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DIREITO PROCESSUAL PENAL

Fábio Brumana
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PRERROGATIVA
RESUMO
Questiona a respeito da atribuição para pro-
ceder à investigação de crimes cometidos
por pessoas detentoras de prerrogativa de

DE FORO NO
foro, uma vez que não há nenhuma norma
na Constituição brasileira ou no sistema
infraconstitucional acerca do assunto.
Aduz que, para parte da doutrina e juris-

INQUÉRITO
prudência, tais investigações devem ser
conduzidas pelos tribunais competentes
para processar e julgar as autoridades. Ou-
tra corrente, porém, defende que tais inves-

POLICIAL
tigações devem ser feitas pela polícia judi-
ciária, por meio de inquérito policial a ser
aforado perante o tribunal competente.
Analisa casos julgados pelo Supremo Tribu-
Eduardo Pereira da Silva nal Federal, e à luz do sistema acusatório,
discorre sobre as investigações realizadas
por magistrados em nosso país.

PALAVRAS-CHAVE
Direito Processual Penal; Direito Constitucio-
nal; inquérito policial, investigação criminal;
polícia judiciária, foro privilegiado, prerrogati-
va de função; juiz de instrução, sistema
acusatório; Lei Complementar n. 35/79.
Revista CEJ, Brasília, n. 36, p. 6-13, jan./mar. 2007
1 INTRODUÇÃO sual – e uma segunda fase com todas as 3 INVESTIGAÇÕES PRÉ-
O ano de 2005 foi farto em escânda- características do sistema acusatório – o -PROCESSUAIS NO
los envolvendo grandes autoridades da processo propriamente dito. A essa posi- ORDENAMENTO POSITIVO
República. A mídia de nosso país passou ção tem-se objetado que o processo bra- No sistema constitucional brasileiro, a
boa parte de seu tempo ocupada com a sileiro inicia-se com a acusação ofereci- investigação de crimes é, em regra, atribuída
investigação de agentes públicos, destacan- da pelo Ministério Público, não havendo à polícia judiciária (polícia federal e polícia
do os trabalhos desenvolvidos pelas Co- razão para levar em conta a fase pré- civil). É o que se infere do art. 144, § 1º, inc.
missões Parlamentares de Inquérito, polí- processual (inquérito policial) na classifi- IV, e § 4º. A própria Constituição concede a
cia, Ministério Público e Poder Judiciário. cação de nosso sistema. outros órgãos ou instituições, às vezes de
Chamam a atenção os equívocos co- Há um consenso de que o sistema forma implícita, a atribuição – ora exclusiva,
metidos pela imprensa acerca do papel de acusatório é o único apto a garantir a im- ora concorrente – para investigar crimes.
cada uma destas instituições ou órgãos nas parcialidade do julgador, uma vez que o De tal maneira, os crimes militares
investigações em curso, até certo ponto coloca a salvo de um comprometimento devem ser investigados de forma exclusiva
compreensível, dado que os jornalistas, em psicológico prévio decorrente do exercício por autoridades militares – Constituição
geral, são leigos em Direito. A esse respeito, da função de defesa ou de acusação. É ele, Federal, art. 144, § 4º, parte final, a contra-
porém, há relevante questão não-resolvida sem dúvida, o único sistema compatível rio sensu. Para tanto, instituiu-se o inquéri-
nem mesmo nos meios jurídicos, qual seja, com as garantias individuais previstas na to penal militar (Decreto-lei n. 1.002/1969,
o papel dos tribunais nas investigações cri- atual Constituição (art. 5º, incs. LIII, LIV, LV, Código de Processo Penal Militar). A Cons-
minais em desfavor de detentores de prer- LVI, LXI, LXII, LXV, LXVIII). tituição abriga, também, a possibilidade de
rogativa de foro. Colocada a questão sob O Supremo Tribunal Federal já re- investigações conduzidas pelo Poder
uma outra ótica: de quem seria a atribui- conheceu expressamente a inconstitucio- Legislativo, pelas chamadas “Comissões
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ção de investigar agentes políticos que de- nalidade de determinados dispositivos le- Parlamentares de Inquérito” (art. 58, § 3º).
vam ser julgados criminalmente perante gais por ofensa ao sistema acusatório. Houve previsão, ainda, da possibili-
tribunais? Dos próprios tribunais? Não se pode ignorar, porém, que a in- dade de o Poder Legislativo, federal e es-
vestigação pré-processual, tendo como tadual, instituir suas polícias (arts. 27, § 3º,
2 O SISTEMA PROCESSUAL PENAL destinatário o órgão acusador, também 51, inc. V, art. 52, inc. XIII). Embora nos
BRASILEIRO deve ser desempenhada por órgão di- pareça certo que as atividades de tais ór-
A doutrina brasileira distingue três ti- verso ao do julgamento, sob pena de gãos não abranjam a investigação de cri-
pos de sistema processual penal: o ofensa ao sistema acusatório. No Brasil, mes, frente à clara redação do art. 144, §
acusatório, o inquisitivo e o misto. tradicionalmente, a investigação pré-pro- 1º, inc. IV, e § 4º, foram criadas no âmbito
O processo acusatório se caracteriza cessual é atribuída às polícias judiciárias de cada uma das casas do Congresso
por ser público, possuir contraditório, (polícia civil e polícia federal). A preocu- Nacional as chamadas “polícias legislativas”
oportunizar a ampla defesa, e, primordial- pação em assegurar a imparcialidade do com atribuições para investigar crimes
mente, por distribuir as funções de acusar, juiz que inspirou o art. 252, inc. II, do cometidos em suas dependências (Reso-
defender e julgar a órgãos distintos. O siste- Código de Processo Penal, que prevê o lução n. 59/2003, do Senado Federal e
ma inquisitivo, por sua vez, é sigiloso, não- impedimento do juiz para atuar em pro- Resolução n. 18/2003, da Câmara dos
contraditório e reúne na mesma pessoa ou cessos em que tenha atuado anterior- Deputados). Em regime constitucional
órgão as funções de acusar, defender e mente, não só como defensor e órgão anterior, o Supremo Tribunal Federal con-
julgar. Já o sistema misto possui uma fase do Ministério Público (acusação), mas solidara o entendimento segundo o qual
inicial preliminar inquisitorial e uma segun- também como autoridade policial (inves- o poder de polícia da Câmara dos Depu-
da fase acusatória. tigação pré-processual). tados e do Senado Federal, em caso de
O nosso país adota o sistema Em contrapartida, o mesmo Código crime cometido nas dependências, com-
acusatório. As funções de acusar, defender previu a possibilidade de o juiz iniciar o preende, consoante o Regimento, a pri-
e julgar são distribuídas. A acusação é, em processo que tenha contravenções penais são em flagrante do acusado e a realiza-
regra, atribuição do Ministério Público. Ao como objeto (arts. 26 e 531). Os disposi- ção do inquérito (Súmula 397).
