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História Oral: mais que uma metodologia de pesquisa

PATRÍCIA ROMANA DE OLIVEIRA*

Resumo
O presente trabalho se constitui com o propósito de expor a tessitura de um projeto de
pesquisa para dissertação de Mestrado, que busca compreender o processo de construção
identitária dos profissionais que atuam na educação básica brasileira e estabelece como seu
objetivo investigar como as experiências docentes em escolas municipais de ensino
fundamental de tempo integral, de um município paulista da região do Vale do Paraíba,
contribuem na construção deste processo. A História Oral de Vida, metodologia escolhida para
a execução da pesquisa, além de mostrar-se como a melhor correspondente aos propósitos
estabelecidos, mostra-se também, como uma oportunidade dar visibilidade às percepções e de
atribuir o protagonismo aos professores, sujeitos colaboradores da pesquisa. Abertas as
possibilidades de produção de novos documentos, de registros de histórias cotidianas,
oportuniza-se também um exercício dialógico para reflexão, validando versões diferentes e
atribuindo aos sujeitos cotidianos o papel de protagonista das tramas que são construtoras da
História.

Palavras chave: História de Vida – Docência – Identidade

*
UNITAU, Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação e Desenvolvimento Humano (PPGEDH) e
Professora da rede municipal de São José dos Campos-SP.
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Introdução
Ao expor a tessitura do planejamento do estudo, destaca-se neste artigo, a opção da
História Oral de Vida como metodologia de uma pesquisa para dissertação de mestrado,
propondo investigação sobre como cooperam as experiências docentes em um projeto de
educação integral, na constituição da identidade destes profissionais, em um município do Vale
do Paraíba, que, por quase uma década, sustenta em algumas das suas unidades escolares, um
projeto deste cunho.
A pesquisa de abordagem qualitativa observa a voz dos sujeitos docentes como base
fundamental. Por intermédio das narrativas, oportuniza-se aos professores, possibilidade de
composição de relatos sobre suas experiências de vida, pessoais e profissionais, principalmente
sobre o contexto de atuação com aulas que não fazem parte da Base Nacional Comum
Curricular. A denominação de colaborador ao professor entrevistado da pesquisa, indica o
reconhecimento deste sujeito para a realização deste estudo, como sugerem Meihy e Ribeiro
(2011).
A real correspondência desta metodologia aos anseios da pesquisa foi crucial no
processo da sua escolha. Entretanto, não foi a única razão. A metodologia História Oral de Vida
propicia o respeito pela integralidade e pela subjetividade desejado neste estudo, oferecendo-se
como real promoção de visibilidade às percepções dos professores, ocupantes da circunstância
de protagonistas das narrativas e da construção identitária. A possibilidade de produção de
novos documentos, foi outro aspecto relevante a ser considerado nesta escolha, pois com
registros de histórias cotidianas, favorece-se o exercício reflexivo, a validação de diferentes
versões e dos sujeitos cotidianos.
O artigo apresenta-se em três partes. A primeira, se compõe do contexto das
inquietações e interesses particulares da pesquisadora servindo de tempero para a escolha da
temática do estudo, convertendo-se em problematização e objetivos da pesquisa. A segunda,
apresenta a História Oral de Vida como metodologia definida para essa pesquisa de caráter
qualitativo, destacando a importância dos procedimentos desta metodologia em diferentes
pesquisas. A terceira parte, se compõe de possíveis ensaios reflexivos entre uma das narrativas
transcritas e referenciais teóricos que sustentam essa pesquisa.
Das inquietações à pesquisa
A complexidade, aspecto partícipe do exercício da docência, encontra-se presente
também na construção de um projeto de pesquisa científica. Questionamentos e buscas por
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respostas, atos tão pertinentes à dinâmica da construção de um projeto de pesquisa, são também
atitudes permanentes ao exercício da docência.
As inquietações nascidas no contexto cotidiano profissional podem se configurar em
bons motes para a elaboração dos problemas e objetivos para pesquisas em um curso de
mestrado profissional.
A condição de estar imersa em um cotidiano profissional marcado pelo envolvimento
com docentes, responsáveis por aulas diferentes das disciplinas escolares comuns, em escolas
de ensino fundamental, e que constroem essa jornada ampliada com características distintas da
jornada regular, traduziu-se como motivação para investigar sobre a identidade profissional
destes sujeitos.
Aquele que pesquisa se trata de um sujeito imerso a um tempo, espaço e contextos, dos
quais não se pode extraí-lo. Assim, a escolha de um assunto para a pesquisa “não surge
espontaneamente, mas decorre de interesses e circunstâncias socialmente condicionadas”.
(GOLDENBERG, 1999:79)
As posições tomadas e escolhas realizadas no percurso da construção do projeto de
pesquisa foram determinantes na constituição dos contornos da mesma. Desta forma, traços da
leitura de mundo do pesquisador também estão impressos na pesquisa.
Sobre essa questão, Lüdke e André (2014) afirmam

