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10 A ÉTICA EM PLOTINO

A Ética em Plotino que agrilhoa os homens, tu tiveste no coração a


força de fugir da tempestade ensurdecedora das pai-
xões do corpo e atingiste, nadando, a margem tran-
Jan ter Regen qüila, longe da multidão dos maus e garantiste à tua
alma pura um caminho reto. [...] Outrora quando te
agitavas para fugir às ondas amargas desta vida
ávida de sangue, ao tédio e à vertigem, do meio da
I Introdução tempestade e do prepotente tumulto te apareceu [...]
a visão do fim perfeito. [...] Ó feliz, quão nu-
A Vida de Plotino e o Ordenamento de seus escritos, da merosas batalhas sustentaste!
autoria de Porfírio, amigo e discípulo a quem Plotino Esta vida pura e desinteressada foi o caminho para
confiou, em quatro ocasiões, os seus escritos,1 e que por alguns momentos extraordinários de êxtase – Porfírio
aquele foram ordenados nas Enéadas, seis grupos de no- diz que viu este fenômeno na vida de seu mestre ao me-
ve tratados, conta a sua excepcional atitude, a saber, o nos quatro vezes – e de cujo fenômeno temos um relato
seu ascetismo, que se manifestava nos hábitos alimenta- da mão do próprio Plotino:
res, em sua vida celibatária, sua caridade e solidariedade,
e em sua atenção especial aos meninos e meninas, filhos Muitas vezes, despertando do meu sonho corpóreo
e ficado estranho a qualquer outra coisa, contemplei
de amigos e alunos. Esta realidade é descrita por Porfírio
no meu íntimo uma beleza maravilhosa e acredita-
no famoso “Oráculo de Apolo sobre Plotino”,2 onde se va, sobretudo agora, pertencer a um destino mais
lê: alto; realizando uma vida melhor, unificado com o
Ó daimon, que foste um homem, mas agora condi- Divino e fundado sobre este, cheguei a exercitar
vides com os espíritos a sorte mais divina, depois uma atividade que me alça acima de qualquer outro
de te haveres libertado dos vínculos da necessidade ser espiritual. Mas depois este repouso no seio do
_____ Divino, descido do Intelecto à reflexão, eu me per-
1. O primeiro grupo de 21 tratados foi escrito entre o primeiro e guntei como é possível, então, esta descida e de que
décimo ano do reinado de Galieno; o segundo grupo, 24 trata- modo a alma conseguiu entrar no corpo, sendo o
dos, foi escrito no tempo da permanência de Porfírio junto a que ela é em si mesmo, como me mostrou, mesmo
Plotino, entre e sexto e décimo sexto ano de Galieno; um novo estando num corpo. 3
grupo, de cinco, foi remetido a Porfírio quando este estava se
restabelecendo em Sicília; os últimos tratados foram mandados
por Plotino um pouco antes de sua morte. _____
2. Vida de Plotino, 22. Em: Vida de Plotino e o Ordenamento de seus 3. Enéadas IV, 8 (6), 1, 1-12). Para este trabalho foi usada a edição
escritos. Tradução direta do grego e notas do Prof. Dr. Reinhol- italiana de Plotino: Plotino – Enneadi, a cura de Giuseppe Faggin,
do Aloysio Ullmann. Em: Plotino. Um estudo das Enéadas. Porto texto grego a fronte. Rusconi, 1996. As traduções são todas da
Alegre: Edipucrs, 2002, p. 276. responsabilidade do autor.
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Mas, a pergunta que surge é a seguinte: será que coisa contrária ao bem; algo, entretanto, nem que
existe em Plotino, além dessa atitude ética pessoal, por eles tenham lugar entre os deuses. É uma necessi-
importante que seja, uma Ética no sentido de uma filo- dade que os males circulem entre o gênero humano
sofia da práxis, uma reflexão que indica, fundamenta e e sobre este mundo. Por isso devemos tentar fugir
aprofunda, a partir de seu grandioso sistema filosófico, o mais depressa possível deste mundo para o outro.
Ora, esta fuga consiste em tornarmo-nos, dentro do
um determinado caminho para a felicidade do Homem? possível, semelhantes à divindade6 e sermos seme-
Uma resposta a esta interrogação encontra-se no lhante à divindade é tornarmo-nos justos e piedosos
seu tratado Sobre a Virtude, o segundo da Iª Enéada4, com a ajuda da inteligência. 7
quando Plotino afirma que o objetivo principal de cada O que, então, quer dizer “ser deus”, para Ploti-
pessoa humana “não é ser livre de todo erro, mas ser no? Deus, conforme a maioria dos estudiosos, não deve
deus”.5 ser identificado com o Uno: este está além de deus, é
Esta afirmação não deve ser interpretada como “maior e mais perfeito” do que deus, porque é a Reali-
uma afirmação orgulhosa, porque para Plotino, um fiel dade que está acima de todas as realidades. Deus é a
seguidor da religião grega tradicional, isto significaria primeira hipóstase que procede do Uno, ele é a Inteli-
uma das mais condenáveis injúrias, o terrível pecado de gência em que essência e existência coincidem, em que
avse´b, eia − impiedade – como revela a mitologia grega na sujeito pensante e objeto pensado são a mesma coisa.
conhecida história de Prometeu, castigado pelo roubo Deus, como a Inteligência, é por isso uma unidade múl-
do fogo que faria os homens iguais aos deuses. Nem tipla: todas as coisas na sua dimensão atemporal nele
tampouco deve ser visto na perspectiva do cristianismo, existem, sem mudança, sem antes e depois ou primeiro e
que – embora pregue, de fato, que o homem deve ser segundo. Nele não há raciocínio ou conhecimento ra-
perfeito como o Pai – afirma que o caminho para obter cional dedutivo, mas o seu conhecer é intuitivo; conhe-
este fim passa pelo Homem-Deus, Jesus Cristo, e de- cendo uma, conhece todas as outras essências.
pende de um chamado explícito, a que o homem deve De que modo “tornar-se deus”, o caminho a ser
corresponder incondicionalmente. percorrido, os passos a serem dados para que este obje-
A afirmação deve ser vista na perspectiva platôni- tivo torne-se realidade, tudo isto pode, então, ser cha-
ca, como expressa de maneira clara no Teeteto 176ab: mado a Ética de Plotino.
