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CENTRO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA
FLORIANÓPOLIS
2008
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CATARINA - UDESC
CENTRO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA
FLORIANÓPOLIS
2008
2
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente à minha família: meus pais e meus irmãos, pelo apoio e
incentivo que sempre me dedicaram.
À Kássia Linck, pela paciência, interesse e dedicação para a realização deste trabalho.
Ao professor André Ferreira de Moura pela orientação nesta pesquisa.
Aos professores Rodrigo Warken e Ana Paula São Thiago pela orientação ao piano
durante o curso de graduação.
Aos pianistas Alexandre Zamith Almeida, Elenice Maranesi e Paula Faour por
disponibilizarem seus trabalhos.
Aos amigos e colegas de classe.
3
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo principal verificar como Cesar Camargo Mariano
distribui e organiza a linha melódica, linha do baixo, ritmo e harmonia, concomitantemente
entre as duas mãos, nos sambas-choro Cristal e Samambaia, para piano solo, nas
performances gravadas no álbum Cesar Camargo Mariano – Solo Brasileiro (Polygram -
1994). Para tanto, realizou-se transcrições literais de ambas as performances. O primeiro
capítulo apresenta uma breve contextualização da performance pianística no âmbito da música
popular, seguindo com dados biográficos de César Camargo Mariano (compositor e
intérprete), e por último, alguns dados sobre as obras em questão, como ano de composição,
diferentes versões das peças e o gênero samba-choro. O segundo descreve o processo de
transcrição e a metodologia aplicada. O terceiro capítulo apresenta uma análise do ritmo,
harmonia, melodia e baixos, separadamente, a partir dos elementos musicais do choro
propostos por Almeida (1999), onde foram adicionadas outras abordagens. O quarto e último
capítulo descreve cinco maneiras de dispor a melodia, acompanhamento e baixos, o que se
convencionou chamar de “estrutura de arranjo”.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 05
1 CONTEXTUALIZAÇÃO ............................................................................................ 07
1.1 O PIANO NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA E ALGUNS
PROTAGONISTAS .......................................................................................................... 07
1.2 CESAR CAMARGO MARIANO ............................................................................... 11
1.3 CRISTAL E SAMAMBAIA ....................................................................................... 13
2 METODOLOGIA ........................................................................................................ 18
2.1 PROCESSO DE TRANSCRIÇÃO ............................................................................. 18
2.2 ORGANIZAÇÃO DOS ELEMENTOS MUSICAIS DO CHORO SEGUNDO
ALEXANDRE ZAMITH ALMEIDA ............................................................................... 20
3 MELODIA, BAIXOS, RITMO E HARMONIA ....................................................... 22
3.1 RITMO ........................................................................................................................ 22
3.2 HARMONIA ............................................................................................................... 30
3.3 MELODIA ................................................................................................................... 38
3.4 BAIXOS ...................................................................................................................... 43
4 ESTRUTURAS DE ARRANJO .................................................................................. 49
4.1 LINHA MELÓDICA E ACOMPANHAMENTO NA MÃO DIREITA E BAIXOS
NA MÃO ESQUERDA ..................................................................................................... 49
4.2 LINHA MELÓDICA NA MÃO DIREITA, ACOMPANHAMENTO EM AMBAS
AS MÃOS E BAIXOS NA MÃO ESQUERDA ............................................................... 51
4.3 LINHA MELÓDICA NA MÃO DIREITA E ACOMPANHAMENTO NA MÃO
ESQUERDA ...................................................................................................................... 52
4.4 ACOMPANHAMENTO NA MÃO DIREITA E BAIXOS NA MÃO ESQUERDA 53
4.5 LINHA MELÓDICA EM ACORDES NA MÃO DIREITA E BAIXOS NA MÃO
ESQUERDA....................................................................................................................... 54
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 56
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 58
APÊNDICE
ANEXO
5
INTRODUÇÃO
1
O chorus de improvisação é uma prática oriunda do jazz, assimilada pela bossa nova e também presente na
música instrumental brasileira e no choro. Consiste em cada músico improvisar sobre a forma completa da
música, por exemplo AABA.
2
Cesar Camargo Mariano - Solo Brasileiro. CD 518874-2. PolyGram, 1994.
3
Segundo Fabris; Borém (2006), leadsheet é o tipo de partitura mais comum na música popular que geralmente
apresenta a melodia e os acordes simplificados na forma de cifras. Também ocorrem indicações rítmicas e de
instrumentação.
6
4
O gênero samba-choro é abordado neste trabalho de uma forma específica, relacionada ao contexto musical de
Cesar Camargo Mariano. O assunto será tratado no sub-ítem 1.3 – Cristal e Samambaia.
7
1 CONTEXTUALIZAÇÃO
chamada de “a cidade dos pianos” em 1856, “contribuindo assim para fixar aquela data como
marco inicial da história do piano popular” (TINHORÃO, 1998, p.131).
O piano foi então sendo incorporado aos conjuntos instrumentais populares de flauta,
violão e cavaquinho básicos do choro e, segundo Tinhorão (1974), surgiu um novo tipo de
artista: o tocador de piano que possuía pouca instrução musical formal, porém muito balanço,
que na maioria das vezes tocava “de ouvido”. Para distinguir esses dos pianistas de escola,
convencionou-se chamar-los de pianeiros7. Almeida define que o termo pianeiro pode ser
empregado “para designar pianistas que não passaram por uma formação musical ou
pianística de maneira formal e que dedicaram-se prioritariamente a compor ou tocar um
repertório de caráter ligeiro e popular” (ALMEIDA, 1999, p.72). Ainda segundo o autor,
esses músicos atuavam em casas de partituras, cinemas, bares, hotéis, clubes de baile, teatros
populares, revistas e diversos tipos de locais públicos e tocavam os diversos gêneros musicais
em voga na época: gêneros da música ligeira nacional e internacional, como valsas, xótis,
habanera, tangos, tangos brasileiros, maxixes e outros. As atividades dos pianeiros
extinguiram-se na década de 30 com a popularização do gramofone e da rádio e o
desaparecimento de seus principais representantes: Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth,
José Barbosa da Silva – o Sinhô- e Zequinha de Abreu (ibid., p.72).
