Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
O empresariado industrial brasileiro passa atualmente por profundas mudanças. Embora tais
mudanças tenham sido em suas grandes linhas determinadas pelo processo de globalização,
em curso desde meados da década passada, sua especificidade reflete o impacto de políticas
desencadeadas muito recentemente a partir do governo Fernando Henrique Cardoso. Neste
sentido, este governo pode ser tomado como um marco na caracterização de um novo perfil e
um novo estilo de atuação da classe empresarial. No cerne desta transformação situa-se uma
profunda reestruturação do processo produtivo desencadeada de um lado pela implementação
do Plano Real cujos alicerces são a valorização do câmbio e a política de juros altos e, de
outro, pelo efetivo início do programa de reformas, notadamente a privatização. Duas foram
as instâncias desse processo de reestruturação: uma delas o Executivo, onde se concentra o
poder decisório e os instrumentos necessários para a intervenção no mercado. A segunda, o
legislativo onde, mediante a tramitação das reformas institucionais, deu-se andamento à
ruptura com a antiga ordem simbolizada pelo desmonte da era Vargas.
No presente trabalho, estaremos aquilatando o impacto do legado corporativo nos rumos das
reformas que estão sendo efetivamente implementadas. Até que ponto a herança do estado
desenvolvimentista constituiria a base para as escolhas dos atores como uma adaptação às
mudanças induzidas pelo Estado? Nosso argumento central, retomando o veio analítico já
desenvolvido nos nossos trabalhos anteriores cobrindo o período de criação e expansão do
capitalismo industrial no Brasil (Diniz, 1978, 1992; Boschi, 1979; Diniz&Boschi, 1978, 1979,
1989a, 1991, 1993a, 1993b ), é o de que no contexto atual, fortemente marcado pelo cenário
de desconstrução do Estado desenvolvimentista, as estratégias, o próprio padrão de atuação do
empresariado e as novas conformações da estrutura de representação dos seus interesses
ocorrem sob o impacto do arcabouço institucional corporativo e das sucessivas mudanças nele
introduzidas pelos próprios empresários ao longo do tempo. Cumpre examinar, portanto, as
maneiras pelas quais o impacto das políticas anteriores e do padrão historicamente
consolidado colocam limites à inovação institucional pretendida.
O que se vai explorar, em suma, é a possibilidade de que os estímulos que partem do Estado
como um vetor da atuação do empresariado e da reestruturação de suas organizações de
interesses, no cenário pós-reformas de abertura da economia e da globalização, contenham um
alto grau de incerteza quanto aos seus resultados. Contrastando com o momento anterior de
criação e expansão do Estado desenvolvimentista – período em que foi gestada e se moldou a
partir do Estado e de políticas industriais bem definidas toda a estrutura de representação de
interesses das classes fundamentais – o período em curso de desconstrução e reformas,
iniciado a partir do governo Collor e intensificado nos governos Fernando Henrique Cardoso,
não se caracterizaria pela geração de incentivos e por uma lógica incorporadora, senão que
induziria a atuação do empresariado pela retirada e encolhimento do Estado mediante a
centralização no Executivo do processo decisório na área de políticas econômicas, a ausência
de uma política industrial, a subordinação do Legislativo e, finalmente, a inobservância de
4
preceitos institucionais, o que alça o Judiciário a uma posição de destaque no cenário das
estratégias de ação dos diferentes atores. 1
Nesta mesma linha de considerações, nossos estudos anteriores sugerem um diagnóstico que
contrasta com as propostas que preconizam, por um lado, o desmonte do aparato institucional
da era Vargas e, por outro, o represamento da sociedade civil como maneira de reduzir a
pressão das demandas políticas e sociais (Diniz & Boschi, 1989a; 1989b; 1991). Segundo
nossa perspectiva, o cenário institucional que se delineia no tocante à representação de
interesses está marcado pelo descompasso Estado/sociedade, dada a complexidade crescente
da estrutura social e o processo de densidade organizacional desencadeado a partir dos anos
70. Em decorrência do avanço do capitalismo industrial no Brasil, instaurou-se um sistema
híbrido de representação de interesses, através do qual a sociedade extravasou do Estado,
implodindo o antigo padrão de controle corporativo do Estado sobre a sociedade. Desta
forma, longe de significar um sinal de desagregação ou de decadência da sociedade, a
configuração desse sistema híbrido - que combina formatos corporativos, clientelistas e
pluralistas, ou ainda, estilos predatórios e universalistas - é a expressão de um profundo
processo de reordenamento que ainda não esgotou suas potencialidades.
