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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC

CENTRO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA

RAFAEL TOMAZONI GOMES

PIANO SOLO NO SAMBA-CHORO:


Algumas possibilidades a partir de duas performances de
Cesar Camargo Mariano.

FLORIANÓPOLIS
2008
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CATARINA - UDESC
CENTRO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA

RAFAEL TOMAZONI GOMES

PIANO SOLO NO SAMBA-CHORO:


Algumas possibilidades a partir de duas performances de
Cesar Camargo Mariano.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Departamento de Música do Centro de Artes da
Universidade do Estado de Santa Catarina como
requisito parcial para obtenção do título de bacharel
em música- opção: piano. Professor Orientador: Ms.
André Ferreira de Moura.

FLORIANÓPOLIS
2008
2

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à minha família: meus pais e meus irmãos, pelo apoio e
incentivo que sempre me dedicaram.
À Kássia Linck, pela paciência, interesse e dedicação para a realização deste trabalho.
Ao professor André Ferreira de Moura pela orientação nesta pesquisa.
Aos professores Rodrigo Warken e Ana Paula São Thiago pela orientação ao piano
durante o curso de graduação.
Aos pianistas Alexandre Zamith Almeida, Elenice Maranesi e Paula Faour por
disponibilizarem seus trabalhos.
Aos amigos e colegas de classe.
3

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo principal verificar como Cesar Camargo Mariano
distribui e organiza a linha melódica, linha do baixo, ritmo e harmonia, concomitantemente
entre as duas mãos, nos sambas-choro Cristal e Samambaia, para piano solo, nas
performances gravadas no álbum Cesar Camargo Mariano – Solo Brasileiro (Polygram -
1994). Para tanto, realizou-se transcrições literais de ambas as performances. O primeiro
capítulo apresenta uma breve contextualização da performance pianística no âmbito da música
popular, seguindo com dados biográficos de César Camargo Mariano (compositor e
intérprete), e por último, alguns dados sobre as obras em questão, como ano de composição,
diferentes versões das peças e o gênero samba-choro. O segundo descreve o processo de
transcrição e a metodologia aplicada. O terceiro capítulo apresenta uma análise do ritmo,
harmonia, melodia e baixos, separadamente, a partir dos elementos musicais do choro
propostos por Almeida (1999), onde foram adicionadas outras abordagens. O quarto e último
capítulo descreve cinco maneiras de dispor a melodia, acompanhamento e baixos, o que se
convencionou chamar de “estrutura de arranjo”.

Palavras-chave: Cesar Camargo Mariano; piano popular; transcrições.


4

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 05
1 CONTEXTUALIZAÇÃO ............................................................................................ 07
1.1 O PIANO NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA E ALGUNS
PROTAGONISTAS .......................................................................................................... 07
1.2 CESAR CAMARGO MARIANO ............................................................................... 11
1.3 CRISTAL E SAMAMBAIA ....................................................................................... 13
2 METODOLOGIA ........................................................................................................ 18
2.1 PROCESSO DE TRANSCRIÇÃO ............................................................................. 18
2.2 ORGANIZAÇÃO DOS ELEMENTOS MUSICAIS DO CHORO SEGUNDO
ALEXANDRE ZAMITH ALMEIDA ............................................................................... 20
3 MELODIA, BAIXOS, RITMO E HARMONIA ....................................................... 22
3.1 RITMO ........................................................................................................................ 22
3.2 HARMONIA ............................................................................................................... 30
3.3 MELODIA ................................................................................................................... 38
3.4 BAIXOS ...................................................................................................................... 43
4 ESTRUTURAS DE ARRANJO .................................................................................. 49
4.1 LINHA MELÓDICA E ACOMPANHAMENTO NA MÃO DIREITA E BAIXOS
NA MÃO ESQUERDA ..................................................................................................... 49
4.2 LINHA MELÓDICA NA MÃO DIREITA, ACOMPANHAMENTO EM AMBAS
AS MÃOS E BAIXOS NA MÃO ESQUERDA ............................................................... 51
4.3 LINHA MELÓDICA NA MÃO DIREITA E ACOMPANHAMENTO NA MÃO
ESQUERDA ...................................................................................................................... 52
4.4 ACOMPANHAMENTO NA MÃO DIREITA E BAIXOS NA MÃO ESQUERDA 53
4.5 LINHA MELÓDICA EM ACORDES NA MÃO DIREITA E BAIXOS NA MÃO
ESQUERDA....................................................................................................................... 54
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 56
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 58
APÊNDICE
ANEXO
5

INTRODUÇÃO

Dois grandes fatores impulsionaram a realização da presente pesquisa. Primeiramente,


o interesse e a admiração do pesquisador pela música do pianista e compositor Cesar
Camargo Mariano, especificamente a de piano solo, em gêneros relacionados ao samba. O
segundo fator foi divulgar e estimular, através de uma pesquisa acadêmica, práticas
interpretativas relacionadas ao piano no contexto da música popular.
O pianista que atua no contexto da música popular, habituado a tocar em grupo, muitas
vezes se depara com a performance ao piano solo e verifica a problemática de elaborar um
arranjo, muitas vezes em tempo real, onde o piano assume todas as funções: melodia, baixo,
harmonia e ritmo. Verifica-se essa circunstância também em formações em duo com solistas,
pois além de prover o acompanhamento, o pianista atua como solista em introduções, chorus
de improvisação1 e outros.
Optou-se por investigar alternativas para a problemática acima a partir da performance
de Cesar Camargo Mariano em dois sambas-choro: Cristal e Samambaia, gravadas no disco
Cesar Camargo Mariano – Solo Brasileiro2, de 1994. Essa investigação define o principal
objetivo deste trabalho: verificar como Cesar Camargo Mariano distribui e organiza a linha
melódica, linha do baixo, ritmo do samba-choro e harmonia, concomitantemente entre as duas
mãos.
Segundo Piedade (2007), grande parte da música popular está perpetuada em
gravações, não em partituras, por isso o analista musical muitas vezes tem que transcrever
gravações e criar sua partitura de trabalho para empregar os métodos analíticos. Verificou-se
essa condição em relação a Cristal e Samambaia, onde os registros musicais são
disponibilizados apenas em gravações de áudio, vídeo e leadsheets3. Para trabalhar a análise

1
O chorus de improvisação é uma prática oriunda do jazz, assimilada pela bossa nova e também presente na
música instrumental brasileira e no choro. Consiste em cada músico improvisar sobre a forma completa da
música, por exemplo AABA.
2
Cesar Camargo Mariano - Solo Brasileiro. CD 518874-2. PolyGram, 1994.
3
Segundo Fabris; Borém (2006), leadsheet é o tipo de partitura mais comum na música popular que geralmente
apresenta a melodia e os acordes simplificados na forma de cifras. Também ocorrem indicações rítmicas e de
instrumentação.
6

musical a partir de partituras, realizaram-se transcrições integrais (nota a nota) de ambas as


performances, visando o aspecto estrutural, que é o objetivo desta pesquisa.
Com este trabalho, visa-se contribuir com a crescente quantidade de estudos
acadêmicos sobre a música popular brasileira (loc. cit.), uma vez que tanto o texto quanto as
transcrições revelam aspectos musicais que poderão ser aprofundados em futuros trabalhos.
Também contribui com os músicos interessados na performance de Cesar Camargo Mariano,
sobretudo pianistas, que encontram aqui um texto didático que procura responder questões,
por exemplo, de como Cesar Camargo realiza o ritmo, como funciona a harmonia, quais são
os procedimentos para a realização dos baixos, entre outras. A partitura transcrita também é
uma alternativa para os pianistas não habituados às leadsheets se inserirem nesse contexto de
performance musical.
O trabalho organiza-se em quatro capítulos: o primeiro apresenta uma
contextualização geral, que abrange a prática do piano no contexto da música popular
brasileira especificamente em gêneros relacionados ao samba, o compositor e intérprete Cesar
Camargo Mariano, as obras Cristal e Samambaia e o gênero Samba-choro4. O segundo
capítulo expõe a metodologia aplicada na pesquisa: descreve-se o processo de transcrição das
obras e a abordagem da partitura a partir da descrição dos elementos estruturais do choro,
conforme Almeida (1999) analisa. No terceiro capítulo, realiza-se a análise do ritmo,
harmonia, melodia e baixo, separadamente, a partir de Almeida (ibid.) e de outros autores cuja
área de pesquisa está relacionada ao objeto de estudo do presente trabalho. O quarto e último
capítulo apresenta algumas formas de dispor os elementos estruturais, analisados no capítulo
anterior, concomitantemente entre as mãos direita e esquerda.

4
O gênero samba-choro é abordado neste trabalho de uma forma específica, relacionada ao contexto musical de
Cesar Camargo Mariano. O assunto será tratado no sub-ítem 1.3 – Cristal e Samambaia.
7

1 CONTEXTUALIZAÇÃO

Esta pesquisa trata de apontar alguns aspectos do tratamento pianístico de Cesar


Camargo Mariano no contexto do samba-choro5 a partir das performances: Cristal e
Samambaia, composições do próprio interprete, gravadas no álbum Solo Brasileiro, de 1994.
Optou-se primeiramente por discorrer brevemente sobre a prática do piano no contexto
da música popular brasileira, citando alguns personagens que, como Cesar Camargo, foram
importantes por consolidar a performance pianística nesse contexto.
Em seguida o capítulo apresenta um texto biográfico sobre Cesar Camargo com foco
na sua atuação como pianista. São informações obtidas em sua maioria em seu website
oficial6, que tratam de sua discografia, influências, músicos com quem trabalhou, e outras.
O capítulo termina com dados sobre os samba-choros Cristal e Samambaia. Serão
abordados aspectos como ano de composição, discografia que contém diferentes versões das
obras, classificação quanto ao gênero samba-choro bem como considerações sobre este
gênero.

1.1 O PIANO NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA E ALGUNS PROTAGONISTAS

O início da prática pianística no contexto da música popular no Brasil se deu ainda no


século XIX, “o primeiro grupo de que se teve notícia, idealizado pelo flautista carioca
Joaquim Antônio da Silva Callado Júnior na segunda metade do século XIX, já contava com a
presença, ainda que esporádica, do piano de Chiquinha Gonzaga”(ALMEIDA, 1999, p.105).
Na época o piano era o principal meio de reprodução sonora –o gramofone e o rádio surgiram
apenas no início do século XX – e a comercialização de músicas era feita através das
partituras para piano. Ainda segundo o autor, o instrumento “assumiu um papel
importantíssimo da divulgação do repertório de música popular e ligeira do mundo ocidental”
(ibid., p.70). A popularização do instrumento fez com que a cidade do Rio de Janeiro fosse
5
O termo “samba-choro” será abordado nesta pesquisa num contexto específico, no qual se insere Cesar
Camargo Mariano. Considerações sobre esse contexto musical serão feitas ainda neste capítulo.
6
www.cesarcamargomariano.com
8

chamada de “a cidade dos pianos” em 1856, “contribuindo assim para fixar aquela data como
marco inicial da história do piano popular” (TINHORÃO, 1998, p.131).
O piano foi então sendo incorporado aos conjuntos instrumentais populares de flauta,
violão e cavaquinho básicos do choro e, segundo Tinhorão (1974), surgiu um novo tipo de
artista: o tocador de piano que possuía pouca instrução musical formal, porém muito balanço,
que na maioria das vezes tocava “de ouvido”. Para distinguir esses dos pianistas de escola,
convencionou-se chamar-los de pianeiros7. Almeida define que o termo pianeiro pode ser
empregado “para designar pianistas que não passaram por uma formação musical ou
pianística de maneira formal e que dedicaram-se prioritariamente a compor ou tocar um
repertório de caráter ligeiro e popular” (ALMEIDA, 1999, p.72). Ainda segundo o autor,
esses músicos atuavam em casas de partituras, cinemas, bares, hotéis, clubes de baile, teatros
populares, revistas e diversos tipos de locais públicos e tocavam os diversos gêneros musicais
em voga na época: gêneros da música ligeira nacional e internacional, como valsas, xótis,
habanera, tangos, tangos brasileiros, maxixes e outros. As atividades dos pianeiros
extinguiram-se na década de 30 com a popularização do gramofone e da rádio e o
desaparecimento de seus principais representantes: Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth,
José Barbosa da Silva – o Sinhô- e Zequinha de Abreu (ibid., p.72).
Outro personagem em destaque na música popular brasileira é Radamés Gnattali,
(1906-1988). Com formação de pianista concertista, Gnattali destacou-se também como um
grande compositor, arranjador da música popular e erudita. Segundo consta em seu website
oficial8, Gnattali teve contato com grandes nomes da música popular brasileira como Ernesto
Narareth, o flautista e compositor Pixinguinha, os violonistas Garoto e Dino 7 cordas, o
percussionista João da baiana, o bandolinista Jacob do Bandolin, o pianista e compositor Tom
Jobim entre outros. Segundo o próprio Gnatalli, foi com os pianeiros que aprendeu o piano
popular9. Sua contribuição para o piano de caráter popular são obras escritas para piano solo
como os choros “Canhoto” e “Manhosamente”10, e obras que contém o piano em formações
camerísticas11, como o Sexteto Radamés.