Outro personagem em destaque na música popular brasileira é Radamés Gnattali,
(1906-1988). Com formação de pianista concertista, Gnattali destacou-se também como um
grande compositor, arranjador da música popular e erudita. Segundo consta em seu website
oficial8, Gnattali teve contato com grandes nomes da música popular brasileira como Ernesto
Narareth, o flautista e compositor Pixinguinha, os violonistas Garoto e Dino 7 cordas, o
percussionista João da baiana, o bandolinista Jacob do Bandolin, o pianista e compositor Tom
Jobim entre outros. Segundo o próprio Gnatalli, foi com os pianeiros que aprendeu o piano
popular9. Sua contribuição para o piano de caráter popular são obras escritas para piano solo
como os choros “Canhoto” e “Manhosamente”10, e obras que contém o piano em formações
camerísticas11, como o Sexteto Radamés.
7
ALMEIDA (1999) comenta que o termo pianeiro durante muito tempo apresentou um caráter pejorativo devido
à músicos que, impulsionados pelo fértil campo de trabalho, puseram-se a tocar piano com pouca noção do
instrumento. O autor conclui que com o reconhecimento do valor de músicos “pianeiros como Ernesto Nazareth
e Chiquinha Gonzaga o termo assume até um tom carinhoso”, não apresentando caráter pejorativo.
8
www.radamesgnattali.com.br
9
http://www.radamesgnattali.com.br/site/index.aspx?lang=port , acessado em 01/09/2008
10
Segundo Santos (2001), “Os choros para piano solo Canhoto e Manhosamente [...] contém a maioria dos
elementos estruturais do gênero [...]. Tais elementos são associados a uma sonoridade jazzística[...] que os
tornam modernos e sofisticados sem descaracterizá-los.”
11
O catalogo de obras do compositor está disponível em http://www.radamesgnattali.com.br .
9
Segundo Tinhorão (1998), a partir do fim da década de 40, no período pós- guerra, o
jazz norte americano passa a exercer influência sobre os músicos brasileiros. Faour afirma que
Ruy Castro (1990, p.32) cita o pianista e cantor Dick Farney como protagonista da influência
da música norte-americana que, em 1946 viajou para os Estados Unidos onde teve contato
com importantes pianistas do jazz como Nat “King” Cole, Oscar Peterson, Billy Taylor e
Dave Brubeck12. O pianista Johnny Alf - que tinha como inspiração os filmes norte-
americanos com músicas dos compositores George Gershwin e Cole Porter13 - desde 1948 se
destacava tocando em boates no Rio de Janeiro, juntamente com os jovens pianistas Tom
Jobim e Newton Mendonça. A boate do Plaza esteve em destaque, até meados de 195514,
como o ponto de encontro dos músicos, que “durante quase um ano fizeram experimentações
rítmicas e harmônicas que mais tarde se tornariam a gênesis da Bossa Nova” (FAOUR, 2006,
p.11).
Segundo Maranesi, “a bossa nova teve seu início oficial em 1958, com o lançamento
do disco de 78 rpm Chega de saudade (Odeon, 1958) no qual João Gilberto interpreta a obra
clássica homônima de Tom Jobim e Vinicios de Moraes” (MARANESI, 2007, p.20). Ainda
segundo a autora, João Gilberto tornou-se a grande referência da bossa nova por ter
introduzido a batida do violão15 com qual marca os acordes, imprimindo uma sonoridade
diferente de tudo que até então havia sido feito na música popular brasileira. Segundo consta
no dicionário Cravo Albin da música popular brasileira, a bossa nova foi considerada uma
nova forma de tocar samba, com forte influência norte-americana traduzida nos acordes
dissonantes comuns ao jazz16.
12
Informações obtidas em http://br-instrumental.blogspot.com/2006/11/dick-farney-jazz-1962.html, acessado em
01/09/2008. Extraído do disco Dick Farney – Jazz, de 1962
13
http://www.almacarioca.com.br/jalf.htm , acessado em 01/07/2008. Na "História da Música Popular Brasileira
- Abril Cultural - São Paulo, 1972" encontramos a vida de Johnny Alf contada por ele mesmo.
14
Ano em que Jonny Alf muda-se para a cidade de São Paulo onde, provavelmente no ano de 1956 vai morar
junto a Cesar Camargo Mariano e sua família.
15
O produtor musical Arnaldo Desouteiro (apud FAOUR, 2006, p.42) afirma que a primeira vez que a batida da
bossa nossa aprarece em uma gravação (Eu quero um samba, de Haroldo Lobo e Janet de Almeida – Sinter
1953/1954) foi com o acordeon de João Donato e mais tarde João Gilberto adaptaria e aperfeiçoaria esta batida
para o violão. Faour (ibid., p.43) conclui que “exite um vínculo entre João Donato e João Gilberto quanto à
criação da ´batida da bossa nova`”.
16
http://www.dicionariompb.com.br/verbete.asp?tabela=T_FORM_C&nome=Bossa+Nova
10
Dentro da evolução do gênero Bossa nova, foi observado que o piano, inserido na
formação de trio [...], ganhou papel de destaque nas décadas de 60 e 70, através da
performance de pianistas como Johnny Alf, João Donato, Tom Jobim, Sérgio
Mendes, Cesar Camargo Mariano, Marcos Valle e outros (ibid. , p.3).
Os principais pianistas com seus respectivos trios formados nessa década, nas cidades
do Rio de Janeiro e São Paulo foram: Luizinho Eça com seu Tamba Trio; Amilton Godoy
com o Zimbo Trio; Cesar Camargo Mariano com o Sambalanço Trio e Som Três; Hermeto
Pascoal com o Sambrasa Trio; Antônio Adolfo com o Trio 3D; Cido Bianchi com o Jongo
Trio; Sérgio Mendes com o Sérgio Mendes trio; João Donato com o João Donato trio.
Segundo Garcia, “A bossa nova abriu as portas para a música instrumental que [...]
havia sido relegada a um plano secundário, os instrumentistas servindo como meros
acompanhantes aos cantores” (GARCIA, 2004, p.23). É nesse período que surge a chamada
Música instrumental brasileira, conhecida internacionalmente como Jazz Brasileiro. Segundo
Piedade e Bastos:
O jazz brasileiro, assim, surgiu nos anos 60, no contexto da bossa nova, com as
versões instrumentais deste repertório, principalmente nos trios de piano. A partir
deste momento, quando predomina o diálogo entre bossa nova e jazz norte-
americano, a música instrumental consolida-se com a incorporação de aspectos da
musicalidade de outros gêneros, ao mesmo tempo mantendo uma linguagem
peculiarmente própria, mais diretamente relacionada aos mundos do jazz
internacional e da música brasileira [...] (BASTOS e PIEDADE, 2007).