O caráter dual da estrutura acima referida manifesta-se através de uma certa simetria quanto
ao funcionamento de suas partes componentes. Em primeiro lugar, no sentido de que se pode
constatar um grau significativo de especialização, sendo bastante frequente a dupla filiação,
ou seja, as empresas pertencerem simultaneamente . sindicato e à associação que representam
o seu setor. Um segundo aspecto digno de nota é a interconexão estreita entre as duas
estruturas, que se manifesta por um sistema de circulação das elites dirigentes e pela
existência de lideranças comuns. Quanto ao padrão de atuação, a dualidade pode assumir um
caráter complementar ou conflitivo, dependendo do problema em pauta. Finalmente, trata-se
de uma estrutura altamente complexa e diversificada, compreendendo múltiplos canais de
participação, destituída, porém, de uma instância aglutinadora, capaz de articular interesses
supra-setoriais. Em conseqüência, fragmentação e setorização tornaram-se, ao longo do
tempo, um traço marcante da representação empresarial.
6
Com o advento da Nova República a partir de 1985, o empresariado industrial torna-se mais
visível em sua atuação política, assumindo um papel particularmente ativo, quer através de
suas lideranças mais expressivas, quer através de suas entidades de cúpula - como a FIESP - a
qual já vinha sofrendo um processo de reestruturação, desde o inicio dos anos 80, com a
substituição das antigas por novas lideranças identificadas com a face mais moderna do
empresariado brasileiro. Paralelamente, verifica-se um estreitamento dos vínculos
empresariais com segmentos de uma nova tecnocracia, que passa a ocupar posições centrais
no aparelho de Estado, particularmente durante o governo de transição do governo José
Sarney. Esta foi uma associação calcada em torno de interesses ligados à modernização
capitalista do país, os quais, no entanto, não chegaram a configurar um projeto de
reconstrução nacional.
7
Entre fins dos anos 80 e início dos anos 90, observou-se o surgimento de um novo tipo de
organizações, entre as quais pode-se destacar o, Pensamento Nacional das Bases Empresariais
(PNBE), o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) e os Institutos
3
Tal como salientado por Olson (1986), trata-se de uma distinção básica entre as formas de atuação das
organizações de interesse em função do seu maior ou menor grau de abrangência: as organizações de natureza
abrangente teriam incentivos para agir de forma compatível com a definição de interesses mais amplos, o
contrário verificando-se para as entidades de teor mais específico.
8
É necessário, porém, ressaltar que pouco se sabe acerca do papel que estas novas
organizações em si mesmas e no conjunto da estrutura de representação têm a desempenhar
em face da implementação de reformas econômicas voltadas para a superação da crise e
redefinição da estratégia de desenvolvimento. Um dos pontos que necessita de maior
investigação diz respeito ao tipo de vínculos que tais organizações estabelecem com o
Estado, quer no sentido de superar uma possível crise de representatividade resultante da
excessiva fragmentação do sistema em seu conjunto, quer no sentido da articulação de novas
propostas e demandas. Em vista da desarticulação dos núcleos tradicionais de acesso às
agências governamentais provocada pela reestruturação da máquina estatal, inicialmente sob o
governo Collor e, a seguir, sob a primeira gestão de Fernando Henrique Cardoso, existe hoje
uma lacuna no que se refere ao conhecimento dos modos de articulação dos grupos
empresariais com o Estado. No modelo anterior, como é sabido, tais articulações dirigiam-se
prioritariamente para o Executivo. Com o retorno à democracia e, sobretudo após a
Constituição de 1988, a relevância do poder Legislativo implicou a diversificação dos canais
de acesso. Uma suposição plausível é a de que a revitalização da arena congressual tenha
estimulado as atividades dos lobbies e grupos de pressão, inclusive por parte dos setores
empresariais, ponto que será aprofundado mais adiante.