7
ALMEIDA (1999) comenta que o termo pianeiro durante muito tempo apresentou um caráter pejorativo devido
à músicos que, impulsionados pelo fértil campo de trabalho, puseram-se a tocar piano com pouca noção do
instrumento. O autor conclui que com o reconhecimento do valor de músicos “pianeiros como Ernesto Nazareth
e Chiquinha Gonzaga o termo assume até um tom carinhoso”, não apresentando caráter pejorativo.
8
www.radamesgnattali.com.br
9
http://www.radamesgnattali.com.br/site/index.aspx?lang=port , acessado em 01/09/2008
10
Segundo Santos (2001), “Os choros para piano solo Canhoto e Manhosamente [...] contém a maioria dos
elementos estruturais do gênero [...]. Tais elementos são associados a uma sonoridade jazzística[...] que os
tornam modernos e sofisticados sem descaracterizá-los.”
11
O catalogo de obras do compositor está disponível em http://www.radamesgnattali.com.br .
9

Segundo Tinhorão (1998), a partir do fim da década de 40, no período pós- guerra, o
jazz norte americano passa a exercer influência sobre os músicos brasileiros. Faour afirma que

[...] os músicos buscavam à época uma sonoridade moderna que se aproximasse ao


som produzido nos Estados Unidos.[...] devido a repercussão do be bop e depois do
cool jazz, estes estilos eram o parâmetro de modernidade da segunda metade década
de 50. (FAOUR, 2006, p.24)

Ruy Castro (1990, p.32) cita o pianista e cantor Dick Farney como protagonista da influência
da música norte-americana que, em 1946 viajou para os Estados Unidos onde teve contato
com importantes pianistas do jazz como Nat “King” Cole, Oscar Peterson, Billy Taylor e
Dave Brubeck12. O pianista Johnny Alf - que tinha como inspiração os filmes norte-
americanos com músicas dos compositores George Gershwin e Cole Porter13 - desde 1948 se
destacava tocando em boates no Rio de Janeiro, juntamente com os jovens pianistas Tom
Jobim e Newton Mendonça. A boate do Plaza esteve em destaque, até meados de 195514,
como o ponto de encontro dos músicos, que “durante quase um ano fizeram experimentações
rítmicas e harmônicas que mais tarde se tornariam a gênesis da Bossa Nova” (FAOUR, 2006,
p.11).
Segundo Maranesi, “a bossa nova teve seu início oficial em 1958, com o lançamento
do disco de 78 rpm Chega de saudade (Odeon, 1958) no qual João Gilberto interpreta a obra
clássica homônima de Tom Jobim e Vinicios de Moraes” (MARANESI, 2007, p.20). Ainda
segundo a autora, João Gilberto tornou-se a grande referência da bossa nova por ter
introduzido a batida do violão15 com qual marca os acordes, imprimindo uma sonoridade
diferente de tudo que até então havia sido feito na música popular brasileira. Segundo consta
no dicionário Cravo Albin da música popular brasileira, a bossa nova foi considerada uma
nova forma de tocar samba, com forte influência norte-americana traduzida nos acordes
dissonantes comuns ao jazz16.

12
Informações obtidas em http://br-instrumental.blogspot.com/2006/11/dick-farney-jazz-1962.html, acessado em
01/09/2008. Extraído do disco Dick Farney – Jazz, de 1962
13
http://www.almacarioca.com.br/jalf.htm , acessado em 01/07/2008. Na "História da Música Popular Brasileira
- Abril Cultural - São Paulo, 1972" encontramos a vida de Johnny Alf contada por ele mesmo.
14
Ano em que Jonny Alf muda-se para a cidade de São Paulo onde, provavelmente no ano de 1956 vai morar
junto a Cesar Camargo Mariano e sua família.
15
O produtor musical Arnaldo Desouteiro (apud FAOUR, 2006, p.42) afirma que a primeira vez que a batida da
bossa nossa aprarece em uma gravação (Eu quero um samba, de Haroldo Lobo e Janet de Almeida – Sinter
1953/1954) foi com o acordeon de João Donato e mais tarde João Gilberto adaptaria e aperfeiçoaria esta batida
para o violão. Faour (ibid., p.43) conclui que “exite um vínculo entre João Donato e João Gilberto quanto à
criação da ´batida da bossa nova`”.
16
http://www.dicionariompb.com.br/verbete.asp?tabela=T_FORM_C&nome=Bossa+Nova
10

O piano marcou sua presença no movimento da bossa nova principalmente na


formação em trio: piano, baixo e bateria. Essa formação era usada para acompanhar cantores -
como mostra Ruy Castro: “[...] os dois supertrios da Bossa Nova: O Bossa Três e o Tamba
Trio [...] seguravam todos os cantores” (CASTRO, 1990, p.13) - e para interpretar as canções
da bossa nova como música instrumental, como cita Faour: “uma das [formações] mais
usadas quando se tratava de Bossa Nova tocada como instrumental” (FAOUR, 2005, p.34). A
autora também cita que:

Dentro da evolução do gênero Bossa nova, foi observado que o piano, inserido na
formação de trio [...], ganhou papel de destaque nas décadas de 60 e 70, através da
performance de pianistas como Johnny Alf, João Donato, Tom Jobim, Sérgio
Mendes, Cesar Camargo Mariano, Marcos Valle e outros (ibid. , p.3).

Os principais pianistas com seus respectivos trios formados nessa década, nas cidades
do Rio de Janeiro e São Paulo foram: Luizinho Eça com seu Tamba Trio; Amilton Godoy
com o Zimbo Trio; Cesar Camargo Mariano com o Sambalanço Trio e Som Três; Hermeto
Pascoal com o Sambrasa Trio; Antônio Adolfo com o Trio 3D; Cido Bianchi com o Jongo
Trio; Sérgio Mendes com o Sérgio Mendes trio; João Donato com o João Donato trio.
Segundo Garcia, “A bossa nova abriu as portas para a música instrumental que [...]
havia sido relegada a um plano secundário, os instrumentistas servindo como meros
acompanhantes aos cantores” (GARCIA, 2004, p.23). É nesse período que surge a chamada
Música instrumental brasileira, conhecida internacionalmente como Jazz Brasileiro. Segundo
Piedade e Bastos:

O jazz brasileiro, assim, surgiu nos anos 60, no contexto da bossa nova, com as
versões instrumentais deste repertório, principalmente nos trios de piano. A partir
deste momento, quando predomina o diálogo entre bossa nova e jazz norte-
americano, a música instrumental consolida-se com a incorporação de aspectos da
musicalidade de outros gêneros, ao mesmo tempo mantendo uma linguagem
peculiarmente própria, mais diretamente relacionada aos mundos do jazz
internacional e da música brasileira [...] (BASTOS e PIEDADE, 2007).

Segundo Piedade e Réa (2005), a fusão de ritmos brasileiros como frevo, samba e
baião com formas de improvisação do jazz são características da música instrumental
brasileira. Dentro deste contexto destacam-se pianistas como Hermeto Pascoal, Egberto
Gismonti, Cesar Camargo Mariano, como afirma Tárik de Souza:

músicos como Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Wagner Tiso, Paulo Moura e
Cesar Camargo Mariano, contribuíram para o amadurecimento de uma linguagem
11

moderna que incorporava signos tradicionais do mencionado chorinho ao samba,


frevo, calango, baião, até música indígena” (SOUZA, 1988, p.26 apud GARCIA,
2004, p.23)

O gênero atingiu seu auge nos anos 80 (GARCIA, 2004) e tem o álbum Samambaia -
gravado por Cesar Camargo Mariano ao piano e Hélio Delmiro ao violão, de 1981 – como
forte referência, como consta no web site clube do jazz17 : “[o álbum] ´Samambaia` ainda
figura como um dos mais expressivos. Este LP, em duo com Hélio Delmiro, chegou a ser
considerado pela imprensa internacional como um dos 10 melhores discos de música
instrumental já editados”. Conrado Paulinho também cita que “o disco Samambaia de Cesar
Camargo Mariano e Hélio Delmiro é de fato um marco na nossa música e uma gravação
absolutamente imprescindível para qualquer músico que queira dominar a linguagem da
música brasileira, não somente pianistas e violonistas” (PAULINO, 2005).

1.2 CESAR CAMARGO MARIANO

Após ganhar um piano de presente de seu pai, no dia 19 de setembro de 1957, quando
completava 13 anos de idade, Cesar Camargo Mariano inicia seus estudos de maneira
autodidata, reproduzindo ao piano as músicas que escutava na rádio. Segundo o próprio Cesar
Camargo Mariano, por costume de seus pais cresceu ouvindo jazz e música de concerto18. O
19
pianista Nat “King” Cole foi um dos primeiros ídolos de Cesar e, segundo Faour (2006
p.53), “sua adoração pelo pianista era total, e o imitava nos últimos detalhes”. Segundo seu
web site oficial, tal imitação foi utilizada em comerciais da TV Record, pela ocasião da visita
de Nat “King” Cole ao Brasil, quando Cesar Camargo Mariano tinha 15 anos.
Segundo seu web site oficial, Cesar tornou-se músico profissional antes de completar
16 anos, tocando em bailes, clubes e festas de São Paulo com diversos grupos. Em 1962,
montou o “Três Américas”, que se tornou um importante grupo de baile no Brasil e, durante
os três anos em que trabalhou com o grupo, adquiriu experiência em arranjos e em
acompanhar cantores na música popular internacional e brasileira. Durante este período,

17
Disponível em http://www.clubedejazz.com.br/jazzb/jazzista_exibir.php?jazzista_id=188 , acessado em
14/10/2008
18
Segundo Faour (2005) entrevista concedida para a rádio Jovem Pan em 11/10/1986.
19
Nat King Cole, nome artístico de Nathaniel Adams Coles, (1919, 1965) foi um cantor e músico de jazz norte-
americano, pai da cantora Natalie Cole.
12

Mariano também participou do “Quarteto Sabá”, ao lado de Sabá Oliveira (baixo), Hamilton
Pitorre (bateria) e Theo de Barros (guitarra). Esse quarteto foi durante vários anos a principal
atração na “A Baiúca”, importante casa de jazz e música brasileira de São Paulo. Ainda em
1962 gravou o seu primeiro álbum de sua carreira, com o Quarteto Sabá.
Segundo seu web site oficial, na década de 60 Cesar Camargo firma-se como
importante arranjador e pianista da bossa nova. Com Airto Moreira (bateria) e Humberto
Clayber (contrabaixo), formam o Sambalanço Trio que em 1964 e 1965 gravou dois discos.
Em seguida, Mariano foi convidado para formar um novo trio, o Som Três, ao lado do
contrabaixista Sebastião Oliveira (Sabá) e do baterista Toninho Pereira. O trio, que além de
ter sido a base instrumental para os shows de Wilson Simonal, gravou três discos entre 1966 e
1971. Ainda em 1966, o pianista grava o disco Octeto de Cesar Camargo Mariano, formado
pelos integrantes do Sambalanço Trio, Som Três e mais cinco sopros.
Em 1971 Cesar Camargo Mariano foi convidado pela cantora Elis Regina para
produzir, dirigir e fazer arranjos de seu novo show e álbum, e durante os dez anos seguintes,
exerceu essas três funções ao lado da cantora. Além de Cesar Camargo e Elis Regina, o grupo
era formado por Luizão Maia no contrabaixo, Paulo Braga na bateria e Hélio Delmiro na
guitarra.
Durante sua carreira, Cesar Camargo gravou três álbuns em duo com cantores: Voz e
Suor, em 1984 com a cantora Nana Caymi; Nós, de 1989 com Leny Andrade; Leny Andrade e
Cesar Camargo Mariano ao Vivo, DVD lançado em 2006 e Piano & Voz, de 2003 com Pedro
Mariano. Ainda na formação de duo, porém com violonistas, gravou Samambaia, com Hélio
Delmiro em 1981 e Duo, com Romero Lubambo em 2002, que foi lançado também em DVD
em 2005.
Na música instrumental, Cesar também formou em 1989 um trio acústico com Hélio
Delmiro (violão) e Paulo Moura (clarinete), com o qual participou de uma turnê de dez
concertos pela Espanha. Em 1993, o pianista gravou dois álbuns: Natural, quarteto formado
com os músicos Marcelo Mariano (baixo), Pantico Rocha (bateria) e Luis Carlos (percussão)
e Solo Brasileiro, para piano solo, que contém a interpretação de Cristal e Samambaia,
transcritas e analisadas neste trabalho. Segundo seu web site oficial, “durante todos estes
anos, entre um trabalho e outro, Cesar nunca deixou de apresentar os concertos de piano-solo,
desenvolvendo e pesquisando cada vez mais a técnica pianística”. Dentre os concertos para
piano solo, são destacados20 os de 1994, no Blue Note Jazz Club em New York; os concertos

20
Segundo seu web site oficial
13

de 1995, numa turnê pela América do Sul; também no ano de 2003 em Chicago e no SESC
Santana, São Paulo, em dezembro de 2005.