Sim, mas não é possível, Teodoro, nem que os ma-
les desapareçam, pois tem de haver sempre alguma _____
_____ 6. A versão espanhola – Platon. Obras Completas. Madrid: Edição
4. Este tratado constitui a principal discussão dos princípios éticos Aguilar, 1988 – traz: “una asimilación de la natureza divina”.
nas Enéadas. 7. Teeteto ou Da Ciência. Tradução, prefácio e notas de Fernando
5. I, 2, 6, 1-3. Melro. Lisboa: Editorial Inquérito Limitada, s/d.
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É na 1ª enéada que se encontra o que pode ser natureza e a Origem do mal (I, 8), O que é o animal e que é o
caracterizado como as linhas fundamentais de uma ética homem? (I, 1), e Sobre o Primeiro Bem ou a felicidade (I, 7). Os
plotiniana, que, porém, não pode ser considerada inde- tratados que compõem a 1ª enéada remontam quanto à
pendentemente de sua metafísica: a ética está enraizada sua origem, então, a épocas diferentes da atividade de
nesta metafísica e, se Plotino dela trata de forma mais Plotino. Por isso,
indireta do que direta, isto ocorre em razão de a metafí- Na ordem em que foram escritos, esses livros, tanto
sica ser para ele uma ética, como também se constata em os que remontam à juventude como os da maturi-
Platão, a grande inspiração de Plotino. dade e os que datam da época da enfermidade, dis-
tinguem-se pelo vigor do pensamento. Os primei-
II A Estrutura da Iª Enéada ros vinte e um são os menos profundos em subs-
tância [...] Os do período intermediário alcançam o
De acordo com as observações de Porfírio,8 os ápice do poder especulativo: esses vinte e quatro
nove tratados da 1ª enéada lhe foram entregues, sem tratados [...] são realmente perfeitos; os últimos no-
título, em três ocasiões diferentes. Na primeira, quando ve escreveu-os, quando já começava a faltar força,
Plotino tinha 59 anos, por ocasião do primeiro contato mais nos últimos quatro do que nos cinco anterio-
de Porfírio com o seu mestre; ele recebeu então 21 tra- res.9
tados, dentre os quais: Sobre o Belo (I, 6), Sobre o Suicídio Porfírio assume a sistematização dos cinqüenta e
Racional (I, 9), Sobre as Virtudes (I, 2), Sobre a Dialética quatro tratados:
(I,3). Em seguida, durante os seis anos em que ele, Porfí- Visto que ele mesmo me encarregou de ordenar e
rio, estava junto a Plotino, vieram à luz mais 24 tratados, corrigir os seus escritos – e eu lhe prometi, enquan-
dentre os quais Sobre se a felicidade aumenta com o tempo (I, to ele ainda vivia, e comuniquei a outros amigos
5). Quando Porfírio se encontra em Sicília, para se recu- que o faria – pensei, antes de tudo, em não seguir a
perar, recebeu de Plotino mais cinco tratados, dentre os
quais Sobre a felicidade (I, 4). Um pouco antes de sua mor- _____
9. A Vida de Plotino, op. cit., p. 253-254. Curiosa a observação feita,
te, Plotino mandou os últimos quatro tratados, três deles logo depois por Porfírio sobre o modo de escrever de Plotino:
colocados mais tarde por Porfírio na 1ª enéada: Sobre a “Depois de escrever, jamais quis copiar uma segunda vez o que
redigiu, nem sequer o relia uma vez ou revisava, porque a visão o
_____ impedia de ler. Ao escrever, descurava por inteiro a caligrafia,
8. Cf. A Vida de Plotino, p. 249: “Os tratados já escritos são os se- não separava claramente as sílabas e negligenciava a ortografia,
guintes. Plotino não lhes tinha dado título. Cada qual intitulava- atendo-se somente ao sentido. E assim continuou, para espanto
os de modo diferente. Os títulos que prevaleceram são os que se de todos nós, até à morte. Ele elaborava, em seu interior, o trata-
seguem. Eu coloco também as palavras iniciais dos livros, a fim do do início ao fim.Depois punha por escrito o que havia pensa-
de que se possa reconhecer facilmente cada tratado à parte”. Se- do, escrevendo ininterruptamente o que compusera em sua men-
gue uma lista de 21 tratados. te, como se o tivesse copiado de um livro”.
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ordem cronológica, porquanto surgiram (os escri- Neste sentido, seria demais classificar a 1ª enéada
tos) assim, sem nenhum plano. Imitando, porém, como um tratado sistemático de Ética. Nem mesmo a
Apolodoro [...] assim também eu, com os cinqüenta palavra hçq´’v iko´j´, , tão em uso em Aristóteles,
livros de Plotino em mãos, compus seis Enéadas,
tendo, desse modo, a alegria de encontrar o número figura no vocabulário das Enéadas. Este fato lingüís-
perfeito seis e o número nove. Em cada Enéada re- tico é surpreendente. Evidentemente não significa
uni os livros com assunto afim e em cada uma delas isto um desinteresse pela filosofia moral, nem
comecei pelas questões mais fáceis. 10 mesmo a ausência, na sua obra, de tratados de mo-
ral; porque seu biografo Porfírio (Vida de Plotino,
Na 1ª enéada, afirma, “reuni os tratados de con- 24,16-17) [...] colocará no inicio “os livros domi-
teúdo moral”.11 Confessa, entretanto, que “em alguns nantemente morais”. 15
inseri irregularmente comentários, satisfazendo o conse-
Desta forma é possível encontrar um fio que une
lho de alguns amigos que em certos pontos desejavam
os assuntos da 1ª enéada, à qual alguns outros tratados
maior clareza”. 12
das restantes Enéadas poderiam ter sido integrados, se
Como conseqüência desta história da composi- não fosse a rígida divisão da obra.
