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Processo Judicial Eleitoral & Provas Ilícitas 39

Veja-se que o próprio art. 22 da Lei Complementar 64/1990,


cujo rito processual é aplicado na maioria das ações judiciais eleitorais
que envolvem possíveis cassações de registro ou de diploma, dentre elas
a Representação Eleitoral que denuncia suposta prática de captação ilegal
de votos (Lei 9.504/1997, art. 41-A), não apresenta um rol de elementos
probatórios definido, limitando-se a exigir, de forma deveras confusa e
abstrata, que o autor, por ocasião da propositura da ação, deva relatar
fatos e indicar provas, indícios e circunstâncias. O que são tais indícios e
circunstâncias não se sabe.
Os meios mais usuais de prova, trazendo a problemática à esfera
do contencioso eleitoral, são os testemunhos, documentos, declarações e
perícias, sem prejuízo de, numa ou noutra demanda, dependendo do caso,
provierem instrumentos probatórios outros, como denota a própria temática
do presente estudo, aliás.
Importante ressaltar que, dentre os mecanismos probatórios
existentes, não há hierarquia, cabendo, pois, ao respectivo destinatário,
que é o julgador, valorá-los motivadamente, a partir de fundamentado
convencimento que, de livre, tem pouco55. E realmente assim deve sê-lo,
pois se trata, a decisão, do exercício de um poder e, no jogo democrático
do processo, todo poder tende a ser abusivo. Por isso, necessita de contro-
le. Não se pode, assim sendo, pactuar com o decisionismo de um juiz que
julgue “conforme a sua consciência”, dizendo “qualquer coisa sobre
qualquer coisa”. (STRECK)56

1.4 O CONTRADITÓRIO

O princípio57/58/59 do contraditório encontra guarida na Lei Maior


quando ela, em seu art. 5º, inc. LV, prevê que “aos litigantes, em proces-

55
Temos apresentado combativas irresignações contra a ausência de fundamentação
robusta, algo que é uma garantia de justiça (!), verificada em determinadas (muitas)
decisões judiciais advindas em processos de cunho “cível” ou crime eleitoral; sim-
plesmente, em eventuais demandas (não raras, pelo contrário), juízes eleitorais (e de
Tribunais, o que agrava consideravelmente a temerária realidade) vêm legitimando
acusações a partir de fundamentos abstratos, subjetivos e inacabados como “No meu
sentir...”, ou “A prova não me convence...” ou, ainda, “A tese defensiva não é crí-
vel...” sem fundamentar, de forma clara e concisa, robusta e motivada nos elementos
dos autos, os respectivos provimentos.
56
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. Op. cit., p. 562.
57
Na lição de BARROSO os direitos fundamentais podem assumir roupagem de princí-
pios ou de regras constitucionais (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Cons-
40 Guilherme Barcelos

so judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o


contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
O juiz, por força de seu dever de imparcialidade, coloca-
-se entre as partes, mas equidistante delas. O princípio do contraditório,
assim, corresponde ao princípio da igualdade das partes, dentro do pro-
cesso, que terão as mesmas oportunidades de serem ouvidas, apresentar
provas e influir, enfim, no convencimento do juiz. Mas não se trata de
uma mera identificação com a igualdade formal. A igualdade, no pro-
cesso, é entendida modernamente no seu sentido substancial, de par
conditio, ou paridade de armas; ou seja, como princípio de equilíbrio de
situações, que se revelam recíprocas entre si60.
O princípio do contraditório, que é inerente ao direito de defesa
(ampla), é decorrente da bilateralidade do processo: quando uma das par-
tes alega alguma coisa, há de ser ouvida também a outra, dando-se-lhe
oportunidade de resposta. Ele supõe o conhecimento dos atos processuais
pelo acusado e o seu direito de resposta ou de reação. Exige: 1 – notifica-
ção dos atos processuais à parte interessada; 2 – possibilidade de exame
das provas constantes do processo; 3 – direito de assistir à inquirição de
testemunhas; 4 – direito de apresentar defesa escrita61.

titucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo mode-


lo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 337).
58
Para Alexy, a diferença entre princípios e regras reside no que “Princípios exigem que
algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáti-
cas existentes. Nesse sentido, eles não contêm um mandamento definitivo, mas apenas
prima facie. [...]. O caso das regras é totalmente diverso. Como as regras exigem que
seja feito exatamente aquilo que elas ordenam, elas têm uma determinação da extensão
do seu conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Essa determinação
pode falhar diante de impossibilidades jurídicas e fáticas; mas, se isso não ocorrer, en-
tão, vale definitivamente aquilo que a regra prescreve”. (ALEXY, Robert. Teoria dos
Direitos Fundamentais. 2. ed. 2ª tir. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 103-104)
59
LENIO STRECK, ao contrário da análise sintático-semântica proposta por Alexy, confere
força normativa aos princípios, entendendo que os princípios jurídicos são deontológicos,
ou seja, “um padrão decisório que se constrói historicamente e que gera um dever de obe-
diência nos momentos posteriores”. (STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso: Consti-
tuição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 4. ed. Saraiva. São Paulo, 2011)
60
AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas. Op. cit., p. 28.
61
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas,
2007. p. 367.
Processo Judicial Eleitoral & Provas Ilícitas 41

O contraditório (assim como a ampla defesa) não se constitui


em meras manifestações das partes em processos judiciais e administrati-
vos, mas sim, e principalmente, uma pretensão à tutela jurídica62.
A ideia de contraditório, dessa maneira, vai muito além da sim-
ples “vista dos autos”, sendo efetiva e constitucional garantia de igualda-
de de oportunidades entre os contendedores, tanto na ciência dos atos e
termos processuais, quanto na possibilidade – se assim o quiserem – de
contrapô-los com todos os meios e recursos inerentes ao “jogo”.
Trata-se de tutelar e garantir a paridade de armas entre os liti-
gantes, máxima que deve imperar em toda e qualquer contenda, não bas-
tando, a tanto, dar-se ciência às partes de cada ato praticado, fazendo-se
necessário que elas tenham participação ativa em cada um desses atos no
decorrer do processo, sendo primordial, portanto, que o juiz dê igual e
material, vale dizer, real, oportunidade aos contendedores.
Mais. O contraditório, atrelado à ampla defesa, impõe o direito
às partes de verem seus argumentos contemplados pelo próprio julgador.
Assim, o contraditório pressupõe, além do direito de informação e do
direito de manifestação ou contraposição, o direito de a parte ver seus
argumentos considerados pelo julgador, sejam acolhidos ou refutados,
mas sempre considerados, ao passo que ao juiz incumbe, não só conhecer
das teses suscitadas pelas partes, mas, também, enfrentá-las de maneira
consistente e fundamentada63, afinal, é incumbência do Poder Judiciário o
julgar, e não o simples decidir, algo que somente se afigurará como exis-
tente a partir do momento em que o órgão judicante vier a enfrentar as
articulações das partes, em vista dos elementos coligidos em determinada
contenda64.

62
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Sarai-
va, 2009. p. 592.
63
Mandado de Segurança. “[...] 3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de
1988. Âmbito de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administra-
tivos, e não se resume a um simples direito de manifestação no processo. 4. Direito
constitucional comparado. Pretensão à tutela jurídica que envolve não só o direito de
manifestação e de informação, mas também o direito de ver seus argumentos contem-
plados pelo órgão julgador. 5. Os princípios do contraditório e da ampla defesa, asse-
gurados pela Constituição, aplicam-se a todos os procedimentos administrativos. [...]
10. Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio do con-
traditório e da ampla defesa (CF art. 5º LV)”. (MS 24.268 – Rel. p/ Acórdão: Min.
Gilmar Mendes – Tribunal Pleno – Supremo Tribunal Federal – j. em 05.02.2004)
64
“JULGAMENTO VERSUS DECISÃO. A ordem jurídica exige que o órgão investido do
ofício judicante proceda a julgamento, e não a simples decisão, ante a necessidade de
enfrentar-se a articulação das partes, tendo em conta os elementos coligidos. Acordam
os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, em prover o recurso nos
42 Guilherme Barcelos