Segundo Piedade e Réa (2005), a fusão de ritmos brasileiros como frevo, samba e
baião com formas de improvisação do jazz são características da música instrumental
brasileira. Dentro deste contexto destacam-se pianistas como Hermeto Pascoal, Egberto
Gismonti, Cesar Camargo Mariano, como afirma Tárik de Souza:
músicos como Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Wagner Tiso, Paulo Moura e
Cesar Camargo Mariano, contribuíram para o amadurecimento de uma linguagem
11
O gênero atingiu seu auge nos anos 80 (GARCIA, 2004) e tem o álbum Samambaia -
gravado por Cesar Camargo Mariano ao piano e Hélio Delmiro ao violão, de 1981 – como
forte referência, como consta no web site clube do jazz17 : “[o álbum] ´Samambaia` ainda
figura como um dos mais expressivos. Este LP, em duo com Hélio Delmiro, chegou a ser
considerado pela imprensa internacional como um dos 10 melhores discos de música
instrumental já editados”. Conrado Paulinho também cita que “o disco Samambaia de Cesar
Camargo Mariano e Hélio Delmiro é de fato um marco na nossa música e uma gravação
absolutamente imprescindível para qualquer músico que queira dominar a linguagem da
música brasileira, não somente pianistas e violonistas” (PAULINO, 2005).
Após ganhar um piano de presente de seu pai, no dia 19 de setembro de 1957, quando
completava 13 anos de idade, Cesar Camargo Mariano inicia seus estudos de maneira
autodidata, reproduzindo ao piano as músicas que escutava na rádio. Segundo o próprio Cesar
Camargo Mariano, por costume de seus pais cresceu ouvindo jazz e música de concerto18. O
19
pianista Nat “King” Cole foi um dos primeiros ídolos de Cesar e, segundo Faour (2006
p.53), “sua adoração pelo pianista era total, e o imitava nos últimos detalhes”. Segundo seu
web site oficial, tal imitação foi utilizada em comerciais da TV Record, pela ocasião da visita
de Nat “King” Cole ao Brasil, quando Cesar Camargo Mariano tinha 15 anos.
Segundo seu web site oficial, Cesar tornou-se músico profissional antes de completar
16 anos, tocando em bailes, clubes e festas de São Paulo com diversos grupos. Em 1962,
montou o “Três Américas”, que se tornou um importante grupo de baile no Brasil e, durante
os três anos em que trabalhou com o grupo, adquiriu experiência em arranjos e em
acompanhar cantores na música popular internacional e brasileira. Durante este período,
17
Disponível em http://www.clubedejazz.com.br/jazzb/jazzista_exibir.php?jazzista_id=188 , acessado em
14/10/2008
18
Segundo Faour (2005) entrevista concedida para a rádio Jovem Pan em 11/10/1986.
19
Nat King Cole, nome artístico de Nathaniel Adams Coles, (1919, 1965) foi um cantor e músico de jazz norte-
americano, pai da cantora Natalie Cole.
12
Mariano também participou do “Quarteto Sabá”, ao lado de Sabá Oliveira (baixo), Hamilton
Pitorre (bateria) e Theo de Barros (guitarra). Esse quarteto foi durante vários anos a principal
atração na “A Baiúca”, importante casa de jazz e música brasileira de São Paulo. Ainda em
1962 gravou o seu primeiro álbum de sua carreira, com o Quarteto Sabá.
Segundo seu web site oficial, na década de 60 Cesar Camargo firma-se como
importante arranjador e pianista da bossa nova. Com Airto Moreira (bateria) e Humberto
Clayber (contrabaixo), formam o Sambalanço Trio que em 1964 e 1965 gravou dois discos.
Em seguida, Mariano foi convidado para formar um novo trio, o Som Três, ao lado do
contrabaixista Sebastião Oliveira (Sabá) e do baterista Toninho Pereira. O trio, que além de
ter sido a base instrumental para os shows de Wilson Simonal, gravou três discos entre 1966 e
1971. Ainda em 1966, o pianista grava o disco Octeto de Cesar Camargo Mariano, formado
pelos integrantes do Sambalanço Trio, Som Três e mais cinco sopros.
Em 1971 Cesar Camargo Mariano foi convidado pela cantora Elis Regina para
produzir, dirigir e fazer arranjos de seu novo show e álbum, e durante os dez anos seguintes,
exerceu essas três funções ao lado da cantora. Além de Cesar Camargo e Elis Regina, o grupo
era formado por Luizão Maia no contrabaixo, Paulo Braga na bateria e Hélio Delmiro na
guitarra.
Durante sua carreira, Cesar Camargo gravou três álbuns em duo com cantores: Voz e
Suor, em 1984 com a cantora Nana Caymi; Nós, de 1989 com Leny Andrade; Leny Andrade e
Cesar Camargo Mariano ao Vivo, DVD lançado em 2006 e Piano & Voz, de 2003 com Pedro
Mariano. Ainda na formação de duo, porém com violonistas, gravou Samambaia, com Hélio
Delmiro em 1981 e Duo, com Romero Lubambo em 2002, que foi lançado também em DVD
em 2005.
Na música instrumental, Cesar também formou em 1989 um trio acústico com Hélio
Delmiro (violão) e Paulo Moura (clarinete), com o qual participou de uma turnê de dez
concertos pela Espanha. Em 1993, o pianista gravou dois álbuns: Natural, quarteto formado
com os músicos Marcelo Mariano (baixo), Pantico Rocha (bateria) e Luis Carlos (percussão)
e Solo Brasileiro, para piano solo, que contém a interpretação de Cristal e Samambaia,
transcritas e analisadas neste trabalho. Segundo seu web site oficial, “durante todos estes
anos, entre um trabalho e outro, Cesar nunca deixou de apresentar os concertos de piano-solo,
desenvolvendo e pesquisando cada vez mais a técnica pianística”. Dentre os concertos para
piano solo, são destacados20 os de 1994, no Blue Note Jazz Club em New York; os concertos
20
Segundo seu web site oficial
13
de 1995, numa turnê pela América do Sul; também no ano de 2003 em Chicago e no SESC
Santana, São Paulo, em dezembro de 2005.