ção, como também do ambiente escolar com sua meto-
A 1ª enéada abre com uma reflexão sobre a ver-
dologia de leitura de um texto de uma autoridade, de
dadeira dimensão do homem, que é afirmada residir na
comentários, de perguntas e respostas, a impressão que
alma racional, princípio da nossa ligação ou relação com
se passa é de certa desordem: os assuntos não são resol-
a Inteligência (I, 1, (53)).
vidos e reaparecem amiúde em outro lugar, e muitas
perguntas ficam sem resposta.13 Por isso o desabafo de Sendo o objetivo do homem ser igual ao deus,
Lloyd P. Gerson “[...] os escritos de Plotino dificilmente deve ele praticar as virtudes que o conduzem a esta iden-
podem ser caracterizados como sistemáticos, embora
exista um sistema plotiniano no sentido de que há enti- _____
writings can hardly be characterized as systematic, athough there
dades básicas, princípios de operação, e uma esforço is a Plotinian system in the sense that there are basic entities,
para uma explicação unificada do mundo”.14 principles of operation, and an effort at a unified explanation of
the world”.
_____
15. Canto-Sperber, Monique (org.). Dictionnaire d’Éthique et de
10. Cf. Vida de Plotino, p 279.
philosophie morale. Paris: Prersses Universitaires de France, 1996,
11. Ibidem, p. 279. p. 1156-1161 : « [...] ne figure pas dans le vocabulaire des
12. Ibidem, p. 283. Ennéades. Ce fait de langue est três surprénant. Il ne signifie
13. Esta metodologia afirma-se e torna-se corriqueira na filosofia évidemment pas le désintérêt de Plotin pour la philosophie
antiga e medieval, persistindo até nos tempos modernos. morale, ni même l’absence dans son oeuvre de traités de morale;
14. Lloyd P. Gerson, ed., Introduction. In: The Cambridge Companion car son biographe Porphyre, [...] placera en tête “les livres à
to PLOTINUS. Cambridge: University Press, p. 1: “Plotinus’ dominante morale” ».
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tificação (I, 2, (19)). O método para ver tudo na verda- III A Metafísica de Plotino, ou a Hierarquia
deira e justa perspectiva é a chamada dialética, que, entre do Ser
outras coisas, ilumina o caminho da pratica das virtudes
(I, 3, (20)). A felicidade deve ser considerada como o Sem duvida nenhuma, o pensamento central da
grande objetivo do homem e ela consiste na realização metafísica plotiniana é o que Platão chamou de “2ª Na-
em ser igual a deus. Somente para um verdadeiro sábio, vegação”.16: a existência de um mundo supra-sensível,
que foge do sensível e tende para o inteligível, esta feli- onde não existe nascimento e corrupção, tempo e mo-
cidade é alcançável (I, 4 (46) e I,5 (36)). O mundo inteli- vimento, conhecimento sensitivo e raciocínio, em resu-
gível é o único mundo belo, onde reside deus que o sá- mo, onde tudo é definitivo no eterno repouso do Prin-
bio imita e cuja luz o ilumina (I, 6 (1)). Uma reflexão sobre o cípio Original e Originante de tudo. Um mundo que não
Bem Primeiro que o homem, ser racional, deve almejar, apro- pode ser conhecido com os olhos, mas tão somente com
funda ainda mais a questão da vocação do homem (I, 7 (54)). a razão. A ele temos acesso através do grande – e peno-
O mal é uma realidade presente no mundo sensível e deve ser so – processo da dialética em que, aos poucos, o homem
evitado, uma vez que significa a ausência do Bem (I,8 (51)). transcende o conhecimento sensível, que leva a conhecer
Colocando uma resoluta condenação do suicídio, assim afas- o particular, pelo conhecimento verdadeiro que põe em
tando-se de outras correntes filosóficas como o estoicismo, contato com a verdadeira realidade: a do mundo inteligí-
Plotino afirma que não se deve abandonar a vida enquanto é vel onde estão as Formas, de que o mundo sensível par-
possível progredir na tarefa de ser igual a deus (I,9 (16)). ticipa e de que é uma imagem; e, uma vez atingido o
O grande centro do pensamento ético, como se deli- nível possível desta ciência, conhecer nela tudo que exis-
neia na 1ª enéada, é a finalidade do homem de ser igual a te. O conhecimento verdadeiro, em sua plenitude, só
deus. Este objetivo é apresentado, analisado, descrito sob os será possível quando da dissolução da ligação da alma
mais diversos ângulos, que vão da essência da igualdade a com a corporeidade.
deus até as conseqüências para a vida pratica do homem, A estrutura deste mundo supra-sensível, base
culminando tudo isto na fuga mundi e no dirigir-se à verdadeira daquilo que pode ser chamada a sua atuação, é que
pátria e no viver na perspectiva desta. constitui o grande pensamento metafísico original de
Desenvolver, portanto, a temática da Ética em Ploti- Plotino. Acima de tudo, em absoluto repouso, esta o
_____
no, implica uma rápida apresentação – mais lembrança do 16. Fédon 99b-d. Cf. também o comentário de Giovanni Reale,
que apresentação propriamente dita – da sua Metafísica, ex- Historia da Filosofia Antiga, Vol. II. São Paulo: Edições Loyola,
plicando o lugar de deus e do homem na grande ordem dos 1994, p. 52-58; „Die Begründung der abendländischen
Methaphysik: Phaidon und Menon“. In: Platon. Seine Dialoge in der
seres; em seguida uma analise da avfai´r, hsij ou dialética ploti- Sicht neuer Forschungen. Herausgegeben von Theo Kobusch und
niana, que expressa a grande idéia da fuga mundi e a conse- Burkhard Mojsisch. Darmstadt: Wissenschaftsliche Buchgesell-
qüente libertação do sensível. Uma reflexão sobre a prática schaft, 1996, p. 64-80.
das virtudes encerrará o estudo do tema.
