das famílias, isso porque as mulheres trabalham em grupos, como
gostam de dizer, estão sempre falando de seus problemas em casa e do assentamento.
“(...) Às vezes alguém está com problema em casa, de saúde, de alguma coisa. Aí
uma conversa com a outra. Aí é um momento de desabafar. De trocar idéias, e a
gente faz isso quando esta aqui na casa de farinha” (Assentadas do Vereda I,
2006).
Na fase da pesquisa, o grupo que trabalhava com a casa de farinha tinha começado a
tirar as primeiras farinhadas, termo usado pelos nativos para descrever o produto produzido. O
excedente da farinhada estava sendo comercializado com comerciantes da região e já existia
100
________________Organização, união e agrupamento.
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________________Organização, união e agrupamento.
quando retornei à região para iniciar essa pesquisa, percebi que essas áreas estavam sofrendo
intensa exploração, principalmente através da ação de carvoeiros.
Essa ação, de acordo com o que pude apurar só era possível porque alguns assentados
que faziam divisas com as áreas de reservas permitiam essa exploração. Naquela época esse
evento era um dos principais motivos de tensões entre os assentados, pois alguns carvoeiros e
até mesmo assentados que estavam explorando as áreas já haviam ameaçado de morte os
assentados que estavam ameaçando denunciar o fato. Eu mesmo tive a oportunidade de
presenciar um assentado ameaçando o outro de morte caso ele entrasse na sua área para retirar
madeira da mata sem sua autorização.
Entretanto, de acordo com os assentados, várias denúncias foram feitas,
principalmente por assentados que queriam preservar essas áreas por acreditar que sem a mata
seria difícil a manutenção das famílias na região. Alguns acreditavam até que as mudanças
climáticas que estavam acontecendo na região estavam associadas ao desmatamento e as
queimadas que estavam sendo feitas.
“Marcelo, depois que o pessoal começou desmatar isso aqui, o clima foi ficando
mais quente, a chuva passou a demorar vim, e tem mais teve uma praga de
morcegos que começou atacar os animais, depois que a mata começou a ser
explorada” (Assentado do Vereda I, 2004).
Esse desmatamento era visível, eu que conheci boa parte dessas áreas como mata
fechadas me surpreendi ao adentrar na mata e perceber o desmatamento e o grande número de
fornos de carvão. Uma estratégia adotada pelos carvoeiros era desmatar o miolo da mata e
deixar as bordas, desta forma numa visão pela periferia da mata não seria possível perceber o
estrago causado pela ação destes.
Mesmo sofrendo ameaças, os assentados continuaram denunciando as ações dos
carvoeiros, mas nada que efetivamente resolvesse o problema, até aquele momento, tinha sido
feito. Essas denúncias foram confirmadas pelo funcionário do INCRA responsável pelo
recebimento de tais ocorrências, que configuram como as mais comuns dentro de um
assentamento. Ainda segundo o funcionário do órgão, essas denúncias eram mais freqüentes
nos assentamentos Vereda I e Vereda II, áreas que ainda contavam com uma mata propícia
para exploração dos carvoeiros. De acordo com o funcionário do INCRA, logo assim que as
denúncias eram feitas, ele transferia a notificação para o IBAMA, que seria o órgão
responsável pela fiscalização e que atuava em parceria com o INCRA.
Esse evento das tensões provocadas pela exploração das áreas de reserva me remete a
perceber de que forma o conflito por disputas relacionadas ao espaço não apenas físico-
territorial, mas também simbólico está relacionado a elementos componentes de lógicas
classificatórias distintas. A relação com a natureza em sociedades como a camponesas é
marcada por uma exploração da terra e dos recursos naturais com práticas pertencentes a uma
gama de justificativas que não aquelas dos espaços institucionais, modernos e detentores de
um saber científico específico.
Da mesma forma, no interior de um mesmo grupo (principalmente um grupo
heterogêneo como os assentamentos compostos por famílias de migrantes) a forma de
apropriação do espaço e feito de forma diferenciada, o que tem ocasionado diversos conflitos
na região. Diante dessa situação foi possível identificar tipos de conflitos distintos que seriam
aqueles dos assentados com o INCRA/IBAMA e aquele entre assentados carvoeiros com
assentados não-carvoeiros.
Durante o trabalho de campo, os embates maiores caiam entre os assentados
carvoeiros versos os assentados não carvoeiros. A principal disputa se dava em preservar as
áreas de reserva e que apropriação daquele espaço seria importante para a manutenção do
assentamento. Já os que aderiram aos carvoeiros viam aquela área como um local para se tirar
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uma renda extra, uma vez que os assentamentos ainda não estavam produzindo o suficiente
para comercializar.
Essa divisão, certamente, nos diz bastante coisa acerca das disputas por interesse e
identifica de que forma essa variedade de percepções e representações podem nos auxiliar a
explicar os conflitos advindos nas disputas pelo uso do espaço físico.
Para Romano (1994), o entendimento desses mecanismos funcionaria como princípios
de orientação da conduta da visão de mundo dos atores, agregando interesses, demarcando e
delimitando grupos sociais nos assentamentos.
No ano de 2005, o IBAMA, juntamente com o INCRA, fez uma blitz na região e
vários assentados foram multados por terem desmatado as áreas de reservas ou por terem
permitido que utilizassem sua chácara como rota de saída dos carvoeiros.
Esse capítulo teve por objetivo apresentar um debate dos diferentes planos de relações
sociais que são construídos pelos assentados na região. Essas reflexões me conduzem a pensar
os assentamentos sem isolá-los de outros universos sociais. Sendo assim, é possível afirmar
que os assentamentos rurais estão em contínua relação com outros espaços. Isso porque da
maioria dos assentados não são da região, já chegaram ali com relações sociais pré-
constituídas e que mesmo estando em outros universos sociais - os assentamentos - essas
relações ainda continuam existindo. Prova disso é a relação que buscam na cidade, através dos
trabalhos temporários e em alguns casos até do trabalho permanente. Nesse caso o ônibus
seria um elemento importante dessa relação, pois como foi dito seria o principal elo entre
esses dois universos.
Outro elemento importante apontado é o processo de organização que esses assentados
buscam nos espaços da igreja, do bar, do campo de futebol e das festas religiosas, como um
meio de promover uma reunião entre vizinhos e contribuir para as atividades recreativas dos
assentados. Para Queiros (1973), eventos como as festas religiosas são importantes para
integração e união dos moradores de uma comunidade.
Ao longo da pesquisa outro ponto desse processo de organização que ficou claro foi o
desafio dos assentados em organizar suas entidades mais formais, reflexos que influenciaram
inclusive no processo de produção dos assentamentos, como foi no caso da escolha da
assistência técnica. No entanto, os assentados desenvolvem outras formas de ajuda mútua que
contribuem nas relações de trabalho e produção. Esses pontos, ou seja, as relações de trabalho
e a organização da produção nos assentamentos serão analisadas no próximo capítulo.
103
________________As relações de trabalho e a organização da produção
CAPÍTULO 4
AS RELAÇÕES DE TRABALHO E A ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO
“(...) a casa de pé, cada um de nós estaria também de pé, e que para manter a casa erguida era
preciso fortalecer o sentimento do dever, venerando os nossos laços de sangue, não nos
afastando da nossa porta, respondendo ao pai quando ele perguntasse, não escondendo nossos
olhos ao irmão que necessitasse deles, participando do trabalho da família, trazendo os frutos
para casa, ajudando a prover a mesa comum, e que dentro da austeridade do nosso modo de
vida sempre haveria lugar para muitas alegrias, a começar pelo cumprimento das tarefas que
nos fossem atribuídas, pois se condenava a um fardo terrível aquele que se subtraísse às
exigências sagradas do dever (...)”
104
________________As relações de trabalho e a organização da produção
De uma forma geral, os assentados, sobretudo aqueles que vivem e produzem nos
assentamentos reproduzem nesse espaço relações com a terra e o trabalho bem próximas
daquelas estabelecidas por Woortmanns (1997), ao estudar os sítios no sertão, que os autores
definiram como um espaço designado como local da vida e do trabalho do agricultor sertanejo
– o chão da morada, “um marco simbólico” acionado pelo morador ou pelo agregado para
legitimar sua presença na terra onde vive e trabalha.
Além disso, no seu sentido mais estrito, o vocábulo sítio possui três significados
diferentes que correspondem, como escrevem os autores, “a espaços simultaneamente físicos
e sociais” (idem:1997:248). Primeiramente, sítio refere-se ao conjunto “casa-quintal” e é um
espaço fundamentalmente feminino, da mãe da família.
Num segundo sentido, o vocábulo sítio evoca um conjunto de espaços articulados
entre si. Ele é a somatória "(...) dos seguintes espaços: o mato, a capoeira, o chão de roça
e/ou malhada, o pasto, a casa de farinha, a casa e o quintal" (Ellen Woortmann e Klass
Woortmann, 1997:27).
O mato é uma área de cobertura vegetal que nunca sofreu derrubada ou que, em caso
afirmativo, tenha ocorrido há muitas décadas. A capoeira é um espaço de vegetação aberto
onde há a presença de gramíneas, que pode servir de pastagem para o gado ou para plantar
uma roça. A organização do espaço do sítio obedece a uma lógica de preservação e de
exploração da área buscando-se o equilíbrio com a natureza.
Ao contrário da casa, esse é um espaço predominantemente masculino, lugar do
trabalho do pai da família, do “homem da casa”. Nesse contexto, o sítio pode ser entendido e
vivido como um momento fundamental no “ciclo evolutivo da família”. Pois, a rigor o sítio é
o lugar de uma família elementar ou nuclear (conjunto formado pelos pais e filhos). Ao longo
do tempo, contudo, os filhos deste casamento podem depois de velhos e já casados, obter um
espaço no território para construir sua própria casa (o seu chão da morada).
Quando há terras suficientes, o pai pode ceder algumas tarefas para que seus filhos
possam construir suas próprias roças. Quando o espaço é restrito, entretanto, eles são
obrigados a plantarem suas roças em terras alheias através do sistema de parcerias, por
arrendamento ou meação. O valor do arrendamento é pago de acordo com a produção e pode
variar do pagamento do quinto ou do quarto, conhecidos como “um pra cinco” ou “um pra
quatro”, respectivamente. É importante ressaltar que esses percentuais de pagamento da renda
são variáveis por produtos, por regiões e até mesmo de um sítio para o outro. E em alguns
casos, foi possível perceber que alguns produtores que criam gado abrem mão dessa
percentagem para ficarem com a palhada para o gado pastar. Outra forma de arrendamento se
dá quando o dono do terreno entra com a terra, sementes e insumos e o arrendatário entra com
a mão-de-obra da família. Nestes casos, o mais comum é que a produção seja dividida.
O terceiro sentido atribuído ao termo sítio é aquele referente a um conjunto de várias
famílias elementares unidas entre si e ao território por laços de vizinhança e auxílio mútuo.
Algumas famílias, sobretudo, no assentamento Vereda I que foram juntas para os
assentamentos, mesmo havendo sorteio das chácaras, acordaram que aqueles grupos
familiares que estavam presentes no acampamento deveriam ser beneficiados com parcelas
próximas uma das outras.
105
________________As relações de trabalho e a organização da produção
Essa relação com a terra e o espaço de produção similar ao sítio estabelecido pelos
Woortmanns (1997), na realidade aqui estudada, pode ser entendida a meu ver por duas
referências. A primeira é a sua relação com a terra, que se deu no período em que a maioria
morou no campo, principalmente em regiões do nordeste brasileiro onde essa relação com
esse tipo de configuração e ocupação do espaço é muito comum, na qual a base da produção
era familiar em pequena parcela de terras da família ou até mesmo arrendada. Esse tipo de
relação de certa maneira está sendo reproduzida no assentamento, uma vez que a maioria das
famílias que estão plantando utiliza a mão-de-obra familiar ou ajuda mútua (troca de dias), o
que será abordado mais a frente.
Em alguns casos, principalmente aqueles que compraram chácara recorrem à
utilização de mão-de-obra extra, nesse caso acabam contratando assentados da própria região.
Os mecanismos de contratação são de duas formas: a primeira é a seca (sem refeição). Neste
sistema, a diária varia de R$ 15,00 a 20,0058. A segunda é quando se fornece a refeição ou
(diária com merenda) está em R$ 12,00 a 15,00. O valor também pode variar de acordo com o
tipo de atividade desenvolvida, com o período do ano ou da necessidade de mão-de-obra
extra. Por exemplo, no plantio de arroz que é feito com matraca o dia de serviço normalmente
é mais remunerado porque somente alguns assentados dominam a técnica do uso da matraca.
A segunda relação está ligada com as necessidades alimentares que visavam assegurar
a alimentação direta e imediata da família. As principais culturas produzidas eram: milho,
feijão, arroz, abóbora e mandioca. O excedente da produção na medida do possível é
destinado à venda ou à troca em feiras ou atravessadores. No assentamento, essa situação é
observada onde a prioridade é plantar para o consumo familiar; em média são plantados cerca
de dois hectares por família, podendo variar de acordo com o tamanho da família e as
condições financeiras destas, sendo esta a situação mais preponderante.
Nas entrevistas realizadas com as mulheres, foi possível perceber que nos períodos de
chuva, quando se tem maior disponibilidade de água para produzir, o trabalho das mulheres é
mais intenso na roça. Além disso, é o período ideal para se realizarem mais tarefas. É
importante ressaltar que em algumas chácaras, de que a mulher é a proprietária, todo o
trabalho é realizado por ela com ajuda de filhos ou até mesmo através da utilização de algum
mecanismo de ajuda mútua.
“Aqui, eu trabalho quase que sozinha, quando eu preciso de um serviço mais
pesado eu pago um dia de serviço para o fulano ou eu entro no mutirão” (Sra.
Assentada no Vereda I, 2004).
Na rotina diária das mulheres que moram nos assentamentos é possível observar que
no período de chuvas se exige um tempo maior para a lavoura, isso porque segundo elas o
período do verão é muito quente e não tem muito que fazer, época que vão buscar trabalho na
cidade.
58
Valores pagos em julho de 2006
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________________As relações de trabalho e a organização da produção
Esse quadro expressa a dependência que os assentados têm das condições climáticas às
quais estão sujeitos. Diante desse contexto, Garcia Jr. (1989), em seu estudo no Nordeste,
aborda essa relação de dependência entre o calendário agrícola e as condições climáticas,
principalmente no período das chuvas, sendo o planejamento das atividades afetado
diretamente por essa relação.
No caso dos homens a maioria trabalha na roça no verão até as 14 horas porque o sol é
muito quente e no período de plantio eles aproveitam o dia ao máximo. Dessa forma a vida
dos assentados segue uma rotina diária, semanal e anual, muito próxima da rotina de trabalho
do caipira, observada por Candido (1987):
“O ritmo de trabalho ou a rotina de trabalho segue o ritmo de sua vida,
determinado pelo dia, que delimita a alternativa de esforço e repouso; pela
semana, medida pela ‘revolução da lua’, que suspende a faina por vinte e quatro
horas, regula a ocorrência das festas e o contato com as povoações; pelo ano, que
contém a evolução das sementes e das plantas. A vida do caipira é fechada sobre
si mesma, como a vida destas” (idem, 1987:123).
Nos assentamentos da região também foi possível observar alguns tipos de ajuda
mútua como a troca de dias ou o mutirão e, em alguns lugares, o batalhão59, que é uma prática
muito comum nesse tipo de agrupamento e que consiste em:
“A troca de dia é o seguinte: um vizinho ou parente vem para mim e trabalha na
minha roça hoje, e depois eu fico devendo o dia para ele, ai eu vou e trabalho na
59
Batalhão termo muito utilizado por assentados que vieram principalmente do sertão de Pernambuco.
107
________________As relações de trabalho e a organização da produção
roça dele depois é assim, sem dinheiro só é pago com o trabalho” (Assentado, Boa
Vista, 2006).
Essa relação do mutirão é apontada por diversos autores que estudam o campesinato
como uma forma de ajuda mútua. Dentre estes, podemos citar Antonio Candido (1987) que
classificou o mutirão em comunidades caipiras como uma das manifestações de solidariedade
mais importantes na sociedade caipira que, para ele,
“Consiste essencialmente na reunião de vizinhos, convocados por um deles, a fim
de ajudá-lo a efetuar determinado trabalho: derrubada, roçada, plantio, limpa,
colheita, malhação, construção de casa, fiação, etc.” (idem, 1987:68).
Além disso, o mutirão nas comunidades camponesas pode ser visto como ação
integradora, que através de obrigações subentendidas regenera os laços de solidariedade.
Ainda segundo a autora, o mutirão consiste em uma forma cooperativa de trabalho e é
convocado quando se trata da realização de benfeitorias de interesse coletivo (caminhos,
capelas etc.), ou quando tarefas têm de ser realizadas com rapidez, ultrapassando os limites do
trabalho doméstico (plantio, colheita, derrubadas, construção de casa etc.).
Assim sendo, a relação de vizinhança ou de parentesco é importante para as
comunidades dessa natureza, pois os vizinhos e parentes participam das diversas atividades do
cotidiano como troca de bens e troca de dias, que auxiliam não só na realização dos trabalhos,
mas nas diversas formas de sociabilidade. É importante ressaltar que esse tipo de ajuda mútua
só acontece com pessoas dos círculos de confiança do indivíduo, como podemos observar na
fala logo abaixo:
“Eu só troco dia de serviço com que eu confio, sei que não vai me deixar na mão
porque com desconhecido você nunca sabe o que ele pode fazer, então é melhor
trocar dia com que a gente conhece mais” (Assentado, no Água Quente 2006).