acusado pessoalmente e a seu defensor, tivos mencionados não foram recep - De maneira muito semelhante às dis-
necessariamente inscrito na Ordem dos cionados pela atual Constituição, como já posições regimentais do Poder Legislativo,
Advogados do Brasil, cabe a defesa. A fun- reconheceram nossos tribunais superio- o atual regimento interno do Supremo Tri-
ção de julgar cabe ao Poder Judiciário. res, em virtude de incompatibilidade com bunal Federal prevê, em seu art. 43, que,
Parte da doutrina entende ser mis- o art. 129, inc. I, da Constituição, que atri- ocorrendo infração à lei penal na sede
to o nosso sistema, por ter uma fase bui ao Ministério Público, privativamente, ou dependência do tribunal, o presidente
inquisitorial – a investigação pré-proces- a promoção da ação penal1. instaurará inquérito, se envolver autori-
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dade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribui- jurisdição do tribunal” (leia-se “detentoras da prerrogativa de foro”),
ção a outro ministro. E o § 1º do mesmo dispositivo, ao tratar de já que o parágrafo que costuma acompanhar o caput de tais
crimes cometidos nas dependências do tribunal por pessoa que dispositivos prevê a atribuição de membros da corte para a realiza-
não possui a prerrogativa de foro, dispõe que, nos demais casos, ção da investigação nos demais casos (isto é, quando não envolver
o presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisi- autoridades com prerrogativa de foro).
tar a instauração de inquérito à autoridade competente. O Su- Até mesmo o regimento interno do Tribunal Superior do Tra-
perior Tribunal de Justiça, os tribunais regionais federais e até balho, que não possui competência para julgar processos em ma-
mesmo o Tribunal Superior do Trabalho adotaram disposições téria penal, previu a instauração de inquérito por seu presidente
regimentais semelhantes. quando caracterizada infração a lei penal na sede ou nas depen-
Em nível infraconstitucional, há previsão na Lei Orgânica da dências do Tribunal (art. 36, inc. XIV)2,3.
Magistratura Nacional (Lei Complementar n. 35/1979, art. 33, pa- É indene de dúvidas o fato de que a atribuição do tribunal
rágrafo único) de que a investigação de crimes praticados por para investigar em tais casos não teria o condão de atrair sua
magistrados seja feita pelo tribunal competente para processá-lo. Já competência para o processo e julgamento do caso, por não haver
as leis que disciplinam as atividades do Ministério Público dispõem previsão constitucional para tanto.
que a investigação de infrações penais atribuídas aos procuradores Aceita a vigência de tais normas, haveria assim a possibili-
seja feita por membro do próprio Ministério Público (Lei Comple- dade de ministro do Supremo Tribunal Federal investigar crimes
mentar n. 75/1993, art. 18, parágrafo único, e Lei n. 8.625/1993, que só seriam julgados por aquela corte na via extraordinária. E
art. 41, parágrafo único). até mesmo de desembargador de tribunal regional federal in-
Até 2005, havia, também, a possibilidade de condução, por vestigar crimes cometidos em suas dependências cujo processo
magistrado, de inquérito para apuração de crime falimentar (arts. deva ser julgado por um juiz de direito (não sendo o caso de
103 e seguintes do Decreto-lei n. 7.661/1945). O inquérito judicial crime que afete interesse da União).
era presidido pelo mesmo magistrado que conduzia o processo Também teríamos de admitir um ministro de corte supe-
falimentar propriamente dito. rior representar um juiz de primeira instância pela prática de
ato sujeito a reserva jurisdicional, já que a sua atribuição para
3.1 INVESTIGAÇÕES CONDUZIDAS POR MAGISTRADOS investigar jamais poderia se converter em competência para
NO BRASIL julgar e decretar medidas cautelares.
Como vimos, há no País normas infraconstitucionais que dis- Imaginemos, assim, o recebimento de propina por funcioná-
8 põem sobre investigações pré-processuais conduzidas por magis- rio do quadro administrativo do Tribunal Superior do Trabalho, nas
trados nos casos de crimes cometidos por juízes e de crimes come- dependências deste. No curso da investigação, a ser conduzida por
tidos nas dependências das sedes de tribunais. um ministro nos termos do regimento interno, pode-se fazer ne-
As normas regimentais que tratam da investigação de cri- cessária a quebra do sigilo bancário e telefônico do autor do crime.
mes cometidos nas dependências de tribunais, a exemplo das Para tanto, o ministro do Tribunal Superior do Trabalho teria que
normas análogas relativas a crimes cometidos na sede do Poder oferecer representação perante juiz federal da Seção Judiciária do
Legislativo, objetivavam impedir que tais poderes tivessem suas Distrito Federal, competente para processar e julgar o funcionário?
funções – e reflexamente a sua própria independência – Ou estaria ele autorizado a afastar diretamente os sigilos?