Não há, portanto, possibilidade de se estabelecer uma separação nítida e asséptica


entre o pesquisador e o que ele estuda e também os resultados do que ele estuda. Ele
não se abriga, como se queria anteriormente, em uma posição de neutralidade
científica, pois está implicado necessariamente nos fenômenos que conhece e nas
consequências desse conhecimento que ajudou a estabelecer. (LÜDKE E ANDRÉ,
2014:5)

As inquietações participam da construção de um projeto de pesquisa. Entretanto, elas


não são as únicas convocadas neste processo, pois nele demanda-se o acionamento de outros
tantos elementos, haja vista a sua complexidade. A disponibilidade de tempo do pesquisador,
as condições de acesso às informações, os prazos estipulados para a pesquisa, a relevância e
recorte do assunto, são algumas das considerações a serem feitas neste processo em que
caminhos, opções, prazos e objetivos são definidos.
No exercício de transformar inquietações em projeto de pesquisa, leituras foram
necessárias para que a compreensão deste universo fosse ampliada. Para Martins (2000), o
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projeto de pesquisa, é constituição de um texto que detalha, define e mostra, o caminho a deseja
percorrer no trabalho científico, impondo-lhe ordem e disciplina ao pesquisador para sua
execução, inclusive com respeito aos prazos estabelecidos. Lakatos e Marconi (2001), indicam
que o projeto é parte do processo de pesquisa, ao qual deve-se atenção ao rigor. Já Fachin
(2002), concebe o projeto de pesquisa como a sequência de etapas organizadas pelo
pesquisador, onde se define a metodologia a ser aplicada durante desenvolvimento da pesquisa.
A intencionalidade de organização entre o teórico e o prático tornou-se então evidente
e durante a elaboração do projeto de pesquisa, a devida atenção aos parâmetros oferecidos pelas
leituras foram mantidas. Além disso, reconhece-se que na elaboração de um projeto de pesquisa,
uma gama de elementos é requerida como tempero na dinâmica da relação entre o pesquisador
e pesquisa.
Lüdke e André (2014) compreendem a pesquisa como

(...) uma ocasião privilegiada, reunindo o pensamento e a ação de uma pessoa, ou de


um grupo, no esforço de elaborar conhecimentos sobre aspectos da realidade que
deverão servir para a composição de soluções propostas aos seus problemas. Esses
conhecimentos são, portanto, frutos da curiosidade, da inquietação, da inteligência e
da atividade investigativa dos indivíduos, a partir e em continuação do que já foi
elaborado e sistematizado pelos que trabalham o assunto anteriormente. (LÜDKE E
ANDRÉ, 2014: 2)