Para Weber (1999), esses laços de solidariedade existentes na comunidade podem ser
classificados como um “empréstimo de favor”, que se refere a empréstimos sem juros de
bens, de uso e de consumo. Seria um trabalho de favor não remunerado, ou prestação de
serviços auxiliares em caso de necessidades urgentes. Assim, ações dessa natureza, como o
mutirão, estão vinculadas a uma relação de contrato popular que Weber (1999) definiu como
ética popular, em que os membros da comunidade poderiam chegar a uma situação em que
precisariam da ajuda dos outros.
“Quando se realiza uma troca, rege o princípio: ‘entre irmãos não se regateia’, que
exclui o princípio de mercado’ racional para a fixação de preço” (idem, 1999:
247).
60
O autor (2003) procurou expressar sua formulação em cima de regras de sociabilidade fundamentadas na
reciprocidade característica de determinado tipo de sociedades chamadas de “primitivas”.
108
________________As relações de trabalho e a organização da produção
prestações totais (potlatch), que são feitas, sobretudo, de forma voluntária, por presentes,
regalos, embora sejam no fundo obrigatórias.
Segundo Mauss (2003), esse conjunto de valores contido no potlatch (honra, prestígio,
rivalidade, combate e destruição), representa um sistema de prestações totais do tipo
agonístico, que possui dois elementos essenciais propriamente ditos, que seria o elemento da
honra, do prestígio, de mana que confere a riqueza, e o da obrigação absoluta de retribuir
essas dádivas sob pena de perder o mana, a autoridade, o talismã e esta fonte de riqueza que é
a própria autoridade.
“Para compreender completamente a instituição da prestação total e do potlatch,
resta buscar explicação em outros dois momentos que são complementares destes;
pois a prestação total não implica somente a obrigação de retribuir os presentes
recebidos, mas supõem duas outras igualmente importantes: obrigação de dar, de
um lado, obrigação de receber, de outro. A teoria completa dessas três obrigações,
desses três temas do mesmo complexo, daria a explicação fundamental satisfatória
dessa forma de contrato entre clãs polinésio.” (Mauss, 2003: 200-201).
109
________________As relações de trabalho e a organização da produção
Foto: 31 – Roça de Toco, mandioca plantada Foto: 32 – Abacaxi plantado em área recém
em mata recém desmatada, nos primeiros desmatada assentamento Boa Vista.
anos do assentamento Vereda I.
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________________As relações de trabalho e a organização da produção
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________________As relações de trabalho e a organização da produção
Legenda:
Arroz: o arroz é o produto mais plantado de uma maneira geral nos assentamentos, chegando
a serem plantados dois hectares em média. A produção fica em torno de 20 sacos de 50 kg na
palha por hectares. Do preparo de solo que inicia-se em outubro mais ou menos (dependendo
das chuvas do cajueiro) o arroz será colhido de 100 a 120 dias depois. Utilizam no plantio
quando podem o adubo 4-14-8 e na cobertura a uréia. As pessoas utilizam cerca de um saco
de 50 kg de adubo nos plantios e na cobertura, mas o necessário seriam sete. O plantio é feito
manualmente através da matraca - nesse sistema de produção são necessários três dias de
serviço de um bom matraqueiro para plantar um hectare de arroz. Tem época de plantio que a
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________________As relações de trabalho e a organização da produção
secretaria de agricultura do Estado de Goiás doa a semente. O dia de serviço é de 08h às 11h e
de 13h às 17h. Em julho de 2006 um saco de arroz de 50 kg com palha estavam sendo
vendidos por R$ 20 a 22. Normalmente o proprietário da máquina (na região existem quatro
beneficiadora de arroz) que beneficia o arroz compra o excedente, que posteriormente é
vendido para a CONAB. Para beneficiar o produto o dono da máquina cobra R$ 4,00 por
saco, mais o farelo deste. No assentamento da Boa Vista existe um grupo de 35 assentados
que vende o arroz direto para a CONAB.
Abóboras vermelhas (ciclo de 70 dias) plantam junto com a lavoura, (arroz, milho, feijão). A
abóbora é plantada entre linhas de um metro de distância uma da outra, e não atrapalha a
lavoura. A abóbora serve para comer e para cuidar das criações como porco, vaca. Quem não
tem criação vende o excedente para quem tem.
113
________________As relações de trabalho e a organização da produção
mandioca de mesa e industrial. Esse banco será plantado em cinco hectares no assentamento
Vereda I, para a formação do banco a EMBRAPA vai doar as ramas.
“A gente vai trazer várias variedades para ver qual se adapta melhor a nossa terra
e região. Tem gente que planta a mandioca para melhorar o solo porque ela
facilita a aeração e facilita o manejo do solo. (Assentada do Vereda I, 2006)
Milho: época de plantio novembro (ciclo do milho quatro meses), planta para comer
(pamonha, milho verde, cural e mingau) e o excedente vai para as criações. Geralmente na
hora do plantio é feita uma oração, pedindo boa colheita. Tanto o plantio quanto a colheita são
feitos manualmente, geralmente através de troca de dias. A colheita é feita manualmente,
espiga por espiga; quebra-se o talo da planta para evitar que a água apodreça e deixa o milho
no roçado por alguns dias para ser colhido posteriormente. Quando a safra é boa chegam a
produzir duas espigas grandes por pé. Segundo os entrevistados normalmente se colocam
cinco sementes por cova que é aberta por enxada. Normalmente, grande parte do milho é
utilizada na alimentação das criações, uma parte é destinada ao plantio do ano seguinte e a
outra na alimentação da família, quando este é colhido verde, a forragem é destinada ao gado.
61
Segundo Cardoso et all (2004), os SAF´s é uma forma de cultivo múltiplo, onde pelo menos duas espécie de
planta se interagem biologicamente, em que uma é planta arbórea e se interagem com outra planta destinada a
produção agrícola ou pecuária.
114
________________As relações de trabalho e a organização da produção
Porco: Os porcos criados são os caipiras de pelagem preta e com a cara esticada. Constata-se
que o porco se alimenta de restos de comidas como lavagens, soros, sabugos e milho. Não
observei a utilização de ração. Em muitas casas que visitei os porcos são criados soltos nas
roças e nas proximidades das casas. O porco é engordado para as festas do final do ano. A
alimentação usada para o tratamento dos porcos são os restos de comida e forragem natural.
115
________________As relações de trabalho e a organização da produção
imagina o tanto que elas consomem. Até mesmo nós que compramos vacas por
R$ 750,00 e não conseguimos vender nem por R$ 300,00. Tivemos de desfazer de
algumas vacas, porque o pasto que a gente formou, olha como ele está? Ficou o
pasto pouco a gente não tinha a base de como seria para tantas cabeças de gado,
não tivemos uma instrução” (Assentada do Vereda I, 2004).
Aqueles que optaram pelo gado adquiriam poucas cabeças, por causa da limitação de
pastagem, e tinham como objetivo, sobretudo, o gado de corte e de leite. No caso da produção
de leite, essa é muito pequena, não só pelo tamanho do rebanho, mas também pela qualidade
do gado, que está mais para corte do que para leite, o mais comum é o gado pé duro.
Além da questão da produção, o gado é um elemento cultural importante para os
assentados, pois, na maioria dos casos, são apenas os homens que trabalham com o gado, o
que lhes confere determinado status social, além de constituir uma poupança garantida, pela
sua liquidez imediata.
A escolha do gado é explicada por ser um animal que dava status e que poderia servir
de poupança para uma possível emergência. Sobre essa questão, Heredia (1979) aponta que o
gado seria um elemento central em termos de acumulação e que possibilitaria o aumento da
renda da unidade de produção.
Para Brainer et all (2002), que estudaram o significado da bovinocultura para o
produtor rural do semi-árido nordestino, conclui-se que a bovinocultura serviria de atividade
de reserva de valor, na qual sempre existe animal reservado para a venda nos momentos de
dificuldade da família. O gado também teria o significado simbólico da atividade, que tanto
pode apresentar como status ou poder diante da sociedade local, quanto o elo afetivo com os
antepassados.
62
É importante ressaltar que aqui não me proponho aprofundar no tema da alimentação, pois já existe uma série
de pesquisadores trabalhando com essa temática.
116
________________As relações de trabalho e a organização da produção
Supermercado do Tatico63. As compras são levadas no ônibus como foi apontada em capítulos
anteriores.
As carnes estão presentes na dieta de algumas famílias nos finais de semana, nos
almoços de domingo ou em eventuais festas. As festas e os almoços coletivos também são
vistos como um ponto importante de integração, porque nesses almoços tanto o preparo de
comida quanto a realização das refeições são feitos em momentos conjunto.
Esse tipo de comunhão acontece quando tem alguma reunião coletiva, promovida por
algum mediador ou quando os assentados se reúnem para celebrar algum acontecimento,
como no caso da celebração de um ano da igreja Missão de Cristo no assentamento Vereda I,
em 2006, ou na festa do Divino da região. Logo abaixo um assentado explicou a importância
desses almoços coletivos como forma de atrair os assentados para participarem de reuniões ou
atividades coletivas.
“Dona Lea falou uma coisa que eu não tinha lembrado ainda, quando a gente
estava fazendo reuniões e tinha comida [almoço], as pessoas também iam, igual
na reunião da EFA, o pessoal ia porque tinha almoço, tinha bolo, ai tem também a
festa junina, que a gente fez duas vezes e também foi muito legal” (Assentado do
Vereda I, 2006).
atenderiam a necessidade dos assentados, porque a distância de algumas chácaras até a escola
são muito grande e isso acabaria inviabilizando a ida da mãe e da criança até o local de
vacinação. Essa explicação é apontada por um assentado da região.
“As crianças daqui muitas não tomam vacinas. Vem a campanha de vacina, mais
devido a distância aonde esta sendo o posto de vacinação, a pessoa não vai, falta
informação para essas pessoas aqui” (Assentado, do Água Quente, 2004).
No assentamento Vereda I, os assentados contaram quem em 2004 uma mãe deu a luz
a uma criança em casa no próprio assentamento. Isso só teria acontecido porque a mãe entrou
em trabalho de parto e a família não teria tido condições de levá-la ao hospital. Na minha
última ida a campo o posto de saúde já estava funcionando em horário parcial. Para os
assentados isso já seria considerada uma conquista importante para a melhoria nas condições
de vida das famílias que vivem na região.
118
________________As relações de trabalho e a organização da produção
Essa realidade fez com que os assentados precisassem de adoção de um padrão maior
de tecnologia como correção de solo, adubação e utilização de máquinas agrícolas, para
preparar a terra para produzir, além de uma infra-estrutura que desse suporte às necessidades
dos assentados. No entanto, o que pude perceber é que essa realidade acabou não acontecendo
como deveria.
Sobre essa questão, Leite et all (2004) mencionam que fatores como crédito, infra-
estrutura e informação, influenciariam de forma significativa nas possibilidades produtivas
nos assentamentos. Para os autores não bastaria apenas o acesso à terra e a contribuição da
mão-de-obra familiar nas atividades, seria necessário também condições de infra-estrutura que
amenizassem as dificuldades adicionais encontradas pelos assentados.
De um modo geral os assentados que tiveram condições nos primeiros anos com a
liberação dos créditos de fomento e PRONAF A, procuraram utilizar tratores no preparo do
solo e plantio. Apesar de não possuírem máquinas e equipamentos para produção, existe na
região disponibilidade de aluguel desses equipamentos. É importante ressaltar que alguns
desses equipamentos ou máquinas foram adquiridos por alguns assentados individualmente
com intuito de alugar para serviços nos assentamentos.
“Com o dinheiro do PRONAF A e com um outro que meu filho me emprestou eu
comprei esse trator para fazer o meu serviço e alugar para fazer o serviço dos
outros assentados aqui da região” (Assentado do Vereda I, 2004).
64
Um padrão tecnológico semi-tecnificado ao qual me refiro estaria relacionado à ausência de máquinas
agrícolas ou até mesmo a utilização de fertilizantes químicos.
119
________________As relações de trabalho e a organização da produção
A informação do número de assentados com tratores não foi possível de levantar com
precisão porque, segundo eles, sempre tem gente vindo e indo para a região. Sobre
rotatividade nos assentamentos abordarei no próximo capítulo. No entanto posso afirmar que
até presente data da pesquisa não existia nenhum equipamento dessa natureza adquirido de
forma coletiva.
Aqueles que não fizeram essa opção por falta de recurso ou por terem sido
contemplados com chácaras já trabalhadas, utilizam à tração animal para auxiliar na aração e
no plantio. Apesar dos solos do cerrado serem considerados ácidos e com baixa fertilidade,
poucos fizeram análise de solos e conseqüentemente não realizaram a calagem desses solos.
Outro problema em relação ao solo, que já é pobre, é o uso da queimada, que é utilizado para
a limpeza da área, antes do preparo do solo.
Os insumos mais utilizados são sementes híbridas, mudas compradas, agrotóxicos e
fertilizantes químicos como adubos de plantio e cobertura a base de nitrogênio. O uso de
adubos orgânicos ou compostagem é muito baixo ou quase inexistente. Atualmente alguns
assentados do Vereda I, através do incentivo de universidades e da Embrapa, tem tentado
formar um banco de sementes crioulas e ramas de mandioca, com intuito de reduzir os custos
de produção.
Na parte veterinária as vacinas e os vermífugos são os mais comprados, além de
alguns medicamentos para caprinocultura, que é encontrada em algumas chácaras da região.
A irrigação é adotada principalmente por aqueles assentados que tiveram suas chácaras
contempladas em áreas próximas a rios ou veredas e que se dispuseram a produzir
principalmente hortaliças, que proporcionariam um retorno quase que imediato dos
investimentos. Essa verdura é comercializada nas cidades satélites do Distrito Federal. No
entanto, esse grupo apesar de pequeno é um dos mais estruturados da região e está presente
principalmente nos assentamentos Vereda II e Boa Vista.
Em relação à infra-estrutura produtiva, pode-se dizer que as instalações que existem
até a presente data da pesquisa são ainda precárias ou parciais e foram construídas com
recursos dos próprios assentados. As mais comuns de serem encontradas são paiol e depósitos
rústicos, casa de farinha e em determinadas chácaras é possível encontrar piquetes para tratos
com gado, que seriam herança anterior à constituição dos assentamentos. Além disso, algumas
chácaras foram parcialmente cercadas, o que sempre causa problema porque o gado, como é
120
________________As relações de trabalho e a organização da produção
criado solto, acaba entrando nessas áreas em busca de alimento. Essa situação causa intrigas
entre dono da chácara e o dono do animal. Para usar uma expressão de um informante, o dono
tem que cercar a sua chácara porque se o animal do vizinho entrar é briga na certa.
Em relação à aplicação dos créditos e da própria assistência técnica pode-se dizer que
houve várias falhas na utilização desses recursos, como falta de acompanhamento, recurso
liberado fora da época do calendário agrícola e uma assistência técnica virtual. Nas seções
seguintes eu passo a discutir esses elementos.
Além do problema na escolha dos locais de instalação dos poços, outro problema foi a
forma de manutenção destes. Como os poços eram movidos a óleo diesel, quase sempre
faltava o produto e os assentados não tinham dinheiro para comprar o produto, o que acaba
sempre em interrupções no funcionamento dos poços. Essa realidade só mudou com a
instalação da energia elétrica no início de 2006 nos assentamentos da região, quando os poços
passaram a ser movidos a energia elétrica.
Em se tratando dos créditos individuais, o PRONAF A65 e o PRONAF A/C66, em 2004
quando realizei a primeira viagem de campo, em sua maioria já havia dois anos que os
65
A maioria dos créditos do PRONAF saiu entre 2002 e 2003 com valores médios de R$ 12.500,00.
66
O PRONAF A/C foi um crédito de custeio que saiu depois do PRONAF, para que os assentados produzissem
apenas a cultura da mandioca.
121
________________As relações de trabalho e a organização da produção
créditos tinham saído. E percebi que, de certa maneira, para a liberação desses recursos os
assentados não tiveram problemas, sendo contemplados dentro do prazo de orçamento
previsto.
Durante a pesquisa, a maioria dos assentados comentava que tinham perdido todo o
investimento feito, seja por problemas climáticos, ou por aplicação errada dos recursos; além
disso, culpavam a assistência técnica por ter sido ausente ou deficitária.
Passei então a observar e a conversar com os assentados para tentar entender o que
aconteceu. Aos poucos os relatos colhidos apresentavam certa unanimidade nos discursos dos
assentados, nos quais a maioria afirmava que não soube aplicar os recursos do crédito. Isso
porque na época não receberam orientação adequada, e a ânsia de ter o dinheiro fez com que
os assentados aplicassem os recursos de forma errada, ou mesmo o montante liberado era
insuficiente para aplicar numa terra considerada como ainda virgem.
“O dinheiro do PRONAF A, para realizar um sonho e o dinheiro saiu na época
errada. Porque quem chegou aqui é acampou, não tinha recursos pegou os
recursos que recebemos e o que fizemos? Aplicou porque quando chegou aqui a
terra não tinha nada, você tem que desbravar plantar tudo, cercar, comprar tudo,
então o dinheiro ficou todo enterrado aqui na terra. Ai falta dinheiro para
continuar, o trabalho porque hoje no braço as coisas não vão. Uma hora de trator
hoje é R$ 50,00. A cada ano que passa o pessoal vai ficando mais pobre. Então
que ta levando é quem tem condições ou tem mais condições”. (Assentado da Boa
Vista, 2004).
Além disso, em alguns casos o dinheiro foi desviado para outras finalidades, sendo
aplicados na compra de veículos, bebidas ou mesmo aplicado em outros bens na cidade. Mas
a proposição do uso do crédito para outros fins foi justificada pela autonomia para gastarem
com que quisessem, ou até mesmo pelo sonho dos assentados de possuírem um carro ou uma
moto. Nesse sentido, o dinheiro não estaria inserido numa lógica de uso racionalizado, como
sugere a aplicação dos créditos.