4
Esse novo tipo de organização caracteriza-se, além disso, pelo questionamento das formas de atuação das
entidades tradicionais de representação de interesses da classe empresarial e pelo esforço de superação de uma
visão particularista, setorial e de curto prazo típica dos padrões convencionais de comportamento do
empresariado. Todas essas dimensões apontam para a tentativa de ruptura com uma imagem tradicionalmente
associada aos empresários brasileiros que os caracteriza como um segmento fraco, dependente do Estado e
destituído de visão pública. Por fim, constitui também um traço das novas organizações, sobretudo no que diz
respeito ao PNBE e ao IEDI, a tendência a estimular uma visão menos restritiva acerca das relações com o
mundo do trabalho, rompendo com a postura avessa à negociação, característica do empresariado como um todo,
em diferentes momentos do processo de industrialização (Diniz & Boschi, 1993a).
9
aos empresários, esta participação assumiu a forma não só através da representação direta no
Congresso, dando continuidade a uma tendência histórica, como também pela via dos
“lobbies” e do exercício de formas variadas de influência.
Tabela 1
Empresários na Câmara dos Deputados por períodos de legislatura
1946-67 1967-87 1987-99
Empresários da indústria e
finanças 256 15,3% 193 9,7% 86 5,7%
Empresários de serviços
diversos e de setores não
especificados 80 4,8% 122 6,1% 235 15,6%
Produtores rurais sem
atividade empresarial 133 8,0% 192 9,7% 113 7,5%
Outras atividades 1203 71,9% 1477 74,4% 1070 71,1%
Total 1672 100,0% 1984 100,0% 1504 100,0%
5
Os dados relativos a esta seção foram extraídos do Banco de Dados sobre Padrão de Carreira Parlamentar
coordenado por Fabiano Mendes Santos e Alcir Almeida, a quem agradecemos pelo acesso e tabulação dos
dados.
11
O conjunto dos dados sobre os quais a presente análise se baseia foram obtidos a partir de um
exame detalhado dos currículos de cada um dos parlamentares nas legislaturas a partir de
1946. Foram utilizadas também informações adicionais sobre a carreira desses parlamentares
obtidas a partir de outros registros. Assim sendo, pode-se afirmar que, de fato, as duas
categorias de empresários utilizadas foram identificadas com o maior grau possível de
precisão. Em outras palavras, conquanto as categorias residuais possam eventualmente incluir
algum empresário que pelas informações sobre sua trajetória não se pudesse classificar como
tal, nas categorias utilizadas só estão incluídos efetivamente os empresários de indústria e
finanças, por um lado, e empresários de setores diversos que incluem um grande número de
pequenos e micro empresários, donos de pequenos negócios, comerciantes, etc. Na primeira
categoria – empresários de indústria e finanças – estariam classificados preferencialmente
todos aqueles vinculados essencialmente a uma atividade empresarial de médio e grande
porte.
Tabela 2
Empresários na Câmara dos Deputados por períodos de legislatura
1946-67 1967-87 1987-99
Empresários da indústria e
finanças 256 76,2% 193 61,3% 86 26,8%
Empresários diversos 80 23,8% 122 38,7% 235 73,2%
Total 336 100,0% 315 100,0% 321 100,0%
Como se pode observar com os dados recalculados apenas para o conjunto dos parlamentares
empresários, a tendência é ainda mais nítida na direção de uma inversão da proporção de
empresários industriais e financeiros no primeiro período considerado, o contrário se
verificando com a representação de empresários de setores diversos. Assim, de um contigente
de76,2% de empresários industriais e financeiros entre 1946-67, passa-se a uma proporção de
26,8% no período 1987-99, ao passo em que os demais empresários constituíam 23,8% no
primeiro período, passando a 73,2% no período mais recente. Observe-se também que a
reversão do padrão inicial só ocorre de maneira mais acentuada a partir de 1987.