Em um Mestrado Profissional essa questão torna-se latente, pois sua própria proposta
faz-se na relação direta entre os estudos à prática profissional. Como molas propulsoras, as
inquietações motivam e aproximam a pesquisadora da pesquisa, contribuindo de forma
favorável ao planejamento e à medida em que estejam aliadas à preocupação com o rigor de
uma produção, possivelmente colaborarão positivamente ao estudo e à pesquisa. Tal aliança
firmou-se durante as orientações para a constituição dos contornos da pesquisa.
No compasso dos encontros com a professora orientadora para a elaboração do projeto,
alcançou-se clareza diante das escolhas e balizas foram definidas para a construção do percurso
a ser trilhado. Desta forma, a figura do professor orientador firmou-se como de fundamental
importância inclusive na construção do projeto de pesquisa, oferecendo uma parceria experiente
neste processo.
Fruto deste panorama, o projeto de pesquisa construído no Programa de Pós-graduação
em Educação e Desenvolvimento Humano: Formação, Políticas e Práticas Sociais da
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Universidade de Taubaté, na área de concentração de Inclusão e Diversidade, sob a orientação


da Prof.ª Drª. Suzana Lopes Salgado Ribeiro, propõe reflexão sobre a relação das experiências
profissionais exercidas dentro das escolas de período integral com o processo de construção da
identidade docente.
A escolha da História Oral como metodologia da pesquisa qualitativa
Os contornos traçados para a pesquisa conduziram a sua efetivação dentro da abordagem
qualitativa. Bogdan e Biken (1994), observam a pesquisa qualitativa como promotora de
preocupação e consideração quanto as perspectivas dos sujeitos. Gonzáles Rey (2002) percebe
a pesquisa qualitativa com bases em um diálogo contínuo e gradual, onde elementos como
segurança e interesse colaboram positivamente para acesso e construção de conceitos e
conhecimentos irrealizáveis no cotidiano de forma espontânea. Para o autor, tal dinâmica
propicia ao entrevistado e ao pesquisador a possibilidade de contínuo desenvolvimento.
Definida a abordagem qualitativa para a pesquisa, tornou-se fundamental a escolha da
metodologia, com considerações à integralidade e à subjetividade desejadas para o percurso do
estudo. Optou-se, assim, pela metodologia da história oral de vida.
“História oral de vida tem feições mais biográficas e obedece sempre à sequência dos
acontecimentos da vida: infância, juventude, maturidade” (MEIHY, RIBEIRO, 2011: 97).
Desta forma, tal metodologia fornece condições para que a narrativa se negue a
compartimentação, preservando e considerando a integralidade do entrevistado.
Para Meihy e Ribeiro (2011), a história oral de vida é uma metodologia que considera a
experiência como matéria prima para o estudo, propondo-se à compreensão do universo pessoal
a partir das narrativas que transitam por emoções e impressões, e, portanto, com
reconhecimento e consideração às subjetividades.
Estando a integralidade e a subjetividade presentes nos procedimentos previstos na
história oral de vida, sua utilização como metodologia para essa pesquisa de abordagem
qualitativa mostrou-se frutífera. Os entrevistados na pesquisa foram chamados de
“colaboradores” (MEIHY; RIBEIRO, 2011: 22) pois são sujeitos ocupantes de um espaço ativo
neste processo e ultrapassam a condição de meros informantes. Por suas narrativas, entende-se
que suas histórias de vida se entrelaçam com o projeto de escola de formação em tempo integral,
demonstrando estreita e calorosa relação, evidenciando a integralidade humana. A relação
pessoal e subjetiva marcou o clima dos encontros das entrevistas, confirmando o necessário
reconhecimento da posição de colaboradores aos sujeitos entrevistados.
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Outro fator que cooperou para a escolha da história oral como metodologia foi a
composição do público alvo: professores que, assumindo aulas no período do contra turno,
vivenciaram a experiência docente em um contexto diferente do regular. A história oral,
caracterizada por oportunizar aos sujeitos não participantes da história oficial o direito à voz,
ofereceu oportunidade de relato e de reconhecimento a esses docentes, admitindo-se como um
“campo aberto à produção de conhecimentos sobre diferenças”. (MEIHY; RIBEIRO, 2011: 28)
Para Benjamim (1987) o narrador é aquele que recolhe o que conta entre suas
experiências e dos outros. Tais experiências recolhidas e narradas, mesclam-se com as
experiências de quem as ouve. Assim, constitui-se a percepção de que as narrativas não são
produções exclusivas dos entrevistados, pois nelas estão embutidas situações de
compartilhamento de sensações, sentimentos, expectativas e experiências entre quem fala e
quem ouve, em meio a reflexões exercidas. Benjamim (1987) observa na narração a função de
transmitir um saber para as gerações seguintes, fato que, segundo ele, faz com que o narrador
teça seu discurso com o que julga ser interessante preservar e renegue ao esquecimento o que
porventura considera um aspecto negativo na impressão da sua marca.
Os encontros para as entrevistas se desdobraram em seu potencial. As narrativas de vida,
atentas ao cotidiano profissional, constituíram-se como promissoras no reconhecimento da
identidade docente e na produção e reelaboração de pensamento à medida em que oportunizava
reflexão para os dois sujeitos participantes qual fosse a sua posição: ouvinte ou narrador.
Para Michael Le Vem (1997) o momento da entrevista é único, pois é nele que
pesquisador e entrevistado exercem reflexão sobre sua identidade e sobre suas vidas envoltos à
interação, à elaboração de representações mútuas e manifestação de emoções. O cuidado na
preparação das entrevistas coopera para que elas sejam profícuas em sua realização. Nesta
pesquisa, as bases determinantes para as entrevistas foram construídas a partir de condições
para um bom relacionamento com o entrevistado, o que os proporcionou o “conhecimento do
projeto e do âmbito da sua participação”, como também a informação sobre como se constituiu
a teia dos nomes para as entrevistas. (MEIHY, RIBEIRO, 2011:104)
A realização das entrevistas desvelou a percepção de que este momento é composto por
múltiplos elementos. Um deles se constitui em aprender a ouvir. Com o andamento das
entrevistas, acumulou-se maior segurança na posição de ouvinte das narrativas. Para Thompson
(1998)
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Há algumas qualidades que o entrevistador bem-sucedido deve possuir: interesse e