Outro elemento que justificaria a utilização dos recursos de outra forma está
relacionado com o atraso na liberação dos créditos, o que teria provocado o atraso no plantio,
por isso optaram em não utilizar esse para o plantio e sim para outros fins.
“Muita gente gastou o recurso de outra forma, porque os recursos eram para sair
numa determinada época, no período do plantio que a terra deve ser preparada,
mas não saíram. Os recursos acabaram saindo depois da época do plantio, o que
acabava inviabilizando a utilização do recurso no tempo adequado. [questão da
dependência do ciclo da chuva]. Ai o povo ficou indignado mesmo, porque tinha
passado da época do dinheiro sair e acabou pegando o dinheiro e metendo o pau.
(...) Eu quero plantar, por exemplo, feijão em novembro ai o dinheiro vem em
fevereiro, ai não tem jeito mais né? Passou da época. Acho que foi por isso que
aconteceram essas irregularidades, aqui na região”. (Assentado do Vereda II,
2006).
Segundo Leite et all (2004), o atraso na liberação dos créditos agrícolas é apontado
como um problema grave que comprometeria significativamente os resultados de produção de
um assentamento. Uma vez que as atividades da roça obedeceriam a um calendário agrícola
(ciclo de chuvas, clima, disponibilidade de mão-de-obra e etc.) próprio, a liberação dos
recursos deveria acompanhar esse calendário. Na região do entorno do Distrito Federal, esse
atraso na liberação dos créditos agrícola é apontado por mais de 60% dos assentados
entrevistado na pesquisa de Leite et all (2004).
122
________________As relações de trabalho e a organização da produção
A utilização dos recursos para outra finalidade foi justificada como um mecanismo
para servir de fortalecimento de outra atividade que o assentado tinha ou almejava. Aqui surge
um exemplo do campo de possibilidades; ou seja, só a partir da condição de assentados que
estes puderam conseguir um financiamento, mesmo que esse tenha sido desviado para
aplicação em outro ramo. Alguns assentados desviaram o crédito para investir em oficinas e
ou bares na cidade e até mesmo nos assentamentos, por acreditarem que esse seria o melhor
destino dos créditos conseguidos.
Esse tipo de explicação me faz refletir que a reforma agrária surge para essas pessoas
como um campo de possibilidades, como um up grade para um outro degrau socioeconômico.
E assim, a utilização dos recursos para outros fins não significaria para alguns assentados um
fracasso e sim uma possibilidade de ascensão.
Durante o trabalho de campo, os assentados não poupavam críticas ao INCRA e ao
próprio Banco do Brasil, que na visão deles não os orientaram e nem acompanharam de perto
a aplicação dos recursos. No caso do INCRA, durante os trabalhos de campo, foi levantado
que na SR (28) existia apenas uma funcionária responsável pela fiscalização dos créditos em
toda a área da superintendência. Para ela, seria impossível acompanhar a aplicação desses
recursos em todos os assentamentos do entorno. Por isso, ela agia por denúncia67 ou por
amostragem. O método da amostragem também era utilizado pelo Banco do Brasil para
verificar se os assentados estavam aplicando os recursos de acordo com os projetos. Nesse
caso, alguns assentados eram escolhidos e tinham as suas chácaras visitadas por técnico do
banco.
No início do ano de 2006 já se aproximava o vencimento das primeiras parcelas dos
créditos e para evitar problemas maiores os assentados estavam buscando através de uma
negociação com o Banco do Brasil, uma forma de negociar a dívida. E para isso, as
associações estavam se organizando em comissões e se reunindo com os representantes do
banco para tentar uma alternativa.
No entanto, existem assentados que estão esperando que o governo perdoe a dívida.
Alguns se arrependem de ter endividado, e avaliam que aqueles que não pegaram
empréstimos estão em melhores condições que os que pegaram, pois não estariam devendo ao
banco.
Em relação à assistência técnica, posso afirmar, com pequena margem de erro, que foi
a empresa particular SINUELO68 Planejamento técnico LTDA, da cidade de Formosa-GO,
que assistiu todos os assentados da região. A escolha dessa empresa, como foi mostrado no
capítulo anterior, deveu-se principalmente à facilidade que essa daria, caso algum assentado
quisesse utilizar o crédito para outra finalidade.
A empresa, para acompanhar os assentados, ganharia um percentual de 10% do valor
dos créditos liberados de cada assentado, em contrapartida ela ficaria responsável pela
elaboração dos projetos, liberação de laudos para o banco liberar o dinheiro e o
acompanhamento da execução desses projetos.
67
As denúncias eram feitas pelos próprios assentados que denunciavam algum desafeto que estivesse desviando
os créditos.
68
De acordo com uma normatização do INCRA, era necessário que a empresa para prestar assistência técnica
deveria estar cadastrada na superintendência.
123
________________As relações de trabalho e a organização da produção
Assentado (1): tinha uns que queriam a SINUELO por causa, da possibilidade de pegar o
dinheiro e teve gente que queria a EMATER. Mas no final acabou ganhando mesmo a
SINUELO.
A SINUELO então criou uma forma para que vocês pegassem o dinheiro vivo, certo?
Assentado (2): Ela facilitou que a gente pegasse o dinheiro, mas o assentado que decidiu
como queria gastar. [ou seja, no projeto ou desviado]
Que dizer que a SINUELO facilitou que as pessoas pegassem o dinheiro, certo?
Assentada (1): Isso, ela deu o dinheiro coisa que a EMATER não ia fazer, a EMATER ia
acompanhar o projeto e a pessoa. E a SINUELO não! Ela facilitou para que cada um pegasse
o seu dinheiro, teve gente que colocava no nome de outro, com a maior facilidade e quem não
estava sabendo bem o que ia fazer? Como diz a L, às vezes passando necessidades, com tanta
coisa para fazer ele aplicou da melhor forma uns aplicou e outros fizeram o que eles quiseram.
Só que assim, o dinheiro entrou, mas, ela não teve compromisso com essa comunidade, ela
vem aqui como fiscal e não como assistência, depois veio para ver como aplicou só que ela
não instruiu como aplicar, não fez treinamento, ela só veio para fiscalizar para dizer que o
projeto esta 100% ou 80% só para dar o laudo de conclusão e esse foi o erro.
Assentada (2): A SINUELO, não acompanhou os projetos dos assentados, teve projeto que
eles planejaram o numero de cabeça de gado, mas não planejaram o pasto.
Assentado (3): Gado que valia R$ 300,00 nós compramos por R$ 500,00. Todo mundo doido
com dinheiro na mão querendo gastar.
Assentado (4): Não! É porque a SINUELO falou que quem não comprasse o gado o dinheiro
voltava pra trás, ai foi apertando a gente, ai teve que comprar, porque já tinha feito o projeto,
e tinha que acompanhar o projeto né.
Assentado (1) agora o pessoal que investiu em gado esta arrependido, porque gado não da
tanto e o gado vai morrendo porque o pessoal não da conta de buscar água. Os projetos foram
mal planejados.
69
Eram aproximadamente 10 assentados do Vereda I e Vereda II que estavam reunidos comentando a atuação da
empresa Sinuelo nos assentamentos da região. Essa reunião foi proposta por mim para tratar o tema dos
créditos e da inadimplência dos assentados.
124
________________As relações de trabalho e a organização da produção
70
Ressalta-se que durante todas as minhas idas a campo nunca encontrei um técnico da empresa na região.
125
________________As relações de trabalho e a organização da produção
126
________________Os atores externos aos assentamentos
CAPÍTULO 5
E o senhor acha que essas promessas das eleições vão ser cumpridas?
“Eu acho muito difícil, porque apareceu candidato aqui que eu nunca vi na minha vida,
olha o candidato que sempre andava por aqui era a vereadora Maristela, mas outro eu
nunca vi, e pelo jeito eles não gosta de assentados do INCRA não, da reforma agrária,
porque eles lembram da gente só na época das eleições. Na câmara lá é aquela discussão
porque o povo fica falando que o prefeito deixa de fazer beneficio lá na cidade para fazer lá
para o sem-terra. Mal sabiam eles que os recursos que o prefeito usa são nosso, que o
INCRA manda via prefeitura” (Assentado do Vereda I, 2004).
127
________________Os atores externos aos assentamentos
Os assentamentos da região não estão isolados, eles fazem parte de uma complexa
rede de relações sociais que os liga a outras esferas das sociedades. É importante ressaltar
que apesar deles terem vindo de vários lugares isso não que dizer que eles chegaram ali
atomizados. Vieram de vários lugares, mas a partir de relações familiares, políticas até
mesmo de vizinhanças pré-constituídas, onde estes faziam parte destas unidades e ainda
continuam fazendo parte.
Diversos autores como Candido (1987) e Queiroz (1973) já haviam chamado
atenção que as comunidades rurais brasileiras não vivem num isolamento e a relação entre
o campo-cidade seriam complexa e rica. E que essas viveriam num complexo jogo de
relações com diversos outros atores sociais.
Segundo Da Ros (2003), existem diversos trabalhos que têm buscado entender a
constituição dos assentamentos como um espaço de construção de relações sociais e
políticas que podem ser redigidas por afinidades e por conflitos entre os assentados e os
diferentes mediadores envolvidos, sendo necessário entender as múltiplas determinações
que estão envolvidas na constituição dos assentamentos. Nesse sentido, chama a atenção
para as ações de diversos atores, como os mediadores, em diferentes momentos, sejam eles
anteriores ou posteriores à criação do assentamento.
Como vimos ao longo da tese, a cidade mais próxima seria o município de Padre
Bernardo, no entanto, para onde eles se deslocam com freqüência são as cidades do
Distrito Federal. É na cidade que eles costumam comprar os seus bens de consumo
imediato, além de buscar o que necessitam. Também é em Brasília que os assentados
reivindicam melhorias para os assentamentos, pois a sede da superintendência fica no
Plano Piloto no setor gráfico da capital. Além do INCRA, outros mediadores importantes
têm as suas sedes no DF, como é o caso do GT-RA da UnB e da Universidade Católica de
Brasília.
Já na cidade de Padre Bernardo, a prefeitura faz o principal papel de interlocução
local com os assentados. Na prefeitura, eles têm, nos últimos anos, reivindicado melhorias
nas estradas rurais e na própria infra-estrutura dos assentamentos. No entanto, enfrentam
resistência do poder público local, que diz não reconhecê-los como moradores do
município enquanto os assentados não transferirem os seus títulos para Padre Bernardo,
numa clara relação de “toma lá da cá”. Também é no município de Padre Bernardo onde os
assentados mantêm uma dependência dos financiamentos através da agência do Banco
Brasil.
Nesse bojo de relações ainda existem os políticos locais e até mesmo do Distrito
Federal que aparecem na época das eleições prometendo melhorias para região em troca de
votos. Essa relação é marcada por um clientelismo local, no personalismo do político e
comerciante da região do Distrito Federal José Fuscaldi, ou simplesmente Tatico.
Para ilustrar melhor essas relações construídas entre os diversos atores com os
assentamentos da região, além das entrevistas, utilizei o Diagrama de Venn ou Jogo das
Bolas para procurar interpretar melhor essas relações. O Diagrama foi elaborado para
ajudar na compreensão das relações que as instituições têm com os assentamentos.
Usando a técnica: em primeiro lugar foi pedido para os assentados listarem todas
as entidades ou instituições que eles achassem importantes para o grupo. Procurei não
influenciar o grupo, deixando-os sempre à vontade para fazer a listagem das instituições.
Ao se iniciar o jogo, deixei claro que a bola de referência ou a unidade chave era a bola do
assentamento, que ficou no centro do jogo.
128
________________Os atores externos aos assentamentos
1. UnB;
2. Prefeitura
3. INCRA-SR 28
4. Agencia Rural
5. Banco do Brasil
6. Universidade Católica;
7. Sugestões minhas (Família, cidade e ônibus).
129
________________Os atores externos aos assentamentos
Agência Rural
BB de Padre Bernardo
INCRA: SR.28
UnB-GT-RA
UCB -EFA
Assentamento Vereda I
Prefeitura: Presente
Prefeitura: Futuro
130
________________Os atores externos aos assentamentos
131
________________Os atores externos aos assentamentos
132
________________Os atores externos aos assentamentos
Com esse ato, o governo cria uma Superintendência com mais “autonomia”, com
objetivo de amenizar a situação fundiária da região. A Superintendência “adotou”
municípios pertencentes à região do entorno no estado de Goiás e municípios da região
noroeste de Minas Gerais: Arinos, Buritis, Formoso e Unaí.
Para os técnicos da SR (28) entrevistados, um dos principais desafios que esta tem é
procurar romper com a estrutura fundiária que beneficia os grandes especuladores de terras
e a da monocultura modernizada associada à pecuária melhorada, que beneficia as grandes
propriedades. Além disso, a região por sua localização estratégica, recebe todos os anos
migrantes de várias regiões do país que vêem em busca de trabalho e terra. Essa
preocupação foi apontada pelo presidente do INCRA, em outubro de 2004. Durante a posse
do Superintendente Regional do INCRA SR (28), o presidente do Instituto, em seu
discurso71, afirmou que a região do entorno do Distrito Federal é considerada uma das
regiões mais delicadas do país e um dos principais desafios a serem enfrentados pelo
INCRA.
“Com o avanço dos grãos, a valorização do preço da soja, os complexos
agroindústrias estão atraindo muita gente pra cá. (...) Todos os dias milhares de
pessoas chegam na Rodoferroviária em busca de terras” (Presidente do Incra,
Rolf Hackbart, outubro de 2004).
Em fevereiro de 2006, eram 139 assentamentos com 9.312 famílias assentadas, sob
jurisdição da SR (28), divididos da seguinte forma: 84 assentamentos no Estado de Goiás e
55 assentamentos no estado de Minas Gerais. Na superintendência o destaque é o
município de Unaí com 22 assentamentos sob a jurisdição da SR 28.
Na figura 6, podemos observar que na região do entorno do DF existe um número
expressivos de assentamentos, criados principalmente na segunda metade da década de
1990, com destaque para o ano de 1998, com 32 assentamentos novos.
71
Eu estava presente na posse do novo Superintendente da SR (28), o senhor Renato Lordello, que aconteceu
no dia 18 de outubro de 2004, na sede da Superintendência em Brasília.
72
Em seminário realizado em maio de 2006, no Curso de Pós Graduação em Desenvolvimento Agricultura e
Sociedade CPDA/UFRRJ, Rolf reiterou a problemática da região do entorno, definido-a como explosiva e
delicada, ou seja, pelo grande número de migrantes que chegam na região todos os anos e pela valorização
das terras dos cerrado para o plantio de soja.
133
________________Os atores externos aos assentamentos
35 32
30
25
19
20 16
15
13 11
10
9 7
10 5 6
5
1 1 0 2 2
5
0
antes de 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004
1990
Todavia, em pesquisa de campo realizada em 2004 e 2006, ficou evidente que o grande
número de assentamentos criados na região não significou a qualidade para eles. Isso fica
claro principalmente no que tange à infra-estrutura como água, estradas, energia elétrica73 e
assistência técnica.
134
________________Os atores externos aos assentamentos
135
________________Os atores externos aos assentamentos
“Até para casar você precisa ter permissão do Incra é um absurdo!” (Sr.J,
assentamento Vereda I, 2004).
74
A pessoa ou empresa para oferecer assistência técnica precisa ser cadastrada na Superintendência regional
do INCRA.
136
________________Os atores externos aos assentamentos
o assentado seria um absurdo, pois se o casamento não desse certo um dos dois ficaria no
prejuízo, então ele preferia levar uma vida “clandestina” com a companheira.
Em alguns casos isso acontece porque o técnico do INCRA, na maioria das vezes,
considera o assentado como um despreparado em relação ao perfil de produtor desejado. O
assentado acaba sendo pensado como um ator que precisa ser modelado e o assentamento
seria o espaço privilegiado desse processo. Provavelmente, episódios desta natureza
devem-se ao desconhecimento, por parte dos técnicos do INCRA, das características
socioculturais dos assentados.
Depois da definição dos beneficiários o INCRA realizou a demarcação das
chácaras, fez os sorteios destas e providenciou a assinatura dos contratos. Na época, o
principal elo entre os assentados e o órgão era o técnico do INCRA, denominado
empreendedor social75 que, para autores como Macedo (2003), tem o papel de acompanhar
os processos de assentamentos. Este seria o funcionário diretamente responsável pelo
encaminhamento dos problemas dos assentados até o órgão.
No entanto, a relação entre o empreendedor social e os assentados da região foi
muito conflituosa porque, na visão dos assentados, este era uma pessoa “arrogante” e
insensível aos problemas que os assentados viviam, além de ser considerado um técnico
que circulava nos assentamentos apenas para punir e para disseminar a fofoca.
“(...) aquele trabalho do empreendedor que o cara estava aqui constante direto
no assentamento, isso era uma mentira, ele chegava aqui olhava para cara de
um para cara de outra e dizia eu não vou com a cara daquele porque aquele tem
a cara feia, ai marca no laudo dele sem querer saber. Não estava nem ai para os
problemas da comunidade, só pensava em punir e promover as denuncias”. (Sr.
Ad, Vereda I, 2006).
Com assinatura dos contratos, o passo seguinte foi a articulação para a liberação do
crédito habitação e o PRONAF A. A liberação desses recursos aconteceu de forma menos
conflituosa porque, segundo explicações de um técnico do INCRA, os recursos já
constavam no orçamento da superintendência.
No que se refere ao PRONAF A, passados quase quatro anos de sua liberação, os
assentados fazem uma avaliação que os recursos foram poucos para começar o trabalho
75
Segundo Macedo (2003), o cargo de empreendedor social foi criado durante o governo do Presidente da
República Fernando Henrique Cardoso. Já no governo do Presidente Lula esse cargo não existe mais.