12
Tabela 3
Empresários na Câmara dos Deputados por legislatura
Antes de avançarmos algumas considerações no sentido de dar conta das tendências acima
constatadas, seria útil agregar informações que possam melhor qualificar as observações
apontadas. De um conjunto de outras variáveis que se utilizou para classificar os dados, entre
as quais a filiação partidária e sua distribuição no espectro ideológico, bem como o padrão
prévio de carreira (experiência em cargos executivos e passagem anterior por cargos
legislativos) e o padrão de atuação dentro do Congresso em comissões especializadas, apenas
a distribuição regional do contingente empresarial na Câmara apresentou alguma relação com
a tendência previamente identificada.
Tabela 4
Empresários na Câmara dos Deputados por origem regional
e períodos de legislatura
Período Região
1946-67 N-NE-CO S-SE
Empresários da indústria e finanças 108 72,0% 148 79,6%
Empresários de serviços diversos 42 28,0% 38 20,4%
Total 150 100,0% 186 100,0%
Período Região
1967-87 N-NE-CO S-SE
Empresários da indústria e finanças 94 65,3% 99 57,9%
Empresários de serviços diversos 50 34,7% 72 42,1%
Total 144 100,0% 171 100,0%
Período Região
1987-99 N-NE-CO S-SE
Empresários da indústria e finanças 50 30,5% 36 22,9%
Empresários de serviços diversos 114 69,5% 121 77,1%
Total 164 100,0% 157 100,0%
Assim é que, ao se classificar o componente empresarial na Câmara por sua origem regional,
contrastando-se o conjunto Sul/Sudeste com o conjunto Norte/Nordeste/Centro Oeste,
observa-se que ocorreu um declínio ligeiramente mais acentuado dos empresários da indústria
e finanças originários das regiões Sul/Sudeste em comparação com o restante do país,
15
Tabela 5
Empresários na Câmara dos Deputados por Legislatura
Por outro lado, a Nova República, que se inicia com o governo Sarney (1985/1990), deu
continuidade à tradição centralista e imperial do presidencialismo brasileiro. Tal tendência
seria particularmente marcante no que diz respeito às decisões estratégicas para o
enfrentamento da crise econômica. Assim, as políticas de estabilização e reformas têm sido
conduzidas segundo o modelo tecnocrático de gestão econômica. De acordo com essa
orientação, as principais medidas de política macroeconômica são tomadas e executadas por
equipes técnicas ligadas à Presidência da República ou aos Ministérios-chave, confinadas no
interior da alta burocracia governamental e protegidas das pressões dos grupos de interesse e
dos partidos políticos. O estilo adotado prescinde das práticas de consulta e negociação,
privilegiando a autonomia dos núcleos tecno-burocráticos, o que se traduziu na preferência
por instrumentos legais capazes de viabilizar a supremacia do Executivo em face do poder
Legislativo. Aprofundou-se a tendência prevalecente sob o regime militar (1964-1985) ao
governo por decretos-lei, substituídos, a partir da promulgação da Constituição de 1988, pela
figura das Medidas Provisórias (MP), concebidas originalmente como instrumento a ser usado
em situações excepcionais, mas logo transformadas em procedimento rotineiro de governo.
19
Desta forma, observa-se uma tensão entre as formas de alcançar os objetivos prioritários da
agenda pública, quais sejam, a administração da crise e a consolidação da democracia. Se a
primeira dessas metas repousa em mecanismos centralizadores, a segunda, respondendo a
uma lógica competitiva, visa à expansão dos procedimentos e recursos institucionais
favoráveis ao funcionamento de uma sociedade complexa e plural. O enclausuramento
burocrático acentuou esse movimento contraditório, tanto mais quanto o uso excessivo de
Medidas Provisórias torna, na prática, o Congresso refém do Executivo em termos de
políticas de longo alcance e de caráter irreversível. 6
Contudo, o fato de se encontrar à mercê da atuação do Executivo não torna irrelevante o papel
do Legislativo enquanto locus dinâmico da política, na medida em que para ali converge a
ação de diferentes grupos que procuram exercer algum tipo de influência sobre questões do
seu interesse. Ainda que, em termos da atividade legisferante, o Congresso possa ter sido
desinvestido de suas prerrogativas, certamente teve sua importância acrescida por força do seu
papel decisivo no processo político.