1.3 CRISTAL E SAMAMBAIA

Cristal é uma composição de Cesar Camargo Mariano lançada em sua primeira versão
no álbum Solo Brasileiro, do ano de 1994. Sua edição em partitura para piano solo publicada
pela Samambaia Music21 traz “Samba-Choro” como indicação de gênero e 95 bpm como
indicação de andamento. Apresenta o caráter rítmico que, segundo Maranesi, “é geralmente o
maior atrativo da música de Cesar Camargo” (ibid.,2007, p.46, sendo que ritmos
característicos do samba, do choro e o swing22 próprio de Mariano são realizados em sincronia
entre as duas mãos num andamento relativamente rápido. Cristal tem dó maior como
tonalidade principal, com forte presença de acordes com tensões em progressões harmônicas
II-V-I, que transitam também por outras tonalidades. Outras versões de Cristal foram
gravadas em três discos do violoncelista Yo-yo Ma com o próprio Mariano ao piano:
Obrigado Brazil de 2003, Obrigado Brazil Live de 2004 e Essential Yo-yo Ma de 2005. O
saxofonista cubano Paquito D´Rivera23 também gravou Cristal em The Jazz Chamber Trio,
em 2006.24 Em seu DVD Duo com o violonista Rumero Lubambo, Mariano também
apresenta uma nova versão da música, com seções de improvisação e novos arranjos.
Segundo Maranesi (2007), Samambaia é a mais conhecida composição de Cesar
Camargo Mariano e foi composta provavelmente em 1980. Ainda segundo a autora, a obra
que é “classificada em algumas ocasiões como samba-choro, traz aspectos interpretativos e
estilísticos que mesclam a harmonia moderna com a concepção jazzística características desta
década”(ibid. p.31). Samambaia foi gravada primeiramente em 1981, no LP Cesar Camargo
Mariano e Hélio Delmiro25 – Samambaia, “esta versão tornou-se imediatamente um clássico
na música instrumental brasileira, posição que sustenta até hoje” (ibid., p. 31). Outras versões
gravadas por Cesar Camargo estão em Solo Brasileiro de 1994, Duo - Cesar Camargo

21
Edição disponível em www.cesarcamargomariano.com. Copyrights / CCM © Samambaia Musicc (BMI).
Escrita em notação tradicional para piano, a edição também apresenta a harmonia.
22
Segundo Faour (2005), swing está com a interpretação de padrões ritmicos (que podem ser harmônicos e/ou
melódicos com diferentes articulações, intensidades e dinâmicas.
23
O saxofonista e clarinetista Paquito D'Rivera nasceu em quatro de junho de 1948 em Havana, Cuba equilibrou
sua carreira entre o jazz latino e incursões na música clássica, como compositor e performances junto a
orquestras sinfônicas. Maiores informações em http://www.paquitodrivera.com/ .
24
Informações obtidas em http://www.cesarcamargomariano.com/pgprodar.html , acessado em 17/09/2008.
25
Hélio Delmiro, violonista carioca nascido em 1947, trabalhou ao lado de César Camargo e Elis Regina.
14

Mariano e Rumero Lubambo26 lançado em CD no ano de 2002 e DVD no ano de 2005, com
Yo-yo Má em Obrigado Brazil de 2005 e Leny Andrade27 e Cesar Camargo Mariano ao
Vivo, DVD lançado em 2006 onde Cesar Camargo abre o concerto com Samambaia, para
piano solo.

A presente pesquisa tem como foco as versões de Cristal e Samambaia gravadas no


álbum de Cesar Camargo Mariano intitulado Solo Brasileiro, de 1994. Neste álbum, gravado
integralmente em piano solo, Mariano apresenta quatro composições próprias: Pesqueiro de
São José, Improviso, Cristal e Samambaia. O pianista também interpreta Da Cor do Pecado
(Bororó), Tem Dó (Baden Powell – Vinícios de Moraes), Minha Mágoa (Nelson Cavaquinho-
Guilherme de Brito), Linda Flor (H.Vogeler – Candido Costa – Luiz Peixoto Marques), Por
Toda Minha Vida (Tom Jobim), Negrinho do Pastoreiro (Barbosa Lessa), O Tempo e o Vento
(Jonny Alf) e Milagre dos Peixes (Suíte, Milton Nascimento – Fernando Brant). O álbum,
gravado março de 1993 em Los Angeles nos Estados Unidos, traz a seguinte declaração de
Cesar Camargo: “Com este projeto, considero comemorados os meus 35 anos de carreira.
Aliás, foi assim que tudo começou:- Tocando piano” (MARIANO, 1994)

Figura 1- Cesar Camargo Mariano - Solo Brasileiro. CD 518874-2. PolyGram, 1994.


.

26
Romero Lubambo, nascido na cidade do Rio de Janeiro em 1955, graduou-se em guitarra clássica na Escola de
Música Villa-Lobos no Rio em 1978. O guitarrista desenvolve suas habilidades tanto no jazz como na música
brasileira. Maiores informações em: http://clubedejazz.com.br/ojazz/jazzista_exibir.php?jazzista_id=201
27
Nascida na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1946, a cantora Leny Andrade firmou-se como a maior cantora
brasileira de jazz, conhecida por sua notável capacidade de improvisação. Informações obtidas em
http://clubedejazz.com.br/ojazz/jazzista_exibir.php?jazzista_id=306, acessado em 25/11/2008.
15

A classificação de Cristal e Samambaia quanto ao gênero samba-choro, apesar de não


ser o objeto de estudo da presente pesquisa, merece algumas considerações. Em entrevista
sobre as músicas que foram gravadas com o violoncelista Yo-Yo Ma28, o próprio Cesar
Camargo classifica Cristal e Samambaia como choros: “São três choros meus: Samambaia,
Cristal e Choro Nº 7 [...]”. A edição em partitura de Cristal disponível no web site oficial do
compositor indica o gênero samba- choro. Conrado Paulino classifica Samambaia como
samba-choro: “A bela composição Samambaia, de Cesar Camargo - um tipo de ´samba-choro`
com harmonia moderna e certa concepção jazzística – [...] ” 29.
Alguns autores definem o gênero samba-choro: Tinhorão (1938, p.160) refere-se ao
gênero como “casamento do choro com o ritmo do samba”, com adaptação de letras cantadas
no fraseado eminentemente instrumental do choro, aliadas ao ritmo do samba à base de
instrumentos de percussão. Vasco Moriz define o gênero como um “samba com fraseado de
flauta na voz” (apud TINHORÃO, 1974, p.160), referindo-se ao samba-choro como samba
que apresenta linhas melódicas típicas do choro- que tradicionalmente são realizadas pela
flauta- cantadas pela voz. Tais definições não se aplicam aos samba-choros Cristal e
Samambaia nas versões para piano solo por não se tratarem de músicas cantadas e por não
apresentarem instrumentos de percussão. No entanto se for considerarmos que o piano realiza
o ritmo dos instrumentos de percussão do samba simultaneamente com o fraseado do choro,
tais definições tornam-se pertinentes.
O Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira apresenta o gênero samba-
choro como uma variação rítmica do samba:

O samba ao longo dos anos tem se apresentado com muitas variantes rítmicas.
Dentre as mais conhecidas, destacamos, o samba-de-breque, samba-exaltação,
samba-de-terreiro, samba-enredo, sambalanço, samba-de-quadra, sambalada,
samba-chulado, samba-raiado, samba-coco, samba-choro [destaque do autor do
presente trabalho], samba-canção, samba-batido, samba-de-partido-alto e samba de
gafieira.30

O termo choro moderno também se aplica ao repertório em questão. Almeida (1999)


entende a harmonia do choro a partir de dois momentos distintos da história do gênero: o
choro tradicional, que apresenta harmonia simples; e o choro moderno, que apresenta acordes
alterados e tensões harmônicas. Segundo Almeida,

28
http://www.terra.com.br/musica/2002/08/22/007.htm . Entrevista com CCM realizada por Ricardo Ivanov em
22/08/2002.
29
http://www.conradopaulino.com.br/news1.asp?map_001_c=03%2E04&offset=40&cng_ukey=38655164325D
K9DWSI (acessado em 06/10/2008)
30
http://www.dicionariompb.com.br/verbete.asp?tabela=T_FORM_C&nome=Samba)
16

o choro moderno – que delineou-se a partir da década de trinta e tem Pixinguinha


como um de seus mais notáveis inauguradores – incorporou recursos harmônicos
bastante elaborados e oriundos de outras tradições musicais, como a música
jazzística norte-americana e a produção erudita do século XX. (ALMEIDA, 1999,
p. 122).

Elementos característicos do choro moderno como acordes alterados e tensões harmônicas,


como citado anteriormente, são características de Cristal e Samambaia e a influência da
música jazzística também é evidente na formação de Cesar Camargo31.
Piedade e Réa (2007) citam que a geração de músicos de choro, que surgiu a partir dos
anos 80, teve uma formação musical mais ampla, através do contato e estudo de outras
músicas como o jazz e a música erudita. Sobre os músicos desta geração, os autores citam
que:

Muitos deles também tocaram e gravaram bossa nova instrumental e ouviram


gravações dos jazzistas norte-americanos, deixando-se influenciar e trazendo
novidades formais para o choro, como o formato chorus de improvisação,
aproximando-se do universo da música instrumental. (PIEDADE e RÉA, 2007)

Cristal e Samambaia podem ser incluídas também no repertório da chamada Música


Instrumental Brasileira, “gênero da música popular brasileira que, em seu desenvolvimento
histórico, dialoga profundamente com o choro, com a bossa-nova e com o jazz” (PIEDADE;
BASTOS, 2007). Ainda segundo o autor, a música instrumental brasileira surgiu na década de
60 com a interpretação instrumental das canções da bossa nova e como o diálogo com o jazz
norte americano principalmente com os trios de piano (piano, baixo e bateria), onde Cesar
Camargo Mariano teve importante participação. Segundo Bastos e Piedade, “a partir deste
momento, quando predomina o diálogo entre bossa nova e jazz norte-americano, a música
instrumental consolida-se com a incorporação de aspectos da musicalidade de outros
gêneros”(PIEDADE; BASTOS, 2007). Piedade e Réa (2007) citam a incorporação do gênero
choro: “Parece que neste período (décadas de 70 e 80), o choro dialoga fortemente com a
chamada MI [música instrumental brasileira], que não por acaso tem neste gênero sua
expressão mais brasileira (ou de brasilidade)”(loc.cit).
A partir das considerações acima, esta pesquisa delimita seu contexto musical. Tal
contexto delimitado trata do piano em formação solo no gênero samba-choro, (que mistura o

31
Segundo seu web site oficial, Cesar Camargo inicia seus estudos como autodidata reproduzindo ao piano as
músicas do pianista de jazz Nat “King” Cole. Faour (2005 p. 54) cita o pianista norte americano Oscar Peterson
como ídolo de Cesar Camargo.
17

ritmo do samba com linhas melódicas características do choro) com o tratamento harmônico
relacionado ao jazz e a bossa nova (acordes alterados, tensões harmônicas, progressões II-V-
I, modulações e outros). Esse contexto também relaciona-se com o choro moderno e a música
instrumental brasileira e apresenta as principais características de Cristal e Samambaia.
18

2 METODOLOGIA

2.1 PROCESSO DE TRANSCRIÇÃO.

A presente pesquisa se iniciou a partir do interesse deste pesquisador no idioma


pianístico de Cesar Camargo Mariano, especialmente na maneira como Mariano distribui e
organiza a linha do baixo, linha melódica, ritmo do samba-choro e harmonia,
concomitantemente entre as duas mãos. Como a pesquisa, no período inicial, não teve acesso
a edições em partitura do compositor, iniciou-se os trabalhos de transcrição de Cristal, na
versão do disco Solo Brasileiro, no qual o compositor é o próprio interprete.
Com o desenvolvimento da transcrição de Cristal, foi-se aos poucos verificando e
“descobrindo” elementos da linguagem musical de Mariano, que até então não haviam sido
detectados pela percepção auditiva deste pesquisador. A fim de verificar a ocorrência desses
elementos, optou-se por transcrever também a versão de Samambaia, também do disco Solo
Brasileiro, ampliando o conteúdo musical da pesquisa para duas obras, com o objetivo de
obter mais exemplos musicais.
Sobre transcrições musicais, Maranesi (2007) afirma que:

Neste terreno, o conceito de transcrição é entendido como o registro, em notação


musical tradicional, de performances executadas em gravações ou em apresentações
ao vivo. Na maioria das vezes, o formato adotado para essa finalidade, é o da
transcrição literal, conhecida no meio editorial popular como transcrição ´nota a
nota`, aquela que registra minuciosamente, através da escrita musical clássica,
todos os parâmetros musicais básicos nas peças transcritas. (MARANESI, 2007,
p.2)

O presente trabalho adotou o formato de transcrição “nota a nota”, onde foram


grafados, através da escrita musical convencional para piano, os elementos que são
considerados importantes e necessários para o melhor entendimento das gravações. Como o
foco deste trabalho está nos elementos básicos estruturais - melodia, baixos, ritmo e harmonia
– foram escritas apenas as notas tocadas por Cesar Camargo, sem indicações caráter,
pedalização, nuances interpretativas e dinâmicas, sendo que alguns acentos e articulações
foram grafados para a compreensão do caráter rítmico das estruturas.
19

O processo de escrita se deu primeiramente a partir de duas tessituras: os extremos


grave - linha do baixo - e os extremos agudos - linha melódica, o que facilitou o
reconhecimento parcial da harmonia. Em seguida foram transcritas as notas intermediárias,
situadas entre a linha melódica e a linha do baixo, como acompanhamento rítmico-harmônico,
vozes em contraponto e outros. A audição teve auxílio do software Sound Forge que permite
a repetição de trechos específicos e a diminuição do andamento sem alterar a freqüência. Cada
nota, acorde ou linha melódica foi identificada pela audição, conferida ao piano e notada no
programa editor de partituras. Apesar das várias revisões realizadas, esta pesquisa não
descarta a possibilidade de haver alguma diferença entre a transcrição obtida e a real
performance de Cesar Camargo no disco Solo Brasileiro. Eventuais diferenças se tratam de
pequenas omissões ou simplificações que não comprometem o objetivo deste trabalho.
Após concluído os trabalhos de transcrição, a presente pesquisa teve acesso a uma
edição de Cristal32 para piano solo disponível no web site oficial de Cesar Camargo. Tal
edição apresenta diferenças em relação à performance do pianista no álbum Solo Brasileiro e
como o foco desta pesquisa está nessa performance, foi priorizada a transcrição realizada por
este pesquisador. Maranesi (2007) também transcreveu a mesma versão de Samambaia,
gravada por Cesar Camargo no álbum Solo Brasileiro. Em seu trabalho, a autora apresenta um
excerto de sua transcrição que se mostra bastante completa, elaborada e fiel ao registro
fonográfico.
O trabalho de transcrição realizado pela presente pesquisa se mostrou eficiente e
oferece um melhor entendimento da gravação em relação à maneira de como Cesar Camargo
organiza seus elementos estruturais – melodia, baixos, ritmo e harmonia. Para o presente
pesquisador, a transcrição foi um grande exercício de percepção e escrita musical, além de
incluir Cristal e Samambaia no seu repertório como pianista intérprete. Sobre os benefícios da
prática da transcrição Maranesi (2007) afirma que:

O exercício de transcrever partituras a partir de fontes sonoras gravadas, neste


contexto, desenvolve e apura as habilidades perceptivas, proporciona um
refinamento técnico, e pode impulsionar a criatividade a ponto de favorecer o
desempenho na área da improvisação e da composição. (ibid. p. 6)

A partitura obtida por esta pesquisa através da transcrição facilita a análise do texto
musical, de modo que dela são retirados os exemplos musicais expostos no corpo deste
trabalho.