137
________________Os atores externos aos assentamentos
numa terra nua e que faltou acompanhamento e orientação por parte do INCRA em relação
ao trabalho da assistência técnica terceirizada, que seria responsável pela orientação para
aplicação dos recursos. Desta forma, para os entrevistados, liberar os poucos recursos sem
acompanhamento acabou facilitando a utilização errada destes e consequentemente no
insucesso na utilização dos créditos.
Outro elemento importante, que os assentados responsabilizam o órgão, é a falta de
infra-estrutura ou a demora por realizar melhorias nos assentamentos como: poço
artesiano, estradas, luz entre outras. E quando os recursos chegam via Caixa Econômica
Federal para a Prefeitura, o órgão acaba não acompanhando a execução das obras.
“Além disso, outros fatores, a responsabilidade de água, que ele poderia estar
junto fiscalizando junto com a caixa, os recursos que vão para prefeitura.
Porque no caso do poço ai ele foi furado tem água tem tudo, mas não esta
atendendo as necessidades da comunidade. A gente foi lá no engenheiro para
conversar para que ele fizesse um estudo ele veio aqui e só olhou. O problema
do INCRA, e dar atenção de mais nas fofocas”. (Sr.S. Assentado Vereda I,
2006).
138
________________Os atores externos aos assentamentos
5.3. Academia
Desde a sua fundação, o GTRA desenvolve várias ações e projetos ligados tanto à
promoção da educação no campo como à organização social e da produção dos
assentamentos. Segundo informações de técnicos do GTRA, em fevereiro de 2006, eram
mais de 16 projetos.
1. Projeto - Curso Técnico Profissionalizante em Agropecuária e Desenvolvimento
Sustentável;
76
No capítulo seis abordarei um pouco mais da chegada de outros assentados.
139
________________Os atores externos aos assentamentos
“Eu acho a presença da UnB aqui na região muito importante, porque ela
sempre vem discutindo com todos nós dos assentamentos da região a
importância de trabalhar unido e de sempre querendo que a gente busque a
união” (assentado do Vereda II, 2006).
“A UnB é como uma árvore frutífera ela se plantou aqui e esta se frutificando.
Foi através dela que vocês vieram, ela esta nos alimentando, alimentando aqui
não é só dar alimento é dar instrução e ensinar é mostrar o que deve fazer é
orientar as pessoas e mostrar como deve se fazer” (assentado do Vereda I,
2006).
77
O projeto previa um valor de R$ 20.000,00 que foram investidos no arroz, na construção de uma casa de
farinha, numa horta e num viveiro de mudas nativas.
141
________________Os atores externos aos assentamentos
142
________________Os atores externos aos assentamentos
143
________________Os atores externos aos assentamentos
144
________________Os atores externos aos assentamentos
78
Eu estava presente durante a audiência pública, e mais a frente discutirei o teor dessa audiência.
145
________________Os atores externos aos assentamentos
assentamento Vereda II, por sua infra-estrutura79 ser considerada a mais adequada da
região e de não precisar fazer grandes investimentos. Os investimentos iniciais para o
projeto vieram do Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico, CNPq, e do
Programa Fome Zero, com apoio do Núcleo de Estudos Agrários da UnB. Além disso, o
INCRA destinou uma verba para que a escola começasse a funcionar.
A escolha da sede causou no início disputas internas dentro do assentamento
Vereda II, isso porque existiam assentados interessados nas áreas coletivas contrários à
chegada da EFA. Esses assentados pretendiam usar a sede do assentamento como
instalações de uma cooperativa, que estava sendo formada por cerca de 20 assentados do
Vereda II. Segundo relatos, esses assentados estavam interessados em assumir as principais
áreas coletivas do assentamento, que no caso incluiria a sede da fazenda, local então
destinado a receber as instalações da EFA.
Assim, os assentados contrários à instalação da EFA tentaram de várias formas
evitarem a presença da EFA no lugar, organizando inclusive um abaixo assinado, forjando
assinaturas de assentados, para que a EFA não viesse para o assentamento. A principal
justificativa que o grupo contrário a vinda da EFA usava era que aquele espaço pertencia
aos assentados e eles deveriam usar da maneira que achassem melhor. E ainda, se a EFA
ocupasse a área coletiva do assentamento, os assentados perderiam esse espaço. Mas para
os entrevistados as razões desses assentados eram outras; o que apurou foi que eles
estavam interessados no mangal com 10.000 pés de manga que fazia parte da área coletiva
e, caso a EFA assumisse a área coletiva, essa renda não poderia ser reivindicada por esses
assentados contrários a instalação da escola.
Depois de embates, foi necessária a intervenção do INCRA para definir que a sede
do assentamento Vereda II e seis hectares do seu entorno (a área do mangal ficou de fora),
deveria ficar para a EFA. Assim, o INCRA na visão dos assentados se posicionou de forma
correta ficando do lado da maioria e não de um grupo menor. A liderança do grupo que
pretendia fundar a cooperativa na sede foi expulsa do assentamento em 2005 acusado de
roubo e tráfico de drogas.
Segundo relatos de um técnico do INCRA, essa “liderança” desde o início do
assentamento vinha causando problemas na região, principalmente pela utilização de
entorpecente e o aliciamento de menores moradores dos assentamentos para a realização de
furtos na região.
Segundo relatos dos assentados, a EFA atenderá as comunidades dos Angicos, os
quatros assentamentos do Pé de Serra (Vereda I, Vereda II, Água Quente e Boa Vista),
Colônia I e II, Jacinto Durães e o assentamento do Baixão (Banco da Terra). A proposta do
projeto é seguir a pedagogia da alternância, conjugando prática com teoria, diretrizes
propostas pelo PRONERA e por outras EFA´s existentes no país.
Por estar à frente do projeto da EFA, a Universidade Católica de Brasília80 é vista
pelos assentados como uma grande parceira, pois para eles qualquer ação que signifique a
possibilidade de desenvolver a comunidade é bem vinda. Além disso, a proposta da EFA é
de integrar os assentamentos da região com outros assentamentos e com a comunidade dos
Angicos, um conjunto de moradores da região que não pertencem a nenhum assentamento.
79
Na fazenda Vereda atual assentamento Vereda II, existe uma casa sede muito grande, que poderia servir de
local para escola, além de pomar e outras infra-estruturas necessárias para abrigar a Escola Família
Agrícola.
80
A universidade Católica de Brasília tomou a frente do projeto por se a Universidade que tinha experiência
de trabalho com a pedagogia da Alternância, uma das características centrais das Escolas Famílias
Agrícolas (EFAS).
146
________________Os atores externos aos assentamentos
147
________________Os atores externos aos assentamentos
“Sabe Marcelo, hoje a gente fica descrente desse povo que vem aqui, faz
promessa, mobiliza a gente para sair de casa, vim para reunião, e depois por
coisas burocráticas as coisas não acontece, isso eu fico chateado, porque a
gente está desiludido com a Católica, tem gente achando que a EFA vai acabar
nem saindo, vai ficar mesmo só a biblioteca Verde” (Assentados, do Vereda I,
2006).
Na fala acima pode-se perceber que existe uma descrença em relação à
Universidade Católica. Essa explicação estaria relacionada à atuação desta instituição com
a EFA. Isso porque, o impasse entre a UCB e o INCRA estava atrasando o início das aulas
e por causa dessa situação os assentados estavam desacreditados em relação à atuação da
UCB.
No entanto, os assentados resolveram se organizar e no segundo semestre de 2006
as atividades começaram na EFA. E com a perspectiva que em 2007 o INCRA e a Católica
acertem os problemas burocráticos e a escola passe a receber o dinheiro do convênio.
81
Um candidato obteve 50 votos, o outro obteve 48 votos e o terceiro desistiu da candidatura, todos os três
candidatos eram do assentamento Boa Vista.
148
________________Os atores externos aos assentamentos
Outro assentado esclarece que para cobrar seus direitos na prefeitura precisariam
ser eleitores do município; essa justificativa é vista na fala de uma assentada.
82
Em julho de 2006 o secretário de governo também ocupava a secretaria de agricultura, como interino.
149
________________Os atores externos aos assentamentos
83
Em seu estudo o autor procura enforcar a política interna do Brasil no século XIX, mostrando dois níveis
de clientelismo, o local e o nacional.
150
________________Os atores externos aos assentamentos
Além disso, segundo o secretário, a maioria das famílias selecionadas para ocupar
os assentamentos não teria um metier para trabalhar com agricultura, e isso é um
complicador na visão dele, pois, sem o mínimo de conhecimento da terra onde são
assentados, de assistência técnica eficaz e sem um acompanhamento por parte do INCRA,
a tendência é que estes assentados acabem fracassando como agricultores e tornando-se
inadimplentes perante o banco do Brasil.
A visão do secretário é semelhante àquele modelo de agricultor proposto pelo
processo de modernização da agricultura do final da década de 1960, ou seja, tecnificação
e mecanização da produção. Esse pacote tecnológico ficou conhecido como Revolução
Verde84. Esse modelo foi caracterizado pelo processo de expansão das fronteiras agrícolas
e com poucas mudanças no padrão de distribuição da posse da terra e com um padrão
tecnológico fixo. Além de privilegiar grandes produtores, determinadas regiões e produtos
da pauta de exportação.
Em se tratando de programa de governo da prefeitura para a agricultura, o assessor
explicou que as políticas agrícolas voltadas para o município centraram-se na ativação do
Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural (CMDR) como instrumento que
possibilitasse captar recursos para a agricultura do município e que fortalecesse
principalmente a agricultura familiar.
Entretanto, segundo um membro do CMDR que é assentado na região, foi realizado
até julho de 2006 apenas três reuniões e que o CMDR teria sido uma reivindicação das
associações de assentamentos e de agricultores familiares do município, atrelado à política
do PRONAF A. Por isso o prefeito reativou o conselho, com objetivo de conseguir a vinda
de investimentos para o município.
No entanto, até a presente data da pesquisa, o assentado representante no CMDR
concluiu que o conselho serviu apenas para pretensões políticas do prefeito e para
conseguir que alguns projetos fossem aprovados, que necessitariam da existência do
CMDR. Para que o prefeito conseguisse que a maioria dos membros do conselho fosse da
prefeitura, foi feita uma manobra política que garantisse essa maioria indicando inclusive o
atual presidente que também ocupa o cargo de diretor da Agência Rural, cargo esse
indicado pelo prefeito.
84
Esse modelo tinha como objetivo central o aumento da tecnificação do campo, através da utilização de
máquinas e insumos modernos, aumentando a produção por unidade de área e produto a ser colhido.
Favoreceu principalmente as indústrias de máquinas agrícolas e insumos.
151
________________Os atores externos aos assentamentos
A conquista da Patrulha Rural85 pela Agência é visto como uma vitória por parte
dos assentados, pois durante a elaboração do projeto, técnicos da Agência contaram com a
colaboração de assentados estudantes da Escola de Unaí que estavam estagiando na
Agência durante o período em que o projeto foi encaminhado para o PRONAF A. No
entanto, essa conquista é vista hoje com ressalvas, isso porque a política agrícola no
município tem a monocultura como prioridade. E, portanto, isso seria contrário à proposta
que tinha sido elaborada pelos técnicos da Agência junto com os assentados. A proposta
feita pelos técnicos e assentados era que essa patrulha atendesse principalmente os
assentamentos para plantio de lavouras de subsistências e para as chamadas lavouras
comunitárias, e não para o plantio de monocultura principalmente a mamona como a
prefeitura queria.
Em minha última ida a campo, soube que existia uma proposta que o INCRA
estaria passando a assistência técnica dos assentados do município para a Agência Rural.
Essa sinalização traz preocupação por parte das associações dos assentamentos da região.
Isso porque, na visão da maioria dos assentados, a Agência Rural não estaria preparada
para atender o assentado, uma vez que eles defenderiam uma proposta de agricultura
centrada na monocultura, sobretudo da mamona. O que para os assentados poderia ser um
caminho se não fosse a realidade em que os assentamentos ainda se encontram.
Ao conversar com uma técnica da Agência, a mesma relatou que um dos problemas
da relação da Agência com a prefeitura é porque grande parte dos funcionários incluindo o
diretor é da prefeitura e é indicação do prefeito, o que acabava provocando um desconforto
entre técnicos e diretoria, pois os funcionários da prefeitura estariam subordinados a uma
política agrícola defendida pela prefeitura, que naquele momento estava centrada no
plantio da mamona para a produção de biodiesel. Por essa relação incipiente os assentados
85
A patrulha rural e um conjunto de implementos agrícolas cedidos pelo governo do Estado para atende a
pequenos produtores rurais (consistem em trator, arados, grade e plantadeira).
152
________________Os atores externos aos assentamentos
ainda não conseguiram visualizar quais os benefícios que a Agência traria para eles, uma
vez que eles sabiam que as condições para o plantio da mamona eram desfavoráveis a eles.
Ainda dentro do escopo da política agrícola do município, outros três caminhos são
seguidos pelo poder público municipal, que são eles,
• As Lavouras comunitárias (plantio de arroz), a serem desenvolvidas de
forma coletivas em algumas áreas carentes do município. No ano de 2006 serão
plantados 100 hectares de arroz;
• Horta comunitária, através de kits de irrigação doados pelo governo do
Estado, para desenvolver hortas comunitárias no município; tem a mesma filosofia
das lavouras comunitárias;
• Plantio de mamona para atender a empresa Planalto Biodisel. Ltda: Indústria
de biocombustíveis. Na visão do secretário, no curto prazo, o plantio de mamona é
a alternativa principal para os produtores da região.
assentados. Também é lembrado como uma instituição que não está preparada para atender
os assentados, pois o banco não os vê como clientes e por isso não receberam tratamento
adequado na agência do município. Essa afirmação é unânime quando estes se remetem ao
período em que saíram os créditos. Nessa época, a marca que ficou segundo os
entrevistados foram as humilhações que o banco os fez passar, durante a assinatura dos
créditos na agência do banco de Brasil em Padre Bernardo. Esse episódio é narrado por
uma assentada que definiu a situação da seguinte maneira,
“(...) o banco do Brasil de Padre Bernardo, quando esses agricultores aqui
foram tirar o PRONAF A, aí foi nós todo mundo tirar o dinheiro, fomos ao
banco e o gerente disse que não poderia receber todo mundo de uma vez, aí
pediu para a gente fazer uma lista de pessoas para que fosse de 15 em 15. Aí
foi dividido assim, ai quando o pessoal chegou em Padre Bernardo já tinha um
carro de policia esperando, os assentados para ir para o banco e a gente foi
escoltado até o banco e tivemos que ficar esperando na rua. Chegou no banco o
gerente não deixou que a gente entrasse no banco porque a gente iria atrapalhar
o movimento dos clientes do banco e o banco é pequeno tem muito cliente
importante e a gente teria que esperar a vez lá fora. Ai foi feita uma fila do lado
de fora do banco para que a gente esperasse, parecia uma fila do INSS, todo
mundo sentado do lado de fora do banco. Ai eu resolvi entrar e o guarda me
barrou falou que eu era sem-terra e não podia entrar, mas eu mostrei que eu
tinha um cartão do banco e que era cliente, ai ele deixou entrar, quando cheguei
lá dentro o banco estava vazio não tinha ninguém lá dentro, quando sai
encontrei com uma assentada do Vereda II, que estava indignada, isso foi uma
humilhação que o gerente fez a gente passar” (Assentada do Vereda I, 2006).
86
Nessa reunião, estavam presentes representantes dos assentamentos Vereda I, Vereda II, Boa Vista, Água
Quente e assentamento Baixão.
87
Essa pergunta tinha sido feita na frente dos assentados. No entanto a gerente recusou-se em responder, mas
depois da reunião ela me chamou num canto e respondeu a minha pergunta.
154
________________Os atores externos aos assentamentos
Assim, como instituição que tem por objetivo principal visar o lucro, e como os
assentados estavam inadimplentes, cada vez mais estes eram tratados com indiferenças por
quase todos os gerentes que passavam por essa agência.
“Eles atende a gente com muito descaso e até hoje essas pessoas aqui não tem
credibilidade no banco saiu o gerente entrou outro e a situação continua a
mesma. Já teve gente que já foi lá negociar a dívida foi pagar para não ficar
inadimplente, e vê se tirava outro crédito, mas não teve jeito” (assentados do
Vereda I, 2006).
88
Segundo Pereira (2005), a prestação de assistência técnica está diretamente vinculada à concessão do
crédito aos assentados. E por sua vez às empresas de assistência técnica cabem elaborar projetos técnicos
de desenvolvimento econômico dos assentamentos.
155
________________Os atores externos aos assentamentos
banco não quis ver, foi logo julgando todo mundo, é aquele ditado os justos
pagaram pelos pecadores” (Assentado do Vereda II, 2006).
Durante os anos da realização dessa pesquisa foi possível perceber que os políticos
da região têm procurado os assentados com promessas de busca de melhorias na qualidade
dos serviços oferecidos, o que significa na visão dos assentados a troca por votos.
“Muitos candidatos a vereador de diversos partidos como do PTB, PSDB, PP,
PL vêm aqui prometendo arar as terras, criar o posto de saúde, mas isso só
acontece se a gente votar neles, e mesmo assim a gente não tem garantia
nenhuma que as coisas vão acontecer” (Assentado do Água Quente, 2004).
Assim, foi possível identificar que a presença dos políticos na região é marcada por
diversas formas de atuação, dentre estas se pode citar a audiência pública promovida, no
caso aqui apresentado, por um deputado federal do PT de Goiás, Paulo Otonni. Na visão do
deputado, a audiência foi criada com objetivo de discutir junto ao povo as necessidades e
os caminhos do seu mandato, procurando ouvir as críticas, as sugestões.