embaraçadas por eventuais excessos da polícia judiciária prati- O mesmo raciocínio poderia ser aplicado ao Superior Tribunal de
cados no interesse do Poder Executivo, sobretudo quando o Justiça. Tendo a investigação sido conduzida por um membro da corte,
órgão policial detinha poderes para realização de atos que hoje, estaria ele impedido de atuar no caso, quando o processo chegasse
necessariamente, exigiriam autorização judicial. àquele tribunal pela via recursal? Como veremos, pelo menos nos casos
de competência originária do tribunal, o ministro que atua na fase pré-
Há um consenso de que o sistema acusatório é processual participa do julgamento do feito como relator.
o único apto a garantir a imparcialidade do Quanto às investigações presididas pelo Poder Judiciário para
apuração de crimes cometidos por seus próprios membros, há
julgador, uma vez que o coloca a salvo de um
algumas considerações importantes a fazer.
comprometimento psicológico prévio A condenação criminal de juízes ainda é algo extremamente
decorrente do exercício da função de raro em nosso país. Para muitos, o corporativismo e a atribuição
defesa ou de acusação. privativa do Judiciário para investigar seus membros seriam os
responsáveis pela impunidade em casos de crimes com envolvimento
Contudo, tais normas deferem a magistrados de tribunais das citadas autoridades. A criação do Conselho Nacional de Justiça
poderes para investigar crimes que, a rigor, não devem ser julgados por emenda constitucional foi um ajuste necessário para resguar-
originariamente por tribunais, como se infere do § 1º do art. 43 do dar as garantias da magistratura (EC n. 45/2004).
regimento interno do Supremo Tribunal Federal e dos dispositivos As disposições legais que concedem ao Poder Judiciário a
análogos dos regimentos dos demais tribunais citados. atribuição privativa de investigar seus membros objetivam concre-
Tais normas não se referem a inquérito administrativo que tizar o princípio da independência dos poderes, de forma a impe-
objetiva apurar transgressão disciplinar de servidor do órgão. Os dir, por exemplo, que o Poder Executivo utilize inquéritos policiais
dispositivos regimentais dos tribunais mencionam claramente a in- para pressionar magistrados.
vestigação de infração à lei penal. Tampouco pode-se falar que tais Não se pode deixar de mencionar o inquérito judicial para
normas regulamentam a investigação penal de “pessoas sujeitas à apuração de crime falimentar, recentemente extinto do nosso
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ordenamento. O referido inquérito era uma NALIDADE. LEI 9034/95. LEI COMPLEMEN- interesse para a causa (CPC, art. 442,
excepcionalidade. Procurava-se justificar sua TAR 105/01. SUPERVENIENTE. HIERARQUIA parágrafo único). Já no caso em exame,
existência primeiramente porque a caracte- SUPERIOR. REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO as partes têm acesso somente ao auto de
rização de parte dos crimes falimentares es- PREJUDICADA, EM PARTE. “JUIZ DE INS- diligência, já formado sem sua interfe-
tava a depender da decisão judicial que de- TRUÇÃO”. REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS rência. E mais à frente, “em verdade, a
cretava a falência (uma parte da doutrina PESSOALMENTE. COMPETÊNCIA PARA IN- legislação atribuiu ao juiz as funções de
entendia que a decisão judicial era condição VESTIGAR. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO investigador e inquisidor, atribuições es-
objetiva de punibilidade, outra parte enten- PROCESSO LEGAL. IMPARCIALIDADE DO sas conferidas ao Ministério Público e às
dia que se tratava de elementar do tipo). MAGISTRADO. OFENSA. FUNÇÕES DE IN- polícias federal e civil (CF, arts. 129, I e
Segundo, porque os dados necessários à VESTIGAR E INQUIRIR. MITIGAÇÃO DAS VIII e § 2° e 144, § 1° , I e IV e § 4°). Tal
formação da convicção do Ministério Públi- ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO E figura revela-se incompatível com o siste-
co acerca do crime poderiam ser obtidos a DAS POLÍCIAS FEDERAL E CIVIL. 1. Lei ma acusatório atualmente em vigor, que
partir das peças ou informações contidas 9034/95. Superveniência da Lei Comple- veda atuação de ofício do órgão julgador.
nos autos do próprio processo falimentar. mentar 105/01. Revogação da disciplina Na sistemática instituída pela Lei n.
Mas o dado mais importante para nós, contida na legislação antecedente em rela- 9.034/1995, o juiz responsável pelas diligên-
na sistemática da apuração judicial de cri- ção aos sigilos bancário e financeiro na cias investigatórias seria o mesmo compe-
mes falimentares do Decreto-lei n. 7.661/ apuração das ações praticadas por orga- tente para julgamento do processo, o que
1945, era que a competência do magistra- nizações criminosas. Ação prejudicada, não ocorre, em geral, nos países europeus
do do processo falimentar restringia-se à quanto aos procedimentos que incidem que ainda adotam o juízo de instrução.
investigação do crime e ao recebimento da sobre o acesso a dados, documentos e in- Ainda sob a alegação de incompa-
denúncia. Após, os autos deveriam ser re- formações bancárias e financeiras. 2. Bus- tibilidade com o sistema acusatório, o
metidos ao juízo criminal. De tal maneira, o ca e apreensão de documentos relacionados Supremo Tribunal Federal entendeu não
magistrado que investigava não julgava, ao pedido de quebra de sigilo realizadas ser possível ao juiz determinar de ofício
aproximando a referida investigação daque- pessoalmente pelo magistrado. Comprome- novas diligências de investigação no in-
las conduzidas pelos “juízes de instrução” timento do princípio da imparcialidade e quérito cujo arquivamento é requerido
em certos países da Europa. conseqüente violação ao devido processo pelo Ministério Público (HC n. 82507/
A Lei n. 11.101/05 – Nova Lei de Falên- legal. 3. Funções de investigador e inquisidor. SE, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19/
cias – extinguiu o inquérito judicial falimentar, Atribuições conferidas ao Ministério Público 12/2002, p. 92). 9
deixando tais crimes de ser investigados por e às Polícias Federal e Civil (CF, art. 129, I e Todavia, até o momento, aquele tribu-
magistrados do juízo falimentar. Agora, con- VIII e § 2º; e 144, § 1º, I e IV, e § 4º). A nal não pronunciou a inconstitucionalidade
forme a regra geral, cabe à polícia judiciária a realização de inquérito é função que a Cons- das normas legais e regimentais que defe-
investigação do crime falimentar, devendo o tituição reserva à polícia. Precedentes. Ação rem a magistrados a atribuição para inves-
Ministério Público oferecer a denúncia dire- julgada procedente, em parte5. tigação de crimes.
tamente ao juízo criminal.