respeito pelos outros como pessoa e flexibilidade nas reações em relação a eles;
capacidade de demonstrar compreensão e simpatia pela opinião deles; e, acima de
tudo, disposição para ficar calado e escutar. (THOMPSON, 1998: 254)

Foi preciso atenção sobre esse aspecto. Compartilhar os objetivos, assegurar sigilo,
transmitir confiabilidade, saber ouvir, primar por um clima de cordialidade e respeito produzem
bons frutos para a relação entre pesquisador e colaborador. A qualidade na relação entre os dois
sujeitos na situação da entrevista é ponto determinante para a fluidez das narrativas.
Lüdke e André (2014), também tratam desta questão e afirmam que a entrevista
realizada sob à luz da confiabilidade proporciona ao pesquisador melhor condição de exposição
das informações, uma vez que surgem dentro de um contexto marcado com maior naturalidade
e autenticidade. (LÜDKE; ANDRÉ, 2014:39)
Previamente cuidadas, as entrevistas aconteceram em encontros de caráter pessoal,
marcados pelo clima de confiança entre o colaborador e a pesquisadora. Elas aconteceram por
meio de entrevistas abertas, pois oferecem ao colaborador maior poder de escolha durante a sua
narrativa. Além disso, gestos e expressões foram registrados em caderno de anotação, como
sugerem Meihy e Ribeiro (2011), vencendo a ineficiência dos gravadores para a composição da
tradução dos significados.
A adoção deste procedimento para coleta de dados criou a possibilidade de ir para além
dos limites que os documentos escritos estabeleceriam. A História Oral extrapola o ato de
relatar fatos. Há, por ela, a oportunidade de se alcançar o conhecimento que advém de sujeitos
marcados pelo tempo e espaço, com nuances e elementos reveladores limitados aos documentos
escritos. Nesta pesquisa, então, entende-se “ História Oral como manifestação coerente com o
tempo em que vivemos, como forma de capitar um instante da nossa própria História” (MEIHY,
1994:54)
A História Oral de Vida, possibilitou visibilidade aos professores que atuam ou atuaram
na perspectiva da educação integral neste município, transformando suas narrativas em
documentos, legitimando-os no contexto educacional e validando suas experiências na
formação de suas identidades profissionais.
Ensaio reflexivo em breve diálogo
Dada a natureza das entrevistas e o prazo que se goza para a realização da pesquisa e
elaboração da dissertação, optou-se por entrevistar seis docentes que por no mínimo dois anos
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atuaram nas escolas de ensino fundamental de uma das redes municipais do Vale do Paraíba,
ministrando aulas diferentes das existentes no ensino regular. Esses professores, considerados
diferentes, ocuparam a condição de protagonistas em suas narrativas e na tessitura da rede de
entrevistas, pois eram consultados para indicações de prováveis futuros colaboradores,
exercendo o reconhecimento aos colegas de profissão. Admitindo a diversidade como uma
questão relevante para o estudo, foi composta uma duplicidade de redes de entrevistas. Para
iniciar as entrevistas, foram eleitos dois docentes de diferentes áreas de formação e escola de
atuação, mas de reconhecimento e destaque equivalentes dentro da população estudada. É fato