32
Edição disponível em www.cesarcamargomariano.com. Copyrights / CCM © Samambaia Musicc (BMI)
20

2.2 ORGANIZAÇÃO DOS ELEMENTOS MUSICAIS DO CHORO PROPOSTA POR


ALEXANDRE ZAMITH ALMEIDA

Em sua dissertação intitulada “Verde e Amarelo em Preto e Branco: as impressões do


choro no piano brasileiro”, Alexandre Zamith Almeida descreve os elementos típicos da
música e do instrumental do choro, traduzidos para o repertório pianístico. Para tanto, o autor
realizou um levantamento em dezenas de choros para piano de diversos autores de diferentes
épocas (ALMEIDA, 1999, p.105), que abrange desde o choro da segunda metade do século
XIX até o choro moderno, produzido a partir da década de trinta com Pixinguinha, Radamés
Gnattali, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e outros.
Tais elementos são organizados pelo autor de acordo com o aspecto musical ao qual
estão inseridos, em quatro categorias distintas: Melodia, Baixos, Harmonia e Ritmo (loc.
cit.). A partir dessa classificação, Almeida descreve os elementos que estruturam a melodia
(apogiaturas, bordaduras, cromatismos, arpejos e outros), o baixo (inversões, baixo pedal,
baixo melódico e outros), o ritmo (síncopas, alusão à sincopa, quiálteras e outros) e a
harmonia (inversões de acordes, dominantes secundárias, acorde napolitano, ocorrência de
acordes alterados, tensões harmônicas e outros).
No choro tradicional, tais elementos são realizados por instrumentos característicos do
gênero, como afirma Santos (2001): “O choro tradicional é originalmente composto para
pequenos conjuntos, que incluem flauta, clarineta, bandolim, cavaquinho, violões e percussão,
entre outros”(ibid., p.5). No contexto de piano solo, o instrumento realiza esses vários
elementos simultaneamente, como afirma Almeida: “como instrumento intérprete de choros, o
piano atuou como uma redução do grupo chorão, podendo realizar – à sua maneira - a
melodiosidade da flauta, as harmonias e os baixos dos violões e a rítmica do cavaquinho”
(ALMEIDA, 1999, p.105). Santos (2001) também afirma que “a parte de piano solo de um
choro funciona como uma redução orquestral, apresentando vários desafios para o compositor
que deseja preservar tais elementos, resultando em obras de dificuldade técnica considerável,
[...]” (ibid., p.6).
Tal textura pianística, que funciona como uma redução orquestral das partes
individuais de um grupo do choro, é explorada por Cesar Camargo em Cristal e Samambaia.
As partes individuais - que correspondem à melodia (que seria a flauta ou clarineta na
formação de choro tradicional), baixos (violão de sete cordas ou contrabaixo), ritmo
21

(instrumentos de percussão) e harmonia - são realizadas simultaneamente ao piano, divididas


entre a mão esquerda e direita do pianista.
Antes de verificar a ocorrência simultânea da melodia, baixo, ritmo e harmonia, em
Cristal e Samambaia, é importante analisá-las separadamente. Para tanto, optou-se por utilizar
a classificação e organização de elementos musicais específicos do choro realizada por
Almeida (1999), descrita anteriormente. Em seu trabalho, o autor separa as categorias de
elementos estruturais (melodia, baixos, ritmo e harmonia) em subcapítulos, e os elementos
estruturais em itens dos subcapítulos.
Essa organização será a adotada, e os elementos musicais específicos do choro
apontados por Almeida serão verificados em Cristal e Samambaia. Além de realizar tal
verificação, optou-se por utilizar a estrutura dos subcapítulos (melodia, baixos, ritmo e
harmonia) para incluir outras abordagens que contribuem para a análise do objeto do trabalho.
Como visto anteriormente no capítulo 1.3, alguns autores classificam o gênero samba-
choro como uma junção entre a música do choro e o ritmo dos instrumentos de percussão do
samba. Para fundamentar as considerações sobre o ritmo do samba, optou-se por Sandroni
(2001), que esclarece questões sobre a síncopa na música brasileira e o chamado “padrão do
tamborim” e Bolão (2003), que descreve os instrumentos de percussão e os ritmos realizados
por estes. Acordes alterados, tensões harmônicas, modulações e outras características da
harmonia provenientes da música erudita do século XX, do jazz e da bossa-nova33 serão
descritas a partir de Santos (2001), que apresenta algumas progressões harmônicas e acordes
característicos do jazz; Freitas (1995) esclarece questões sobre a concepção da harmonia, bem
como progressões harmônicas e Levine (1989), que descreve princípios práticos para a
realização de condução de vozes.

33
Ver capítulo 1.3 Cristal e Samambaia, página 13 deste trabalho.
22

3 MELODIA, BAIXOS, RITMO E HARMONIA

Almeida (1999), como visto anteriormente, organiza os elementos estruturais do choro


em quatro categorias, na seguinte ordem: Melodia, Baixos, Harmonia e Ritmo. Na presente
pesquisa optou-se por alterar essa ordem, pois considera-se que os elementos verificados na
categoria ritmo e harmonia são pré-requisitos para a verificação da ocorrência do baixo e da
melodia em Cristal e Samambaia.
Abaixo, a verificação das categorias Ritmo, Harmonia, Melodia e Baixos em Cristal e
Samambaia.

3.1 RITMO

Segundo Almeida (1999) a rítmica do choro caracteriza-se pela síncopa34, um dos


elementos mais emblemáticos da musicalidade brasileira. Segundo o Dicitionnaire de la
musique, de Marc Honneger, sincopa é o “efeito de ruptura que se produz no discurso musical
quando a regularidade da acentuação é quebrada pelo deslocamento do acento rítmico
esperado” (HONNEGER, apud SANDRONI, 2001, p. 20). O Dizionario della musica, de
Alberto Basso, define síncopa como “mudança da acentuação métrica normal” (BASSO, loc.
cit.). Portanto a idéia de síncopa é contraposta à “regularidade da acentuação” e à “métrica
normal”.
Sandroni (ibid.) relaciona a regularidade da acentuação e métrica normal a uma
articulação rítmica cométrica (ex. 1), sendo que as acentuações irregulares e alterações na
métrica normal são relacionadas a uma articulação rítmica contramétrica (ex.2). Os exemplos
abaixo foram extraídos de Sandroni (ibid., p.27):

34
Foi encontrado na literatura o uso dos termos “Síncope” e “Sincopa”. Optou-se neste trabalho em utilizar o
termo “Sincopa”.
23

Ex. 1 – Articulação rítmica cométrica Ex. 2 - Articulação rítmica contramétrica

No exemplo acima, observa-se que o rítmico contramétrico caracteriza-se pela


ocorrência de contratempos, resultando numa escrita que apresenta pausas e ligaduras.
Almeida sugere que a ocorrência e valorização dos contratempos é a origem da síncopa: “[...]
a hipótese que nos parece mais convincente é a de que a generalização da síncopa na música
brasileira tenha origem na constante valorização dos contratempos, recurso, aliás, ocorrente
em diversos gêneros americanos como o jazz e a música caribenha” (ALMEIDA, 1999,
p.135), o autor também cita que a influência da variedade rítmica dos povos africanos, a
fadiga dos cantores e a criatividade das danças populares como possíveis origens da síncopa.
Segundo Almeida (ibid.), na música brasileira a valorização de contratempos se deu
sob a fórmula de compasso binário, que apresenta a semínima como unidade de tempo e
sugere a subdivisão em semicolcheias:

Ex. 3 – Valorização de contratempos (ALMEIDA, 1999, p. 136)

O autor conclui que as primeiras notas de cada tempo, por representarem a cabeça dos
tempos, são naturalmente apoiadas (exemplo 4). A figura resultante dessas acentuações,
segundo Almeida, é a síncopa (exemplo5):

Ex. 4 - Valorização de contratempos ( loc. cit) Ex. 5 – Síncopa resultante ( loc. cit.)

Ainda segundo Almeida, a síncopa “é a [figuração rítmica] mais representativa da


música brasileira e está presente – de maneira explícita ou não - em diversos gêneros como o
[...] choro e o samba”(ALMEIDA, loc. cit.). Sobre a relação da síncopa com a música
brasileira, Sandroni (2001) acrescenta que:
24

O fato que tanto o samba quanto a música brasileira sejam caracterizados pela
presença das síncopes não é estranho a um contexto cultural em que o primeiro é
tomado como expressão máxima da segunda.[...], considerar as síncopes índice de
certa ´especificidade cultural` brasileira tornou-se um lugar comum. (SANDRONI,
2001, p.20)

Segundo Almeida (1999), os elementos rítmicos característicos do choro são:

a) Ocorrência da síncopa explícita:

Segundo o autor, a síncopa explicita ocorre com mais freqüência nas figurações de
acompanhamento e em linhas melódicas. No repertório do presente trabalho, verifica-se tal
característica apenas nas figurações de acompanhamento realizadas pela mão esquerda, tanto
em Cristal quanto em Samambaia:

Ex. 6 – Cristal , comp. 20 e 21 – síncopa nas figurações de acompanhamento

Ex. 7 – Samambaia, comp. 91 ao 94 – síncopa nas figurações de acompanhamento

b) Formas de alusão à síncopa:

Segundo Almeida (1999) a figura da síncopa - semicolcheia, colcheia e semicolcheia -


muitas vezes ocorre com a primeira semicolcheia atrelada à nota anterior por ligadura de valor
ou substituída por pausa, resultando em figuras que fazem alusão a figura da síncopa. Ainda
segundo o autor, a alusão à síncopa ocorre ao valorizar a segunda das quatro semicolcheias de
25

cada tempo, que caracteriza uma valorização do contratempo. As alusões à síncopa podem ser
observadas em Cristal e Samambaia:

Ex. 8 – Cristal, comp. 14 – Valorização de contratempos. Ex. 9 – Cristal, com. 72 e 73

Ex. 10 – Samambaia , comp. 33 e 34

Ex. 11 – Samambaia – comp. 40 e 41

c) Utilização de quiálteras.

Segundo Almeida, no repertório de choro para piano, as quiálteras são mais ocorrentes
em choros lentos e em gêneros seresteiros, que não é o caso do repertório da presente
pesquisa. Cristal não apresenta quiálteras e são pouco freqüentes em Samambaia, onde
verifica-se quiálteras em colcheias e em semicolcheias:
26

Ex. 12 – Samambia ,comp. 139 – Quiáltera de colcheia Ex. 13 – Cristal, comp. 114 – Quiáltera de semicolcheia

Almeida também cita, como característica rítmica do choro ao piano, a linearidade


rítmica, que ocorre quando a melodia baseia-se obstinadamente em uma única figura de valor,
geralmente a semicolcheia. Tal característica não foi verificada nas linhas melódicas do
repertório do presente trabalho.
De acordo com a definição do gênero samba-choro adotada pela presente pesquisa no
primeiro capítulo, página 13, uma das características do gênero, segundo Tinhorão (1974) é a
junção da música do choro com o ritmo do samba à base de instrumentos de percussão.
Portanto, a principal referência para o ritmo adotada pela presente pesquisa são os próprios
instrumentos de percussão. O pianista André Marques35 sugere o estudo dos instrumentos de
percussão: “Eu sempre falo pra todo músico, por exemplo, mesmo quem é pianista, ou
saxofonista, tem que estudar percussão ou bateria.” (MARQUES, apud FORTES, 2007, p.53)
O pianista Guilherme Vergueiro também sugere assistir a um ensaio de uma escola de samba
e prestar atenção na rítmica dos instrumentos de percussão (informação verbal).36
As figurações rítmicas, articulações e acentuações realizadas pelos instrumentos de
percussão, são importantes referências para o piano, que por sua vez não tem condições de
realizar todas nuances rítmicas, de dinâmica e articulação próprias dos instrumentos de
percussão e principalmente a questão do timbre. Sobre a prática de simular os instrumentos de
percussão ao piano, o pianista Leandro Braga afirma que “nenhum ritmo, seja qual for, nasceu
do piano. Estamos sempre imitando os instrumentos de percussão, tomando emprestado seus
toques para criarmos os nossos” (Braga, 2003, p.8).