Em fevereiro de 2006, estive presente numa audiência dessa natureza que aconteceu
na escola do assentamento Boa Vista. O seu principal objetivo era discutir o Programa Luz
para todos, discutir o programa junto com os assentados e esclarecendo de onde vinham os
recursos para a instalação de energia elétrica que estava acontecendo nos assentamentos da
região.
“Hoje, em Padre Bernardo, essa audiência é a de número de 172, cada reunião
discute um tema diferente. E nessa será discutida o programa Luz para todos. É
uma reunião de trabalho e não uma reunião política” (Deputado Federal, Paulo
Otoni – PT-GO, 2006).
de canos para fazer o trabalho de distribuição de água nos assentamentos da região, além
de outras ações que órgão tinha planejado para o ano de 2006.
No entanto, percebi que a audiência serviu também como um espaço de
reivindicação dos assentados junto ao INCRA e à prefeitura. A cobrança se referia
principalmente, a um óleo diesel que tinha sido doado para a prefeitura pelo órgão para que
esta consertasse as estradas dos assentamentos. Entretanto, para os assentados a prefeitura
ainda não tinha efetuado o serviço e os mesmos tinham dúvidas se o faria, mostrando uma
relação de desconfiança dos assentados perante a prefeitura
Na ocasião, o superintendente esclareceu aos assentados que o INCRA teria doado
no ano de 2005 cerca de 40.000 litros de óleo diesel para a prefeitura de Padre Bernardo,
para realizar a manutenção das estradas dos assentamentos. Os assentados teriam a
obrigação de fiscalizar a aplicação desse óleo. No calor do debate o secretário de governo
que representava o prefeito pediu a palavra para esclarecer que o óleo tinha todo sido gasto
com os assentamentos. No entanto, sua fala não convenceu a maioria dos assentados, que
continuaram ao longo da audiência cobrando o paradeiro desse óleo diesel.
O caso do óleo já era objeto de disputa entre a prefeitura e os assentados há alguns
meses. O que foi possível perceber é que os assentados viram, naquela audiência, uma
oportunidade de cobrar seus interesses, deixando inclusive o secretário de governo numa
situação delicada perante as autoridades, pois, para os assentados presentes, ele não
passava de mentiroso; e o superintende acabou sabendo da situação que se passava no
município e prometeu que iria apurar os fatos.
Em oportunidades como essas reuniões que envolvem diversas autoridades os
assentados acabam se organizando e passam a reivindicar seus direitos perante esses
indivíduos. No entanto, conforme os assentados relataram, o problema é que depois que
todos vão embora para suas casas, a situação tende a voltar como era antes, ou seja, a
cobrança ficaria restrita àquele momento em que estavam reunidos com as autoridades.
Isso aconteceria segundo eles pela falta de articulação e de organização dos próprios
assentados.
Ao sair do meu último trabalho de campo em 2006, os assentados, com ajuda de
mediadores (técnicos do GTRA) e das associações dos quatro assentamentos junto com a
associação do Baixão, estavam articulando uma reunião conjunta para tratar a questão do
pagamento da dívida dos créditos que começavam a vencer naquele ano. Essa atuação
conjunta era vista como um passo para que os assentados passassem a se organizar melhor
na região.
158
________________Os atores externos aos assentamentos
“Na época do acampamento teve uns candidatos a vereador, que passou por
aqui distribuindo cestas básicas e pedindo o povo para transferir o titulo para o
município, faziam promessas que iriam agilizar a nossa situação perante ao
INCRA e que quando fossemos assentados, eles iriam fazer as coisas pela
gente, mas eu não vi isso acontecer, e teve até uma candidata a vereadora, que
recebeu todo apoio do pessoal, ganhou mas não cumpriu nada que falou para
gente” (Assentado do Vereda II, 2004).
Em 2004, quando retornei ao campo no período das eleições, a expressão que mais
se ouvia, em se tratar de alianças política na região, era os chamados currais fechados,
termos utilizados pelos nativos para tratar do número de votos que uma liderança local
conseguia para um determinado candidato. Assim, pude perceber que as alianças que eram
constituídas entre os políticos do município e alguns assentados da região que tinham
alguma influência entre os assentados era aquela que girava em função principalmente dos
interesses pessoais desses assentados.
“Fulano aqui esta prometendo um monte de votos para o candidato sobrinho do
Tático (...) e em troca ele prometeu ajudar esse assentado dando dinheiro ou
outro favor. Que ele precise” (Assentado, do Vereda II, 2004).
90
Eram cerca de 10 assentados reunidos na casa de uma família do assentamento Vereda I, em setembro de
2004.
159
________________Os atores externos aos assentamentos
Diálogo do candidato a vereador Paulinho Tatico91 e seu cabo eleitoral junto aos
assentados da região de Pé de Serra
Cabo eleitoral moradora do assentamento Boa Vista: Oi gente, tudo bem? Como vocês
estão? E você não é daqui não? Certo! [pergunta direcionada para mim, nesse momento o
candidato a vereador chega e me questiona o que um rapaz do Rio de Janeiro estava
fazendo ali, pesquisando].
Cabo eleitoral: a gente veio pedir apoio para ele, fala ai? Fica à vontade, ele não sabe falar
bonito, mas tem as costas quentes, [risos] ele é sobrinho do Tático [deputado Distrital] e
tem todo apoio dele.
Candidato: oi gente, meu tio já mandou falar que, esse ano ele vai mandar cortar as terras
[termo usado para tratar do preparo da terra].
Candidato: isso.
Assentado A: deixa eu, entender porque eles tinham mandado o trator aqui o Daniel
[candidato a prefeito apoiado pelo vereador e seu tio], segundo eu fiquei sabendo, as
pessoas que mandaram o trator é o pessoal que esta apoiando o Daniel? Como vai ser isso.
Candidato: é isso mesmo, eu vou explicar e você vai entender. O Daniel arrumou 10
coligação92, ai ficou mais fácil, certo, inclusive os Samarone [políticos da região] e tem
mais alguns que araram a terras deles fizeram bonitinho.
Assentado A: deixa eu, perguntar uma coisa, mas vai ter trator para Vereda, para o Baixão,
para Boa Vista e para o Sindicato [assentamento Água Quente]. Certo, mas a onde você vai
arrumar tanto trator? Porque eu preciso entender isso, porque está todo mundo querendo
trator, e isso é uma promessa de campanha, do tempo da política? Você não precisa se
comprometer aqui, eu só quero entender porque todo mundo vai precisar desses tratores
quase ao mesmo tempo e a onde é que você vai arrumar tanto trator?
Cabo: bom, essa pergunta sua é importante, porque eu para trabalhar com o Paulinho eu
peguei e sentei na mesa redonda junto com Tatico Deputado, e falei: olha, eu não gosto de
fazer papel de moleca, de mentirosa, sair de casa em casa falar de um candidato, fazer
promessa e depois passar por mentirosa, porque esse compromisso que depois das eleições
esses tratores vem, porque se for em todas as fazendas esses tratores não vêm, aí eu quero
saber como vai ser isso, o Deputado, ai ele respondeu que na fazenda dele ele não tem dois
tratores ele tem seis inclusive tem dois em Goiânia que está concertando para vim logo,
para poder não atrasar e que tem trator aqui nas fazendas, será contratado para não atrasar
em todos assentamentos, porque tem tratorista que vai ser contratado para trabalhar para
fazer o serviço nos assentamentos aqui.
91
O candidato a Vereador Paulinho Tatico foi eleito em 2004, em quarto lugar pelo Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB) com 338 votos, 3,13% dos votos válidos.
92
O candidato eleito Daniel Tatico foi eleito com 5.516 votos, 53,52% dos votos válidos pela pelo Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB) com a coligação (PP / PTB / PMDB / PSL / PSC / PL / PFL / PSDC / PRP /
PT do B).
160
________________Os atores externos aos assentamentos
Assentada B engraçado o pessoal falava Paulinho Tatico eu achava que você fosse um
homem grandão.
Candidato: pois é eu sou sobrinho é o modo de falar porque a mãe dele é irmã do meu pai,
então ele é meu primo.
Candidato: não Tatico era o nome do meu vovô, e era um homem muito bem, que quando
morreu deixou a herança para a família e seu nome foi incorporado no nome da família.
Então, na verdade é nome da minha família que é mineira lá da zona da mata de Teixeira.
Cabo: então gente a família Tatico e toda dele. Agora Daniel Tático [candidato a prefeito,
que acabou sendo eleito] não é parente não e se ele fizer alguma sujeira, o tio tira o nome
Tatico dele.
Assentado A: quer dizer que colocaram Daniel Tatico por causa da campanha?
Candidato: é por causa, da campanha, e você sabe que titio é deputado distrital.
Cabo: então gente, da uma força ai para nós vai ser uma força muito importante para nós
aqui na região. Isso gente, agora Paulinho, a gente precisa ir embora. Vocês não esquecem
de dar uma força pra gente e fica com Deus, ai.
Durante o diálogo observei a forma que a mulher, cabo eleitoral olhava para mim,
ela estava sempre me fitando com os olhos e prestando atenção no gravador, porque
quando eles chegaram, eu estava gravando a entrevista com os assentados e
propositalmente não desliguei o gravador. Entretanto, a presença do gravador não
intimidou a apresentação do candidato ou o compromisso em realizar certos benefícios
para os assentados como o uso do trator.
Nas falas do candidato e de seu cabo fica clara a idéia de compromisso que eles
estariam assumindo com os assentados da região. No entanto, em minha última ida a
campo em 2006, os assentados relataram que depois da eleição Paulinho sumiu da região e
não cumpriu as promessas feitas durante a campanha daquele ano e nenhum trator tinha
aparecido para preparar as terras dos assentados.
“A gente encontra com ele na prefeitura e ele logo sai correndo, faz de conta
que a gente nem existe. Teve um dia desses que eu encontrei com ele, na
prefeitura, ai perguntei oh! Rapaz! Você parece que está com medo? Ai ele
falou: que estava com pressa porque estava passando mal, [risos]” (Presidente
da associação do Vereda I, 2006).
161
________________Os atores externos aos assentamentos
nome do candidato a vereador ao deputado Federal pelo Distrito Federal93 na época, José
Fuscaldi Cesílio, mais conhecido como Tatico.
Segundo informações do seu site, Tatico tinha sido deputado distrital de 1989-2002
e deputado federal pelo DF de 2003-2006. Além disso, é empresário da área de
supermercados em Brasília e têm como sua principal base eleitoral as cidades do DF e
entorno, local de origem da maioria dos assentados da região.
Tatico tem uma boa reputação juntos aos assentados. Essa reputação teria sido
construída mesmo antes de terem vindo para os assentamentos. Além disso, o
supermercado de propriedade do deputado Tatico na Ceilândia é onde a maioria dos
assentados realiza suas compras. E, segundo eles, é um local onde as famílias encontrariam
preços melhores. Uma observação interessante é que o ônibus que vai para o assentamento
tem o seu ponto em frente ao supermercado Tatico na Ceilândia.
“Foi no Tatico que a gente conseguiu preços melhores para gastar o Crédito
Fomento, ele fez um preço bom e ainda entregou nos assentamentos”
(Assentado do Vereda I, 20006).
Essa relação construída em Brasília fez com que vários candidatos a vereadores e o
candidato a prefeito eleito de Padre Bernardo procurassem associar seus nomes à imagem
do deputado Tatico. Um fato importante a se destacar é que o candidato eleito a prefeito
Daniel 94 era capataz das fazendas do deputado Tatico, por isso ele utilizava o nome do seu
padrinho político e também contava com o apoio do deputado. Acredito que o fato da
maioria dos assentados ter vindo de Brasília despertou nos políticos do município o
interesse em personalizar os seus nomes ao do deputado Tatico que gozava de prestígio
junto aos assentados.
93
Já nas eleições de 2006 Tatico foi eleito deputado Federal pelo Estado de Goiás, pelo PTB com 84.633
votos, ou seja, 2,98% dos votos válidos.
94
O Prefeito Daniel Tatico foi eleito em 2004, para o seu primeiro mandato com 53,52% dos votos, pelo
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
162
________________Os atores externos aos assentamentos
A atual gestão do sindicato dos trabalhadores rurais de Padre Bernardo é vista com
muita desconfiança por parte dos assentados, isso porque na visão deles o atual presidente
que está no cargo há mais de cinco anos só tem interesse em procurar os assentados,
estimulando-os a filiarem-se ao sindicato interessados na mensalidade que cada associado
paga. Por outro lado, o próprio sindicato não reconhece os assentados como clientes uma
vez que, na interpretação de seu presidente, a quase totalidade não é filiada ao sindicato,
então não sendo filiada ao sindicato, o problema das dificuldades que eles passariam seria
de responsabilidade deles, e o sindicato estaria muito ocupado tratando dos problemas dos
associados. As pessoas que não são associadas não seriam de responsabilidade deles. A
visão do sindicato é tão incipiente que durante o Diagrama de Venn os assentados nem o
citaram, durante o jogo.
Um fato interessante é importante destacar: apesar de um dos assentamentos da
região, o Água Quente, ter sido organizado pelo sindicato, a maior parte de seus moradores
não pertence ao sindicato. Uma explicação que me deram foi que em 1998, quando o
sindicato mobilizou as famílias, as lideranças que estavam à frente do sindicato eram
outras, que acabaram saindo e como não tinham o compromisso de sindicalização
acabaram deixando de pagar o sindicato.
Outro ponto importante de ressaltar é que a bandeira levantada pelo sindicato para
que as pessoas se filiem se resume à idéia de que esse trabalhador precisaria comprovar ser
agricultor e por conseqüência dar entrada na aposentadoria. E esse documento só poderia
ser emitido pelo sindicato. Esse tipo de visão é comungado também pelos assentados, uma
vez que a maioria dos entrevistados vê o sindicato como a possibilidade de obtenção da
aposentadoria como trabalhadores rurais.
163
________________Os atores externos aos assentamentos
95
Garantida pela Constituição de 1988, trata-se, na verdade, da extensão dos direitos previdenciários aos
agricultores em regime de economia familiar sem empregados permanentes, aos pescadores e garimpeiros
artesanais. Nesse regime especial de previdência o candidato a beneficiário não precisa ter contribuído ao
sistema previdenciário, como ocorre com as demais categorias de trabalho. O requisito básico é que ele se
enquadre nas categorias acima descritas.
96
A Lei 8.213, através do inciso V do artigo 115 permite que seja descontado dos aposentados/pensionistas e
demais beneficiários da Previdência Social, valor referente a mensalidades de “associações e demais
entidades de aposentados legalmente reconhecidas, desde que autorizadas por seus filiados”. Ver Barbosa
(2002).
164
________________Os atores externos aos assentamentos
cinco anos e não largou o cargo nem para disputar o cargo de prefeito pelo município nas
eleições de 2004.
165
________________A rotatividade nos assentamentos da região
CAPÍTULO 6
Uma questão por vezes tida como polêmica, ao tratarmos do tema reforma agrária é a
rotatividade nos assentamentos rurais. No estudo aqui referido, um dos principais desafios de
se traçar uma aproximação sobre a rotatividade nos assentamentos está relacionado à falta de
um levantamento de dados precisos que apontem essa situação. De acordo com técnicos do
INCRA, até a presente data da pesquisa não havia nenhum dado estatístico que pudesse
apontar com precisão esse percentual na região. No entanto, ao percorrer os assentamentos é
possível encontrar chácaras fechadas e até mesmo com uma placa indicando vende-se. Como
eu já conhecia a região há alguns anos, pude perceber esse fenômeno, sobretudo na presença
de novos moradores.
É importante ressaltar que neste capítulo não pretendo fazer generalizações dessa
situação para as demais regiões do Brasil, pois essa situação aqui estudada é específica dessa
região de Pé de Serra no município de Padre Bernardo.
Nesse sentido, o objetivo deste capítulo é apresentar os mecanismos de rotatividades
nos assentamentos da região. Para isso, procurarei apontar algumas variáveis que
contribuíram para essa dinâmica no lugar. Nesse sentido, utilizarei o termo rotatividade nos
assentamentos por acreditar que esse termo abarca elementos tais como evasão, venda, campo
de possibilidades, e relação com os compradores.
É possível afirmar que, após a luta por conquistar a terra, outros desafios surgem para
essas famílias, que são a luta para permanecer na terra, encarar os desafios da falta de infra-
estrutura, falta de recursos, convivência com pessoas de origem diferentes e os problemas
relativos à adaptação num outro espaço. Por causa desses elementos, muitos desistem,
vendem e partem para outro espaço. Nesse sentido é que esse capítulo tem o objetivo de
procurar descrever e analisar esse fenômeno. Além disso, serão apontados alguns caminhos
para entender como é construída a relação com os que compraram e conseqüentemente não
fizeram parte do processo de ocupação. Para apresentar os resultados o capítulo está dividido
em cinco seções.
166
________________A rotatividade nos assentamentos da região
Na região, após meses e anos debaixo da lona, algumas famílias que conseguiram as
chácaras, venderam e muitas voltaram para Brasília. Segundo narrativas dos entrevistados, a
venda e o abandono dessas chácaras ocorreram principalmente nos três primeiros anos de
formação dos assentamentos, sobretudo, logo após a saída dos créditos (habitação e PRONAF
A e PRONAF A/C). No entanto, a falta de infra-estrutura (água, energia elétrica, estradas e
etc.) é apontada como um dos principais motivos para as vendas das parcelas.
“Você vê a gente está aqui há quase seis anos e até hoje vivemos o problema de
falta da água, a terra não é boa para produzir, e o que produz mal da para o gasto.
Então o sujeito que não é muito animado faz o que? Vende e volta para a cidade”
(Assentado, Vereda I, 2006).