A partir de uma perspectiva de mais longo prazo, dois aspectos devem ser considerados para
o entendimento das mudanças aqui referidas. Em primeiro lugar, é possível constatar que o
arcabouço institucional montado para dar suporte ao modelo de desenvolvimento presidido
pelo Estado foi aos poucos se flexibilizando e se adaptando para fazer face às mudanças
estruturais ocorridas particularmente nas décadas de 70 e 80. Com a crise do modelo estatista
em anos mais recentes, verificou-se também um esforço deliberado de desmontagem daquele
arcabouço, que teria culminado com a reforma do Estado empreendida pelo presidente Collor.
Esta última, movida pelo propósito exclusivo de cortar gastos, foi interpretada em termos de
enxugamento do Estado, conduzindo ao desmantelamento da máquina burocrática. A
6
Dada a sua natureza, a MP entra em vigor imediatamente após a sua promulgação. No caso de medidas de
estabilização macroeconômicas, os efeitos são de tal envergadura e gravidade que seria impossível reverter
seu caráter provisório por intervenção congressual posterior.
20
reestruturação do aparelho estatal foi aprofundada pelo primeiro governo Fernando Henrique
Cardoso. A combinação dos processos acima indicados resultou na desarticulação de fato dos
padrões de articulação Estado-sociedade, que passaram a se caracterizar pela convivência
entre arranjos corporativos e pluralistas, ao lado de práticas clientelistas e conexões informais.
Mais recentemente, a prática do lobby veio a adquirir crescente visibilidade e relevância.
Apesar da revitalização da prática de lobby junto ao Legislativo, tudo indica que persistem
restrições à plena legalização deste mecanismo. Embora alguns parlamentares considerem
oportuna a medida por dar transparência a uma prática amplamente disseminada, porém, que
se exerce de forma furtiva e semi-clandestina, essa visão não é consensual. A ação dos lobbies
está, em grande parte, associada à corrupção, aliciamento, tráfico de influência, enfim, a uma
forma ilícita de pressão. Esta é a imagem pública dominante. Entre os políticos, não se
observa esse grau de rigidez, observando-se diferentes matrizes na avaliação dos efeitos do
lobbying. Tal diversidade inclui desde os que consideram que os efeitos negativos decorrerm
principalmente do fato da atividade não estar regulamentada, até os que percebem tal prática
como inerentemente ilegítima e prejudicial. De acordo com essa percepção, um regime de
liberdade plena facilitaria a ação dos grupos econômicos em detrimento da consolidação de
uma democracia não apenas política, mas social.
Considerações Finais
Por outro lado, ao se relativizar, torna-se possível também identificar em que aspectos o
contexto das reformas introduz dados novos e desafios específicos. Neste sentido seria
possível se aquilatar as diferentes sugestões normativas que emergem das análises
preocupadas com a questão da mudança institucional face à ausência de uma sólida teoria
sobre os seus possíveis resultados no veio da recuperação da chamada capacidade estatal
(Geddes, 1994; Domingues e Lowenthal, 1996; Weaver e Rockman, 1993).
Num plano mais geral, nossa análise revela uma das maneiras contemporâneas em que
sistemas de representação de interesses se entrecruzam com sistemas de representação
política. Na medida em que tal entrecruzamento resulta de características impressas no padrão
preexistente de diferenciação da estrutura de representação de interesses e sua articulação com
o Estado, observa-se nada mais que a emergência do velho. Antigos interesses organizados
corporativamente, bem como novos grupos de interesses organizados em formatos mais
pluralistas se combinam numa estrutura fragmentada que em diversos pontos tratam de incidir
sobre a estrutura do Estado. Este Estado, crescentemente orientado a uma perspectiva em si
mesma empresarial (Osborne e Gaeber, 1992) face ao enfrentamento da crise fiscal, adota
padrões de atuação que a um tempo reduzem as instâncias burocráticas ligadas ao Executivo e
conferem ao Legislativo um papel “submetido”, mas não passivo, de “legitimador” de
medidas definidas como emergenciais ou remetidas à eficácia e bom desempenho econômico.