35
Segundo Fortes (2007), o pianista André Marques é integrante do o grupo de Hermeto Pascoal desde 1994,
com quem gravou o disco Mundo Verde Esperança em 2002, com o qual recebeu o Prêmio Tim e uma indicação
ao Grammy. É o pianista do Trio Curupira e leciona no Conservatório Dramático e Musical de Tatuí.
36
Masterclass com o pianista Guilherme Vergueiro, realizado no dia 21 de junho de 2005 no auditório do bloco
da música do centro de artes da UDESC. Guilherme Vergueiro é um pianista carioca que atua no contexto da
música popular. Maiores informações em http://brazilianmusic.com/vergueiro/curr.html
27

O registro grave da percussão do samba é realizado pelo surdo, “[...] instrumento de


som grave, com pele de couro em ambos os lados, usado para marcar o ritmo do samba”
(BOLÃO, 2003, p. 28). Uma característica importante na marcação do ritmo do samba
realizada pelo surdo é o apoio no segundo tempo e uma nota com curta duração no primeiro
tempo:

.
Ex. 14 – Marcação basica do surdo

Segundo Bolão (ibid.), nos bailes de carnaval é comum a utilização de dois surdos por
um único músico percussionista, sendo que o mais agudo marca o primeiro tempo e o mais
grave o segundo tempo. Bolão apresenta diversos exemplos37 de variações de frases rítmicas
realizadas pelos instrumentos, sendo que dois são expostos abaixo:

Ex. 15 – Variações de frases rítmicas realizadas por dois surdos, segundo Bolão (2003, p.33)

O tambor surdo, por apresentar registro grave, é a referência rítmica para a linha dos
baixos, realizados pela mão esquerda do pianista. As estruturas rítmicas realizadas pelo surdo
no exemplos acima, podem ser verificadas apresentando algumas variações, nas linhas de
baixo de Cesar Camargo Mariano em Cristal e principalmente em Samambaia. Alguns
exemplos38 são:

Ex. 16 - Samambaia – comp. 15 e 16

Ex. 17- Cristal – comp. 50 e 51

37
Ver exemplos de variações para dois surdos em Bolão, 2003, p.33.
38
Recomenda-se o suporte da audição dos exemplos musicais citados, pois algumas indicações de articulação
observadas nos exemplos são apenas um esboço superficial da real articulação realizada por Cesar Camargo.
28

Outra importante referência para o ritmo do samba é a marcação realizada pelo


tamborim, “[...] pequeno aro de madeira ou metal, com uma pele esticada sobre um dos lados”
(BOLÃO, 2003, p.34). O instrumento apresenta um registro médio-agudo e realiza frases
rítmicas que têm duração de dois compassos39 que, segundo Sandroni (2001) são chamadas de
“ciclo do tamborim” ou “padrão do tamborim”. O padrão do tamborim apresenta constantes
variações, que são muitas vezes improvisadas. Abaixo, um exemplo de padrão do tamborim,
extraído de Sandroni (ibid., p.34):

Ex. 18 – Padrão do tamborim segundo Sandroni (2001, p.3)

No exemplo acima, verifica-se que a valorização dos contratempos, a figura da


síncopa (semicolcheia - colcheia - semicolcheia) e figuras que fazem alusão à síncopa (vistas
anteriormente) são características do padrão do tamborim.
Nos compassos 15 ao 21 de Samambaia, Cesar Camargo realiza na mão direita uma
figuração rítmica de semicolcheias seguidas, acentuadas conforme o ritmo do samba, como
mostra o exemplo abaixo:

Ex. 19 – Samambaia, comp. 15 ao 18

As acentuações realizadas pelo pianista resultam na figuração rítmica abaixo,


caracterizando uma variação do padrão do tamborim, visto anteriormente.

Ex. 20 – Acentuações rítmicas dos compassos 15 ao 18, de Samambaia.

39
O cilco rítmico realizado pelo tamborim é subdividido em 16 pulsações. Nesta pesquisa é adotada a
semicolcheia como unidade rítmica, “convenção gráfica consagrada pelo uso nas partituras de samba desde
“Pelo telefone”(SANDRONI, 2001, pág. 34)
29

O padrão do tamborim não é uma característica rítmica exclusiva deste instrumento.


Segundo Sandroni (2001) o padrão pode ser encontrado na cuíca ou “batida numa garrafa”40.
Bolão (2003) cita a “caixeta” ou “bloco de madeira” como instrumento de percussão usado no
acompanhamento do choro, que apresenta figurações rítmicas semelhantes as do tamborim. O
autor apresenta diversas variações de figurações rítmicas realizadas pelo instrumento, de onde
foi extraído o exemplo abaixo:

Ex. 21 - Figuração rítmica realizada pela caixeta – Bolão (2003, p.106)

A figuração rítmica citada acima, que segundo Bolão, que é realizada pela caixeta no
acompanhamento do choro, pode ser verificado no acompanhamento de Cristal, onde Cesar
Camargo enfatiza o aspecto percussivo do piano:

Ex. 22 – Cristal, comp. 72 ao 74.

O exemplo acima, em relação ao exemplo da caixeta citado por Bolão, apresenta


algumas diferenças, que caracterizam uma variação. Percebe-se que a figuração rítmica do
primeiro tempo dos compassos de Bolão, aparece no segundo tempo dos compassos de
Cristal, e a figuração rítmica do segundo tempo dos compassos de Bolão, aparece no primeiro
tempo dos compassos de Cristal.
Nota-se, a partir das considerações acima, que muitos aspectos da variedade de
figurações rítmicas presentes na música de Cesar Camargo Mariano, especificamente em
Cristal e Samambaia, podem ser verificadas a partir de variações da síncope e valorização de
contratempos (ALMEIDA, 1999) e de figurações rítmicas características de instrumentos de
percussão do samba e do choro.

40
Sandroni (ibid. p.35) cita uma variação do padrão do tamborim encontrada da gravação de “Duas horas da
manhã” (Nelson Cavaquinho – Ari Monteiro, 1961), em que o instrumento de percussão é uma garrafa percutida.
30

3.2 HARMONIA

Segundo Almeida, a harmonia do choro recebe tratamentos distintos segundo dois


períodos da história do gênero. O choro tradicional, produzido das últimas décadas do século
XIX à terceira década do século XX, apresenta harmonia simples, “baseada quase que
exclusivamente em acordes perfeitos maiores e menores, acordes de sétima dominante e
acordes diminutos.” (ALMEIDA, 1999, pág. 121). Já o chamado choro moderno, que
começou a surgir a partir da década de 1930, “incorporou recursos harmônicos bastante
elaborados e oriundos de outras tradições musicais, como a música jazzista norte-americana e
a produção erudita do século XX”. Segundo o autor, esses recursos incorporados pelo choro
moderno são harmonias alteradas, presença constante de tensões harmônicas, harmonias por
aberturas de quartas, maior ocorrência de modulações entre tonalidades mais distantes e até
mesmo recursos modais, politonais e atonais.
De acordo com o contexto musical delimitado no primeiro capítulo da presente
pesquisa, Cristal e Samambaia são samba-choros que apresentam as características
harmônicas citadas acima (harmonias alteradas, tensões harmônicas e modulações), podendo
ser considerados como choro moderno. Portanto serão verificadas algumas incidências de
procedimentos harmônicos relacionados ao choro moderno.
O aprofundamento na questão da origem da concepção harmônica praticada por Cesar
Camargo Mariano em Cristal e Samambaia ultrapassa os limites da presente pesquisa. Em
linhas gerais, assume-se que recursos como harmonias alteradas, acordes com tensões
harmônicas, modulações e outros recursos observáveis em Cristal e Samambaia, são
associados à produção erudita do século XX, ao jazz note-americano, à bossa nova, ao choro
moderno e a música instrumental brasileira41. A citação de Freitas (2005) contribui com essa
questão:

“[...], a harmonia da música popular feita no Brasil, notadamente daquela


parcela da população ligada à seresta, à marchinha, ao choro, à valsa, ao samba, a
bossa, e de uma forma geral, à música popular brasileira. [...] [apresenta uma]
inteligência tonal e harmônica que aqui se desenvolveu ao longo do século XX,
[que] soube dialogar com autonomia com a tradição harmônica européia e com a
paralela prática harmônica note-americana, e alcançou, por sua vez, notáveis
qualidades musicais em suas próprias realizações” (FREITAS, 2005, p.6)

41
Ver capítulo de contextualização, página 13 deste trabalho.
31

Segundo Freitas, “no âmbito da presente concepção da Harmonia Tonal em uso na


música popular, destacamos que: adotamos a “tétrade” como acorde básico.”(grifos do
autor) (ibid, p.13). Ainda segundo o autor, a tétrade é um acorde formado por quatro notas em
superposição de terças, que pode funcionar por completo (com suas quatro notas:
fundamental, terça, quinta e sétima), incompleto (sem a sétima, ou eventualmente, sem
quaisquer uma das notas) ou mais que completo (com outras notas adicionadas à tétrade:
nona, décima primeira, décima terceira, e outros).
A tabela abaixo foi extraída de Santos (2002, p.5). Segundo o autor ela contém um
resumo dos tipos de tétrades mais usadas no jazz42, com as tensões das tétrades e suas
respectivas cifras:

Tabela 1 – Tétrades e tensões mais utilizadas no jazz (SANTOS, 2002, p.5-6).

42
Como foi exposto anteriormente, as características harmônicas do jazz estão, nesta pesquisa, associadas à
bossa nova, ao choro moderno, e ao contexto no qual atua Cesar Camargo Mariano. As tétrades indicadas na
tabela de Santos são acordes presentes na harmonia em uso na música popular, e não somente no jazz.
32

a) Verificação de alguns procedimentos cadencias

Os tipos de acordes listados na tabela acima são verificados no repertório desta


pesquisa em “relações de combinação entre acordes” ou “progressões harmônicas”
(FREITAS, ibid. p.5) diversas, sendo que a estrutura IIm7 - V7 43 é a mais ocorrente. Segundo
Santos, um “procedimento característico do jazz é a utilização da progressão harmônica IIm7-
V7 que pode ou não ser resolvida no I grau, e que e é também utilizada para estender
dominantes secundárias” (SANTOS, 2002 p.11). Alguns exemplos em Cristal e Samambaia
são:

Ex. 23 – Samambaia, comp. 37 e 38 – progressões subII- subV / II-V.

No exemplo acima, observa-se um trecho de Samambaia onde, no compasso 38,


ocorre a progressão IIm7 - V7 em relação à tonalidade principal dó maior. No compasso 37, a
progressão IIm7 – V7 manifesta-se na forma de substituição: subIIm7 – subV7 da dominante
da tonalidade principal. A progressão subIIm7 – subV7 , caracterizada pela substituição de
trítono, ocorre também em Cristal, como mostra o exemplo abaixo:

43
Freitas (2005, p.107), em seu trabalho sobre as relações de combinação entre os acordes da harmonia tonal,
aponta para o modelo cadencial básico: “Subdominante – Dominante – Tônica”. Esse modelo é transferido para
“Subdominante – Dominante – X”, que é um movimento cadencial completo que cuida da preparação para os
demais acordes do campo harmônico. Na estrutura “IIm7 –V7 -X”, o “IIm7”, que é o grau que desempenha o
papel da subdominante, é o segundo grau do campo harmônico do acorde “X”(acorde de resolução). O “V7” é a
dominante do acorde “X”, que pode aparecer como acorde diminuto, SubV7, V7sus4 ou SubV7sus4. “X” é a
meta, o acorde de resolução, algum dos acordes do campo harmônico.
33

Ex. 24 – Cristal – comp. 42-47 – sequência de progressões sub II- sub V estendidos e acorde com tensões
harmônicas.