Cristal é uma composição de Cesar Camargo Mariano lançada em sua primeira versão
no álbum Solo Brasileiro, do ano de 1994. Sua edição em partitura para piano solo publicada
pela Samambaia Music21 traz “Samba-Choro” como indicação de gênero e 95 bpm como
indicação de andamento. Apresenta o caráter rítmico que, segundo Maranesi, “é geralmente o
maior atrativo da música de Cesar Camargo” (ibid.,2007, p.46, sendo que ritmos
característicos do samba, do choro e o swing22 próprio de Mariano são realizados em sincronia
entre as duas mãos num andamento relativamente rápido. Cristal tem dó maior como
tonalidade principal, com forte presença de acordes com tensões em progressões harmônicas
II-V-I, que transitam também por outras tonalidades. Outras versões de Cristal foram
gravadas em três discos do violoncelista Yo-yo Ma com o próprio Mariano ao piano:
Obrigado Brazil de 2003, Obrigado Brazil Live de 2004 e Essential Yo-yo Ma de 2005. O
saxofonista cubano Paquito D´Rivera23 também gravou Cristal em The Jazz Chamber Trio,
em 2006.24 Em seu DVD Duo com o violonista Rumero Lubambo, Mariano também
apresenta uma nova versão da música, com seções de improvisação e novos arranjos.
Segundo Maranesi (2007), Samambaia é a mais conhecida composição de Cesar
Camargo Mariano e foi composta provavelmente em 1980. Ainda segundo a autora, a obra
que é “classificada em algumas ocasiões como samba-choro, traz aspectos interpretativos e
estilísticos que mesclam a harmonia moderna com a concepção jazzística características desta
década”(ibid. p.31). Samambaia foi gravada primeiramente em 1981, no LP Cesar Camargo
Mariano e Hélio Delmiro25 – Samambaia, “esta versão tornou-se imediatamente um clássico
na música instrumental brasileira, posição que sustenta até hoje” (ibid., p. 31). Outras versões
gravadas por Cesar Camargo estão em Solo Brasileiro de 1994, Duo - Cesar Camargo
21
Edição disponível em www.cesarcamargomariano.com. Copyrights / CCM © Samambaia Musicc (BMI).
Escrita em notação tradicional para piano, a edição também apresenta a harmonia.
22
Segundo Faour (2005), swing está com a interpretação de padrões ritmicos (que podem ser harmônicos e/ou
melódicos com diferentes articulações, intensidades e dinâmicas.
23
O saxofonista e clarinetista Paquito D'Rivera nasceu em quatro de junho de 1948 em Havana, Cuba equilibrou
sua carreira entre o jazz latino e incursões na música clássica, como compositor e performances junto a
orquestras sinfônicas. Maiores informações em http://www.paquitodrivera.com/ .
24
Informações obtidas em http://www.cesarcamargomariano.com/pgprodar.html , acessado em 17/09/2008.
25
Hélio Delmiro, violonista carioca nascido em 1947, trabalhou ao lado de César Camargo e Elis Regina.
14
Mariano e Rumero Lubambo26 lançado em CD no ano de 2002 e DVD no ano de 2005, com
Yo-yo Má em Obrigado Brazil de 2005 e Leny Andrade27 e Cesar Camargo Mariano ao
Vivo, DVD lançado em 2006 onde Cesar Camargo abre o concerto com Samambaia, para
piano solo.
26
Romero Lubambo, nascido na cidade do Rio de Janeiro em 1955, graduou-se em guitarra clássica na Escola de
Música Villa-Lobos no Rio em 1978. O guitarrista desenvolve suas habilidades tanto no jazz como na música
brasileira. Maiores informações em: http://clubedejazz.com.br/ojazz/jazzista_exibir.php?jazzista_id=201
27
Nascida na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1946, a cantora Leny Andrade firmou-se como a maior cantora
brasileira de jazz, conhecida por sua notável capacidade de improvisação. Informações obtidas em
http://clubedejazz.com.br/ojazz/jazzista_exibir.php?jazzista_id=306, acessado em 25/11/2008.
15
O samba ao longo dos anos tem se apresentado com muitas variantes rítmicas.
Dentre as mais conhecidas, destacamos, o samba-de-breque, samba-exaltação,
samba-de-terreiro, samba-enredo, sambalanço, samba-de-quadra, sambalada,
samba-chulado, samba-raiado, samba-coco, samba-choro [destaque do autor do
presente trabalho], samba-canção, samba-batido, samba-de-partido-alto e samba de
gafieira.30
28
http://www.terra.com.br/musica/2002/08/22/007.htm . Entrevista com CCM realizada por Ricardo Ivanov em
22/08/2002.
29
http://www.conradopaulino.com.br/news1.asp?map_001_c=03%2E04&offset=40&cng_ukey=38655164325D
K9DWSI (acessado em 06/10/2008)
30
http://www.dicionariompb.com.br/verbete.asp?tabela=T_FORM_C&nome=Samba)
16
31
Segundo seu web site oficial, Cesar Camargo inicia seus estudos como autodidata reproduzindo ao piano as
músicas do pianista de jazz Nat “King” Cole. Faour (2005 p. 54) cita o pianista norte americano Oscar Peterson
como ídolo de Cesar Camargo.
17
ritmo do samba com linhas melódicas características do choro) com o tratamento harmônico
relacionado ao jazz e a bossa nova (acordes alterados, tensões harmônicas, progressões II-V-
I, modulações e outros). Esse contexto também relaciona-se com o choro moderno e a música
instrumental brasileira e apresenta as principais características de Cristal e Samambaia.
18
2 METODOLOGIA
A partitura obtida por esta pesquisa através da transcrição facilita a análise do texto
musical, de modo que dela são retirados os exemplos musicais expostos no corpo deste
trabalho.
32
Edição disponível em www.cesarcamargomariano.com. Copyrights / CCM © Samambaia Musicc (BMI)
20
33
Ver capítulo 1.3 Cristal e Samambaia, página 13 deste trabalho.
22
3.1 RITMO
34
Foi encontrado na literatura o uso dos termos “Síncope” e “Sincopa”. Optou-se neste trabalho em utilizar o
termo “Sincopa”.
23
O autor conclui que as primeiras notas de cada tempo, por representarem a cabeça dos
tempos, são naturalmente apoiadas (exemplo 4). A figura resultante dessas acentuações,
segundo Almeida, é a síncopa (exemplo5):
Ex. 4 - Valorização de contratempos ( loc. cit) Ex. 5 – Síncopa resultante ( loc. cit.)