No Direito europeu continental, é mui- A condenação criminal de juízes ainda é algo extremamente
to conhecida a figura do juiz de instrução. raro em nosso país. Para muitos, o corporativismo e a atribuição
Trata-se de magistrado que conduz investi-
privativa do Judiciário para investigar seus membros seriam
gações criminais auxiliado pela polícia judi-
ciária e pelo Ministério Público. Após a con- os responsáveis pela impunidade em casos de crimes com
clusão da investigação, o caso é enviado a envolvimento das citadas autoridades.
outro juízo para julgamento. Naquele conti-
nente, o papel do juiz de instrução tem sido Em seu voto, o Ministro Maurício 4 PRERROGATIVA DE FORO
cada vez mais combatido. Na França, recen- Corrêa discorreu sobre a figura do juiz de A Constituição Federal de 1988 deter-
temente a figura do juiz de instrução se tor- instrução e o sistema acusatório: mina que uma série de autoridades deva
nou o pivô de uma grande discussão nacio- 10. O dispositivo em questão parece ser processada e julgada criminalmente
nal iniciada após a conclusão do rumoroso ter criado a figura de juiz de instrução, perante tribunais, excepcionando a regra
caso Outreau4 e cujos efeitos na legislação que nunca existiu na legislação brasileira, geral segundo a qual o processo deve-se
daquele país ainda estão por vir. tendo-se notícia de que em alguns países iniciar perante juízes singulares (primeira
O Supremo Tribunal Federal já se de- da Europa esse modelo obsoleto tende a instância).
bruçou sobre a constitucionalidade de in- extinguir-se. Não se trata, como susten- Essa regra é comumente designada
vestigações realizadas diretamente por tam as informações do Ministério da Jus- de prerrogativa de foro, foro privilegia-
magistrados. Na ADI 1570, Rel. Min. Maurí- tiça submetidas ao advogado-geral da do por prerrogativa de função ou foro
cio Correa, julgamento em 12/2/2004, a União (fl.104), de simples participação privativo. A regra teria sido incluída no
Corte Constitucional reconheceu a do juiz na coleta de prova, tal como ocor- texto constitucional em virtude das im-
inconstitucionalidade das disposições con- re na inspeção judicial (CPC, arts. 440 e plicações que processos dessa natureza
tidas na Lei n. 9.034/1995 que atribuem 443). Nessa última hipótese, as partes possam ter. Assim, a prerrogativa de foro
funções investigatórias aos juízes: têm direito de assistir à inspeção, pres- determina que certas autoridades públi-
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIO- tando esclarecimentos que reputem de cas só podem ser processadas e julgadas

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perante órgãos colegiados (tribunais), geralmente compostos daquele Tribunal em habeas corpus impetrado por deputado federal
de magistrados mais experientes. Não desconsideremos, entre- contra ato de delegado de Polícia Federal da cidade de Maringá/PR que
tanto, a opinião de parcela da população brasileira para quem instaurara inquérito policial para investigá-lo:
o “privilégio” em questão contribuiria para retardar os proces- DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. INQUÉRI-
sos criminais e impedir a efetiva punição de crimes cometidos TO POLICIAL CONTRA DEPUTADO FEDERAL, INSTAURADO POR
por agentes públicos. DELEGADO DE POLÍCIA. HABEAS CORPUS CONTRA ESSE ATO, COM
A nossa atual Constituição Federal concede o foro por prerro- ALEGAÇÃO DE USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO STF. E DE AMEA-
gativa de função aos chefes do Poder Executivo, membros do ÇA DE CONDUÇÃO COERCITIVA PARA O INTERROGATÓRIO. COM-
Poder Legislativo federal e estadual, do Poder Judiciário, do Minis- PETÊNCIA ORIGINÁRIA DO STF PARA O JULGAMENTO DO WRIT.
tério Público, dos Tribunais de Contas, bem como a ministros de INDEFERIMENTO DESTE. 1. Para instauração de inquérito policial
Estado, comandantes das Forças Armadas e chefes de missão diplo- contra parlamentar, não precisa a autoridade policial obter prévia
mática de caráter permanente. autorização da Câmara dos Deputados, nem do Supremo Tribunal
Além dessa extensa relação de autoridades, o Supremo Tribu- Federal. Precisa, isto sim, submeter o inquérito, no prazo legal, ao
nal Federal atualmente reconhece a possibilidade de criação de Supremo Tribunal Federal, pois é perante este que eventual ação
prerrogativa de foro pelas Constituições Estaduais (ADI 2587/GO, penal nele embasada poderá ser processada e julgada. E, no caso, foi
rel. Min. Maurício Corrêa, Informativo 372)6. o que fez, após certas providências referidas nas informações. Tanto
que os autos do inquérito já se encontram em tramitação perante
Não há nenhuma norma na Constituição esta Corte, com vista à procuradoria-geral da República, para reque-
brasileira, ou mesmo no sistema rer o que lhe parecer de direito. 2. Por outro lado, o parlamentar pode
ser convidado a comparecer para o interrogatório no inquérito poli-
infraconstitucional, que disponha acerca da cial (podendo ajustar, com a autoridade, dia, local e hora, para tal fim
atribuição para investigar pessoas que – art. 221 do Código de Processo Penal), mas, se não comparecer,
possuem prerrogativa de foro. sua atitude é de ser interpretada como preferindo calar-se. Obvia-
mente, nesse caso, não pode ser conduzido coercitivamente por or-
Quanto à atribuição para conduzir a investigação dessas auto- dem da autoridade policial, o que, na hipótese, até foi reconhecido
ridades – que precede o processo e o julgamento – a Constituição por esta, quando, nas informações, expressamente descartou essa
nada dispôs. possibilidade. 3. Sendo assim, nem mesmo está demonstrada qual-
10 Não há nenhuma norma na Constituição brasileira, ou mes- quer ameaça, a esse respeito, de sorte que, no ponto, nem pode a
mo no sistema infraconstitucional, que disponha acerca da atribui- impetração ser considerada como preventiva. 4. Enfim, não está ca-
ção para investigar pessoas que possuem prerrogativa de foro. racterizado constrangimento ilegal contra o paciente, por parte da
autoridade apontada como coatora. 5. Habeas Corpus indeferido,
4.1 A CASUÍSTICA NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ficando, cassada a medida liminar, pois o inquérito policial, se houver
Passemos, pois, à análise de casos concretos de inquéritos em necessidade de novas diligências, deve prosseguir na mesma delega-
tramitação perante o Supremo Tribunal Federal, para apurar notí- cia da Polícia Federal em Maringá-PR, sob controle jurisdicional direto
cias de crimes atribuídos a detentores de prerrogativa de foro. No do Supremo Tribunal Federal 7.