Verifica-se, no exemplo acima, uma sequência de progressões II-V que, a cada dois
compassos, descem meio tom. Essas progressões manifestam-se na forma de subII - subV
que são estendidas até subV da tonalidade principal dó maior, no primeiro tempo do
compasso 39. Nos compasso 40 e 41 pode ser observado o acorde de dó com sétima
dominante que apresentam as tensões 9, #11 e 13 adicionadas, como visto anteriormente na
tabela de Santos (ibid.).
Outro aspecto apontado por Almeida (1999) como característica harmônica do choro
moderno é a “maior ocorrência de modulações entre tonalidades mais distantes” (ibid. p.122).
Em Cristal, que apresenta dó maior como tonalidade principal, verifica-se modulações para
diferentes graus do campo harmônico homônimo menor, através de acordes de empréstimo
modal. Podem ser observados do compasso 5 ao 13 (ver partitura em apêndice) , sessão de
introdução, onde ocorrem acordes provenientes do modo menor sobre o baixo pedal na nota
dó e na sessão B, compassos 34 ao 39, onde ocorre uma rápida modulação para a tonalidade
de sol menor.
Samambaia, que tem dó maior como tonalidade principal, apresenta modulações
principalmente no tema B, onde a exposição abrange os compassos 44 ao 58 e a reexsposição
(variação ou improviso) abrange os compassos 125 ao 139 (ver partitura em apêndice). Será
tomado como exemplo a reexposição. Nos primeiros quatro compassos dessa sessão (125 ao
128), verifica-se uma progressão harmônica onde a dominante com quarta suspensa (Absus4)
resolve na tônica (Fm/Ab) que é o terceiro grau menor da tonalidade de ré bemol maior (bII
34

em relação ao tom principal dó maior). Nos quatro compassos seguintes (129 ao 132), a
mesma progressão é transposta um tom e meio acima, resolvendo em mi maior (compasso
131), que tem relação de terça maior ou mediante, com tonalidade principal. A nova
tonalidade de mi maior percorre os compassos 131 ao 136. Neste último (compasso136),
ocorre uma progressão II-V (G#m7 – C#7) que, por cadência de engano, resolve em Fá
sustenido maior, que assume a tonalidade dos compassos 137 ao 140, onde termina a sessão
B.

b) Verificação de alguns procedimentos de condução de vozes

Uma vez que foram verificadas algumas progressões harmônicas ou sequências de


acordes, é necessário observar a disposição das notas que formam os acordes e a condução ou
caminho dessas notas nas progressões harmônicas. O termo adotado para a condução das
notas em progressões harmônicas é condução de vozes .Segundo Freitas,

quando um acorde antecede ou sucede outro, entre as notas constitutivas de ambos


se estabelecem conexões e enlaces. [...] Seria o que, no jargão técnico da disciplina,
é chamado comumente de ´condução de vozes`, ou seja: aquele domínio da
harmonia que trata das técnicas de encadeamento dos acordes no que tange aos
movimentos melódicos (lineares) que as notas constitutivas desses acordes
executam quando se combinam. (FREITAS, ibid. p.4).

Segundo Amalda (2000), uma das principais leis que regem a correta escrita
harmônica é a do encadeamento: as vozes de um acorde devem ser conduzidas por grau
conjunto e as notas em comum devem ser mantidas na mesma voz. Este princípio pode ser
observado nos exemplos abaixo:

Ex. 25 – Condução de vozes com terças e sétimas Ex. 26 – Condução de vozes com quintas e nonas
35

O primeiro dos exemplos acima foi retirado de Levine (1982, p.17) e mostra uma
progressão IIm7 – V7 -I em que os acordes são conduzidos com apenas três notas (Three-
Note Voincig44, segundo Levine): fundamental, terça e sétima. As fundamentais dos acordes
realizam um movimento de quarta acedente (ré, sol e dó), as sétimas são conduzidas ou
encadeadas para as terças e as terças são conduzidas para as sétimas. No exemplo seguinte
(exemplo 26) observa-se a mesma condução básica de três notas, onde foram adicionadas as
quintas e as nonas dos acordes. Aplicando o principio básico de condução de vozes descrito
acima, observa-se que as quintas são conduzidas para as nonas e a nonas são conduzidas para
as quintas. A décima terceira, nesse caso, é considerada uma variação da quinta.
Abaixo alguns exemplos em Cristal e Samambaia. Para maior clareza em relação à
condução das vozes, foram grafadas as principais notas da linha melódica e as notas que
estruturam os acordes, sugere-se a comparação com a partitura em apêndice nesta pesquisa.

Ex. 27 – Samambaia, com. 23-23, condução de vozes

No exemplo acima verifica-se a condução de vozes em três notas descrita


anteriormente, com a linha do baixo executando as fundamentais em movimento de quartas e
as vozes intermediárias conduzindo as terças e sétimas. São observadas a tensões b5 (quinta
diminuída) no acorde E7 (nota sib, variação da quinta) e a 9 (nona) , adicionada ao acorde
Dm7.
Segundo Santos, “diferentemente do choro tradicional, os acordes utilizados no jazz
aparecem em sua maioria na posição fundamental, para que as tensões existentes soem como
tal” (SANTOS, 2002, p.11). Verifica-se que, em Cristal e Samambaia, praticamente todos os
acordes em posição fundamental, com exceção dos compassos 50 ao 56 em Cristal e da
sessão de improviso em Samambaia (compassos 91 ao 122), onde ocorrem acordes invertidos.
A seguir, um exemplo de condução de vozes em Cristal:

44
Voicing é um termo proveniente da língua inglesa, usado como “abertura dos acordes”, como a maneira de
dispor as notas.
36

Ex. 28 – Cristal, comp. 43-48, condução de vozes

O trecho acima foi citado anteriormente (exemplo 24) como um exemplo de sub IIm7
–subV7 estendidos. Verifica-se que os eventos se repetem a cada dois compassos, transpostos
meio tom abaixo, portanto, não há necessidade de descrever todos os compassos. Optou-se
aqui por descrever a condução de cada voz separadamente, iniciando com a linha do baixo e
seguindo com as vozes superiores. Abaixo, uma breve descrição sobre o encadeamento de
vozes no exemplo acima.
Os baixos realizam as fundamentais, que se movimentam em intervalos de quartas. Na
voz seguinte, verifica-se que no compasso 42, a nota lá bemol gera o intervalo de sétima
menor ou “abertura de sétima”, em relação à fundamental. Na condução da nota la bemol
(sétima de Bbm7) para a nota sol (terça do acorde Eb7) no compasso 43, ocorre um retardo45,
pois a nota só é conduzida após a mudança do acorde. A nota lá bemol é “quarta suspensa” no
acorde Eb7, gerando o acorde Eb7sus4 (13). Na voz acima, observa-se que a nota ré bemol
(terça do acorde Bbm7 no compasso 42) é comum ao acorde seguinte, por isso é mantida no
compasso 43 tornando-se a sétima do acorde Eb7 e, no compasso seguinte, é conduzida por
grau conjunto para a nota dó, terça do acorde de Am7(compasso 44 no pentagrama inferior).
Seguindo com a próxima voz, observa-se que a nota fá (compasso 42), quinta do acorde
Bbm7, é uma nota em comum com o acorde seguinte Eb7, e poderia tornar-se a nona deste,
porém não foi utilizada.
Ainda a respeito do exemplo 28, verifica-se que a linha melódica principal se
apresenta nas duas vozes superiores, em intervalos de terças paralelas. As notas mi bemol e dó
(compasso 42), que correspondem às tensões nona e décima primeira, formam o acorde Bbm7
(9,11) e caracterizam uma apogiatura, que é resolvida no segundo tempo do compasso 42 nas

45
“Retardo é a demora em acontecer um passo de segunda em uma voz enquanto se troca a harmonia”
(SHOENBERG, 2001, p.466). No presente caso, o passo de segunda é a passagem da nota la bemol para a nota
sol.
37

notas si bemol e ré bemol. No segundo tempo do compasso, o intervalo de terça da linha


melódica principal (si bemol e ré bemol) causam um dobramento com as mesmas notas,
presentes nas outras vozes.
Em Samambaia, especialmente do compasso 91 ao 104, observa-se que os acordes são
conduzidos apenas com a mão esquerda. Este procedimento, comum ao jazz, é chamado por
Levine de Left-Hand Voincig (LEVINE, 1989, p.41) onde, segundo o autor, a mão esquerda
oferece a condução harmônica apesar da ausência das fundamentas nos acordes. Essa técnica
consiste basicamente em conduzir as terças, sétimas, nonas ou décima terceiras através dos
acordes com a mão esquerda (ver exemplos 25 e 26, página 35), enquanto a mão direita
realiza improvisações ou outros eventos. O exemplo abaixo mostra esse procedimento
aplicado na sessão de improviso de Samambaia, que ocorre sobre a harmonia do tema
principal (a exposição do tema principal vai do compasso 23 ao 42). Como anteriormente,
foram grafadas apenas as notas estruturais dos acordes e excluídas as células rítmicas.

Ex. 29 – Samambaia- comp. 91 ao 98 – condução de vozes na mão esquerda

No exemplo acima, não foi verificada a aplicação literal da condução de vozes para a
mão esquerda descrita por Levine anteriormente (left-hand voicing). Cesar Camargo conduz
as notas na mão esquerda com flexibilidade, priorizando o aspecto melódico principalmente
da primeira e da terceira voz de sua condução a três vozes. Essa flexibilidade produz certo
grau de complexidade, pois resulta em re-harmonizações, inversões, acordes incompletos e
outros, como pode ser observado principalmente do compasso 91 ao 104 (ver partitura em
apêndice). Abaixo, uma breve descrição sobre alguns aspectos verificados no exemplo acima.
No compasso 91, verifica-se que o acorde E7 está incompleto, sem a terça. Uma vez
que a linha melódica principal apresenta um movimento cromático (ver apêndice), o acorde
apresenta ambigüidade em relação a sua natureza maior ou meio diminuto. Para o compasso
seguinte, as notas desse acorde são transpostas um tom e meio acima, caracterizando um
movimento paralelo que não apresenta condução por grau conjunto ou notas em comum. Na
condução das vozes do acorde A7 para o Dm7, observa-se que a nota fá (décima terceira do
acorde A7, considerada variação da quinta) é conduzida para a nota mi (nona do acorde Dm7)
e a nota dó sustenido (terça do acorde A7) é conduzida para a nota dó natural (sétima do
38

acorde Dm7). A nota sol (sétima do acorde A7, compasso 92) é mantida no acorde Dm7, e só
é conduzida no compasso seguinte (94), para a nota fá (terça do acorde Dm7), caracterizando
um retarde que, no compasso 93, forma a tríade de dó maior, que é conduzida por grau
conjunto (primeira e terceira voz) para a tríade de ré menor no ultimo compasso do exemplo.
Os procedimentos condução de vozes verificados acima são os mais ocorrentes em
Cristal e Samambaia. O aprofundamento na questão da harmonia e da condução de vozes dos
acordes não é o foco principal do presente trabalho. Uma vez verificadas as principais
características da harmonia como algumas progressões harmônicas e alguns procedimentos de
condução de vozes, obtém-se um panorama geral de como Cesar Camargo Mariano manipula
a disposição e condução das notas no âmbito da harmonia. A disposição e condução das notas
através dos acordes estão diretamente relacionadas ao objetivo deste trabalho, que é verificar
algumas maneiras como compositor e pianista distribui e organiza a linha melódica, linha do
baixo, ritmo e harmonia em Cristal e Samambaia.

3.3 MELODIA

Segundo Almeida (1999), o caráter ornamental e expressivo das melodias do choro,


proveniente da criatividade dos músicos do gênero, foi amplamente explorado na música de
choro para piano. Algumas características melódicas do choro ao piano identificadas por
Almeida são:

a) Apogiaturas, bordaduras e cromatismos

Segundo Almeida (1999, p.106), apogiaturas sobre as notas das tríades é um recurso
bastante utilizado dentro do caráter ornamental das melodias do choro e podem ser dividas em
ornamentais e melódicas. A ocorrência da apogiatura sensível (meio tom inferior à nota a ser
ornamentada) é muito freqüente e pode ser observada no exemplo abaixo, nas linhas
melódicas realizadas pelo baixo em Cristal e Samambaia:

Ex. 30 – Cristal, comp. 81- apogiatura sensível Ex. 31 – Samambaia, comp. 132 – apogiatura sensível
39

Ainda segundo o autor, outro recurso ornamental característico das melodias de choro
é a bordadura. Em Cristal, verifica-se bordaduras principalmente na exposição do tema
principal como mostra o exemplo 32 abaixo, onde também pode ser observado uma
apogiatura ornamental (citada acima) para a nota sol. Em Samambaia, as bordaduras são mais
ocorrentes, como mostram os exemplos 33 e 34:

Ex. 32 – Cristal, comp. 14 Ex. 33 – Samambaia – comp. 12 Ex. 34 – Samambaia, comp. 100

Os cromatismos que, segundo Almeida (ibid.) são mais freqüentes nos choros
modernos do que nos tradicionais, é uma característica melódica do choro bastante ocorrente
em Cristal e Samambaia, como podem ser observados nos exemplos abaixo:

Ex. 35 – Cristal, comp. 18-20 – cromatismos.

Ex. 36 – Samambaia, comp. 22 ao 24 – cromatismos.

b) Frases longas

Segundo Almeida (1999), as frases longas são típicas em choros mais líricos e de
andamentos mais lentos. Apesar de Cristal e Samambaia serem sambas-choro de caráter mais
rítmico e movimentado, observa-se em ambas as peças uma passagem contrastante, de caráter
expressivo, onde a melodia é mais lírica e menos ritmada, acompanhada por arpejos em
40

semicolcheias. Com a articulação legato46 aplicada a esse trecho, Cesar Camargo imprime
características que podem ser associadas à escrita pianística do período romântico.
Essas passagens contrastantes ao aspecto rítmico e percussivo do samba-choro podem
ser verificadas em Samambaia, nos compassos 44 ao 50 e em Cristal, nos compassos 34 ao
41. As frases longas, associadas à passagens mais líricas e expressivas, foram verificadas nos
primeiros compassos dos trechos citados (ver partitura em apêndice).

c) Arpejos

Almeida cita o arpejo maior descendente com sexta como característica melódica do
choro que, no repertório da presente pesquisa, não foi encontrado.
Verifica-se em Cristal, que ocorrem arpejos nas finalizações ou ligações entre as
diferentes partes ou sessões da peça. Os arpejos, localizados em pontos cadenciais da forma,
são em sua maioria ascendentes (a única exceção é o compasso 57) e enfatizam os principais
movimentos harmônicos cadenciais da peça.