O fato que tanto o samba quanto a música brasileira sejam caracterizados pela
presença das síncopes não é estranho a um contexto cultural em que o primeiro é
tomado como expressão máxima da segunda.[...], considerar as síncopes índice de
certa ´especificidade cultural` brasileira tornou-se um lugar comum. (SANDRONI,
2001, p.20)
Segundo o autor, a síncopa explicita ocorre com mais freqüência nas figurações de
acompanhamento e em linhas melódicas. No repertório do presente trabalho, verifica-se tal
característica apenas nas figurações de acompanhamento realizadas pela mão esquerda, tanto
em Cristal quanto em Samambaia:
cada tempo, que caracteriza uma valorização do contratempo. As alusões à síncopa podem ser
observadas em Cristal e Samambaia:
c) Utilização de quiálteras.
Segundo Almeida, no repertório de choro para piano, as quiálteras são mais ocorrentes
em choros lentos e em gêneros seresteiros, que não é o caso do repertório da presente
pesquisa. Cristal não apresenta quiálteras e são pouco freqüentes em Samambaia, onde
verifica-se quiálteras em colcheias e em semicolcheias:
26
Ex. 12 – Samambia ,comp. 139 – Quiáltera de colcheia Ex. 13 – Cristal, comp. 114 – Quiáltera de semicolcheia
35
Segundo Fortes (2007), o pianista André Marques é integrante do o grupo de Hermeto Pascoal desde 1994,
com quem gravou o disco Mundo Verde Esperança em 2002, com o qual recebeu o Prêmio Tim e uma indicação
ao Grammy. É o pianista do Trio Curupira e leciona no Conservatório Dramático e Musical de Tatuí.
36
Masterclass com o pianista Guilherme Vergueiro, realizado no dia 21 de junho de 2005 no auditório do bloco
da música do centro de artes da UDESC. Guilherme Vergueiro é um pianista carioca que atua no contexto da
música popular. Maiores informações em http://brazilianmusic.com/vergueiro/curr.html
27
.
Ex. 14 – Marcação basica do surdo
Segundo Bolão (ibid.), nos bailes de carnaval é comum a utilização de dois surdos por
um único músico percussionista, sendo que o mais agudo marca o primeiro tempo e o mais
grave o segundo tempo. Bolão apresenta diversos exemplos37 de variações de frases rítmicas
realizadas pelos instrumentos, sendo que dois são expostos abaixo:
Ex. 15 – Variações de frases rítmicas realizadas por dois surdos, segundo Bolão (2003, p.33)
O tambor surdo, por apresentar registro grave, é a referência rítmica para a linha dos
baixos, realizados pela mão esquerda do pianista. As estruturas rítmicas realizadas pelo surdo
no exemplos acima, podem ser verificadas apresentando algumas variações, nas linhas de
baixo de Cesar Camargo Mariano em Cristal e principalmente em Samambaia. Alguns
exemplos38 são:
37
Ver exemplos de variações para dois surdos em Bolão, 2003, p.33.
38
Recomenda-se o suporte da audição dos exemplos musicais citados, pois algumas indicações de articulação
observadas nos exemplos são apenas um esboço superficial da real articulação realizada por Cesar Camargo.
28
39
O cilco rítmico realizado pelo tamborim é subdividido em 16 pulsações. Nesta pesquisa é adotada a
semicolcheia como unidade rítmica, “convenção gráfica consagrada pelo uso nas partituras de samba desde
“Pelo telefone”(SANDRONI, 2001, pág. 34)
29
A figuração rítmica citada acima, que segundo Bolão, que é realizada pela caixeta no
acompanhamento do choro, pode ser verificado no acompanhamento de Cristal, onde Cesar
Camargo enfatiza o aspecto percussivo do piano:
40
Sandroni (ibid. p.35) cita uma variação do padrão do tamborim encontrada da gravação de “Duas horas da
manhã” (Nelson Cavaquinho – Ari Monteiro, 1961), em que o instrumento de percussão é uma garrafa percutida.
30
3.2 HARMONIA
41
Ver capítulo de contextualização, página 13 deste trabalho.
31
42
Como foi exposto anteriormente, as características harmônicas do jazz estão, nesta pesquisa, associadas à
bossa nova, ao choro moderno, e ao contexto no qual atua Cesar Camargo Mariano. As tétrades indicadas na
tabela de Santos são acordes presentes na harmonia em uso na música popular, e não somente no jazz.
32
43
Freitas (2005, p.107), em seu trabalho sobre as relações de combinação entre os acordes da harmonia tonal,
aponta para o modelo cadencial básico: “Subdominante – Dominante – Tônica”. Esse modelo é transferido para
“Subdominante – Dominante – X”, que é um movimento cadencial completo que cuida da preparação para os
demais acordes do campo harmônico. Na estrutura “IIm7 –V7 -X”, o “IIm7”, que é o grau que desempenha o
papel da subdominante, é o segundo grau do campo harmônico do acorde “X”(acorde de resolução). O “V7” é a
dominante do acorde “X”, que pode aparecer como acorde diminuto, SubV7, V7sus4 ou SubV7sus4. “X” é a
meta, o acorde de resolução, algum dos acordes do campo harmônico.
33
Ex. 24 – Cristal – comp. 42-47 – sequência de progressões sub II- sub V estendidos e acorde com tensões
harmônicas.
Verifica-se, no exemplo acima, uma sequência de progressões II-V que, a cada dois
compassos, descem meio tom. Essas progressões manifestam-se na forma de subII - subV
que são estendidas até subV da tonalidade principal dó maior, no primeiro tempo do
compasso 39. Nos compasso 40 e 41 pode ser observado o acorde de dó com sétima
dominante que apresentam as tensões 9, #11 e 13 adicionadas, como visto anteriormente na
tabela de Santos (ibid.).
Outro aspecto apontado por Almeida (1999) como característica harmônica do choro
moderno é a “maior ocorrência de modulações entre tonalidades mais distantes” (ibid. p.122).
Em Cristal, que apresenta dó maior como tonalidade principal, verifica-se modulações para
diferentes graus do campo harmônico homônimo menor, através de acordes de empréstimo
modal. Podem ser observados do compasso 5 ao 13 (ver partitura em apêndice) , sessão de
introdução, onde ocorrem acordes provenientes do modo menor sobre o baixo pedal na nota
dó e na sessão B, compassos 34 ao 39, onde ocorre uma rápida modulação para a tonalidade
de sol menor.