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Acima de tudo, em absoluto repouso, esta o Uno, a de sua participação no mundo inteligível, o mundo
Causa não causada de que tudo provém, porque perten- da verdade, do conhecimento intuitivo e do repouso.
ce à perfeição o transbordar de sua absoluta perfeição. A alma humana, pois, sob este aspecto tem uma rela-
Assim, o primeiro que vem a ser é a Inteligência, consi- ção especial com a Alma Universal e participa a título
derada a causa imediata de tudo, enquanto receptor pri- peculiar de sua vida, entre outras, de sua eternidade.
meiro e direto da força criativa do Uno. Nela aparece a Por isso se afirma que a alma do homem deve voltar
primeira multiplicidade, conseqüência de seu afastamen- à sua origem, ao seu mundo, ao seu verdadeiro ser,
to do Uno, porque nela existe sujeito pensante e objeto belo e bom. 17
pensado, embora formando uma única indivisível reali-
dade, um único princípio. Pelo fato de conter todas as IV A visão do homem em Plotino
formas, recebidas pela contemplação da sua Causa não
causada, o Uno, a Inteligência é chamada de unidade Sendo voltar à sua origem o grande objetivo do
múltipla. Nela não há tempo, porque é sem movimento, homem, quer dizer, tornar-se deus e, enquanto tal, dei-
não existindo nela antes e depois, porque seu conhecer é xar-se guiar pela Inteligência, impõe-se um aprofunda-
intuitivo, não precisa de intermédio da sensibilidade para mento da idéia que Plotino faz do homem.
conhecer as formas das coisas. Por isso não raciocina Na última enéada, Plotino faz a si mesmo uma
nem deduz, mas sabe e compreende tudo de forma ime- pergunta importante:
diata em sua essência. Conhecendo uma forma, conhece E nós? Quem somos nós? Talvez sejamos aquele
a todas as outras. ser, ou sejamos aquilo que se aproxima do Ser e se
Da Inteligência procede a Alma Universal, ou realiza no tempo? Pois bem, antes de nascer, está-
a Alma Nobre, que recebe dela o seu conteúdo, as vamos lá em cima, homens alguns e outros também
formas já distintas umas das outras que a partir dela, deuses, almas puras e inteligências unidas à Essên-
a Alma, são estendidas sobre a Matéria, que como cia inteira, partes do mundo inteligível nem separa-
dos, nem divididos, mas pertencendo ao Todo; de
pura possibilidade e absoluta indeterminação é o fato, também agora não somos dele separados.
próprio não-ser, principio máximo da multiplicidade,
enquanto receptora das formas. Hoje, entretanto, a este homem espiritual se juntou
um outro homem que quer existir. [...] Nós nos
As formas, determinadas, informam a Matéria, tornamos uma cópia de dois homens e não somos
o indeterminado. Assim se dão contornos concretos, mais o que éramos antes; pelo contrário, vez por
isto é materiais e sensíveis, às formas; em outras pa- outra somos somente aquele segundo homem que
lavras, a Alma do mundo inteligível, aquela, então,
que Plotino chama de “nobre”, torna-se, entre ou- _____
tras, alma humana, que é de todas as almas singulares 17. Cf., de maneira especial, na IVª, Vª e VIª Enéada.
– as dos outros seres – a mais importante em vista
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aumenta quando o primeiro não atua mais e está, é a prática que nos conduz aonde devemos ir?”20 Além
em certo sentido, bem longe.18 desta pergunta inicial, segue aquela que indaga a respeito
De modo incisivo Plotino coloca aqui a sua de que tipo de pessoas escolhem o caminho ascendente:
grande concepção fundamental a respeito do homem. Aqueles que, como disse [Platão]21, já viram todas
De um lado, temos o homem do mundo inteligível, que as coisas ou a maioria delas. Esses, em seu primeiro
é eterno, superior. Ele coincide com a alma racional, que nascimento entram no germe de um homem que se
pertence a este mundo belo, exemplo e forma do mundo tornará um filosofo, um musico ou um amoroso. O
temporal. Do outro lado, há o homem do mundo sensí- filósofo toma o caminho ascendente por natureza,
vel, que é gerado; ele é um ser composto: a sua alma – o músico e o amoroso precisam de um guia exteri-
embora de forma fraca e provisória – está unida à maté- or. 22
ria, a um corpo. Por isso, enquanto corpo ele está longe Neste trecho Plotino toma o Belo como o grande
da essência, do seu mundo original; enquanto alma, po- referencial: o músico, embora goste do Belo, ele só co-
rém, é partícipe da essência: nhece a beleza através do estímulo exterior, ele busca,
[...] cada um de nós, enquanto corpo, está longe da não sempre sem dificuldades, aquilo que tem harmonia.
essência; mas enquanto somos alma – e somos an- O amoroso possui certa memória da Beleza, mas “não é
tes de tudo alma – somes partícipes da essência e capaz de apreendê-la separadamente em sua transcen-
somos uma certa essência; isto é, por assim dizer, dência”.23 O filósofo, este sim, por uma disposição natu-
um composto de diferença e essência: não somos, ral, é capaz de se elevar:
por isso, verdadeira essência, nem essência em si, Tem asas, por assim dizer, e não tem necessidade,
por isso não somos donos da nossa essência.19 como os precedentes de se separar do mundo sen-
Não sendo ele dono de sua própria essência, sível. Ele se move para as alturas, mas seus passos
porque ela é diferente dele enquanto ser composto, de- são inseguros; de modo que precisa de alguém que
ve-se, então, afirmar que a essência é dona do homem. lhe mostre o caminho e o instrua. [...] Como é vir-
Somente em certo sentido pode ser dito que ele é dono tuoso por natureza, deve ser levado a aperfeiçoar as
de si mesmo neste mundo inferior, o sensível, enquanto virtudes no mais alto grau [...].24
é composto de corpo e alma.