Inquérito n. 1.504/DF (DJ 28/06/99, p. 25), em trâmite perante A Segunda Turma adotou o mesmo entendimento, fazen-
aquela Corte, o Min. Celso de Mello, em despacho datado de 17/6/ do menção ao sistema acusatório:
1999, reconheceu a possibilidade de inquérito policial e investiga- I. STF: competência originária: habeas corpus contra decisão
ção pela polícia judiciária em desfavor de senador federal, confor- individual de ministro de tribunal superior, não obstante susceptível
me se lê a seguir (trechos): de agravo. II. Foro por prerrogativa de função: inquérito policial. 1.
Imunidade parlamentar em sentido formal (CF, art. 53, § 1º, in A competência penal originária por prerrogativa não desloca por si
fine). Garantia inaplicável ao inquérito policial. Precedente (STF) e só para o tribunal respectivo as funções de polícia judiciária. 2. A
doutrina. O membro do Congresso Nacional - deputado federal ou remessa do inquérito policial em curso ao tribunal competente para
senador da República - pode ser submetido à investigação penal, a eventual ação penal e sua imediata distribuição a um relator não
mediante instauração de inquérito policial perante o Supremo Tribu- faz deste “autoridade investigadora”, mas apenas lhe comete as
nal Federal, independentemente de prévia licença da respectiva Casa funções, jurisdicionais ou não, ordinariamente conferidas ao juiz de
legislativa. A garantia constitucional da imunidade parlamentar em primeiro grau, na fase pré-processual das investigações. III. Ministé-
sentido formal somente tem incidência em juízo, depois de oferecida a rio Público: iniciativa privativa da ação penal, da qual decorrem (1)
acusação penal... Com efeito, a garantia da imunidade parlamentar a irrecusabilidade do pedido de arquivamento de inquérito policial
em sentido formal não impede a instauração de inquérito policial fundado na falta de base empírica para a denúncia, quando for-
contra membro do Poder Legislativo. Desse modo, o parlamentar mulado pelo procurador-geral ou por subprocurador-geral a quem
independentemente de qualquer licença congressional pode ser sub- delegada, nos termos da lei, a atuação no caso e também (2) por
metido a atos de investigação criminal promovidos pela Polícia Judi- imperativo do princípio acusatório, a impossibilidade de o juiz deter-
ciária, desde que tais medidas pré-processuais de persecução penal minar de ofício novas diligências de investigação no inquérito cujo
sejam adotadas no âmbito de procedimento investigatório em curso arquivamento é requerido8.
perante órgão judiciário competente: o Supremo Tribunal Federal, no E posteriormente:
caso de qualquer dos investigados ser congressista (CF, art. 102, I, b)... Competência. Parlamentar. Senador. Inquérito Policial. Im-
A questão foi mais claramente analisada pela Primeira Turma putação de crime por indiciado. Intimação para comparecer
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como testemunha. Convocação com ca- contra membros do Congresso Nacional, - Consoante recente entendimento
ráter de ato de investigação. Inquérito podem e devem, sim, ser requeridas perante esposado pelo STF, não é admissível o
já remetido a juízo. Competência do STF. esta Corte, que é o juiz natural dos parla- oferecimento de notícia-crime à autori-
Compete ao Supremo Tribunal Federal mentares federais, como é o caso da quebra dade judicial visando à instauração de
supervisionar inquérito policial em que do sigilo fiscal. Mas o inquérito tramita pe- inquérito policial.
senador tenha sido intimado para es- rante aqueles órgãos policiais e não perante - O art. 5º, II, do CPP confere ao Mi-
clarecer imputação de crime que lhe fez o Supremo Tribunal Federal. Não parece nistério Público o poder de requisitar dire-
indiciado9. razoável admitir que um ministro do Supre- tamente ao delegado de polícia a instau-
Mais recentemente, a Ministra Ellen mo Tribunal Federal conduza, perante a ração de inquérito policial com o fim de
Gracie recusou pedido do procurador-ge- Corte, um inquérito policial que poderá se apurar supostos delitos de ação penal
ral da República de instauração de inquéri- transformar em ação penal, de sua relatoria. pública, ainda que se trate de crime atri-
to a ser conduzido diretamente pelo Su- Não há confundir investigação, de natureza buído à autoridade pública com foro pri-
premo Tribunal Federal: penal, quando envolvido um parlamentar, vilegiado por prerrogativa de função.