Muito embora possa ser vista como uma característica das relações Executivo/Legislativo no
contexto mais amplo da reforma ou reconversão a que estão submetidas mesmo as nações do
capitalismo avançado, a distorção na tradicional divisão de poderes em favor do Executivo
torna-se anômala no contexto do uso excessivo de medidas provisórias que caracterizaria os
22
períodos mais recentes da chamada transição dual em curso no Brasil. O recurso às medidas
provisórias como forma rotineira e não extraordinária de implementação de políticas é uma
herança do autoritarismo militar que reforça o papel do Executivo como emissor, submete o
Legislativo mas não o destitui da responsabilidade, na medida mesma em que o transforma
em um avalista “emasculado” do processo decisório. Neste sentido, paradoxalmente,
instaurou-se uma tendência na qual o Legislativo fica situado como o desaguadouro de um
poder virtual para onde converge o processo político e, conseqüentemente, tornando-se o foco
da atenção pública. Para o Legislativo tendem a transmigrar também a atração dos setores
organizados da sociedade.
Nossa análise aponta com clareza esta tendência no caso brasileiro e que foi identificada em
outros estudos como típica de um processo em que o Estado trata de recuperar suas
capacidades e superar a crise fiscal através de um padrão de atuação “empresarial” (Evans,
1992; Geddes, 1994). Tal não se constituiria mesmo uma especificidade de países
retardatários que contingenciados pela superação de um diferencial de crescimentos
econômico, teriam sempre a superar também um saldo negativo na sua institucionalidade
democrática. A tendência à transmigração se verifica, por exemplo, de maneira semelhante,
no caso da Inglaterra (Norton, 1994). Específica da situação brasileira, tornando-a mais
dramática em certo sentido, é o uso da medida provisória como instrumento rotineiro de
governo e a característica fragmentária e híbrida da estrutura de representação de interesses e
do padrão de atuação dos grupos que se transmigram à esfera do Legislativo. A primeira delas
ressalta e acentua o papel anteriormente descrito do Legislativo como foco ou
“desaguadouro” de um poder virtual e a segunda revela a “clonagem” de um corporativismo
misto, antes típico das relações de interesses organizados com a burocracia do Executivo, no
âmbito do Legislativo. Em ambos os casos observa-se, portanto, tratar-se de sobrevivências
do autoritarismo “travestidas” nesta fase de redefinição institucional quanto ao papel do
Estado e ao enfrentamento da crise.
Mas nossa análise revela também um Legislativo atuante e com um papel bastante incisivo
que dá alento à atuação dos grupos de interesse e que, ao longo do tempo, mostrou se
constituir numa arena em si mesma atraente como locus para a representação direta do
empresariado. É assim que, tal como revelaram nossos dados, a representação empresarial
como um todo no Congresso nunca deixou de ser expressiva. Houve uma flutuação ao longo
do tempo que se expressou por um movimento ascendente até 1967, sofrendo um ligeiro
declínio durante o período autoritário, para novamente retomar o seu ritmo ascendente a partir
das eleições para o Congresso Constituinte. A retração durante o período autoritário sugere a
prevalência dos mecanismos de acesso corporativo ao aparelho burocrático do Estado com o
concomitante esvaziamento das funções do Legislativo. Os grandes grupos empresariais dos
setores industrial e financeiro, como é sabido, sempre se beneficiaram de um acesso
23
privilegiado às altas instâncias do Executivo tanto através de vínculos pessoais como por via
da estrutura corporativa. Como se viu, estes são exatamente os setores cuja representação na
Câmara tende a declinar acentuadamente ao longo do tempo. Por outro lado, setores
empresariais de origem urbana fora da área industrial e financeira, possivelmente menos
articulados quanto à organização de seus interesses nos moldes corporativos, aumentaram
progressivamente o seu componente de representação no Congresso.
Finalmente, nossa análise sugere também que, longe de ser uma atividade regulamentada e
institucionalizada, os mecanismos que regem a atuação dos lobbies no Congresso tendem a
ser variados, incidindo tanto sobre os congressistas individualmente, quanto sobre
24
determinadas comissões como a Comissão Geral, a CCJ e a CAE. Fica claro, porém, que a
pressão passa ao largo das votações em plenário, onde a atuação de congressistas individuais
pode ser alvo de alguma transparência e escrutínio público e onde, portanto, passa a vigorar a
relação de representação política.