que houve intersecção entre as redes. Das seis entrevistas realizadas, abrangeu-se três áreas
distintas de formação e quatro escolas do universo das onze unidades que dispõe do projeto de
escola integral neste município.
Realizadas as entrevistas, as narrativas gravadas em áudio assumirão a condição de
documentos desta pesquisa assim que transcritas. O trabalho de transcrição e ensaios da
arquitetura do diálogo destes documentos com referenciais teóricos está em seu início.
Entretanto, faz-se justo neste artigo a apresentação de trechos de uma das narrativas obtidas nas
entrevistas no intuito de expor os primeiros passos deste estudo. Por ser uma entrevista que
compõe a pesquisa autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Taubaté
(CEP-UNITAU), a identidade da professora será mantida em sigilo.
A docente manteve-se no projeto de educação integral entre os anos de 2009 e 2012. Ao
ser efetivada, exerce sua profissão na mesma rede de ensino como professora de Ciências para
alunos do ensino fundamental II.
Sobre esta situação a professora comenta: “Eu não estou mais no projeto por conta da
diminuição das horas. É um trabalho que eu gosto muito e acho que eu continuaria fazendo por
muito tempo, porque eu acredito”. (Professora)
Ao tratar do número de horas, a professora se refere a uma das mudanças que o projeto
viveu, oferecendo uma jornada de trabalho menor aos professores, interferindo de forma
negativa e direta no salário. Entretanto, na mesma frase, ela explicita sobre sua posição e
aderência em relação ao projeto referido.
Remetendo-se à circunstância da sua chegada como docente no projeto de escola de
formação em tempo integral, a professora narrou seu encontro com a orientadora pedagógica
afirmando ter ouvido dela a seguinte frase: “A partir de agora, você não vai escolher mais o que
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você vai dar para o aluno. É o aluno quem escolhe”. Na sequência da sua narrativa a professora
diz ter pensado: “ Como assim, o aluno escolhe? ” (Professora)
Tal trecho da narrativa demonstra a perplexidade da professora diante do contexto que
lhe era exposto. A docência na jornada ampliada da escola parecia-lhe fora dos padrões, em
condições duvidosas de probabilidade. Entretanto, conforme assinala Arroyo (2012), ampliar o
tempo na escola é ato que sugere a produção de um outro tipo de educação, que venha a minar
o rígido sistema escolar, para modificar o grau de exclusão e opressão que exerce,
especialmente sobre as classes populares.
O questionamento da professora demonstra o quão natural compreende-se a rigidez do
sistema escolar e suas consequências. A inversão da escolha, atribuindo aos alunos direito de
participação, apesar de ser uma atitude mais democrática, soou, à princípio, com estranhamento
e dúvidas à docente.
Vencido o susto e passando pela experiência da docência nestes moldes por quatro anos,
na narrativa da professora torna-se perceptível sua crença no trabalho docente pautado em
princípios democráticos, validando a participação dos alunos. Boa “é aquela aula que o aluno
se sente à vontade para falar, perguntar, para colocar defeito em alguma coisa”, afirma a
professora, que ainda complementa: “Isso é fazer a gente crescer. ” (Professora)
Nesta perspectiva, Freire (1996) escreve:

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o
dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes
populares, chegam a ela - saberes socialmente construídos na prática comunitária -
mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a
razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos .
(FREIRE,1996: 15)

Assim, compreende-se que o diálogo e o reconhecimento das diferenças são como


condicionantes favoráveis ao movimento de crescimento e desenvolvimento de ambos os
envolvidos: docentes e discentes.
Em contrapartida, referindo-se à sua realidade atual como professora de Ciências da
jornada regular, afirma:

Eu sempre tento mudar. Em sala de aula é mesmo um pouco mais limitado. A gente
tem cronograma de provas, tem todo o planejamento que tem que dar conta e, então,
muitas vezes, dou aquela aula chata tradicional de explicar conceitos. Mas tudo que
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dá para fugir, que dá para correr para o laboratório, eu faço! Pergunto sobre o que
gostariam de saber e a gente vai respondendo, conforme o planejamento. Mas quero
que eles se sintam participantes. Essas são as coisas que consegui levar para a sala.
(Professora)

Observa-se assim, nas palavras da professora, uma dinâmica de oscilações no seu fazer
docente. Desejosa por mudanças, admite-se limitada pelas condições cotidianas escolares e, por
vezes, agindo em prol ao atendimento de tais condições e não em favor de modificações.
Hall (2000) adverte que o mundo globalizado repleto de ambiguidades dita uma
dinâmica ligeira de alterações contínuas sobre os tempos e os espaços, dando às identidades
certo tom de pluralidade e provisoriedade.
Silva (2000) afirma que não há possibilidade de fixação da identidade, embora ela aspire
por isso. Segundo ele, a identidade é uma construção permanente que acontece longe da solidez
e da estabilidade, capaz de se apresentar contraditória, inclusive, por se constituir com “estreita
conexão com relações de poder”. (SILVA, 2000: 97)
Portanto, mudanças e permanências são ativas participantes do nosso tempo e do
processo de constituição da identidade docente, que embora aspire por estabilidade, vê-se plural
e provisória. Assim, enquanto a narrativa da professora exemplifica, Hall (2000) e Silva (2000)
ampara teoricamente tal exemplo.
O exercício da docência requer de seus profissionais saberes próprios. Quanto a essa
questão a professora afirma que “além do conhecimento específico, você tem que ir até aquele
ser humano que está alí, na sua frente, e saber como ele se desenvolve, como ele aprende, como
ele interage, e a gente tem que saber as questões pedagógicas”. (Professora)
Tardif (2010), ampara esse parecer ao afirmar que os saberes dos professores devem ser
múltiplos. Para ele, o professor ideal é o conhecedor da sua disciplina, de conhecimentos acerca
da pedagogia e promotor de desenvolvimentos de saberes práticos calcados em suas vivências
com os alunos.
Freire (1996) ao enunciar as exigências para o ato de ensinar, ressalta como fundamental
ao exercício da docência que o professor saiba escutar seus alunos, fazendo o seguinte registro:
“É neste sentido que se impõe a mim escutar o educando em suas dúvidas, em seus receios, em
sua incompetência provisória. E ao escutá-lo, aprendo a falar com ele”. (FREIRE, 1996: 75)
Desta forma, o professor traduz-se em um sujeito que transita por um universo onde
muitos saberes são requisitados. Não lhe basta saberes técnicos e conceituais. A importância
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destes saberes citados concretiza-se à medida em que estejam combinados com saberes
pedagógicos e de aproximação e diálogo entre quem partilha da prática em questão, pois o
exercício da docência acontece com relativa força na formação e no desenvolvimento de um
outro ser.
Assim como a pluralidade está para os saberes docentes, a multiplicidade está para a
identidade docente. O fio que alinhava essa dinâmica está alicerçado nas concepções impressas
no contexto cotidiano:

Um profissional do ensino é alguém que deve habitar e construir seu próprio espaço
pedagógico de trabalho de acordo com as limitações complexas que só pode assumir
e revolver de maneira cotidiana, apoiado necessariamente em uma visão de mundo,
de homem e de sociedade. (TARDIF, 2014: 149)

Para Oliveira e Sgarbi (2008) o conhecimento acontece em rede, onde as múltiplas


dimensões da vida dos sujeitos estão entrelaçadas e apontam o cotidiano como campo favorável
ao desenvolvimento dos pensamentos e das práticas em prol a emancipação social, pois para
esses autores, neste campo inevitavelmente os conhecimentos se mesclam.
Portanto, no cotidiano estão saberes, limitações, projeções, práticas, concepções e
desenvolvimentos, que se encontram e se interagem, promovendo situações, contextos e
sujeitos. O cotidiano ganha destaque no rastro da compreensão acerca de como as experiências
docentes em um contexto de jornada ampliada cooperaram na formação da identidade docente
desses profissionais.
Mesmo o estudo em seu processo inicial, já é possível perceber as largas possibilidades
na empreitada de construção de diálogo entre os documentos produzidos com as narrativas dos
docentes e referenciais teóricos, provendo riqueza de percurso durante a realização da pesquisa
e elaboração da dissertação de mestrado.
Deste modo, as inquietações e interesses podem converter-se em bons frutos na escolha
da temática de um estudo e, por meio dos encontros de orientação, elas ainda podem colaborar
na construção do problema e dos objetivos de pesquisa. A escolha da metodologia da história
oral de vida para a realização da pesquisa e o cuidado com os procedimentos para as entrevistas
foram decisões acertadas e produtivas, pois asseguraram correspondência ao estudo, permitiram
reconhecimento aos docentes e criaram oportunidades de reflexão.
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Considerações finais
Mesmo ainda em fase inicial, a história oral de vida como metodologia escolhida para a
pesquisa, apresenta-se como valiosa, pois assegura a desejada e necessária perspectiva
democrática e o reconhecimento das subjetividades no estudo. Com destaque e consideração às
dimensões e condições humanas, o diálogo foi compreendido como um fator essencial e elevou
o momento das entrevistas à condição de encontro entre sujeitos. Os encontros, por sua vez,
provocaram reflexões sobre a identidade docente, seja por parte de quem narrou a sua história
de vida, seja por parte de quem as ouviu. Portanto, por essa metodologia, faz-se necessária a
postura profissional, mas não uma postura de distanciamento.
Ao possibilitar revisão de perspectivas e exercício do reconhecimento do outro, a
história oral atribui voz, visibilidade e valorização aos docentes que exerceram sua profissão
em um contexto diferenciado do ensino regular. O interesse por suas narrativas de vida e a
posterior transformação delas em documentos de pesquisa, validam e marcam esses sujeitos na
história. Desta forma, evidencia-se a confirmação de que a história oral de vida é mais do que
uma metodologia de pesquisa.

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Fonte - Entrevista
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