Por ser um bem público, a água é de todos e deve ser utilizada de acordo com os
interesses comuns da sociedade. Entretanto, a realidade que encontrei na região do estudo é
bastante diferente, ou seja, não há água em quantidade e qualidade suficiente para suprir as
necessidades básicas locais.
“Uma dificuldade de viver nos assentamentos da região ainda continua sendo a
água. Que não chega ser suficiente nem para beber a gente sempre acaba tendo
167
________________A rotatividade nos assentamentos da região
que pagar uma pessoa para buscar pra gente. Além disso, a pouca água quem tem
não pode ser destinada à irrigação”. (Assentado do Vereda I, 2004)
97
O Chafariz é uma torneira pública instalada nos assentamentos para as famílias coletarem água.
98
Esta técnica visa conhecer as demandas prioritárias existentes na comunidade tendo como objetivo elegê-las
em ordem crescente de prioridade. A eleição é feita através de uma simulação, utilizando-se de cartolinas
coloridas que representam pontuações.
168
________________A rotatividade nos assentamentos da região
40%
25,92%
30%
20%
8,64% 6,25% 4,50%
10%
1,19%
0%
Água Casa Escola Energia Posto de Estrada
elétrica saúde
0%
Água Casa 3.Posto de 4.Escola 5.Energia 6.Estrada 7.Espaço
saúde elétrica de oração
Outro problema ocasionado pela questão da água antes da chegada da energia elétrica
(em 2006) estava relacionado com a manutenção dos poços artesianos, cujas bombas eram
movidas a diesel, e quase sempre as bombas paravam de funcionar por problemas referentes à
falta do combustível. No assentamento Vereda I os assentados resolveram organizar uma lista
para contribuições que girava em torno de R$ 20,00 mensais (em 2004) para a compra do
produto, no entanto, poucos pagavam.
“Esse diesel é um problema para nós porque nunca tem óleo para tocar o motor e
(...) é tem gente que paga, mas tem gente que não paga. Mas na hora de usar todo
mundo usa e o pior é que às vezes paga quando vai buscar água no chafariz á água
acabou!” (Assentamento, Vereda I, 2004).
Outra questão apontada pelos assentados para que algumas famílias desistissem das
chácaras estaria relacionada à dificuldade em viver num modelo de comunidade construído
com atores vindo de vários lugares e com a imposição de regras aos assentados. Isso tem
provocado conflitos das mais diversas naturezas, o que tem servido de estímulo para a
desistência da chácara.
“(...) aqui tem muita gente que é individualista que não gosta de trabalhar no
coletivo e ainda fica fazendo fofoca por ai, esse pessoal que atrapalha o
assentamento eles tinham que ir embora para vê se a coisa melhora”(Assentada do
Vereda II, 2006)
Na visão dos assentados outro elemento referente à falta de experiência com a terra e
com reforma agrária diz respeito à falta de seriedade do INCRA em assentar famílias em
lugares impróprios para agricultura, sem água ou que requeiram grandes investimentos.
“Aqui na região eu vi falar que o INCRA pegou e trouxe gente para morar nas
parcelas que estavam vazias, certo. Mas essa pessoa vai ficar até sair os recursos,
e vai embora porque a terra não tem condição. Porque a maior parte dessa terra
aqui da região, é para quem tem dinheiro essa terra não é para pobre. Porque tem
que gastar muito dinheiro para que ela possa produzir” (Comprador no Vereda I,
2006).
No entanto, reconhecem hoje [2006] que acabou existindo ingenuidade por parte dos
assentados em aceitar essas terras ruins ou necessitadas de grandes investimentos para
produzir.
“A gente veio da cidade a gente não tinha mais, noção de como trabalhar na roça,
no meu caso da minha família a gente não tinha noção de quantos hectares de
pastos era para cada vaca, o tanto de água como deveria de ser para o gado tomar,
criação de suínos, porque eu tive porquinhos e morreu achou que foi a forma
errada de criar, faltou água e não sei o que faltou mas não deu muito certo”
(Assentada no Vereda I, 2006).
Sobre essa questão da falta de seriedade do INCRA, em julho de 2001, ouvi da boca
do técnico que o INCRA Nacional tinha estipulado metas99 para as superintendências, ou seja,
não importasse a capacidade ou as condições das fazendas desapropriadas, o que importava
era assentar o maior número de famílias possíveis. Essa política do quanto mais melhor fez
com que muitas chácaras fossem cortadas em locais impróprios para agricultura, por mais
tecnificada que essa fosse.
No assentamento Vereda II chegou-se ao absurdo de chácaras serem formadas com
grande parte de sua área com mais de 90 graus de declividade, onde seria quase que
99
Essas metas estariam relacionadas com o assentamento do maior número de famílias possíveis em um curto
espaço de tempo.
171
________________A rotatividade nos assentamentos da região
impossível de se produzir qualquer cultura ou até mesmo criar algo. Como bem diz um
assentado, na parcela dele não dava para criar nem Calango.
Outra questão importante de se ressaltar é que antes de viverem para o acampamento a
maioria não era de produtores, era de desempregados que tinham o sonho de chegar ao
assentamento e ganhar muito dinheiro com a terra. Hoje é que estamos entendendo o que é ser
agricultor.
A falta de experiência com a terra não desmotivou aqueles acampados em participar
das ocupações. Isso me faz levantar que, como foi dito no capítulo um, a reforma agrária
surgiu para esses assentados como mais um campo de possibilidades dentro de um contexto
de dificuldades em que se encontravam quando entraram na luta, independente do metier para
lidar com a terra.
Por outro lado, morar no assentamento, mais do que ter um local para viver, significa
ter um espaço para morar e criar a família, objetivo que buscaram ao longo de suas vidas.
Nesse caso, mais que um espaço para morar, o assentamento surge como um espaço em que
podem deixar suas raízes para as gerações futuras. Neste sentido, a fala de dois entrevistados
ilustra muito bem esse sonho.
“O meu desejo é quando eu partir desse mundo, deixar o meu filho bem
localizado, pra ele falar que isso aqui foi o meu pai quem deixou. Porque eu
não tenho nada para falar que isso aqui foi do meu pai. Porque eu saí de casa
com uma idade de mais ou menos 16 anos, eu não tenho nada pra dizer”
(Assentado do Vereda I).
“(...) Para mim eu quero fazer uma riqueza aqui, para os meus netos. E que eles
aproveitem isso aqui muito bem (...) os meus netos adoram isso aqui. Gosto de
roça, gosto disso aqui. Então a minha riqueza é isso aqui. O meu futuro é esse
aqui. É esse aqui que vai ser o meu futuro, e deixar isso aqui para os meus
netos” (Assentado do Vereda I).
A vontade de construir um espaço para viver, deixar de herança e nele produzir é algo
latente naqueles assentados que ainda estão nos assentamentos. Para eles, a chance de ter uma
terra possibilitou a realização de sonhos como também de continuar a sonhar com nossas
criaçãozinhas, o que na cidade seria mais difícil, por causa das condições financeiras em que
viviam ou até mesmo pela a falta de escolaridade ou pela idade avançada, o que dificultaria na
hora de conseguir uma recolocação no mercado de trabalho.
"O problema da grilagem está em todo o Brasil, mas é grave no DF. Aqui, há
conivência e incentivo à grilagem até por parte do governo local",
Deputado Pedro Celso (PT-DF, 2005)
Para entender a rotatividade nos assentamentos da região é preciso entender que, além
dos problemas referentes à falta de infra-estrutura nos assentamentos ou de adaptação do
assentado no novo ambiente, as vendas das chácaras podem estar relacionadas como um
instrumento local que faz parte do cotidiano da região desde o período da construção de
172
________________A rotatividade nos assentamentos da região
100
Segundo Garda (1999), entre 1991 e 1996, foram aproximadamente 200 mil pessoas que saíram do Nordeste
para viverem em cidades do entorno de Brasília ou arredores de Goiânia, que são as duas principais cidades da
região.
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________________A rotatividade nos assentamentos da região
Essa onda de migração para a nova capital por um lado, passou a demandar uma
quantidade cada vez maior de moradias e por outro, a cidade passou a sofrer um intenso
processo de favelização e degradação da moradia. Com isso passaram a surgir as chamadas
cidades satélites, sendo a primeira o Núcleo Bandeirante, em 1956, depois Paranoá em 1957,
Taguatinga em 1959 em seguida a cidade do Gama e do Sobradinho em 1960 entre outras. Em
2006 já eram 29 regiões administrativas101 que compunham o Distrito Federal, conforme
pode-se observar em tabela abaixo.
101
As regiões foram criadas com objetivo de facilitar a administração das localidades do Distrito Federal.
102
Com 55.574 quilômetros quadrados, essa região é composta pelo Distrito Federal e outros 22 municípios -
três são de Minas Gerais (Unaí, Buritis e Cabeceira Grande) e 19 são de Goiás (Abadiânia, Água Fria de
Goiás, Águas Lindas de Goiás, Alexânia, Cabeceiras, Cidade Ocidental, Cocalzinho de Goiás, Corumbá de
Goiás, Cristalina, Formosa, Luziânia, Mimoso de Goiás, Novo Gama, Padre Bernardo, Pirinópolis, Planaltina
de Goiás, Santo Antônio do Descoberto, Valparaíso de Goiás e Vila Boa).
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________________A rotatividade nos assentamentos da região
com que os assentados entrem no mercado de venda de suas chácaras. Estes seriam: a
especulação imobiliária e a grilagem de terras muito comuns na região do Distrito Federal,
grilagem essa incentivada e acobertada por determinados governos locais.
Para Campos (1998), a parti da década de 1970 foi que o mercado de terras e de
especulação passou a se constituir, principalmente com o surgimento dos loteamentos na orla
do Lago Paranoá. Período em que se verifica a separação entre a propriedade fundiária e o
capital imobiliário. (idem,1998:107).
Para entender um pouco desses mecanismos, recorro aos estudos realizados por
Borges103 (2004) e por intermédio de relatos dos assentados da região, procurando sempre
entender como funciona esse mercado de terras que se apresentou como muito comum nos
assentamentos da região.
Esse olhar sobre a negociação das chácaras revelou-se uma estratégia adotada pelos
assentados que foram ocupar terras na região, ou seja, o trinômio invadir - conseguir -
vender era uma estratégia já bem conhecida, pois muito já haviam participado de ocupações
de lotes no Distrito Federal em cidades satélites como Recanto das Emas, Samambaia,
Brazlândia, entre outras104. Nos relatos foi muito comum ouvir histórias de assentados que
tinham conseguido o lote em uma dessas cidades e posteriormente vendido, procurando
ocupar outro local.
Nesse sentido Borges (2004), em seu estudo na cidade satélite do Recanto das Emas,
observou que essa prática de ocupar e vender o lote fazia parte de certa maneira do cotidiano
dessa região. Em uma de suas entrevista a autora aponta essa tendência.
“A sua casa não era mais uma invasão e a sua casa não era mais um barraco. ‘Mas
não são todos que ficam no lote não (...) muitos já o vendem por R$ 3.000,00 e
voltam pra baixo da ponte, até invadirem num outro lugar’ Benedito referia-se ã
massa que movimenta o problema social nomeado localmente como grilagem:
‘Estas pessoas que estão aqui hoje... você vem aqui daqui uns poucos anos... Você
vai encontrar só algumas.” (Borges, 2004:43).
Esse exemplo ajuda entender que por um lado, essa prática de certa forma faz parte de
uma estratégia de sobrevivência que muitas famílias que migraram para o entorno do Distrito
Federal buscam em seu cotidiano para conseguir uma moradia, e por outro, segundo Borges
(2004), esse mercado de terra na região do DF serve também para o interesse de políticos do
Distrito Federal e entorno que ganham com essa expansão territorial e populacional, uma vez
que essas famílias “são obrigadas” a transferir seus títulos eleitorais para esses novos
domicílios.
“(...) aquele que se interessasse em participar da corrida por um lote deveria ser
eleitor do Distrito Federal, ou seja, possuir seu título de eleitor na capital. Todavia
ser eleitor das cidades não fazia parte dos requisitos legais exigidos pelo governo
para concessão desse tipo de beneficio. Essa obrigatoriedade não consta das leis
publicadas em textos do Diário Oficial (...) Porém, o mero fato de estar destacada
naquele panfleto de divulgação à caneta, indica o quanto essa exigência sustenta o
processo, tanto ou mais que aquelas outras condições, impressas.” (Borges,
2004:32).
103
Antonádia Borges (2004) em seu estudo Tempo de Brasília: Etnografando lugares e eventos da política,
procura descrever o cotidiano dos moradores do Recanto das Emas Cidade Satélite de Brasília, destacando
elementos como a política, o lote, tempo de Brasília dentre outros.
104
Todas são cidades satélites do Distrito Federal.
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________________A rotatividade nos assentamentos da região
A transferência dos títulos eleitorais seria um requisito que está incluso nas entrelinhas
exigido pelas normas para contar o chamado Tempo de Brasília. Os assentados entrevistados
relataram que tinham vindo para Brasília porque o Roriz105 estava dando lotes em cidades de
Brasília; no entanto, um dos requisitos para pleitear os lotes era que o candidato provasse que
votava em Brasília, por isso ainda hoje os assentados mantêm seus títulos eleitorais na capital
federal. Além disso, recebem benefícios do governo do DF.
“Sabe Marcelo tem muita gente que ainda tem esses negócios de bolsa escola,
alguma coisa, ai não transfere porque se transferir vai perder o benefício que a
família ganha.” (Assentada do Vereda I, 2004).
Na percepção dos entrevistados, os lotes que o Roriz dava seria uma dádiva que os
governantes locais ofereciam aos migrantes; no entanto, presumiam que iriam pagar apenas
uma parcela pequena.
“Era dado porque era muita gente querendo e só alguns ganhavam como um
concurso, muitos se inscrevem e poucos passam. Aqui na terra [assentamento]
também foi assim, tinha muita a gente acampada e só esses que você esta
vendo que conseguiram” (Assentado do Vereda I, 2004).
“Desde que eu cheguei a gente mudou duas vezes, morei de 1971 até 1974 em
Taguatinga Centro e, de 1974 até 1978 morei em Taguatinga norte. Depois de
1979 mudei para Guariroba, Ceilândia Sul. Essa casa eu ganhei, acho que foi
do governador Zé Ornelas. A casa foi o governo que me deu antes eu estava
morando de aluguel, esse governador foi e me deu a casa, que eu pagava
pouquinho de prestação” (Assentado do Vereda II).
Nos relatos acima é possível perceber que os assentados que foram beneficiados por
essa política habitacional do Governo do DF, sobretudo do Roriz, nutrem uma dívida de
gratidão pela conquista de um local para morar, que será retribuída em votos a candidatos que
o político indicar. Para Borges (2004) essa relação entre o lote que é ofertado para aquele que
o deseja seria o que animaria a participação das pessoas na vida política da região.
“A invasão seria uma dessas ocasiões de encontro e troca e, por isso, deve ser
compreendida como um lugar-evento. A invasão não é apenas um palco para o
confronto, ela é também um objeto que está sendo classificado no próprio
embate. Essa luta particular nos conduziu pelas searas das disputas políticas
locais.” (idem, 2004:51).
105
Diversas denúncias apontam o ex. governador Joaquim Roriz e políticos ligados a ele como os principais
incentivadores dessas grilagens no Distrito Federal.
176
________________A rotatividade nos assentamentos da região
Gouvêa (1998) chama atenção que a estratégia de distribuição de lotes nas cidades
satélites do Distrito Federal, como o Programa PROMORAR106, estava atrelado a interesses
eleitoreiros e de desmobilização de movimentos de trabalhadores que buscavam melhores
condições de habitabilidade.
Programas dessa natureza, que visavam suprir a escassez de habitação, tornaram-se um
grande cabo eleitoral que estabeleceu uma relação entre políticos e moradores carentes, sendo
visto como uma grande moeda eleitoral. De acordo, com Peluso (2003),
“Em 1989, um ano antes da primeira eleição direta para governador e
assembléia distrital, a população carente significava votos e a terra pública em
mãos do governo tornara-se uma importante moeda eleitoral.” (idem 2003:18).
Peluso (2003) aponta que a oferta de moradias nas cidades satélites do DF no final da
década de 1970 e início de 1980 foi um grande incentivo às migrações para Brasília. A cidade
prevista para abrigar 500 mil habitantes, chegou ao ano 2000 na casa de dois milhões de
habitantes, de acordo com dados do Censo Demográfico do IBGE 2000, apresentados na
Tabela 12, logo abaixo.
106
“O Programa PROMORAR, em Brasília era utilizado como instrumento para legitimar, junto à população, a candidatura
do governador José Ornellas ao Senado Federal, o que de fato ocorreu em 1986” (Gouvêa, 1998:89).
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________________A rotatividade nos assentamentos da região
parentes próximos que tivessem mais tempo de Brasília. No caso da concessão das chácaras
muitos usaram o nome107 de esposas ou de outro parente de confiança para que isso
acontecesse, pois sabiam que poderiam sofrer algum problema caso o INCRA investigasse as
suas condições - como, por exemplo, serem funcionários públicos, empresários ou até mesmo
por passagem pela polícia. No trecho de uma entrevista pode-se perceber a idéia que ocupar e
vender seriam algo presente no cotidiano dos assentados, como podemos observar no trecho
logo abaixo.
Eu queria saber por que as pessoas que venderam as chácaras?
M: Eu acho que as pessoas que venderam porque vem pra cá com esse plano,
porque eles vêm só para pegar o dinheiro e sair fora saiu os créditos ai você já viu.