Diante desta afirmação pode ser entendido de
_____
forma melhor o trecho da Tratado Sobre a Dialética, em 20. En. I, 3, 1.2.3.
que Plotino apresenta “[...] a arte, qual é o método, qual 21. Fedro, 248, d 1-4
_____ 22. En. I, 3,1 5-10.
18. En. IV, 6, 16-32. 23. En. I, 3,2, 3.
19. En. VI, 8, 12,4-9. 24. Id.
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De qualquer forma, entre o homem como ser Desta forma chega-se à afirmação de que o ho-
composto e o homem bom que está no mundo inteligí- mem bom está totalmente identificado com aquilo que o
vel, contemplando a sua Beleza, há uma ligação muito intelecto está agindo, e que trata seu corpo quase como
forte, porque a parte da alma que não desce e que fica um animal de carga, ou como um jardineiro que cuida
no mundo inteligível, é, ao mesmo tempo, o mesmo e dos vermes que estão na parte podre das plantas, porque
não o mesmo do que a alma que desce. Nosso eu, ou “afinal o corpo animado é parecido com estas coisas”.26
alma, mais baixo pode facilmente ser distraído, confun-
dido e até dominado por sensações e percepções corpo- V A volta: caminhos a seguir
rais. Porém, não perde totalmente a possibilidade de
olhar para a outra parte de sua alma. Então, em nome do Belo, em razão do qual as coi-
Desta maneira, abrem-se para o homem sas neste mundo são belas pela participação na forma, o
homem deve fugir deste mundo para encetar o seu re-
[...] quatro possibilidades relevantes. A primeira é o torno a este principio. Ele deve tentar transcender o
animal, incapaz na sua vida mortal de olhar para a belo sensível, que somente se define como uma lem-
sua própria alma imortal, enquanto governada pela
Inteligência. A segunda é o ordinário ser humano,
brança do Belo em si. O mundo do Belo, do Inteligível,
sensual, capaz de se lembrar de si mesmo, mas por é apresentado como “a nossa pátria querida”.27 Para
demais afundado no sensível para tentar isto. [...] A expressar a essência desta fuga e indicando o caminho
terceira possibilidade é a alma desejando ardente- da “subida”, Plotino recorre à história de Ulysses:
mente, cujo intelecto, ou cuja alma inspirada pelo Como Ulysses que conta ter fugido da maga Circe e
intelecto, ainda é distinguível de sua vida de cada do Calypso, dando a entender, em minha opinião,
dia, mas que ainda está tentando se lembrar. [...] A que não desejava ficar, embora estivesse vivendo no
quarta é o homem bom, em que o intelecto é ativo: meio dos prazeres da vista e da beleza sensível de
“ele é, então, ele mesmo um espírito ou está no ní- qualquer espécie. A nossa pátria é aquela donde vi-
vel de um espírito, e seu espírito-guardião é Deus emos, e lá em cima está o nosso Pai.
[ou um deus]” (III. 4 6. 3-4).25
O que significam, então, esta fuga e esta viagem?
_____ _____
25. Stephen J. Clark, Plotinus: Body and Soul. In: The Cambridge
whose intellect-inspired soul, is still distinguishible from his
Companion to PLOTINUS. Edited by Lloyd P. Gerson, Cam-
every day living, but who is still trying to remember. [...] The
bridge: University Press, 1999, p. 283-284: “[...] four relevant
fourth is the good man, in whom intellect is active: ‘he is then
possibilities. The first is the brute, incapable in its mortal life of
himself a spirit, and his guardian spirit is God [or a god]’ (III, 4,
looking back at its own eternal soul, as that is governbed by in-
6, 3-4)”.
tellect. The second is the ordinary, sensual human being, capable
of remembering itself, but too deeply absorbed in sense to try. 26. En. IV, 3, 4, 29-31.
[...] The third possibility is the aspiring soul whose intellect, or 27. En. I, 6, 8, 16.
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Não precisa fazê-las com os pés, porque os nossos Assim será puro de todas estas paixões e purificará
pés nos conduzem sempre de terra a terra; nem é também a sua parte irracional [...].29
preciso preparar carruagens ou navios, mas é preci- Em conseqüência, “[...] o seu esforço não tende a
so desligar-se destas coisas e não guarda-las mais,
estar fora de todos os erros, mas a ser deus”.30 Então, na
mas trocando a vista corpórea por uma outra, des-
pertar aquela faculdade que todo mundo possui, opinião de Plotino, ele não será mais um homem no
mas que poucos colocam em operação.28 sentido de “um ser composto”, com todas as conse-
qüências deste estatuto, mas ele será realmente um deus
A fuga, então, é do mundo sensível. Não que es- ou um daímon, na medida em que ele possui em si mes-
te mundo não tenha também a sua beleza, o seu valor. mo um ser diferente, isto é, um ser que possui uma vir-
Pelo contrário, enquanto manifestação do mundo inteli- tude diferente.