Samambaia, que tem dó maior como tonalidade principal, apresenta modulações
principalmente no tema B, onde a exposição abrange os compassos 44 ao 58 e a reexsposição
(variação ou improviso) abrange os compassos 125 ao 139 (ver partitura em apêndice). Será
tomado como exemplo a reexposição. Nos primeiros quatro compassos dessa sessão (125 ao
128), verifica-se uma progressão harmônica onde a dominante com quarta suspensa (Absus4)
resolve na tônica (Fm/Ab) que é o terceiro grau menor da tonalidade de ré bemol maior (bII
34
em relação ao tom principal dó maior). Nos quatro compassos seguintes (129 ao 132), a
mesma progressão é transposta um tom e meio acima, resolvendo em mi maior (compasso
131), que tem relação de terça maior ou mediante, com tonalidade principal. A nova
tonalidade de mi maior percorre os compassos 131 ao 136. Neste último (compasso136),
ocorre uma progressão II-V (G#m7 – C#7) que, por cadência de engano, resolve em Fá
sustenido maior, que assume a tonalidade dos compassos 137 ao 140, onde termina a sessão
B.
Segundo Amalda (2000), uma das principais leis que regem a correta escrita
harmônica é a do encadeamento: as vozes de um acorde devem ser conduzidas por grau
conjunto e as notas em comum devem ser mantidas na mesma voz. Este princípio pode ser
observado nos exemplos abaixo:
Ex. 25 – Condução de vozes com terças e sétimas Ex. 26 – Condução de vozes com quintas e nonas
35
O primeiro dos exemplos acima foi retirado de Levine (1982, p.17) e mostra uma
progressão IIm7 – V7 -I em que os acordes são conduzidos com apenas três notas (Three-
Note Voincig44, segundo Levine): fundamental, terça e sétima. As fundamentais dos acordes
realizam um movimento de quarta acedente (ré, sol e dó), as sétimas são conduzidas ou
encadeadas para as terças e as terças são conduzidas para as sétimas. No exemplo seguinte
(exemplo 26) observa-se a mesma condução básica de três notas, onde foram adicionadas as
quintas e as nonas dos acordes. Aplicando o principio básico de condução de vozes descrito
acima, observa-se que as quintas são conduzidas para as nonas e a nonas são conduzidas para
as quintas. A décima terceira, nesse caso, é considerada uma variação da quinta.
Abaixo alguns exemplos em Cristal e Samambaia. Para maior clareza em relação à
condução das vozes, foram grafadas as principais notas da linha melódica e as notas que
estruturam os acordes, sugere-se a comparação com a partitura em apêndice nesta pesquisa.
44
Voicing é um termo proveniente da língua inglesa, usado como “abertura dos acordes”, como a maneira de
dispor as notas.
36
O trecho acima foi citado anteriormente (exemplo 24) como um exemplo de sub IIm7
–subV7 estendidos. Verifica-se que os eventos se repetem a cada dois compassos, transpostos
meio tom abaixo, portanto, não há necessidade de descrever todos os compassos. Optou-se
aqui por descrever a condução de cada voz separadamente, iniciando com a linha do baixo e
seguindo com as vozes superiores. Abaixo, uma breve descrição sobre o encadeamento de
vozes no exemplo acima.
Os baixos realizam as fundamentais, que se movimentam em intervalos de quartas. Na
voz seguinte, verifica-se que no compasso 42, a nota lá bemol gera o intervalo de sétima
menor ou “abertura de sétima”, em relação à fundamental. Na condução da nota la bemol
(sétima de Bbm7) para a nota sol (terça do acorde Eb7) no compasso 43, ocorre um retardo45,
pois a nota só é conduzida após a mudança do acorde. A nota lá bemol é “quarta suspensa” no
acorde Eb7, gerando o acorde Eb7sus4 (13). Na voz acima, observa-se que a nota ré bemol
(terça do acorde Bbm7 no compasso 42) é comum ao acorde seguinte, por isso é mantida no
compasso 43 tornando-se a sétima do acorde Eb7 e, no compasso seguinte, é conduzida por
grau conjunto para a nota dó, terça do acorde de Am7(compasso 44 no pentagrama inferior).
Seguindo com a próxima voz, observa-se que a nota fá (compasso 42), quinta do acorde
Bbm7, é uma nota em comum com o acorde seguinte Eb7, e poderia tornar-se a nona deste,
porém não foi utilizada.
Ainda a respeito do exemplo 28, verifica-se que a linha melódica principal se
apresenta nas duas vozes superiores, em intervalos de terças paralelas. As notas mi bemol e dó
(compasso 42), que correspondem às tensões nona e décima primeira, formam o acorde Bbm7
(9,11) e caracterizam uma apogiatura, que é resolvida no segundo tempo do compasso 42 nas
45
“Retardo é a demora em acontecer um passo de segunda em uma voz enquanto se troca a harmonia”
(SHOENBERG, 2001, p.466). No presente caso, o passo de segunda é a passagem da nota la bemol para a nota
sol.
37
No exemplo acima, não foi verificada a aplicação literal da condução de vozes para a
mão esquerda descrita por Levine anteriormente (left-hand voicing). Cesar Camargo conduz
as notas na mão esquerda com flexibilidade, priorizando o aspecto melódico principalmente
da primeira e da terceira voz de sua condução a três vozes. Essa flexibilidade produz certo
grau de complexidade, pois resulta em re-harmonizações, inversões, acordes incompletos e
outros, como pode ser observado principalmente do compasso 91 ao 104 (ver partitura em
apêndice). Abaixo, uma breve descrição sobre alguns aspectos verificados no exemplo acima.
No compasso 91, verifica-se que o acorde E7 está incompleto, sem a terça. Uma vez
que a linha melódica principal apresenta um movimento cromático (ver apêndice), o acorde
apresenta ambigüidade em relação a sua natureza maior ou meio diminuto. Para o compasso
seguinte, as notas desse acorde são transpostas um tom e meio acima, caracterizando um
movimento paralelo que não apresenta condução por grau conjunto ou notas em comum. Na
condução das vozes do acorde A7 para o Dm7, observa-se que a nota fá (décima terceira do
acorde A7, considerada variação da quinta) é conduzida para a nota mi (nona do acorde Dm7)
e a nota dó sustenido (terça do acorde A7) é conduzida para a nota dó natural (sétima do
38
acorde Dm7). A nota sol (sétima do acorde A7, compasso 92) é mantida no acorde Dm7, e só
é conduzida no compasso seguinte (94), para a nota fá (terça do acorde Dm7), caracterizando
um retarde que, no compasso 93, forma a tríade de dó maior, que é conduzida por grau
conjunto (primeira e terceira voz) para a tríade de ré menor no ultimo compasso do exemplo.