N: é igual muita gente faz na cidade, pega os lotes do Roriz e vende. M: Marcelo
tem gente que vem aqui pra sofrer não, pra pegar no cabo da enxada não,
entendeu? Então ele vem com aquele propósito, ele fala em pegar a terra, pegar
um dinheirinho e depois sai fora, o cara fica com o nome sujo, mas ele não esta
nem ai. Que dizer tem muita gente faz isso, N: o pessoal faz igual com carro, você
compra carro sem documento, depois você passa pra frente e ai vai assim. Então
muitas vezes é isso. K: engraçado como tem gente que planeja isso né.
As respostas dos assentados sugerem que muitos já tinham intenção de participar das
ocupações com intuito de vender as chácaras. Por isso, acredito que procurar entender como
se dá o processo de negociação das chácaras na região seria um elemento importante para
entender essa dinâmica na região.
Desta forma, procurarei trazer alguns casos representativos para compor um mural da
realidade dos assentamentos da região, no que diz respeito a esse mercado de terras e à
própria negociação como um campo de possibilidades dos assentados. Construirei esse mural
a partir de elementos que são compartilhados e que se repetem nos assentamentos da região de
Pé de Serra em Padre Bernardo.
De antemão é possível colocar que, apesar das vendas das chácaras serem um negócio
ilícito - como bem um assentado colocou que seria como comprar um carro roubado, ou seja,
ter a chácara não significaria ingerência sobre a mesma, não seria legalmente possível vender
a chácara sem a documentação que os assentados ainda não possuem o negócio com as
chácaras é habitualmente praticado pelos assentados. Isso foi constatado não só através dos
relatos feito por eles como também através das denúncias que são feitas na Superintendência
do INCRA (SR-28), órgão responsável pelos assentamentos da região.
O primeiro caso se refere à dona Maria, viúva e agregada na fazenda Serra Feia há
mais de 20 anos. Vivia plantando feijão, milho, mandioca e tomando conta da fazenda para o
antigo proprietário. Com a desapropriação da fazenda, a senhora Maria não recebeu
indenização por parte da proprietária. O único “privilégio” que ela teve foi que, na hora do
sorteio das chácaras, teve a prioridade de escolher em qual parcela queria morar no
assentamento Vereda I. Sua chácara como as outras tinha 20 hectares. Com isso dona Maria
escolheu uma propriedade próxima à beira do rio e com uma mina de água em sua
propriedade – ou seja, uma chácara privilegiada pela disponibilidade de água potável oriunda
da mina.
107
No jargão da região isso seria uma tática de uso da figura do laranja, que no dialeto da grilagem em Brasília é
aquela pessoa que empresta o nome para ocultar o verdadeiro interessado em determinado negócio.
178
________________A rotatividade nos assentamentos da região
Pela propriedade estar próxima ao rio Quente e com a mina de água, sua propriedade
passou ser procurada por interessados em comprar sua chácara. É importante ressaltar que,
depois da constituição dos assentamentos, especuladores de terra da região, sobretudo das
cidades satélites de Brasília passaram a freqüentar os assentamentos tentando convencer os
assentados a vender as chácaras, em alguns casos inclusive com a participação de
funcionários públicos de ministérios de Brasília. A região é considerada privilegiada, pois está
há pouco mais de 100 km de Brasília. Isso fez com que a corrida por uma chácara de final de
semana fosse intensa na região.
Cerca de quatro anos depois que o assentamento foi criado, com a sua casa de
alvenaria construída, diga-se de passagem, a primeira em toda sua vida - a anterior era de sapé
- e com a liberação dos créditos, dona Maria passou a sofrer pressão de alguns interessados
em comprar sua propriedade. Além disso, os seus filhos passaram a pressionar para que ela
vendesse ou trocasse a sua chácara por um negócio.
“(...) ela vivia reclamando que os filhos não a ajudavam na roça. Eles não
queriam saber mais da roça, porque na roça não estava dando mais para viver.
Eles viviam perturbando a coitada para vender, e comprar carro velho, moto
essas coisas. Hoje eu sei que ela esta arrependida, porque esta na cidade sem
casa e sem nada, estava até morando de favor.” (Assentada do Vereda I, 2006).
Diante dessa situação, e sem a ajuda dos filhos para tocar a propriedade, dona Maria
acabou cedendo e trocou a sua chácara por um ferro velho na cidade de Padre Bernardo,
dando a um dos seus filhos para tomar conta. Como é de costume a venda da chácara acaba
sendo celebrada com um acordo de boca ou algum papel que garantiria a transação. No
entanto, como foi abordado anteriormente, esse documento para o INCRA não teria valor
nenhum, pois o negócio como diz um técnico do INCRA seria ilegal e imoral.
Em minha última ida a campo em 2006, a chácara da dona Maria já tinha sido
negociada duas vezes e dona Maria já tinha perdido tudo o que tinha conseguido na troca da
chácara. Segundo relatos ela estava morando de favor e tinha ficado doente por causa do que
tinha acontecido. Os seus filhos tinham perdido o ferro velho e dois dos seus filhos acabaram
trabalhando em fazendas do município e até mesmo para assentados da região.
Essa frase aqui mais da metade já vendeu foi muito comum de ser ouvida ao indagar
como andava a rotatividade nos assentamentos. Essa associação estava atribuída ao
sofrimento passado desde a época de acampamento, a falta de água e até mesmo o fracasso
em utilizar os recursos conseguidos através de financiamentos, fizeram com que muitos
assentados vendessem as suas chácaras e voltassem para Brasília. Pude constatar que depois
da saída dos assentamentos teve indivíduos que foram participar das invasões urbanas no DF,
e o principal destino foram às invasões da Itapoá e da Estrutural, uma área surgida em meados
da década de 1990, próxima a uma área nobre de Brasília, que despontava como um dos
principais focos de ocupação urbana do DF no final do século XX.
Atrelada a esses elementos vem a especulação imobiliária nos assentamento da região
que nos últimos anos vem sendo alvo de interesses de compradores de terras da região e até
mesmo de funcionários públicos de Brasília. É importante ressaltar que como oficialmente a
terra não pode ser vendida, os valores pagos acabam sendo insignificantes, pois para quem
vende quem correria o risco de perder era o comprador.
179
________________A rotatividade nos assentamentos da região
Para ilustrar essa situação de venda procurarei retratar o caso do senhor X108, que
participou da ocupação da região desde o início em 1998. Como foi persistente conseguiu
tirar uma chácara em um dos assentamentos. Já na fase de acampamento conheceu uma
acampada que passou ser sua companheira, que também consegui uma chácara no mesmo
assentamento onde o senhor X foi assentado.
Senhor X e a sua companheira construíram uma casa, cada um em sua chácara. O
romance segundo ele tinha que ser mantido em segredo porque se o INCRA descobrisse, um
dos dois teria que entregar a chácara. Isso fazia com que eles vivessem um amor clandestino.
Segundo um técnico do INCRA, não era permitido entregar duas parcelas a pessoas
que viviam juntos, por isso um dos dois teria que renunciar a parcela e caso o romance fosse
descoberto e confirmado os dois perderiam o direito à terra. Por isso, foi comum ouvir casos
de assentados que tinham um romance, mais não assumiam. É importante ressaltar que isso só
acontecia quando os dois estavam com a propriedade em seus nomes.
Pouco antes de receber os créditos do PRONAF A, senhor X passou a receber
propostas de pessoas de Brasília para que vendesse a sua chácara. No primeiro momento ele
disse que recusou, mas com o passar do tempo, começou a perceber que não levava jeito para
trabalhar como produtor, pois tinha passado a vida quase toda trabalhando na cidade, a sua
companheira também seguia o mesmo caminho. Com a liberação dos créditos uma das
primeiras ações do casal foi comprar um carro. Para isso foi necessário simular a compra falsa
de gado, pois só assim que o banco liberaria o recurso que foi desviado para a compra do
veículo.
Mesmo antes de gastar todo o dinheiro do PRONAF A e com medo que o INCRA
descobrisse a sua situação com a parceira, aceitou a proposta e os dois venderam as suas
chácaras indo morar na casa de parentes em uma cidade satélite de Brasília.
Casos como o do senhor X e sua parceira foram muito comuns de acontecer na região,
principalmente após a liberação dos créditos, situação que procurarei retratar no caso três logo
abaixo.
Caso 3: Os créditos saíram num dia e na semana seguinte venderam e foram embora
Na ida a campo em 2004, passado mais de dois anos do meu último contato na região,
uma coisa dentre as novidades que pude perceber foi o grande número de pessoas que conheci
ausentes nos assentamentos ou de casas fechadas. Ao começar a vasculhar sobre o tema,
comecei a descobrir que algumas chácaras estavam abandonadas, pois seus donos estavam
morando na cidade, ou que algumas tinham sido negociadas depois que os créditos haviam
saído principalmente o crédito do PRONAF A.
Como a questão dos créditos me interessava passei a procurar entender o porquê da
relação rotatividade nos assentamentos – saída dos créditos. Pois, na lógica a saída dos
créditos era o que possibilitaria os assentados a começarem a produzir e a construírem as suas
casas.
Em diversas entrevistas realizadas que frisavam sobre essa questão, a que mais me
chamou atenção foi de um funcionário da Escola do Assentamento Boa Vista. Segundo o seu
relato ele começou a perceber que muitas crianças estavam faltando às aulas sem uma
explicação muito plausível. Quando resolveu investigar o que estava acontecendo, descobriu
que essas crianças tinham voltado para Brasília, pois as suas famílias haviam vendido as
chácaras, pegado tudo e indo embora. Isso ocorreu segundo ele com bastante freqüência logo
após a liberação dos créditos do PRONAF A. Foi quando ele me disse,
108
Neste caso optei por omitir o nome e o assentamento do informante por questão de ética, pois o mesmo havia
me pedido que daria a entrevista se o nome não aparecesse.
180
________________A rotatividade nos assentamentos da região
“(...) aqui teve pai de aluno que ficou sabendo que o crédito tinha saído num dia e
se mudou para a cidade na semana seguinte, muitos eu sei que já estão até em
invasões lá no DF” (funcionário da Escola da Boa Vista, 2004)
Essa percepção da relação das vendas das chácaras com a saída dos créditos é
compartilhada também por outros assentados. Para eles, mesmos aqueles que não venderam
as chácaras foram embora para cidade logo em seguida que os créditos saíram. Foram utilizar
o dinheiro do crédito em negócios na cidade como oficinas, bares e outros pequenos
estabelecimentos, ou até mesmo na compra de carros de aluguel.
“(...) Pois é você lembra do senhor Y que consertava geladeira e ar condicionado,
ele pegou o dinheiro do PRONAF A e investiu tudo na oficina dele lá na
Ceilândia.” (Assentado do Vereda II, 2004)
Outra questão que favorece a transação das parcelas na região são as chácaras de final
de semana. Essas chácaras são formadas por assentados com mais condições materiais que
estavam interessados em participar das ocupações para conseguir um lugar para a família
passar o final de semana. É importante ressaltar que os assentamentos da região estão há
pouco mais de 100 km de Brasília, o que seria ideal para construir uma área de lazer.
“Aqui no Vereda II tem 164, famílias agora que mora aqui direto deve ser 40%.
Eu acho que nem isso deve ser no máximo 30%, você dar uma andada que você
vai ver isso que eu estou falando. A maioria mora na cidade. (Assentado do
Vereda II, 2006).
Aqueles que não participaram das ocupações geralmente compraram depois da criação
dos assentamentos. Nesse caso, estariam entre aqueles que passaram a rondar os
assentamentos e a comprar terras dos assentados. Nesse bojo é possível encontrar uma
infinidade de pessoas, de empresários a funcionários públicos, que têm nessa chácara uma
área de lazer para passar o final de semana com a família.
Em determinada situação109, ao comprar a chácara, o proprietário coloca logo um
caseiro para que a casa não fique abandonada e coloca alguma plantação para constar que o
proprietário daquele imóvel mora ali. Isso porque segundo os assentados ter roça na
propriedade para o INCRA significaria que a propriedade não está abandonada, que ali teria
gente trabalhando.
Na análise dos assentados esses proprietários dessas chácaras de final de semana
acabam prejudicando o assentamento, porque na hora das decisões coletivas eles influenciam
109
Isso ocorreu principalmente entre os compradores que não vão residir no assentamento e tem naquele espaço
um local de lazer para passar as férias ou final de semana com a família.
181
________________A rotatividade nos assentamentos da região
muito nas decisões que lhes melhor convêm. Pois nas assembléias eles teriam direito a voz e
voto.
“O problema do pessoal de final de semana é que eles não participam da vida do
assentamento e quando vem nas assembléias sempre tumultuam querendo aprovar
o que melhor lhe convém, como foi na assistência técnica que escolheram aquela
que facilitava por mão no dinheiro”. (Assentado do Vereda I, 2004).
Num caso interessante narrado por um técnico do INCRA, ele descobriu através de
denúncias que em um dos assentamentos da região cerca de cinco propriedades contíguas
tinham sido adquiridas por uma só pessoa que era empresário em Brasília e teria utilizado
nomes de parentes para driblar a fiscalização. Segundo o técnico estavam fazendo um
latifúndio dentro do assentamento.
O que mais me chamou atenção é que na hora da transação da terra as pessoas utilizam
de vários recursos para realização do negócio, como a chamada gambira ou troca. Nesse bojo
entram carro velho, moto, lote na cidade e uma parcela em dinheiro.
Os valores são os mais variados; teve o caso de um assentado que estava endividado
aceitou cerca de R$ 2.000, 00 por sua parcela. Esse assentado110, que tive a oportunidade de
entrevistar, se dizia envergonhado pelo o que tinha feito, pois tinha passado tanto sofrimento
para depois jogar fora. Segundo ele, não conseguia olhar mais na cara de seus companheiros
por causa da vergonha. Além disso, se sentia enganado pelo seu comprador que aproveitou
um momento em que ele estava bêbado para fazer o negócio. Histórias dessa natureza, por
mais estranhas que se pareçam, estiveram presentes em outras situações nesse jogo de venda
das chácaras na região.
Ao tentar entender porque as pessoas estavam vendendo as suas chácaras por preços
tão módicos, as explicações é que, como a chácara não havia sido comprada, apesar do
sofrimento que passaram para conseguir a chácara, as pessoas não davam valor porque não
tinham ainda pagado por elas. Além disso, a pressão exercida pelos compradores de terras era
muita. E mesmo antes de fecharem negócios, esses compradores procuravam saber quem
estava desanimado ou quem estava com vontade de vender a terra. Isso facilitaria a transação,
seria mais fácil de persuadir o assentado a vender a sua chácara.
110
Ao vender a sua propriedade ele passou a morar com uma assentada no assentamento vizinho e a vender a sua
força de trabalho para outros assentados.
182
________________A rotatividade nos assentamentos da região
“O pior disso é que eles não conhecem a nossa historia, e por isso que acontece
muita confusão com eles, eles não sabem da nossa luta na época de acampamento,
do PDA a dificuldade com a água. (...) Além disso, eles exploram os assentados
aqui não pagando o dia de serviço como deveria ser pago”. (Assentados do
Vereda II, 2006).
Nas falas acima é possível interpretar o descontentamento daqueles que ficaram nos
assentamentos com aqueles que compraram. No entanto no trecho final da fala do assentado
se apresenta uma das principais respostas para entender porque os assentados toleram os
compradores de chácara.
Durante o trabalho de campo, inicialmente, ao indagar sobre aquela circulação de
pessoas novas morando ou adquirindo chácaras nos assentamentos, o que percebia era que os
assentados acabaram aceitando essa rotatividade por perceberem que aqueles novos
moradores poderia ser uma fonte de renda, uma vez que, como foi abordado, seriam essas
pessoas que tinham condições de pagar um dia de serviço.
“O pessoal que chegou agora geralmente tem dinheiro para pagar um dia de
serviço, e algumas pessoas antigas do assentamento ficam procurando eles
puxando o saco para ganhar um dia de serviço”. (Assentado do Vereda I, 2006).
“Se eles tiveram dinheiro para comprar uma chácara eles têm dinheiro para pagar
um dia de serviço, pra gente, né?” (Assentado do Água Quente, 2006).
111
O Fundo de Terras e da Reforma Agrária ou Banco da Terra foi implantado pela Lei Complementar nº. 93, de
1998, e pelo Decreto nº. 3.475, de 2000, que possibilita a aquisição de imóvel rural, incluídos os custos da
documentação de transferência da propriedade e as despesas cartoriais de registro do contrato de
financiamento e também a infra-estrutura comunitária.
183
________________A rotatividade nos assentamentos da região
importante ressaltar que na região, em 2002 foi constituído um assentamento pelos moldes do
Banco da Terra, por isso algumas pessoas que se inscreveram nesse programa e não foram
contemplados acabaram comprando chácaras nos assentamentos da região.
Também, ao tentar entender sobre a percepção desses compradores sobre as famílias
que estavam assentadas antes deles, eles concluem que eram pessoas que precisariam ter
dinheiro para investir na terra, porque como ali era uma terra nua, ela precisaria de grandes
investimentos e quem poderia trabalhar nela seria quem tivesse condições para investir.
“Quem veio para cá depois e comprou a terra foi porque tinha um recurso, para se
manter aqui, porque sem isso não tem condições mesmo. As pessoas que vêem
para cá vêem iludidas, achando que vão conseguir viver da terra” (Comprador no
Vereda I, 2006).