gível, ele conduz à verdadeira compreensão e dimensão
das coisas. Plotino fala no sentido que devemos fugir do VI As virtudes cívicas
mundo enquanto este significa lugar de sedução, que
tem o poder de descaminhar o homem do seu verdadei- Para Plotino, assim revela o Segundo Tratado da
ro caminho, e que é capaz de dominá-lo de tal forma 1ª enéada, existem duas espécies de virtudes: as cívicas e
que este se esquece da sua “pátria querida”. as intelectuais.31 As virtudes cívicas mantêm limitados
O caminho que o homem deve seguir para se os nossos desejos e nossas paixões, possibilitando ao
tornar “igual a deus” deve ser entendido como uma ver- homem permanecer longe da opinião que engana. Neste
dadeira catarse, uma libertação de tudo que é estranho, sentido, devem ser consideradas como uma espécie de
uma avqai,resij. Ela é um caminho à vida inteligível e freio às afeições corporais e, como tal, causam um acal-
tem nas virtudes o meio de conduzir a caminhada do mamento do desequilíbrio afetivo. Sujeitam o homem à
homem ao seu objetivo almejado, a união com o Inteli- medida e ao limite que são as propriedades do Inteligí-
gível. Quando o homem, enquanto alma, atinge a pure-
za,
é claro que não há nele nenhum desejo de coisas
vis: deseja comer e beber não por si, mas para satis- _____
fazer as necessidades do corpo, nem procura os 29. En. !,2 , 5-21 – 6,1.
prazeres do amor, ou somente, assim creio, aqueles 30. En. I, 2, 6, 2-3.
desejos naturais que possuímos como um impulso 31. Não confundir com a divisão das virtudes de Aristóteles; a pers-
cego; e se faz isto, o faz com a fantasia dominada. pectiva plotiniana é completamente diferente, enquanto consi-
dera umas como pertencendo ao homem, comprometido com o
_____ mundo sensível, as outras são do homem que vive a realidade
28. En. I, 6, 8, 17-30. do mundo inteligível.
ÉTICA E METAFÍSICA 27 28 A ÉTICA EM PLOTINO

vel, do qual os seres animados devem participar ao má- Neste sentido, portanto, as virtudes podem ser
ximo, a fim de se afastarem do sensível.32 consideradas como uma forma de purificação, enquanto
Pertencendo à sua dimensão original, a alma é boa, fazem com que o homem seja colocado em uma posição
está em condições de possuir a virtude, isto significa agir que lhe possibilite possuir o Bem, cuja conseqüência é a
por si mesma, através do desligamento de sua observação e a participação no mundo inteligível. É uma
corporeidade e das paixões, enfim, deixar para trás tudo possibilidade, pois
que no homem deve ser considerado de natureza a possessão do bem não é o resultado automático e
inferior. Quando, então, o homem começa a pensar por imediato da purificação. Quer dizer, a purificação
si mesmo, pode-se dizer que ele possui a prudência. Não coloca o ser humano em estado de pureza, mas não
se submeter às paixões do corpo é a temperança. E não o coloca também num estado superior a este como
temer viver separado do corpo é a coragem.33 E, afinal, significa a possessão do Bem. As virtudes elevam o
se de fato existir o domínio da razão e da inteligência, ser humano, o enobrecem, porém não o colocam
na possessão do bem supremo, do Bem.35
pode ser afirmada a presença da justiça:
Na perspectiva de Plotino, nem sempre fácil de
Então, as virtudes civis [...] fundam verdadeiramen-
te uma ordem em nós e nos fazem melhores, por- entender e às vezes pouco clara, a virtude não é uma
que impõem limite e medida aos nossos desejos e a purificação nem é a conversão que ocorre depois da
todas as paixões e nos libertam de erros: um ser, de purificação. Em que consiste, então? Partindo da obser-
fato, torna-se melhor, porque submisso à medida, vação fundamental que a parte nobre ou superior da
sai do domínio do indefinido e do ilimitado. As vir- alma, que permanece, embora fique dominada pelo cor-
tudes, enquanto significam medidas para a alma, po – o destino do composto –, persegue a união da
considerada como matéria, se conformam à mistura alma com a sua parte nobre ou superior e que esta união
ideal, que está nelas, e possuem os traços da perfei- requer a purificação, a conversão, Plotino se pergunta:
ção superior.34
A virtude consiste, então, nesta conversão? Não,
mas naquilo que na alma é o resultado da conver-
_____ são. O que é, então? É a contemplação e a impres-
32. Cf. Dominic J. O”Meara, Plotino – o regresso da alma ao lar. são do objeto inteligível contemplado, posto em ato
Em: Michael Erler & Andréas Graeser (orgs.) Filósofos da Anti-
na alma, como a visão em relação ao objeto visí-
guidade II Do helenismo à Antiguidade tardia .São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2003, p. 215-227. vel.36
33. Cf.Gonçalo Hernandez Sanjorge, Análisis de las Enneadas de Ploti-
no. Site disponível na Internet:
http:/serbal.pntic.mec.es/AParteRei/. Acesso: 10 de agosto de _____
2005. 35. Gonçalo Hernandez Sanjorge, o.c., p. 6.
34. En. I, 2, 12-20. 36. En. I, 2, 4, 17-21.
ÉTICA E METAFÍSICA 29 30 A ÉTICA EM PLOTINO

As virtudes cívicas, então, não têm o poder de nio, o bem para a alma significa estar ligado ao
“recolocar” o homem na sua verdadeira pátria, elas a- mundo inteligível, fazer com que a parte racional
brem a possibilidade para que isto aconteça. Restauram do composto, que é homem, supere o irracional e
o caminho da contemplação no homem, pelo qual lhe faça prevalecer o seu pertencer “à alma nobre”.