Os procedimentos condução de vozes verificados acima são os mais ocorrentes em
Cristal e Samambaia. O aprofundamento na questão da harmonia e da condução de vozes dos
acordes não é o foco principal do presente trabalho. Uma vez verificadas as principais
características da harmonia como algumas progressões harmônicas e alguns procedimentos de
condução de vozes, obtém-se um panorama geral de como Cesar Camargo Mariano manipula
a disposição e condução das notas no âmbito da harmonia. A disposição e condução das notas
através dos acordes estão diretamente relacionadas ao objetivo deste trabalho, que é verificar
algumas maneiras como compositor e pianista distribui e organiza a linha melódica, linha do
baixo, ritmo e harmonia em Cristal e Samambaia.
3.3 MELODIA
Segundo Almeida (1999, p.106), apogiaturas sobre as notas das tríades é um recurso
bastante utilizado dentro do caráter ornamental das melodias do choro e podem ser dividas em
ornamentais e melódicas. A ocorrência da apogiatura sensível (meio tom inferior à nota a ser
ornamentada) é muito freqüente e pode ser observada no exemplo abaixo, nas linhas
melódicas realizadas pelo baixo em Cristal e Samambaia:
Ex. 30 – Cristal, comp. 81- apogiatura sensível Ex. 31 – Samambaia, comp. 132 – apogiatura sensível
39
Ainda segundo o autor, outro recurso ornamental característico das melodias de choro
é a bordadura. Em Cristal, verifica-se bordaduras principalmente na exposição do tema
principal como mostra o exemplo 32 abaixo, onde também pode ser observado uma
apogiatura ornamental (citada acima) para a nota sol. Em Samambaia, as bordaduras são mais
ocorrentes, como mostram os exemplos 33 e 34:
Ex. 32 – Cristal, comp. 14 Ex. 33 – Samambaia – comp. 12 Ex. 34 – Samambaia, comp. 100
Os cromatismos que, segundo Almeida (ibid.) são mais freqüentes nos choros
modernos do que nos tradicionais, é uma característica melódica do choro bastante ocorrente
em Cristal e Samambaia, como podem ser observados nos exemplos abaixo:
b) Frases longas
Segundo Almeida (1999), as frases longas são típicas em choros mais líricos e de
andamentos mais lentos. Apesar de Cristal e Samambaia serem sambas-choro de caráter mais
rítmico e movimentado, observa-se em ambas as peças uma passagem contrastante, de caráter
expressivo, onde a melodia é mais lírica e menos ritmada, acompanhada por arpejos em
40
semicolcheias. Com a articulação legato46 aplicada a esse trecho, Cesar Camargo imprime
características que podem ser associadas à escrita pianística do período romântico.
Essas passagens contrastantes ao aspecto rítmico e percussivo do samba-choro podem
ser verificadas em Samambaia, nos compassos 44 ao 50 e em Cristal, nos compassos 34 ao
41. As frases longas, associadas à passagens mais líricas e expressivas, foram verificadas nos
primeiros compassos dos trechos citados (ver partitura em apêndice).
c) Arpejos
Almeida cita o arpejo maior descendente com sexta como característica melódica do
choro que, no repertório da presente pesquisa, não foi encontrado.
Verifica-se em Cristal, que ocorrem arpejos nas finalizações ou ligações entre as
diferentes partes ou sessões da peça. Os arpejos, localizados em pontos cadenciais da forma,
são em sua maioria ascendentes (a única exceção é o compasso 57) e enfatizam os principais
movimentos harmônicos cadenciais da peça.
46
Uma vez que indicações de caráter expressivo, fraseado e articulação não foram grafados na partitura em
apêndice, recomenda-se ouvir o áudio original, faixas 8 e 12 do álbum Solo Brasileiro de Cesar Camargo
Mariano.
41
Essa escala pode ser observada na linha melódica da exposição do tema principal de
Samambaia:
Levine (ibid. p. 126) sugere que a pentatônica maior pode ser pensada como uma
escala maior, excluindo a quarta e a sétima. Sua escala relativa é a pentatônica menor que,
como mostra o exemplo acima, apresenta as mesmas notas, e pode ser interpretada como uma
tétrade menor com sétima, adicionando-se uma quarta. Esta última pode ser verificada no
exemplo abaixo:
3.4 BAIXOS
Em grupos regionais de choro, as linhas do baixo, que são um dos aspectos mais
característicos do gênero, são realizadas pelo violão de sete cordas. Segundo Almeida (1999),
originaram-se a partir de encadeamentos dos acordes invertidos e foram se desenvolvendo até
apresentarem contornos melódicos. Esses contornos melódicos, que podem se estender até a
região médio-aguda do piano, apresentam diversas características melódicas do choro já
citadas anteriormente, como ornamentações, valorização melódica de contratempos e outros.
Almeida considera como linhas do baixo, as figurações realizadas pela mão esquerda
ao piano. O autor organiza em três categorias: Baixo Condutor Harmônico, Baixo Melódico e
Baixo Pedal.
44
Segundo Almeida, “é muito ocorrente principalmente em choros para piano, nos quais
o acompanhamento muitas vezes acumula para si a realização da linha do baixo, da harmonia
e do ritmo.”(ALMEIDA, ibid. p.116).
No exemplo abaixo, a linha do baixo de Samambaia ocorre em monodia47, onde as
notas mais ocorrentes são as fundamentais e quintas dos acordes. Observa-se nas mudanças de
acordes, que muitas vezes ocorre uma aproximação cromática sensível, ou seja, meio tom
abaixo da fundamental do próximo acode.
Ex. 46 – Samambaia, comp. 72-75 – Baixos com fundamentais, quintas e aproximação cromática
No exemplo seguinte, a escrita sugere duas vozes, sendo que as notas inferiores (mais
graves) realizam as fundamentais dos acordes e as notas superiores conduzem uma linha ou
uma voz através das terças e sétimas48. Observa-se que a última semicolcheia de cada
compasso caracteriza uma antecipação, pois essas notas pertencem ao acorde do compasso
seguinte.