Ex. 37 – Cristal - comp. 48 – arpejo

O exemplo acima mostra um arpejo de uma tétrade formada a partir do acorde


C7(9,#11, 13). Este arpejo está localizado entre o fim do tema “B” e o início da sessão rítmica
que vai do compasso 50 ao 57. A passagem desta ultima sessão para a próxima, se dá com o
arpejo a seguir:

46
Uma vez que indicações de caráter expressivo, fraseado e articulação não foram grafados na partitura em
apêndice, recomenda-se ouvir o áudio original, faixas 8 e 12 do álbum Solo Brasileiro de Cesar Camargo
Mariano.
41

Ex 38 – Cristal – comp. 56 e 57– arpejo

No exemplo acima, os arpejos são formados pelas tríades de ré bemol e sol


aumentado. Adicionando os baixos, verificam-se os acordes Db7 e G7 (add13) onde este
último omite a sétima. Esses acordes formam uma progressão SubV-V-I que cadenciam a
entrada da sessão seguinte.

d) Valorização melódica dos contratempos

A valorização dos contratempos é uma das principais características do choro e do


samba, como visto anteriormente. Segundo Almeida, essa valorização se reflete nas melodias,
caracterizando o que o autor chama de “valorização melódica dos contratempos”, que pode
ser observada quando as notas mais agudas ou mais graves de um dado grupo melódico se
encontram no contratempo.

Ex. 39 – Samambaia – comp. 44 – Valorização melódica de contratempos

e) Utilização da escala menor harmônica descendente sobre a dominante.

Essa escala pode ser observada na linha melódica da exposição do tema principal de
Samambaia:

Ex. 40 – Samambaia, comp. 23 e 24 Ex. 41 – Escala de ré menor harmônica


42

No exemplo 40, verifica-se que a escala de ré menor harmônica ornamentada com


aproximações cromáticas e notas de passagens. Ao retirar as notas de ornamentação, verifica-
se a escala de ré menor harmônica, que pode ser observada no exemplo 41. Essa escala
valoriza o intervalo de segunda aumentada entre as notas dó# e sib.
Além das características melódicas típicas do choro descritas por Almeida, observa-se
em Samambaia algumas ocorrências da escala pentatônica e fragmentos da escala blues,
associadas ao jazz. Segundo Levine (1989), o termo pentatonic scale ou escala pentatônica
utilizada no jazz é associado à escala que pode ser observada abaixo, em seu modo maior e
menor relativo:

Ex. 42 – Escala pentatônica de dó maior Ex. 43 – Escala pentatônica de lá menor

Levine (ibid. p. 126) sugere que a pentatônica maior pode ser pensada como uma
escala maior, excluindo a quarta e a sétima. Sua escala relativa é a pentatônica menor que,
como mostra o exemplo acima, apresenta as mesmas notas, e pode ser interpretada como uma
tétrade menor com sétima, adicionando-se uma quarta. Esta última pode ser verificada no
exemplo abaixo:

Ex. 44 – Samambaia, comp. 13 – Escala pentatônica de Si bemol menor

No exemplo acima, observa-se a escala de si bemol menor pentatônica sobre o acorde


Bbm7. Outro exemplo pode ser verificado no compasso 50, onde ocorre uma escala de sol
sustenido menor pentatônica (ver apêndice).
Segundo Levine (ibid. p. 135), a escala blues é uma variação da escala pentatônica
menor. A diferença entre elas é que a escala blues apresenta uma passagem cromática entre a
quarta e quinta, como mostra o exemplo abaixo, retirado de Levine (ibid. p. 135):

Ex. 45 – Escala de dó menor pentatônica Ex. 4 – Escala de dó blues


43

Alguns fragmentos dessa escala blues foram identificados na sessão de improviso em


Samambaia, como mostra a figura abaixo:

Ex. 45 – Fragmentos de escalas blues e tensões alteradas

Observa-se, no exemplo acima, que a partir da metade do primeiro tempo do


compasso 101 ocorre um fragmento da escala de lá blues (lá, dó, ré, ré#, mi e sol), acrescida
de uma passagem cromática da nota sol para a nota lá. A partir da segunda semicolcheia do
compasso 103, observa-se um fragmento da escala de mi blues (mi,sol, lá, la#, si e ré) sobre o
acorde E7. Neste caso, identificam-se como notas da escala blues a nota ré (sétima do acorde),
a nota lá (quarta, que no caso é uma apogiatura para a quinta), a nota si bemol (alteração da
quinta), e a nota sol, escrita enarmonicamente como fá dobrado sustenido (alteração da nona).
Cabe aqui também observar no exemplo acima as alterações nas tensões, tanto na
condução das vozes na mão esquerda quanto na linha melódica. No compasso 102 por
exemplo, o cromatismo da linha melódica, que ocorre sobre o acorde B7(b13), atravessa as
três variações de nona (dó dobrado sustenido, dó sustenido e dó natural).

3.4 BAIXOS

Em grupos regionais de choro, as linhas do baixo, que são um dos aspectos mais
característicos do gênero, são realizadas pelo violão de sete cordas. Segundo Almeida (1999),
originaram-se a partir de encadeamentos dos acordes invertidos e foram se desenvolvendo até
apresentarem contornos melódicos. Esses contornos melódicos, que podem se estender até a
região médio-aguda do piano, apresentam diversas características melódicas do choro já
citadas anteriormente, como ornamentações, valorização melódica de contratempos e outros.
Almeida considera como linhas do baixo, as figurações realizadas pela mão esquerda
ao piano. O autor organiza em três categorias: Baixo Condutor Harmônico, Baixo Melódico e
Baixo Pedal.
44

a) Baixo Condutor Harmônico

Segundo Almeida, “é muito ocorrente principalmente em choros para piano, nos quais
o acompanhamento muitas vezes acumula para si a realização da linha do baixo, da harmonia
e do ritmo.”(ALMEIDA, ibid. p.116).
No exemplo abaixo, a linha do baixo de Samambaia ocorre em monodia47, onde as
notas mais ocorrentes são as fundamentais e quintas dos acordes. Observa-se nas mudanças de
acordes, que muitas vezes ocorre uma aproximação cromática sensível, ou seja, meio tom
abaixo da fundamental do próximo acode.

Ex. 46 – Samambaia, comp. 72-75 – Baixos com fundamentais, quintas e aproximação cromática

No exemplo seguinte, a escrita sugere duas vozes, sendo que as notas inferiores (mais
graves) realizam as fundamentais dos acordes e as notas superiores conduzem uma linha ou
uma voz através das terças e sétimas48. Observa-se que a última semicolcheia de cada
compasso caracteriza uma antecipação, pois essas notas pertencem ao acorde do compasso
seguinte.

Ex. 47 – Cristal, comp. 21 ao 24 – Linha de baixo conduzindo duas vozes

No exemplo abaixo, além das terças e sétimas, observa-se que a condução da linha
superior apresenta os retardos (acordes com quarta suspensa, como visto anteriormente na
página 37) que resultam num salto de décima primeira, que aumenta as dificuldades técnicas
para o pianista. Uma característica desses baixos que sugerem duas vozes, é auxiliar mão
direita (sobrecarregada com a melodia) a formar os acordes, como no compasso 44, onde
podem ser observadas todas as notas da tétrade Am7.
47
Apenas uma linha melódica, segundo Kiefer (1987), “ [...] monódico, pois de forma alguma sugere a
impressão de linhas melódicas distintas”.
48
Ver “Procedimentos de condução de vozes ou voicings”, página 35 deste trabalho.
45

Ex 48 – Cristal, comp. 42-46 – Baixo conduzindo as fundamentais, terças, sétimas e contribuindo para a
formação dos acodes.

Em Samambaia, verifica-se que Cesar Camargo Marino intercala as duas formas de


baixo condutor harmônico vistas acima. Nos compassos 60 e 61, verifica-se a ocorrência do
baixo em monodia com as fundamentais e quintas do acorde e, nos dois compassos seguintes,
o baixo que sugere a escrita em duas vozes.

Ex. 49 – Samambaia, comp. 60-64 – Alternância entre os diferentes tipos de baixo condutor harmônico.

Outra forma de baixo condutor harmônico citado por Almeida (ibid. p.115) são os
baixo que conduzem as harmonias invertidas. Como não foram encontradas harmonias
invertidas em Cristal, esta forma de baixo só foi verificado em Samambaia, principalmente na
sessão de improviso, do compasso 91 ao 106 (ver partitura em apêndice). Podem ser
verificados em alguns exemplos expostos anteriormente: exemplos 7, 29 e 45.

b) Baixo melódico

Segundo Almeida (ibid.), o baixo melódico define idéias melódicas, é mais


movimentado e pode aparecer em contraponto com a melodia ou dialogando com esta. Ainda
segundo o autor, as melodias realizadas por esta categoria de baixos valem-se dos elementos
típicos da melodia do choro, como apogiaturas, bordaduras, cromatismos, valorização de
contratempos e outros.
Em Cristal e Samambaia, a ocorrência do baixo melódico é pequena, se for
comparada ao baixo condutor harmônico. No exemplo abaixo, observa-se que a linha de baixo
46

no compasso 10, estabelece uma relação de diálogo com a linha melódica, ao intercalar-se
com esta.

Ex. 50 – Samambaia, comp. 9-11 – Baixo melódico

O mesmo pode ser observado no exemplo abaixo em Cristal, onde as notas


intermediárias forma retiradas para uma melhor visualização do diálogo entre a linha do baixo
e a linha melódica principal:

Ex. 51 – Cristal, comp. 14-16 – Baixo melódico.

c) Baixo Pedal

O baixo pedal é um baixo que se mantém estável na mesma nota, enquanto os acordes
mudam sobre ele. Segundo Almeida (ibid. p.120), o baixo pedal sustenta uma nota que é
comum aos acordes numa determinada progressão harmônica, e ocorrem geralmente em
passagens com função de introdução ou transição.
Ocorrem tanto em Cristal e Samambaia, de diferentes maneiras. Abaixo a ocorrência
do baixo pedal em Cristal:
47

Ex. 52 – Cristal, comp. 9-12 – Baixo pedal na sessão de introdução.

Em Cristal, observa-se o baixo pedal logo na sessão de introdução, onde ocorrem as


tríades de mi bemol maior, ré menor e lá bemol maior, sobre o baixo constante da nota dó,
formando os acodes Cm7, Dm/C e Ab/C. Essa passagem apresenta sonoridade modal onde o
aspecto rítmico é notável principalmente na articulação realizada por Mariano na mão
esquerda.49
Em Samambaia, a passagem onde se verifica a ocorrência do baixo pedal vai do
compasso 125 ao 130 (ver apêndice), onde ocorrem as modulações. No compasso 125,
verifica-se o baixo pedal na nota lá bemol, quinto grau da nova tonalidade de ré bemol maior
(compassos 125 ao 129). No compasso 130, o baixo pedal ocorre na nota si, quinto grau da
nova tonalidade de mi maior. Maiores considerações sobre essa passagem modulante foram
feitas anteriormente, na página 34.
Além das considerações feitas acima sobre as três categorias de baixos típicos do
choro apontadas por Almeida (1999), verificam-se que nas sessões rítmicas, observadas em
Cristal nos compasso 50 ao 57, e em Samambaia do compasso 15 ao 22 (ver apêndice),
verifica-se que a linha do baixo alcança a região super-grave do piano, além dos limites do
violão de sete cordas típico do choro. Essas sessões já foram citadas anteriormente, na página
28, onde foram associadas ao registro grave realizado pelo tambor surdo do samba.
O tambor surdo, responsável pelo registro grave nos instrumentos de percussão do
samba, além de ser referência para a mão esquerda ao piano, também é referência para o
contrabaixo. Segundo Ramos (2004), a “grande característica da condução do samba no
contrabaixo é a alusão feita à marcação do surdo” (ibid, p. 48). O autor cita o contrabaixista
Sebastião Oliveira (Sabá) como referência na década de 60 e o contrabaixista Luizão Maia
que, na década de 70 já com o contrabaixo elétrico, foi “o contrabaixista que melhor
evidenciou o reflexo da marcação do surdo na maneira de tocar samba no contrabaixo”
(loc.cit). Como visto anteriormente no primeiro capítulo do presente trabalho (página 11),
Cesar Camargo Marino teve importantes parcerias com esses músicos. Na década de 60 atuou
49
Recomenda-se a audição do áudio original.
48

com Sabá no Quarteto Sabá e no trio Som Três e na década de 70 atuou com Luizão Maia ao
lado de Elis Regina.
Portanto as linhas de baixo de Cesar Camargo que avançam para o registro super grave
do piano, além de também associadas ao recurso de ampla textura do instrumento, podem ser
também associadas ao contrabaixo. É pertinente especular a respeito da influência dos
contrabaixistas Sabá e Luizão Maia nas linhas de baixo do pianista, porém essa verificação
ultrapassa os limites do presente trabalho.
49

4 ESTRUTURAS DE ARRANJO

Os elementos estruturais, descritos e analisados separadamente no capítulo anterior


por razões metodológicas, (ALMEIDA, ibid. p.142), aparecem simultaneamente no repertório
para piano solo. Ao observar, e sobretudo, tocar as transcrições de Cristal e Samambaia ao
piano, verificam-se trechos que apresentam semelhanças em relação à disposição simultânea
desses elementos.
Convencionou-se chamar de “estrutura de arranjo” o modo de dispor simultaneamente
a linha melódica principal, o acompanhamento e a linha do baixo ao piano,
concomitantemente entre as mãos direita e esquerda do pianista. Entende-se por
acompanhamento, os eventos musicais observados entre a linha melódica principal e os
baixos, que podem ser acordes, linhas melódicas secundárias ou simplesmente notas.
Na tentativa de uma sistematização, as estruturas de arranjo foram classificadas em
cinco tópicos:

4.1 LINHA MELÓDICA E ACOMPANHAMENTO NA MÃO DIREITA E BAIXOS NA


MÃO ESQUERDA

Ocorrem quando a melodia está na região médio-aguda do piano, geralmente na oitava


a partir do dó central. A mão direita, é geralmente dividida entre os dedos50 3, 4 e 5 para a
linha melódica e os dedos 1 e 2 para o acompanhamento. A mão esquerda se ocupa
exclusivamente com os baixos, realizando diversos elementos estruturais demonstrados no
capítulo anterior.
Quando a linha melódica apresenta pausa ou notas longas, a mão direita tem um
espaço definido para contribuir com o acompanhamento rítmico e na formação dos acordes,
como mostram os exemplos as seguir:

50
Explicar numeração dos dedos
50

Ex. 53 – Cristal, compassos 14 ao 16.