Os juízes, segundo Lênio Streck65, têm a obrigação de justifi-


car suas decisões, porque com elas afetam os direitos fundamentais e
sociais além da relevante circunstância de que, no Estado Democrático
de Direito, a adequada justificação da decisão constitui-se em um direi-
to fundamental.
As decisões judiciais devem estar justificadas, e tal justificação
deve ser feita a partir da invocação de razões e oferecendo argumentos de
caráter jurídico, como bem assinala David Ordónez Solís 66. O limite mais
importante das decisões judiciais reside precisamente na necessidade da
motivação/justificação do que foi dito. O juiz, por exemplo, deve expor
as razões que lhe conduziram a eleger uma solução determinada em sua
tarefa de dirimir conflitos. A motivação/justificação está vinculada ao
direito à efetiva intervenção do juiz, ao direito dos cidadãos a obter uma
tutela judicial, sendo que, por esta razão, o Tribunal Europeu de Direitos
Humanos considera que a motivação se integra ao direito fundamental a
um processo equitativo (em pé de paridade), de modo que “as decisões
judiciais devem indicar de maneira suficiente os motivos em que se fun-
dam”. Daí, pois, a correta advertência de Dworkin: “uma responsabilida-
de política” dos juízes 67.
Lopes Jr.68, especificamente em matéria probatória, sublinha a
imprescindibilidade do contraditório, que deve permear todos os atos e
momentos da prova.
Para o autor69,

o contraditório é uma abertura necessária para evitar a manipulação


da prova por parte do juiz (ainda que inconscientemente). Sua ausên-
cia, além de constituir uma grave e insanável violação das regras do
jogo (forma enquanto garantia), faz com que, segundo Cordero70,

termos das notas de julgamento”. (TSE – Recurso Especial Eleitoral 36.340 (42960-
50.2009.6.00.0000) – Granjeiro/CE – Rel. Min. Marco Aurélio)
65
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11. Ed. Porto Alegre:.
Livraria do Advogado, 2014. p. 112.
66
Cf. Ordónez Solis, David. Derecho y Política. Navarra: Aranzadi, 2004. p. 98 e ss.
citado por STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 113.
67
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11. Ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2014. p. 112-113.
68
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. Op. cit., p. 558.
69
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. Op. cit., p. 558.
70
CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, v. 1, p. 23 apud LOPES JR., Aury. Direi-
to Processual Penal. Op. cit., p. 558.
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abram-se as portas ao pensamento paranoide, pois, como dono do ta-


buleiro, o (juiz) inquisidor dispõe das peças como lhe convém: a in-
quisição é um mundo verbal semelhante ao onírico, onde tempos, lu-
gares, coisas, pessoas e acontecimentos flutuam e se movem em qua-
dros manipuláveis.

Dessa forma, o princípio do contraditório, sem prejuízo das


demais importantes afirmativas, guarda direta relação para com as pro-
vas, tanto na ciência e acompanhamento dos elementos probatórios co-
lhidos e apresentados pela parte adversa, quanto na possibilidade de sua
produção, de modo a garantir, assim, a mais perfeita e substancial parida-
de de armas entre os contendedores.

1.5 PROVAS ILEGAIS: DISTINÇÃO ENTRE PROVAS


ILÍCITAS E PROVAS ILEGÍTIMAS

Nos termos das questões anteriores, a prova, como instrumento


processual, visa à construção do convencimento do julgador sobre o que
se alega, carregando, por conseguinte, uma função cognitivo-persuasiva
muito clara.
Nesse prisma de construção do convencimento – motivado,
fundamentado – do juiz, o direito à produção da prova, como dito, está
intimamente ligado a direitos fundamentais insculpidos na Lei Maior, tais
como a ampla defesa, o contraditório e, ainda, o devido processo legal,
além do direito de ação.
Se o escopo do direito de ação e de defesa é o de dar ao inte-
ressado uma adequada oportunidade de interferir sobre o desenvolvi-
mento e o êxito do julgamento, parece evidente que o exercício concre-
to desse direito seja essencialmente subordinado à efetiva possibilidade
de servir-se (a parte) dos instrumentos apropriados, as provas, com as
quais se procura verificar aquele determinado evento71.
Ocorre que há limites à atividade probatória, tanto de cunho ma-
terial, quanto de cunho processual. Isto, ou seja, os limites, representam
algo que surge com a própria evolução do ordenamento jurídico e do pro-
cesso como um todo, justamente para limitar o poder estatal – que também

71
AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas. Op. cit., p. 31.

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