Ainda para os compradores, têm assentados que seriam preguiçosos e estão ali porque
não querem trabalhar duro ou porque têm uma outra fonte de renda que dá condições de se
manter no local. No entanto, aqueles compradores que pude entrevistar reconhecem em que as
condições que o INCRA assentou as famílias seriam desumanas e que não deveriam ser
assentadas famílias em áreas sem infra-estrutura e numa terra de baixa qualidade. Sobre o que
achavam da compra de uma terra que não podia ser negociada, os entrevistados responderam:
“Tem gente que tem uma visão que a terra não pode ser vendida porque a terra é
do INCRA, mas terra é de ninguém o título dessa terra que é do INCRA. Mas eu
tenho uma visão que a partir do momento que ele partiu e dividiu a terra em
parcela. Cada um manda na sua parcela, faz dela o que ele achar melhor, porque
isso aqui não é uma prisão do INCRA. Porque ninguém aqui é funcionário do
INCRA” (Comprador, no Vereda I, 2006).
“(...) Mas isso ta errado porque se a pessoa vendeu o direito dele é porque aquela
pessoa não teve condições de sobreviver, na terra então ele não vendeu terra ele
vendeu o direito dele de estar na terra, porque ninguém aqui tem terra”
(Comprador, no Água Quente, 2006).
“O INCRA fala que ilegal comprar a terra só que ele não vê que quem compra são
aqueles que têm condição de pagar um dia os créditos. Eles não estão investindo
para hoje e sim para quando chegar aposentadoria, eles colocam gente daqui de
dentro para trabalhar, gera serviços. Porque quem mora aqui e tenta viver daqui,
não tem condições de pagar um dia de serviço, quem paga é porque tem uma
renda lá fora” (Comprador, no Vereda II, 2006).
Nos depoimentos acima é possível perceber que a transação da terra para aqueles que
compram seria uma negociação normal e que o INCRA deveria aceitar esse tipo de
negociação. Além disso, eles acreditam que para ficar na terra seria necessário ter condições
de produzir e gerar renda.
184
________________A rotatividade nos assentamentos da região
Por meio deste capítulo, propus apresentar algumas reflexões sobre a rotatividade ou o
abandono das chácaras na região de Pé de Serra. Para isso recorri a um breve resgate histórico
dessa pratica na região do Distrito Federal, local onde a maioria dos assentados vieram e já
conheciam ou praticaram esse trinômio, invadir – conseguir - vender.
Além disso, os quatro casos expostos procuram apontar algumas reflexões que
permitem entender, através do material empírico, por que esses atores tomaram a decisão de
desfazer de suas chácaras. Com os dados obtidos é possível formular algumas questões
importantes que ajudam a entender essa dinâmica na região.
1) Pelo fato dos assentamentos se localizarem numa área bem próxima da Capital
Federal, o processo de transação de terra só seria possível por dois motivos principais. O
primeiro seria a idéia que já está estabelecida na região desde a construção da capital Federal
que seria o trinômio já apontado nesse capítulo: invadir – conseguir - vender. E outro, pela
ação de grileiros e mercadores de terras que atuam nas áreas do entorno, que estimulam essa
prática e em alguns casos por interesses eleitoreiros, como podemos ver no caso do título de
eleitor como condicionante para conseguir um lote em qualquer cidade satélite de Brasília.
2) Apesar de ser considerado um negócio ilegal, a transação da terra aconteceria pela
falta de acompanhamento do INCRA na região. No entanto é importante frisar que essa falta
de fiscalização ou até mesmo de acompanhamento por parte do órgão estaria relacionada com
a falta de recursos e pessoal que o órgão enfrenta.
3) Outro elemento, como a falta de infra-estrutura, não pode ser desconsiderado.
Como procurei mostrar ao longo do capítulo que à falta de água, de estrada e até mesmo de
condições de escoar a produção, fazem com que os assentados sintam-se desestimulados a
continuar na terra e acabam cedendo às pressões das pessoas interessadas em comprar suas
chácaras.
4) Outra questão norteadora nas observações em campo foi à falta de aptidão para lidar
com a terra. Frases do tipo só agora que eu sei o que é ser agricultor eram recorrentes durante
as entrevistas. Atrelada a essa questão teve a dificuldade de uma assistência técnica séria e
que orientasse os assentados. Essas condicionantes contribuíram para que os assentados se
desestimulassem e vendessem as propriedades. Todavia é importante ressaltar que mesmo
com esses desafios todos e as pressões exercidas sobre eles, muitos assentados acreditaram e
ficaram esperando construir ali um espaço que possam deixar para as suas gerações futuras. E
o próprio acesso à chácara já, talvez, possa constituir-se como parte de uma estratégia de
mobilidade socioeconômica.
5) No entanto, é preciso ressaltar que o assentamento pode ser um ponto final
relativo112 para essas famílias migrantes, uma vez que o assentamento possa ou não garantir
alguma permanência desses atores. A idéia do assentamento como um ponto final relativo me
conduz a refletir que as experiências vivenciadas nos assentamentos possam servir de
subsídios necessários para que as pessoas tornem a migrar novamente, ou seja, é preciso
aceitar que as pessoas possam sair do assentamento, que ali pode não ser um ponto final para
algumas famílias. E que aquele assentado que vendeu a sua chácara ou utilizou os créditos
112
Tal observação, do ponto final relativo, surgiu das contribuições dos colegas e da professora Leonilde
Medeiros, durante a disciplina de Seminário de Tese ministrada no primeiro semestre de 2004, no CPDA-
UFRRJ.
185
________________A rotatividade nos assentamentos da região
para outra finalidade pode ter visto neste ato uma possibilidade de um salto para outro degrau
socioeconômico.
Assim, essa reflexão do ponto final relativo me conduz a questionar também a idéia de
fixação ou de “plantar” as pessoas no assentamento, que os gestores de políticas públicas
constroem sobre os assentamentos rurais. Pois, acredito que para garantir a permanência das
pessoas no assentamento é necessário que se criem uma série de condições (infra-estruturas,
créditos, assistência técnica de qualidade, dentre outras) que permitam que as pessoas de fato
possam escolher ficar na terra, além de se considerar as particularidades de cada
assentamento.
Nesse sentido, é possível especular que essa situação possa ser um indicador para
explicar a evasão e a rotatividade nos assentados rurais. Só para efeito de reflexão, citarei a
fala de um assentado do Vereda I que pode ajudar a ilustrar tal situação. “Eu nunca desanimei
da vida. A gente sempre tem que tá correndo atrás, se não está bom aqui pode estar em outro
lugar”.
Assim, a partir da convivência com os assentados da região, foi possível perceber que
todo esse mecanismo de invadir – conseguir - vender, os créditos como um campo de
possibilidade e a falta de uma política de reforma agrária que não se resumissem basicamente
à “distribuição de terras”, têm sido vetores que contribuem para a rotatividade nos
assentamentos da região.
186
________________Considerações finais da tese
Por meio deste estudo, propus em linhas gerais conhecer o cotidiano e as forma de
sociabilidade nos assentamentos rurais formados por famílias migrantes da região de Pé de
Serra no município de Padre Bernardo-GO, entorno do Distrito Federal. Um dos caminhos
escolhidos para entender o que foi proposto foi a observação e a análise do dia-dia nos
assentamentos. Nesse sentido, a idéia de entender essa realidade partiu inicialmente das
minhas experiências durante o mestrado com os assentamentos da região e foi aprofundada
agora no doutoramento. Para isso, o mergulho no cotidiano dos assentamentos foi importante
para entender as dinâmicas existentes naquele espaço e compor aquilo que chamo de retrato
dos assentamentos da região.
Assim, a partir da minha experiência de pesquisador, do diálogo com a literatura e dos
conselhos da orientação, adotei como opções metodológicas acompanhar o dia-a-dia dos meus
atores e, a partir de relatos orais de pessoas de carne e osso, procurei descrever e analisar esse
cotidiano.
É importante ressaltar que a estratégia de ir a campo várias vezes e com um
distanciamento de um campo ao outro proporcionou a geração de novos questionamentos e,
além disso, contribuiu para evitar que eu fizesse juízo de valor na realização das
interpretações desse cotidiano e afastar-me das pré-noções que me acompanhavam
anteriormente a essa pesquisa.
Portanto, a vivência com esses assentados me elucidaram questões importantes que
procurei mostrar ao longo da tese, mas também geraram outros questionamentos que me
fizeram refletir, principalmente, sobre o processo de reforma agrária na região. Desta forma,
nestas considerações finais trarei destaque para algumas destas questões que julgo importantes
para o entendimento do processo na região estudada.
Foi possível perceber que a decisão de sair de Brasília e partir para o acampamento
surgiu, sobretudo, como um campo de possibilidade que permitiu vários assentados, que não
conseguiam re-colocação no mercado de trabalho, de trabalhar. Isso é possível de observar no
depoimento de um assentado.
“Quando eu chegava para procurar emprego, iam logo me pedindo os
documentos, via a minha idade [62 anos] e logo falava que não tinha vaga não.
Rodei por todo canto e a única coisa foi isso aqui [assentamento]. Vim parar nos
sem terras, aqui pelo menos planto para comer” (Assentado do Vereda I, 2004).
187
________________Considerações finais da tese
Além disso, é preciso deixar claro que na perspectiva desses migrantes saírem de uma
situação de assentado para a de morador da periferia da cidade ou até mesmo para uma
invasão urbana pode estar na lógica da dinâmica de vida desse atores. Essa idéia ajuda a
entender que esses atores estão buscando um espaço que possibilitem um upgrade para uma
situação de vida melhor, que pode ser o assentamento ou não.
Diante dessa observação, Garcia Jr (1989) entende que migrar pode ser uma estratégia
importante para a reprodução social de um determinado grupo. O autor, em seu estudo no
Brejo e Agreste da Paraíba, conclui que a migração, no caso para as cidades industriais,
significava uma forma de escapar da sujeição, o que passou a ser associado à noção de
liberdade, porque com o dinheiro obtido no Centro-Sul, podia-se comprar terras para a família
cultivar e eles sairiam da condição de sujeitos para condição de libertos.
Isso conduz a observações similares às feitas por Klaas Woortmann (1990) na qual o
autor considera que a migração para essas populações faz parte das suas práticas de
reprodução. Nesse sentido, o mesmo autor chama à atenção que a migração era o que
permitiria a reprodução da família.
Portanto, essa explicação seria contrária à idéia de algumas instituições e de até
mesmo do INCRA ou da própria política de reforma agrária que concebem o assentado como
um indivíduo que deve ser fixado ou assentado à terra, ao lote, à chácara sendo que sua saída
seria considerada uma evasão, ou até mesmo vista como um indicador de insucesso ou
fracasso da política de reforma agrária. Essa mentalidade precisa ser revista por esses
gestores. Como pode ser observado em diversos estudos, as pessoas sempre buscarão espaços
que garantam a sua reprodução e até mesmo sua permanência; são estratégias que esses atores
encontram para garantir sua sobrevivência.
Por outro lado, é importante ressaltar que têm assentados que decidiram ficar nesses
assentamentos da região e passaram a buscar uma identidade de agricultores familiares que
estariam relacionadas a uma série de benefícios, reconhecimento e prestígios que, ser
reconhecidos como sem-terras, não teriam. Isso porque o termo sem-terra na região é
encarado de maneira geral como forma depreciativa e por isso os assentados rejeitam ser
reconhecidos como tal.
Durante a minha presença na região foi possível perceber que, mesmo com
dificuldades de se adaptar e tocar as terras do cerrado, a memória de um passado vivido no
campo foi reativada para produzir e reproduzir aspectos culturais valorizados por eles,
mesclados com os valores culturais adquiridos e acumulados em suas experiências ao longo
de suas vidas.
O próprio nome que é dado à parcela que eles recebem sofre influência da cidade por
causa desse misto que eles viveram. Normalmente, no seu local de origem, os entrevistados
denominavam a terra em que moravam de sítio ou rancho. No assentamento, a parcela é
denominada pela maioria de chácara, uma visão clara da influência de Brasília. Essa
influência se deve ao fato de terem trabalhado, por algum tempo, como chacareiros ou
tomadores de conta de pequenas porções de terras no entorno do DF. Além disso, a própria
cidade exerce uma influência na vida deles, sobretudo no quis diz respeito à relação com os
familiares e como um local que possibilita conseguir trabalho tanto para homens quanto para
mulheres - um local que garantiria condições para que os assentados permaneçam vivendo nos
assentamentos da região.
Assim, a família que está na cidade passa a desenvolver um papel importante, pois,
como disseram, sem o aporte da família que está no Distrito Federal, à vida no assentamento
seria quase impossível, pois é geralmente na casa desses parentes que os assentados tendem a
ficar durante a semana. E, em muitos casos, são os parentes que estão na cidade que
conseguem os chamados bicos ou trabalhos temporários.
188
________________Considerações finais da tese
Nesse sentido, José de Sousa Martins (2003) já chamava a atenção que a visão de
família para o sujeito da reforma agrária é de uma família extensa muito mais além do núcleo
familiar, sendo constituído por uma rede de parentesco e agregações. Portanto, um dos pontos
cruciais é a capacidade desse atores de formar redes formais e informais de parentesco,
amigos ou vizinhança, que servirão de estratégias para que esse migrante se integre no novo
universo pretendido ou mesmo para que possam se manter nesses espaços.
A partir dessa idéia de um conjunto de relações que são construídas fora do
assentamento podemos perceber tal quais as aldeias balinesas estudadas por Geertz (1998),
que os assentamentos possuem um sistema social dotado de um conjunto complexo de
relações que extrapolariam as fronteiras desses assentamentos.
Fazendo esse link entre o campo e a cidade, temos o ônibus que é apontado pelos
assentados como o instrumento principal dessa integração. Assim, o ônibus faria um papel
semelhante à canoa113 do Kula observada por Malinowiski (1978); tal qual a canoa, o ônibus
seria, além de um instrumento de transporte, também um elemento constituído de emoções e
um espaço de trocas simbólicas e materiais que os assentados realizam.
Além disso, foi possível perceber também que após a conquista da terra, os assentados
deparam-se com um novo desafio que passa a ser construído coletivamente e também
individualmente. Vai desde o fortalecimento da sua organização através de sua associação, do
desafio de viverem num modelo de agrupamento diferente ao que estavam acostumados e de
até mesmo da obtenção de infra-estrutura necessária para a sobrevivência deles.
Nesse novo espaço diversos mecanismos são acionados. Vão desde o controle social
através da fofoca ou da vergonha e passam pelas condições climáticas - como, por exemplo, o
ano agrícola determinado principalmente pelo ciclo chuvoso, que se inicia no final de
setembro com as chamadas chuvas do cajueiro, que determina o início do processo produtivo
nos assentamentos.
Ao longo da tese procurei apresentar que mesmo se passando mais de oito anos de
constituição dos assentamentos, esses são carentes de infra-estrutura básica, como acesso a
água e estradas. A energia elétrica só chegou ao final de 2005 e início de 2006, mesmo assim
através do projeto Luz Para Todos, uma parceria do Governo Federal com a concessionária de
energia do Estado de Goiás.
Outro fator agravante é o baixo nível tecnológico que os assentamentos se encontram,
com poucos recursos, ausência de assistência técnica e com grande parte de seus moradores
endividados. As condições de produção ficam comprometidas, o que tem contribuído para a
rotatividade na região.
Sobre essa questão autores como Leite et all (2004), apontaram que a ausência de
créditos, assistência técnica e infra-estrutura têm contribuído de forma significativa para
impossibilidade das condições produtivas dos assentamentos rurais no Brasil.
No entanto, com ações de parceria de mediadores, sobretudo das universidades, esses
assentados têm buscado alternativas de sobrevivência através de ações coletivas e até mesmo
individuais, o que tem contribuído para melhorar a vida dessas pessoas na região. Um
exemplo disso foi o prêmio Comunidade Solidária – Banco Real conquistado pelo
assentamento Vereda I, com a contribuição do GT-RA da UnB. Outra ação que tem
contribuído para a organização dos assentados foi à discussão e instalação da Escola Família
Agrícola, que vem com a proposta de organizar e contribuir para a capacitação dos assentados
do município.
Já a ação dos agentes do Estado, como o INCRA e a prefeitura, tende a ser lenta e
burocrática. O INCRA, por falta de pessoal e até mesmo de infra-estrutura, alega não ter
113
Para os nativos estudados por Malinowiski a canoa se constitui num dos principais elos da corrente formada
pelos participantes do Kula.
189
________________Considerações finais da tese
condições de acompanhar mais de perto a situação dos assentamentos da região. Isso tem
provocado certo abandono, o que tem facilitado, por exemplo, o comércio de terras na região.
No caso da prefeitura, a relação que vem sendo construída é de um clientelismo, do
vota aqui - que eu faço aí, ou seja, a prefeitura só reconheceria os assentados a partir do
momento que esses votassem no município, ou caso contrário, como diz um membro da
prefeitura, eles não teriam direitos de reivindicar nada, pois não seriam eleitores do município
e, portanto, não existiriam legalmente.
Essa relação de voto - favor é uma prática comum na região do entorno do DF,
oriunda, principalmente, das políticas de distribuição de lotes em troca de votos nas cidades
do Distrito Federal, uma prática que acredito que aconteça em outras partes do Brasil e que ali
fica muito latente com o chamado Tempo de Brasília.
Assim, sendo, como no estudo de Geertz (1998) sobre as aldeias balinesas, foi possível
perceber que nos assentamentos da região os diferentes planos de organização social não
estão, necessariamente, rígidos e imutáveis. Esses distintos planos de organização, poder,
políticos, Estado, família, parentesco, igreja, mediação, em cada um se encontra uma lógica
de relação própria.
E por fim, considero que este trabalho contribui para preencher lacunas nos estudos
que tratam da questão da migração em assentamentos rurais, da convivência, cotidiano e as
formas de sociabilidade desses atores em assentamentos, sobretudo, nessa região do entorno
do Distrito Federal, que por excelência é uma região constituída principalmente por migrantes
e, que ainda atrai muitas pessoas. No entanto, acredito serem necessários mais estudos
etnográficos, buscando reunir outras experiências que ajudem a compreender e a conhecer a
realidade social nesses espaços.
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