Ex. 54 – Samambaia, comp. 35 ao 38.

Em outros momentos a mão direita contribui com o acompanhamento mesmo não


ocorrendo espaços na melodia (pausas ou notas longas), como no compasso 24 do exemplo
abaixo:

Ex. 55 – Samambaia, comp. 23 ao 25

No exemplo acima, que são os três primeiros compassos da exposição do tema


principal de Samambaia, pode ser observado que quando ocorrem espaços na linha melódica,
a mão direita contribui com um maior número de notas no acompanhamento. Por exemplo, o
compasso 23 apresenta um espaço na linha melódica que é preenchido por um
acompanhamento relativamente movimentado ritmicamente. Já no compasso 24, a linha
melódica em semicolcheias sobrecarrega a mão direita e não apresenta espaços, sendo que as
notas do acompanhamento não apresentam movimentação rítmica, apenas completam a
harmonia.
51

O acompanhamento também pode ocorrer na forma de contracantos com a linha


melódica principal:

Ex. 56 – Cristal, comp. 21 ao 24.

No exemplo acima, o acompanhamento se apresenta como uma linha melódica


secundária, proporcionando uma escrita a duas vozes para a mão direita. O acompanhamento
na forma de contracanto ocorre nas mesmas condições anteriores, preenchendo espaços da
linha melódica principal como pausas ou notas longas. O contracanto também apresenta
características harmônicas, pois completam as notas dos acordes e rítmicas, pois Cesar
Camargo realiza acentuações que sugerem os acompanhamentos rítmicos.

4.2 LINHA MELÓDICA NA MÃO DIREITA, ACOMPANHAMENTO EM AMBAS AS


MÃOS E BAIXOS NA MÃO ESQUERDA

Cesar Camargo utiliza também figurações de acompanhamento que envolve ambas as


mãos. Ocorrem de maneira semelhante às vistas anteriormente, com a linha melódica em
região médio-aguda, onde os espaços são preenchidos por estruturas de acompanhamento. São
relativamente comuns no piano de Cesar Camargo Mariano e podem ser observadas nos
compassos 17 e 19 de Cristal:

Ex. 57 – Cristal, comp. 17 ao 19


52

Tomando o compasso 17 como exemplo, verifica-se que a estrutura de


acompanhamento apresenta uma figuração rítmica que inicia com uma pausa e segue em
semicolcheias, onde a mão direita acentua a primeira de cada grupo de três notas. Cesar
Camargo utiliza a articulação staccato que enfatiza o caráter percussivo desta passagem. O
exemplo abaixo ilustra esta estrutura, onde as notas agudas representam a mão direita e as
graves a mão esquerda:

Ex. 58 – figuração rítmica da estrutura de acompanhamento do compasso 56 de Cristal

Percebe-se uma variação desta estrutura de acompanhamento no compasso 19 de


Cristal (exemplo 57), onde a diferença está na última semicolcheia, que é ocupada por uma
nota da linha melódica. No compasso 27 de Samambaia ocorre outra variação desta estrutura,
sendo que as duas últimas semicolcheias são ocupadas pela linha melódica.

Figura 59 – Samambaia, comp. 27

4.3 LINHA MELÓDICA NA MÃO DIRETA E ACOMPANHAMENTO NA MÃO


ESQUERDA

Esta estrutura de arranjo ocorre quando a tessitura do trecho musical se encontra na


região média e aguda do piano. A mão direita realiza a linha melódica na região aguda, sendo
que a mão esquerda assume a região média, conduzindo os acordes geralmente sem
fundamental, também realizando inversões e re-harmonizações. Verifica-se essa estrutura em
53

Samambaia, principalmente na sessão de improviso. Abaixo a transcrição dos primeiros


compassos dessa sessão:

Ex. 60 – Samambaia, comp. 91 ao 94

No exemplo acima, percebe-se apenas a linha melódica e o acompanhamento. O


pianista, não tendo que realizar a linha do baixo, pode direcionar sua atenção para o improviso
melódico na mão direita e para condução dos voincings na mão esquerda. Tal procedimento é
comum no jazz e na bossa nova.51
Cristal não apresenta essa estrutura de arranjo, foi percebido também que a linha
melódica principal não atinge a região aguda (os arpejos não foram considerados linhas
melódicas) e a peça não apresenta seção de improviso.

4.4 ACOMPANHAMENTO NA MÃO DIREITA E BAIXOS NA MÃO ESQUERDA

Por não apresentar a linha melódica principal, esta estrutura de arranjo é muito
utilizada para acompanhar cantores ou instrumentos solistas. A mão direita conduz os acordes
na região médio-grave (que no exemplo anterior eram realizados pela mão esquerda), e a mão
esquerda atua na região super-grave, como nos exemplos abaixo:

Ex. 61 – Samambaia, comp. 15 ao 18

51
Ver a contextualização realizada no capítulo 1, em que o samba-choro de Cesar Camargo relaciona-se com o
jazz e a bossa nova.
54

Ex. 62 – Cristal, comp. 50 ao 53

Os exemplos acima mostram alguns trechos onde o ritmo é a característica mais


notável, pois não apresenta linha melódica principal e a harmonia se mostra pouco
movimentada. No exemplo 61, observa-se que a relação rítmica entre as duas mãos podem ser
associadas ao padrão do tamborim na mão direita, sobreposto à marcação do surdo na mão
esquerda, como foi exemplificado no capítulo anterior.
O estudo das articulações e acentuações rítmicas realizadas por Cesar Camargo
Mariano é de grande importância para a compreensão do swing do pianista. Tal estudo vai
além dos objetivos da presente pesquisa, contudo recomenda-se a audição das peças.

4.5 LINHA MELÓDICA EM ACORDES NA MÃO DIREITA E BAIXOS NA MÃO


ESQUERDA.

Observa-se esta estrutura de arranjo em Samambaia, quando a linha melódica


principal é a nota mais aguda de blocos de acordes realizados pela mão direita. Os acordes
geralmente apresentam ritmo movimentado, sem grandes pausas ou notas longas, semelhantes
ao acompanhamento realizado pela mão direita na estrutura de arranjo anterior a esta.

Ex. 63 – Samambaia, comp. 107-110 - Melodia em blocos na mão direita e baixos na mão esquerda
55

Verifica-se que os acordes realizados pela mão direita caracterizam um


acompanhamento rítmico e harmônico ao mesmo tempo que apresentam a linha melódica nas
notas mais agudas. Essa estrutura de arranjo também pode ser observada, em Samambaia, nos
compassos 133 ao 135.
Como exposto anteriormente, estrutura de arranjo é a maneira de dispor
simultaneamente diferentes elementos estruturais que foram descritos e analisados no capítulo
anterior. Foram identificadas as cinco estruturas descritas acima, que apresentam ocorrência e
certa freqüência em Cristal e Samambaia, porém não abrangem a totalmente o texto musical
das peças, de maneira que podem ser facilmente observados, nas transcrições, trechos que não
fazem referência aos elementos estruturais expostos no terceiro capítulo e trechos que não
fazem referência às estruturas de arranjo descritas neste capítulo.
Esses trechos fogem ao conteúdo musical desta pesquisa, pois necessitam de uma
abordagem mais abrangente, que verifique o texto musical por completo.
56

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise musical a partir de partituras, segundo Piedade (2007), é um dos recursos


mais utilizados por diferentes perspectivas teóricas e metodológicas. Ainda segundo o autor, o
papel da partitura no mundo da música popular é bastante particular e envolve sistemas de
notação, como cifragem de acordes e leadsheet, sendo que o analista musical muitas vezes
necessita transcrever gravações e criar a sua própria partitura de trabalho.
A partitura obtida através da transcrição das performances de Cesar Camargo Mariano
em Cristal e Samambaia se mostrou eficiente para o melhor entendimento a respeito do texto
musical, especialmente nos aspectos relacionados ao objetivo principal do trabalho. A partir
dos exemplos fornecidos pela transcrição, foram verificados os diversos elementos estruturais
citados no terceiro capítulo; no quarto capítulo, foi observado como esses elementos são
dispostos simultaneamente ao piano, entre as mãos direita e esquerda.
As análises de alguns aspectos sobre o ritmo, harmonia, baixos e melodia tiveram
como ponto de partida a verificação das características musicais do choro proposta por
Almeida (1999), e foram complementadas por outras abordagens. Como resultado, essas
análises revelaram importantes informações estruturais sobre cada um desses elementos.
Sobre o ritmo, verificou-se que a síncopa, formas de alusão à síncopa, quiálteras e os
ritmos realizados pelos instrumentos de percussão, são importantes referências e podem ser
observados no âmbito da melodia, baixo e acompanhamento.
Sobre a harmonia, foram verificadas em Cristal e Samambaia, algumas características
do choro moderno que, segundo Almeida (1999, p.31) são acordes alterados, tensões
harmônicas e modulações, provenientes das evoluções harmônicas da música erudita e do
jazz. Através da descrição de algumas progressões harmônicas e alguns procedimentos de
condução de vozes, observaram-se algumas formações de acordes e como são organizadas as
notas no âmbito da harmonia.
Sobre a melodia, verificou-se a ocorrência de elementos estruturais do choro -
cromatismos, apogiaturas, bordaduras, frases longas e arpejos – e as escalas pentatônicas e
blues, oriundas do jazz. Nos baixos, foram descritas as principais estruturas realizadas pela
57

mão esquerda, classificadas de acordo com Almeida (ibid) em três grupos. No baixo condutor
harmônico, foram observadas linhas monódicas que conduzem as fundamentais e quintas dos
acordes, linhas que sugerem duas vozes e conduzem fundamentais, terças e sétimas, e por
último, condução de vozes na mão esquerda. Foram verificados também o baixo melódico e o
baixo pedal, que são os que apresentam menor ocorrência e são menos significativos em
relação ao primeiro citado.
Ao observar a disposição desses elementos estruturais simultaneamente ao piano,
formou-se o conceito de “estrutura de arranjo”, que é a forma de organizar baixos,
acompanhamentos e linhas melódicas concomitantemente entre as mãos direta e esquerda. As
cinco estruturas de arranjo descritas no quarto capítulo são algumas alternativas práticas para
a problemática do piano solo no samba-choro. Numa breve abordagem didática, sugere-se que
o pianista assimile os diversos elementos estruturais explicados no terceiro capítulo e, através
de algumas das cinco estruturas de arranjo, os aplique no momento da performance em outros
sambas ou choros.
As estruturas de arranjo não fazem referência à totalidade do texto musical, sendo
apenas alguns procedimentos técnicos observados que apresentam certa freqüência em Cristal
e Samambaia. A análise integral do texto musical sobre questões referentes aos arranjos para
piano fica como recomendação para próximas pesquisas. Outras recomendações são a análise
mais detalhada do ritmo, principalmente sobre articulações rítmicas, questões sobre a
harmonia, improvisação e outros aspectos, apontado para as contribuições de Cesar Camargo
Mariano ao piano brasileiro.
Espera-se que esta pesquisa tenha contribuído para uma melhor compreensão à
respeito das práticas interpretativas na música popular, especificamente ao piano solo no
contexto musical do samba-choro e para divulgar a prática das transcrições literais,
importantes para o estudo do piano nesse contexto.
58

REFERÊNCIAS

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Choro no piano brasileiro. Dissertação de mestrado – Universidade Estadual de Campinas,
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59

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60

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www.conradopaulino.com.br, link lições do mês. 30/10/2005
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Web site http://www.almacarioca.com.br/jalf.htm, acessado em 01/07/2008 - "História da


Música Popular Brasileira - Abril Cultural - São Paulo, 1972
61

APÊNDICE:

Transcrição de Cristal e Samambaia


62
63
64
65
66
67
68
69
70
71
72
73
74

ANEXO

CD com as gravações de Cristal e Samambaia

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