1. O Ministério Público Federal promo- com aquela que envolve um membro do - Não existe diploma legal que
veu diligências junto à Receita Federal, à Poder Judiciário. No caso deste último, ha- condicione a expedição do ofício requisi-
controladoria-geral da União e autoridades vendo indícios da prática de crime, os autos tório pelo Ministério Público à prévia auto-
americanas (f. 4), e obteve documentação serão remetidos ao Tribunal ou órgão espe- rização do Tribunal competente para jul-
(f. 07/21) que noticia ter um deputado fe- cial competente, a fim de que se prossiga a gar a autoridade a ser investigada.
deral remetido ao exterior, através de Con- investigação. É o que determina o art. 33, - É vedado, no Direito brasileiro, o
tas CCC-5, no período de 1999/2002, a vul- parágrafo único da LOMAN. Mas quando anonimato (art. 5º, IV, da CF/88). Agravo
tosa importância de cento e noventa e sete se trata de parlamentar federal, a investiga- regimental improvido.
milhões, novecentos e um mil, duzentos e ção prossegue perante a autoridade policial Em sentido contrário, porém, o Minis-
cinqüenta e um reais e oitenta centavos. O federal. Apenas a ação penal é que tramita tro Marco Aurélio atendeu pedido similar
expressivo numerário, segundo o Ministério no Supremo Tribunal Federal. Disso resulta do procurador-geral da República, instau-
Público federal, precisa ser investigado no que não pode ser atendido o pedido de ins- rando inquérito para apurar suposto cri-
tocante à sua origem e regularidade. Princi- tauração de inquérito policial originário pe- me cometido pelo presidente do Banco do
palmente é preciso saber se a vultosa impor- rante esta Corte. E, por via de conseqüência, Central (Inquérito n. 2.206/DF), e realizan-
tância foi declarada à Receita Federal nas a solicitação de indiciamento do parlamen- do diretamente diligências investigatórias 11
declarações de imposto de renda. A docu- tar, ato privativo da autoridade policial. Res- requeridas pela Procuradoria-Geral da Re-
mentação obtida pelo Ministério Público fe- ta a quebra do sigilo fiscal. Mas essa quebra pública (Despacho de 7/8/2005, DJ de 16/
deral deu origem a procedimento adminis- deverá ser requerida no âmbito do inquérito 08/2005, p. 8). O curioso neste caso é que,
trativo que foi autuado na procuradoria- policial que o Ministério Público federal pre- logo após o surgimento das primeiras notí-
geral da República. E com base nesse proce- tende seja instaurado. Nesse inquérito, disci- cias de crime supostamente praticado pela
dimento, o procurador-geral da República plinado no CPP, poderá o parlamentar justi- citada autoridade, foi editada a Medida Pro-
requereu, na petição de f. 02/03, o seguinte: ficar a regularidade da remessa do numerá- visória n. 207, de 13/8/2004, que lhe deu
“Ante o exposto, requer o Ministério Público a rio, ou até mesmo impugnar a idoneidade status de ministro e lhe permitiu ter o Su-
autuação deste procedimento como inqué- da documentação apresentada. De qual- premo Tribunal Federal como juízo natural
rito penal originário, com o indiciamento do quer sorte, não há, ainda, qualquer compro- nas causas penais. A medida provisória –
Deputado Federal Ronaldo Cezar Coelho, vação de que o parlamentar tenha se recu- que ficou conhecida na época como “blin-
pelo cometimento, em tese, de crime de so- sado a apresentar suas declarações do im- dagem” – foi objeto de ação direta de
negação fiscal. 6. Solicita, ainda, que seja re- posto de renda. 3. Diante do exposto, deter- inconstitucionalidade julgada improceden-
alizada a quebra do sigilo fiscal do ora mino sejam os autos devolvidos à procura- te (ADI n. 3.289-5/DF).
indiciado, referente aos anos-base de 1999 a doria-geral da República para as providên- O referido inquérito tramita tendo
2002.” (f. 3). 2. Entre as funções institucionais cias que entender cabíveis. todos os despachos do relator publicados,
que a Constituição Federal outorgou ao Mi-
nistério Público, está a de requisitar a instau- A ausência de normas constitucionais e infraconstitucionais
ração de inquérito policial (CF, art. 129, VIII). (...) acerca da investigação de autoridades que possuam
Essa requisição independe de prévia autori-
prerrogativa de foro nos leva a concluir que ela deva
zação ou permissão jurisdicional. Basta o
Ministério Público federal requisitar, direta- ser conduzida segundo a regra geral, ou seja, pelas
mente, aos órgãos policiais competentes. Mas autoridades policiais.
não a esta Corte Suprema. Por ela podem
tramitar, entre outras demandas, ação pe- O Superior Tribunal de Justiça acom- pela internet inclusive12, tal qual o processo
nal contra os membros da Câmara dos De- panhou o Supremo Tribunal Federal: judicial, não assegurando o sigilo e
putados e Senado. Mas não inquéritos poli- PROCESSUAL PENAL - NOTÍCIA CRIME tampouco preservando a imagem de in-
ciais. Esses tramitam perante os órgãos da - INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL - vestigados, conforme a sistemática do Có-
Polícia Federal. Eventuais diligências, INADMISSIBILIDADE - CPP, ART. 5º, II - PRE- digo de Processo Penal, além de ser objeto
requeridas no contexto de uma investigação CEDENTE DO STF (AGPET 2805-DF). de incidentes e atos processuais não-exis-
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tentes nos inquéritos policiais, como agravo regimental, votos e Câmara dos Deputados, já mencionadas.
pedidos de vista dos demais ministros – tornando tais investigações Parece-nos, pois, que todas as normas infraconstitucionais
mais formais e menos céleres. citadas que atribuem poderes investigatórios a magistrados devam
ser reinterpretadas sob a luz da nova Constituição. As hipóteses
5 CONCLUSÃO ainda existentes de investigações judiciais não resguardam sequer
Parte da doutrina, pouco habituada a investigações dessa na- as garantias mínimas que o sistema dos juizados de instrução pos-
tureza, tem defendido que a investigação pré-processual de pesso- suem na Europa, entre elas, a de que no julgamento não haja
as detentoras de foro privativo por prerrogativa de função deva ser participação da autoridade que realizou a investigação.