Por outro lado, fica claro também que graus de autonomia do Estado, expressos na atuação do
Executivo ou no insulamento de esferas da burocracia, não podem prescindir de uma relação
de suporte e vínculos com interesses organizados como uma característica sistêmica (Evans,
1992). A visão de que um aumento das capacidades do Estado estaria associado à combinação
de autonomia com suporte aparece tanto em abordagens de economia política focalizando a
atuação de grupos de interesse e o Estado, coalizões e implementação de política econômica,
quanto em abordagens de escolha racional que enfatizam a problemática das relações entre
principais e agentes (Geddes, 1994; Przeworski, 1996). Do ponto de vista de mudança
institucional a questão nos remeteria, neste sentido, a estabelecer formas de escrutínio público
dirigidas à geração de accountability, seja na relação entre burocratas e políticos, entre estes e
o eleitorado e entre burocratas políticos e interesses organizados (Schneider, 1997). Contudo,
25
Como qualquer solução de engenharia institucional esta é apenas uma cujos resultados são
incertos. Mas com certeza ela tem a vantagem de incidir sobre a cultura política em seus
microfundamentos antes que no aspecto macro de credibilidade das instituições democráticas
como poderia ser o caso com sucessivos experimentos com a morfologia do sistema de
representação. Além disso, a se julgar como correta a generalização empírica sobre o aumento
da capacidade estrutural em função de uma “autonomia encrustrada”, o que se estaria a
contrabalançar seria precisamente os excessivos graus de autonomia do estado
desenvolvimentista brasileiro com mecanismos sistêmicos (e não apenas casuais ou ad hoc)
de apoio político aos processos de mudança em curso.
26
Bibliografia
BERENSON, W. (1975). "Group Politics in Uruguay" apud Viguera, Aníbal (1994), "Los
Empresarios, La Política y las Políticas en América Latina. Una Propuesta de Análisis
Comparado", in Ricardo Tirado (coord.), Los Empresarios Ante la Globalización,
México, Instituto de Investigaciones Legislativas, UNAM.
BOSCHI, Renato & DINIZ CERQUEIRA, Eli (1977), "Estado e Sociedade no Brasil: Una
Revisão Crítica". Dados 15, Rio de Janeiro, BIB 12-31.
BOSCHI, Renato (1987), A Arte da Associação Política de Base e Democracia no Brasil. São
Paulo/Rio de Janeiro, Vértice/IUPERJ.
BOSCHI, Renato (1990). "Social Movements, Party System and Democratic Consolidation:
Brazil, Uruguay, and Argentina" in Ethier, Dianne (ed.) Democratic Transition and
Consolidation in Southern Europe, Latin America and Southeast Asia, London,
Macmillan.
CARDOSO, Fernando Henrique (1972), O Modelo Político Brasileiro. São Paulo: Difel.
CAWSON, Alan. (1986), Corporatism and Political Theory. Oxford, Basil Blackwell.
COSTA FILHO, Carlos Pio da (1995), “Processo Decisório das Políticas Industrial e
Comercial”, mimeo, IUPERJ.
DINIZ, Eli & BOSCHI, Renato (1978). Empresariado Nacional Estado no Brasil, Rio de
Janeiro, Forense-Universitária.
DINIZ, Eli & BOSCHI, Renato (1989a). "A Consolidação Democrática no Brasil: Atores
Políticos, Processos Sociais e Intermediação de Interesses", in Diniz, Eli, Boschi,
Renato e Lessa, Renato, Modernização e Consolidação Democrática no Brasil,
Dilemas da Nova República, São Paulo, Iuperj/Vértice.
DINIZ, Eli & BOSCHI, Renato (1993). "Brasil: Um Novo Empresariado? Balanço de
Tendências Recentes", in Diniz, Eli (org.) Empresários e Modernização Econômica:
Brasil anos 90. Florianópolis, Ed.da UFSC-IDACON.
DINIZ, Eli & BOSCHI, Renato (1993a). "Lideranças Empresariais e Problemas da Estratégia
Liberal no Brasil", Revista Brasileira de Ciências Sociais, No 23, out.
28
DINIZ, Eli & BOSCHI, Renato (1993b). "Estrutura de Representação dos Interesses
Industriais: Evolução Histórica e Tendência Recentes", trabalho preparado para o
ILDES, mimeo.