será possível o acesso ao bem verdadeiro, o mundo inte- Neste contexto não é sem propósito voltar
ligível: à questão: o corpo, então, deve ser privado de
Sobretudo deve ser procurado em que sentido as tudo que o caracteriza como pertencente ao
virtudes purificam a índole, o desejo e todos as ou- mundo sensível? A resposta, como já sugerida,
tras afeições, dores e paixões semelhantes; e, por- deve ser não: o que deve ser feito é distinguir
tanto, até que ponto a alma pode se separar do cor- entre aquilo que é necessário e preciso para o seu
po. funcionamento satisfatório e natural, e aquilo
Para se separar do corpo desta maneira, ela se reco- que “sobrepassa” esta necessidade, caminhando
lhe em si mesma [...], completamente impassível, na direção do gozo e do sensualismo. É nesta
considerando como simples sensações os prazeres luz, também, que deve ser entendida a rejeição
inevitáveis; cura e evita as dores somente para não do suicídio por parte do Plotino. 39
ser perturbada, nem sente mais delas o sofrimento,
ou, se isto não for possível, as suporta serenamente
VII As virtudes intelectuais
e as diminui por não compartilhá-las; suprime a ira,
na medida do possível, e se não conseguí-lo não se
A alma purificada toma o domínio absoluto do
deixa dominar por ela [...]; não existe temor – de fa-
to não tem medo de nada, se bem que o temor pos- corpo, que desta forma fica sob os ditames da alma ra-
sa existir como impulso involuntário – com exceção cional40 e, então, pode tentar ser igual a deus. Isto quer
no caso de advertência.37 dizer, então, que a alma procura converter a si mesma
num ser divino, tornando-se uma espécie de divindade
A concepção plotiniana torna-se mais clara
encarnada, que rompeu as determinações e limitações
se for levada em consideração a sua definição da
corporais por meio do restabelecimento de seu relacio-
matéria como “o indefinido e o sem medida”: 38
namento com o mundo inteligível, com a Inteligência.
ela deve ser considerada como um mal para a
alma, ligada à parte irracional do composto, que
é o homem enquanto pertence conscientemente
ao mundo sensível. Seguindo o mesmo raciocí- _____
39. En. I, 9, 1.
_____ 40. Usa-se esta expressão para expressar que a alma, dominando o
37. En. I, 2, 5, 2-17. composto, está a evidenciar e fazer prevalecer o seu pertencer
38. Cf. En. I, 2 passim. ao mundo inteligível.
ÉTICA E METAFÍSICA 31 32 A ÉTICA EM PLOTINO

Embora deva se afirmar categoricamente, basea- não simpatizar mais com o princípio inferior que
do no caráter especial da Inteligência e do mundo inteli- nela existe.42
gível como realidades sem movimento ou mudança, que Nesta perspectiva, podemos afirmar que as virtu-
nela não existem virtudes, as almas purificadas, tomando des intelectuais, ao contrário das cívicas, que são uma
este mundo como o seu modelo, praticam as assim espécie de purificação da alma, supõem uma orientação
chamadas virtudes intelectuais: a prudência, a temperan- ao Bem, por causa da relação estreita que se estabelece
ça, o valor (coragem) e a justiça. São as mesmas, em com a Inteligência, quando o homem as possui. Tam-
nome, que as virtudes cívicas, mas agora a sua referencia bém se impõe a conclusão de que somente aquele que
é totalmente ligada à Inteligência e à contemplação des- possui as virtudes cívicas poderá chegar às virtudes inte-
ta.41 lectuais, embora não se pode afirmar que a simples exis-
Mas, o que é cada virtude numa alma deste tipo? tência no homem das virtudes cívicas garanta a presença
A sabedoria (e a prudência) consiste na contempla- das intelectuais. Para o homem se tornar semelhante a
ção dos seres que a Inteligência possui, e possui por deus, se lhe impõe uma purificação, que se processa por
contato. Dupla é a espécie de uma e de outra; afinal meio de um árduo trabalho em vista de possibilitar a
que coisa são tanto na Inteligência como na alma. contemplação e a compreensão das realidades inteligí-
Na Inteligência não são virtudes, na alma, sim. veis.
O que são, então, na Inteligência? Entende-se, então a conclusão de Plotino no fim
Ato e essência. Mas, na alma, que procede da Inteli- do Segundo Tratado da 1ª enéada, quando afirma que o
gência e reside num ser diferente, elas são virtudes. sábio, aquele que vive deveras ligado ao mundo inteligí-
Assim, a justiça em si, como todas as outras virtu- vel, automaticamente possui as virtudes cívicas:
des em si, não é uma virtude, mas é o exemplo da Ele conhecera as virtudes inferiores e possuirá tudo
virtude: a virtude é aquilo que, vindo deste exem- que delas deriva, talvez também agirá conforman-
plo, existe na alma [...] do-se a algumas delas, se as circunstancias o exigi-
Então, na própria alma, a justiça mais perfeita con- rem. Mas, chegado aos princípios e às normas supe-
siste na atividade dirigida à Inteligência, a tempe- riores, agirá em conformidade com estas, não re-
rança numa conversão interior à Inteligência, a co- pondo a sua temperança na limitação de seus dese-
ragem numa impassibilidade que imita a impassibi- jos, mas ao isolar-se por completo, na medida do
lidade natural da Inteligência, e que por ela é guar- possível, do corpo; ele não viverá mais a vida do
dada. Assim, por meio destas virtudes superiores, a homem honesto, como exige a virtude cívica, mas
alma permanece somente em si mesma, de forma a abandona, escolhendo uma outra: aquela dos deu-
ses, porque ele quer se tornar semelhante a estes e
_____ _____
41. Cf. Gonçalo Hernández Sanjorge, o.c., p. 8. 42. En. I, 2, 6, 11-28.
ÉTICA E METAFÍSICA 33 34 A ÉTICA EM PLOTINO

não aos homens. A semelhança aos homens é como do Belo, da Bondade. Conhecer significa viver num grau
uma semelhança de uma imagem com outra, que superior.