conduzida pelos magistrados que oficiem perante os tribunais com- Ademais, eventuais receios da magistratura existentes quando
petentes para processá-los criminalmente. da edição da Lei Complementar n. 35/1979, bem como da origem
A ausência de normas constitucionais e infraconstitucionais das normas regimentais acerca da atribuição para investigação de
(exceção feita à Lei Orgânica da Magistratura Nacional e às Leis crimes cometidos nas dependências de tribunais, não se justificam
Orgânicas do Ministério Público) acerca da investigação de autori- diante das inovações da Constituição atual. Com efeito, não é mais
dades que possuam prerrogativa de foro nos leva a concluir que possível à polícia judiciária a prática, sem ordem judicial, de um
ela deva ser conduzida segundo a regra geral, ou seja, pelas autori- grande número de atos que antes a dispensavam: busca domiciliar,
dades policiais. Em tais casos, o inquérito deve ser remetido no quebra de sigilo bancário, fiscal, telefônico, prisão para averiguação,
prazo legal ao tribunal competente para julgar o investigado, ado- etc. De tal maneira, a simples garantia de não-indiciamento em
tando-se o mesmo procedimento nas representações para prática inquérito policial e a sua necessária “supervisão” judicial e ministe-
de atos sujeitos a reserva jurisdicional (medidas cautelares, quebra rial são suficientes para legitimá-lo como instrumento de investiga-
de sigilo etc.). ção pré-processual de quaisquer crimes.
Também não há de se falar em autorização do tribunal para a Nossos tribunais não são vocacionados para investigar,
instauração do inquérito, pois não compete a ele a valoração da não por despreparo ou desinteresse dos nossos juízes. Ne-
notícia do crime. nhum deles possui estrutura e pessoal especializado para a
E nem há de se invocar a aplicação analógica da Lei Orgânica realização de investigações.
da Magistratura Nacional, que dispõe que a investigação criminal O livro Juízes no banco dos réus, escrito pelo jornalista
de magistrados deva ser feita pelo tribunal competente para o Frederico Vasconcelos, relata mais de uma década de investigações
processo. A referida norma legal objetiva apenas assegurar a inde- de crimes atribuídos a magistrados federais de São Paulo, incluindo
12 pendência do Poder Judiciário, de forma a evitar que o Poder a mais famosa delas, a Operação Anaconda. Como se depreende
Executivo, por meio do inquérito policial, utilize investigações crimi- daquela obra, algumas irregularidades cometidas por magistrados
nais para pressionar magistrados. Prova disso é que os membros federais de São Paulo já eram de conhecimento do Tribunal Regio-
do Ministério Público, detentores de garantias semelhantes às da nal Federal da 3ª Região havia mais de uma década. O mais conhe-
magistratura, só podem ser investigados por sua própria instituição, cido dos magistrados presos no curso da operação já havia sido
excluindo-se, portanto, não apenas o Poder Executivo (polícia afastado de suas funções por quatro anos, na década de 1990, em
judiciária), como o próprio Poder Judiciário (tribunal) com com- virtude das investigações realizadas pelo tribunal, tendo retornado
petência para processá-los e julgá-los. ao exercício da magistratura por decisão do Superior Tribunal de
Justiça, pela falta de conclusão das investigações.
A investigação criminal pré-processual exige um Somente anos depois, já no curso da Operação Anaconda,
dinamismo e informalismo para os quais nossas foi possível reunir provas contra o referido magistrado e outros de
cortes não estão preparadas. (...) a investigação seus colegas. A história da Operação Anaconda retrata muito bem
as dificuldades existentes em investigações conduzidas por tribu-
criminal exige agentes preparados para sair nas
nais. Primeiramente por constituir uma exceção na realidade brasi-
ruas, entrevistar pessoas, colher informações nos leira. Segundo, porque se demonstrou que, por falta de regulamen-
mais diversos bancos de dados, realizar vigilância tação, há diversas dúvidas acerca do procedimento a ser adotado
e filmagens, atos estes que, muitas vezes, não nas investigações em curso nos tribunais (por exemplo, o papel da
são registrados nos autos (...) polícia judiciária e do Ministério Público na fase pré-processual).
Terceiro, porque talvez parte do êxito das investigações seja devido
Tampouco há de se invocar os regimentos internos dos nos- ao fato de que ela se iniciou nos moldes tradicionais, ou seja, pela
sos tribunais. Com efeito, as normas regimentais mencionadas, polícia judiciária, sob supervisão de juiz federal de primeira instân-
embora se refiram a autoridades sujeitas à jurisdição daqueles tri- cia e acompanhamento pelo Ministério Público, tendo como alvo
bunais, fazem referência exclusivamente aos crimes cometidos nas inicial os integrantes da quadrilha que não possuíam prerrogativa
dependências dos tribunais. É o que se denota do parágrafo que de foro. A remessa ao TRF da 3ª Região só se deu quando já havia
acompanha tais normas, ao dispor que, nos demais casos – isto é, indícios robustos de crimes cometidos por magistrados.
nos casos de crimes cometidos em suas dependências por pessoas A investigação criminal pré-processual exige um dinamismo e
outras que não as autoridades mencionadas e portanto, não-sujei- informalismo para os quais nossas cortes não estão preparadas. Com
tas ao processo perante o Tribunal –, o inquérito poderá ser condu- efeito, além das medidas tomadas em gabinetes, a investigação crimi-
zido por magistrado ou pela autoridade competente. As disposi- nal exige agentes preparados para sair nas ruas, entrevistar pessoas,
ções regimentais buscaram, igualmente, preservar a independência colher informações nos mais diversos bancos de dados, realizar vigi-
do Poder Judiciário, tal qual as resoluções do Senado Federal e da lância e filmagens, atos estes que, muitas vezes, não são registrados
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nos autos e cuja realização não pode sim- de pedofilia composta, supostamente, por
mais de quinze moradores da região, incluin-
plesmente ser determinada ao órgão policial do um padre. Durante as investigações,
REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES
mediante cotas ou despachos do juiz, por conduzidas por um juiz de instrução, o “gru- CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São
Paulo: Saraiva, 2005.
serem realizadas, às vezes, de forma imedia- po” foi encarcerado, assim permanecendo
por alguns anos, no curso dos quais um dos GOMES, Rodrigo Carneiro. Atribuição policial -
ta após a constatação de sua necessidade. tribunais não devem conduzir investigação cri-
investigados morreu. Em 2005, a grande
Ao permitir a realização de investiga- maioria dos acusados foi inocentada. Diante minal. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, jul.