No exemplo abaixo, além das terças e sétimas, observa-se que a condução da linha
superior apresenta os retardos (acordes com quarta suspensa, como visto anteriormente na
página 37) que resultam num salto de décima primeira, que aumenta as dificuldades técnicas
para o pianista. Uma característica desses baixos que sugerem duas vozes, é auxiliar mão
direita (sobrecarregada com a melodia) a formar os acordes, como no compasso 44, onde
podem ser observadas todas as notas da tétrade Am7.
47
Apenas uma linha melódica, segundo Kiefer (1987), “ [...] monódico, pois de forma alguma sugere a
impressão de linhas melódicas distintas”.
48
Ver “Procedimentos de condução de vozes ou voicings”, página 35 deste trabalho.
45
Ex 48 – Cristal, comp. 42-46 – Baixo conduzindo as fundamentais, terças, sétimas e contribuindo para a
formação dos acodes.
Ex. 49 – Samambaia, comp. 60-64 – Alternância entre os diferentes tipos de baixo condutor harmônico.
Outra forma de baixo condutor harmônico citado por Almeida (ibid. p.115) são os
baixo que conduzem as harmonias invertidas. Como não foram encontradas harmonias
invertidas em Cristal, esta forma de baixo só foi verificado em Samambaia, principalmente na
sessão de improviso, do compasso 91 ao 106 (ver partitura em apêndice). Podem ser
verificados em alguns exemplos expostos anteriormente: exemplos 7, 29 e 45.
b) Baixo melódico
no compasso 10, estabelece uma relação de diálogo com a linha melódica, ao intercalar-se
com esta.
c) Baixo Pedal
O baixo pedal é um baixo que se mantém estável na mesma nota, enquanto os acordes
mudam sobre ele. Segundo Almeida (ibid. p.120), o baixo pedal sustenta uma nota que é
comum aos acordes numa determinada progressão harmônica, e ocorrem geralmente em
passagens com função de introdução ou transição.
Ocorrem tanto em Cristal e Samambaia, de diferentes maneiras. Abaixo a ocorrência
do baixo pedal em Cristal:
47
com Sabá no Quarteto Sabá e no trio Som Três e na década de 70 atuou com Luizão Maia ao
lado de Elis Regina.
Portanto as linhas de baixo de Cesar Camargo que avançam para o registro super grave
do piano, além de também associadas ao recurso de ampla textura do instrumento, podem ser
também associadas ao contrabaixo. É pertinente especular a respeito da influência dos
contrabaixistas Sabá e Luizão Maia nas linhas de baixo do pianista, porém essa verificação
ultrapassa os limites do presente trabalho.
49
4 ESTRUTURAS DE ARRANJO
50
Explicar numeração dos dedos
50
Por não apresentar a linha melódica principal, esta estrutura de arranjo é muito
utilizada para acompanhar cantores ou instrumentos solistas. A mão direita conduz os acordes
na região médio-grave (que no exemplo anterior eram realizados pela mão esquerda), e a mão
esquerda atua na região super-grave, como nos exemplos abaixo:
51
Ver a contextualização realizada no capítulo 1, em que o samba-choro de Cesar Camargo relaciona-se com o
jazz e a bossa nova.
54
Ex. 63 – Samambaia, comp. 107-110 - Melodia em blocos na mão direita e baixos na mão esquerda
55
CONSIDERAÇÕES FINAIS
mão esquerda, classificadas de acordo com Almeida (ibid) em três grupos. No baixo condutor
harmônico, foram observadas linhas monódicas que conduzem as fundamentais e quintas dos
acordes, linhas que sugerem duas vozes e conduzem fundamentais, terças e sétimas, e por
último, condução de vozes na mão esquerda. Foram verificados também o baixo melódico e o
baixo pedal, que são os que apresentam menor ocorrência e são menos significativos em
relação ao primeiro citado.
Ao observar a disposição desses elementos estruturais simultaneamente ao piano,
formou-se o conceito de “estrutura de arranjo”, que é a forma de organizar baixos,
acompanhamentos e linhas melódicas concomitantemente entre as mãos direta e esquerda. As
cinco estruturas de arranjo descritas no quarto capítulo são algumas alternativas práticas para
a problemática do piano solo no samba-choro. Numa breve abordagem didática, sugere-se que
o pianista assimile os diversos elementos estruturais explicados no terceiro capítulo e, através
de algumas das cinco estruturas de arranjo, os aplique no momento da performance em outros
sambas ou choros.
As estruturas de arranjo não fazem referência à totalidade do texto musical, sendo
apenas alguns procedimentos técnicos observados que apresentam certa freqüência em Cristal
e Samambaia. A análise integral do texto musical sobre questões referentes aos arranjos para
piano fica como recomendação para próximas pesquisas. Outras recomendações são a análise
mais detalhada do ritmo, principalmente sobre articulações rítmicas, questões sobre a
harmonia, improvisação e outros aspectos, apontado para as contribuições de Cesar Camargo
Mariano ao piano brasileiro.
Espera-se que esta pesquisa tenha contribuído para uma melhor compreensão à
respeito das práticas interpretativas na música popular, especificamente ao piano solo no
contexto musical do samba-choro e para divulgar a prática das transcrições literais,
importantes para o estudo do piano nesse contexto.
58
REFERÊNCIAS
CASTRO, Ruy. Chega de Saudade – A História e as Histórias da Bossa Nova. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Teoria da harmonia na música popular: uma
definição das relações da cominação entre os acordes da harmonia tonal. Dissertação de
Mestrado- Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. São Paulo, 1995.
KIEFER, Bruno. Elementos da linguagem musical. 5. ed. Porto Alegre: Movimento, 1987
LEVINE, Mark. The jazz piano book. Berleley: Sher Music, CO., 1989
PIEDADE, A. T. C.; REA, A. M.. O choro no século XXI: atualizando a tradição. In: III
Jornada de Pesquisa do CEART / VIII Seminário de Iniciação Científica da UDESC, 2007,
Florianópolis. Anais da III Jornada de Pesquisa do CEART / VIII Seminário de Iniciação
Científica da UDESC - CD-ROM, 2007
SANTOS, Rafael dos (2001). Análise e considerações sobre a execução dos choros
Canhoto e Manhosamente de Radamés Gnattali. In: Per Musi – Revista acadêmica de
música, Belo Horizonte, v.3, 2002, p.5-16.
TINHORÃO, José Ramos, 1998 – História Social da Música Brasileira- São Paulo: Ed. 34,
1998.
60
APÊNDICE:
ANEXO