deriva do mesmo modelo; mas a semelhança a deus
A alma é conduzida a ver que o conhecimento, a
é uma coisa totalmente diferente, é com o próprio
modelo.43 que chegou por meio da “conversão”, é derivado e re-
sulta de uma forma superior de pensar. De fato, a Inteli-
VIII Conclusão gência não raciocina, seu conhecimento é intuitivo, se
processo pela essência. Em conseqüência, a alma come-
Afinal, qual o objetivo da luta do homem para se ça a conhecer de uma nova forma, a forma da Inteligên-
tornar semelhante ao divino, para fazer residir a sua ver- cia. Esta nova forma é descrita na já citada experiência
dadeira e suprema felicidade no viver com a Inteligência de êxtase de Plotino.45
e o mundo inteligível? Plotino dá a entender, e esta é a lógica de todo o
Com O’Meara,44 pode-se afirmar o seguinte: Tudo seu sistema, que a união com a Inteligência não é a últi-
que existe procede do Uno, tudo almeja voltar ao seu ma etapa: tudo deve ser reconduzido ao Uno. Porém, é
principio original. O homem não constitui uma exceção impossível falar muita coisa a respeito desta união pelo
a esta regra, e este retorno se apresenta como o retorno simples de fato de o Uno estar acima de todo linguajar.
ao seu verdadeiro eu, enquanto alma. Este empreendi- É, portanto, preciso ultrapassar a ciência e nunca
mento passa por três etapas. se desviar da unidade do nosso ser; é necessário afastar-
Plotino, insistentemente, nos lembra o que somos. se seja da ciência, seja dos seus objetos e de qualquer
Chama a atenção a que devemos redescobrir a verdadei- outra coisa, mesmo que seja bela para contemplar; por-
ra dimensão do nosso ser. Esta conscientização, que que toda beleza é inferior ao Uno, como a luz do dia
supõe o domínio sobre nossas paixões corporais, é a- deriva totalmente do sol. Por isso se diz que Ele, o Uno,
companhada pela prática das virtudes cívicas. Este do- é inefável e indescritível.46
mínio coloca o ser humano diante do seu próprio eu e
da sua alma, que deve ser entendida como algo diferente
do corpo, que é anterior ao corpo, o faz e governa, e lhe _____
transmite sua bondade e beleza. Esse conhecimento de 45. En. IV, 8, 1, 1-10, citado na primeira página deste estudo.
si mesma significa para a alma a transformação de sua 46. En. VI, 9, 4, 6-11. Cf., entre outros, Jan G. J. ter Reegen. “Deus
vida, isto é: conduzi-la a se concentrar num nível perto não pode ser conhecido. A incognoscibilidade divina no Livro
dos XXIV filósofos e suas raízes na tradição filosófica ociden-
_____ tal”, em: Mirabilia 2. Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência
43. En. I, 2, 7, 23-30. Raimundo Lúlio/Brasil, J. W. Goethe Universität/Alemanha,
44. O’Meara, D. J. Plotin, Une Introduction aux Ennéades. Fribourg : Universitat Autônoma de Barcelona/Espanha, Janeiro de 2003,
Cerf-Editions Universitaires de Fribourg, 1992, p. 134-148. p. 121-137.
ÉTICA E METAFÍSICA 35 36 A ÉTICA EM PLOTINO

Plotino somente pode aconselhar e recomendar a PLOTINO. Plotino – Enneadi. A cura de Giuseppe Fag-
purificação de si mesmo, enquanto intelecto, e a gin, texto grego a fronte. Milano: Rusconi, 1996.
supressão de todos os obstáculos e distâncias que REALE, G. Historia da Filosofia Antiga, Vol. II. São
poderiam separar o homem do Uno. Afinal, “uma
Paulo: Edições Loyola, 1994.
espera no silêncio”.47
_____. „Die Begründung der abendländischen
A ética em Plotino, então, é um verdadeiro ca- Methaphysik: Phaidon und Menon“. In: Platon. Seine Dialoge
minho de volta, é uma libertação do domínio da corpo- in der Sicht neuer Forschungen. Herausgegeben von Theo
reidade e a instauração da vida original da contemplação Kobusch und Burkhard Mojsisch. Darmstadt:
do Bem e do Belo. Wissenschaftsliche Buchgesellschaft, 1996.
Referências bibliográficas REEGEN, J. G. ter. “Deus não pode ser conhecido. A
incognoscibilidade divina no Livro dos XXIV filósofos e
CANTO-SPERBER, M. (org.). Dictionnaire d’Éthique et de suas raízes na tradição filosófica ocidental”. In: Mirabilia
philosophie morale. Paris: Prersses Universitaires de France, 2. Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo
1996. Lúlio/Brasil, J.W. Goethe Universität/Alemanha, Uni-
CLARK, S. J. “Plotinus: Body and Soul”. In: The Cam- versitat Autônoma de Barcelona/Espanha, Janeiro de
bridge Companion to PLOTINUS. Edited by Lloyd P. Ger- 2003.
son, Cambridge: University Press, 1999. SANJORGE, G. H. Análisis de las Enneadas de Plotino.
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agosto de 2005.
O’MEARA, D. J. “Plotino – o regresso da alma ao lar”.
In: Erler, M., Graeser, A. (orgs.) Filósofos da Antiguidade ULLMANN, R A. Plotino. Um estudo das Enéadas. Porto
II. Do helenismo à Antiguidade tardia . São Leopoldo: Edi- Alegre: Edipucrs, 2002.
tora Unisinos, 2003.
_____. Plotin, Une Introduction aux Ennéades. Fribourg :
Cerf-Editions Universitaires de Fribourg, 1992.
PLATON. Obras Completas. Madrid: Aguilar, 1988.
_____. Teeteto ou Da Ciência. Tradução, prefácio e notas
de Fernando Melro. Lisboa: Editorial Inquérito Limita-
da, s/d.
_____
47. En. VI, 7, 34

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