DINIZ, Eli & BOSCHI, Renato (1994) Empresariado, Crise do Estado e Democracia no
Brasil. Trabalho apresentado no seminário La Nueva Relación entre el Estado y la
Burguesia en América Latina. CEDES, Buenos Aires, 20-21 de maio.
DINIZ, Eli (1978), Empresário, Estado e Capitalismo no Brasil: 1930/1945. Rio de Janeiro,
Paz e Terra.
DINIZ, Eli. (1989a). “The Post 1930 Industrial Elite”, in Modern Brazil, Elites and Masses in
Historical Perspective. Lincoln/London, University of Nebraska Press.
DINIZ, Eli. (1991), “Empresariado e Projeto Neoliberal na América Latina: Uma Avaliação
dos Anos 80”. Dados, vol. 34, no. 3.
DINIZ, Eli (1994). "Estratégias Empresariais, Crise e Reformas Liberais: Uma Análise
Comparada da América Latina no Limiar dos Anos 90", in Arché, ano 3, nº 7.
DINIZ, Eli (1994a). "Reformas Econômicas e Democracia no Brasil dos Anos 90: As
Câmaras Setoriais como Fórum de Negociação", Dados, v. 37, nº 2.
DINIZ, Eli e LIMA Jr., Olavo Brasil de (1986), “Modernização Autoritária: o Empresariado e
a Intervenção do Estado na Economia”, IPEA/CEPAL, Brasília.
EVANS, Peter (1992), “The State as Problem and Solution: Predation, Embedded Autonomy
and Structural Change”, in Haggard e Kaufman (eds.), The Politics of Economic
Adjustment. Princeton, Princeton University Press.
GEDDES, Barbara, (1994). Politicians Dilemma: Building State Capacity in Latin America.
Berkeley, University of California Press.
HATHAWAY, David (1995), “Lei de Patentes: Reta Final no Senado Federal, mimeo.
LIPSET, Seymour M. & SOLARI, Aldo (ed.) (1967), Elites in Latin America, New York,
Oxford University Press.
NORTON, Philip. (1994), “Representation of Interests: The Case of the British House of
Commons”, in Copeland e Patterson (eds.), Parliaments in the Modern World: Changing
Institutions. Ann Arbor, The University of Michigan Press.
OFFE, Claus (1983). "Societal Preconditions of Corporatism and Some Current Dilemmas of
Democratic Theory", trabalho apresentado na conferência "Issues on Democracy and
Democratization: North and South", University of Notre Dame.
OLSON, Mancur (1965). The Logic of Collective Action, New York, Schoken.
OLSON, Mancur (1982). The Rise and Decline of Nations, New Haven, Yale University
Press.
PAYNE, Leigh A.(1994) Brazialian Industrialists and Democratic Change. Baltimore, the
Johns Hopkins University Press.
31
PENA, Maria Valéria Junho (1994). “Uma Introdução ao Funcionamento dos Lobbies nos
Estados Unidos”, CEPP, mimeo.
PRZEWORSKI, A (1991). Democracy and the Market, Political and Economic Reforms in
Eastern Europe and Latin America, New York, Cambridge University Press.
PRZEWORSKI, Adam (1996), “On the Design of the State: A Principal Agent Perspective”.
Paper apresentado no seminário State Reform in Latin America and the Caribbean,
MARE, Brasília, 16-17 de maio.
RIBEIRO COSTA, Vanda Maria (1992). A Armadilha do Leviatã, tese de doutorado, Iuperj.
RODRIGUES, Leôncio Martins. (1987), Quem é Quem na Constituinte. São Paulo, OESP-
Maltese.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos (1988). "Gênese e Apocalipse: Elementos para uma
Teoria da Crise Institucional Latino-Americana", in Novos Estudos CEBRAP, nº 20.
SCHMITTER, Philippe C. (1971). Interest Conflict and Political Change in Brasil. Stanford,
Stanford University Press.
SCHNEIDER, Ben Ross. (1997), “Helpless Giants: Big Business and Constitutional Reform
in Brazil”. Paper apresentado na conferência “Power Structure, Interest Intermediation
and Policy Making”. University of London, 13-14 de fevereiro, mimeo.