ções criminais por seus ministros – justa- da repercussão do caso, o Presidente Jacques 2006. Disponível em : <http://
Chirac desculpou-se em nome da República conjur.estadao.com.br/static/text/46577,1>. Aces-
mente em casos envolvendo grandes au- so em: 23. jul. 06.
por meio de uma carta endereçada aos acu-
toridades dos Poderes Executivo e sados. Pressionado pelos advogados de de- JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Pe-
Legislativo – o Supremo Tribunal Federal fesa, o Ministro da Justiça os recebeu pes- nal. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
soalmente e fez um pedido público de des- LIMA, Marcellus Polastri. Curso de processo
coloca em xeque o sistema acusatório, penal. V. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
culpas. O caso passou a ser considerado um
único apto a resguardar a imparcialidade MARQUES, José Frederico. Elementos de Di-
dos maiores erros judiciários da história da
do juiz. Uma eventual mudança no enten- França e ensejou a instauração de uma co- reito Processual Penal. Campinas: Millennium,
missão parlamentar de inquérito para estu- 2003. v. 1.
dimento da Corte Suprema, justamente MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São
quando se noticia a intenção de ministros dar as falhas do sistema penal francês. O ato
mais aguardado da Comissão foi a audiência Paulo: Atlas, 2004.
que presidiram os dois mais importantes pública do juiz de instrução do caso, Fabrice RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de
tribunais do País de abandonar a magis- Burgaud, na presença dos acusados. Até fe- Janeiro: Lumen Juris, 2005.
vereiro de 2006, a Comissão não havia en- TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal. São
tratura para concorrer a cargos eletivos, Paulo: Saraiva, 1988.
cerrado seus trabalhos.
mostrar-se-ia extremamente inoportuna, 5 Comentando o referido julgado, OLIVEIRA, TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo
além de abrir espaço para questiona- Eugênio Pacelli, de, em Curso de Processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1.
Penal. 5. ed. rev. atual. ampl. Belo Horizonte: VASCONCELOS, Frederico. Juízes no banco dos
mentos acerca da imparcialidade na con- réus. São Paulo: Publifolha, 2005.
Del. Rey, 2005, p. 57, chega mesmo a pug-
dução de tais investigações. nar para que o Supremo Tribunal Federal
Tais investigações nem mesmo po- reconheça a inconstitucionalidade dos dispo- Artigo recebido em 28/07/2006.
dem ser comparadas às atividades do juiz sitivos da Lei Orgânica da Magistratura Naci-
de instrução na Europa, considerando que onal que conferem privatividade à própria
magistratura para a investigação de crimes
naquele continente o julgamento não é imputados a juízes. ABSTRACT
realizado pelo próprio magistrado 6 Nesse julgado, o STF mudou o entendimento The author discusses the duty to
investigante, mas por outro juízo. No pre- até então consagrado – inclusive quando do 13
julgamento da cautelar no mesmo processo –
investigate crimes committed by persons
sente caso, nenhuma disposição legal ou de que as constituições estaduais deveriam entitled to special venue, since there are no
regimental há que exclua o ministro relator observar necessariamente o modelo federal rules set forth about this matter, either in
(investigante) do julgamento, muito pelo na instituição de foros privativos, restringindo
the Brazilian Constitution or in any
a prerrogativa a cargos como secretários de
contrário (Lei n. 8.038/90). Estado e vereadores. Segundo a nova orienta- ordinary legislation.
ção, são constitucionais os dispositivos de Cons- He states to be common ground
tituição estadual que instituam o foro por prer- between part of the doctrine and
rogativa de função a procuradores do Estado,
REFERÊNCIAS jurisprudence that such investigations must
da Assembléia Legislativa e defensores públi-
1 BRASIL. RHC 68.314/DF, rel. Min. Celso de
cos, embora os cargos análogos na órbita fe- be carried out by courts of law with
Mello, DJU de 15/3/1991, p. 2648; STJ, RHC deral não gozem da mesma prerrogativa. O
2.363-0/DF, rel. Min. Jesus Costa Lima, RSTJ, jurisdiction to bring and rule lawsuits
julgado, porém, entendeu ser inconstitucional
7/245. a previsão de prerrogativa de foro para dele- against authorities. A different line of
2 O art. 44 do Regimento Interno do Tribunal reasoning considers, however, that such
gados de polícia.
Superior do Trabalho quase repete o art. 43
7 BRASIL. STF. HC 80592/PR, Min. Sydney investigations should be performed by the
do Regimento Interno do Supremo Tribunal Sanches, julgado em 3/4/2001, Primeira Tur-
Federal. Deixa, porém, de citar em seu caput ma, DJ 22/6/2001, p. 23.
judiciary police, by means of an inquest to
o trecho que menciona que a condução do 8 BRASIL. STF. HC 82507/SE, rel. Min. Sepúlveda be filed with the competent court.
inquérito por ministro da corte se dará se
envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua
Pertence, DJ 19/12/2002, p. 92. He examines cases ruled by the
9 BRASIL. STF. Rcl 2349/TO, rel. Min. Carlos Supreme Court and discourses on
jurisdição, já que, a rigor, nenhuma autoridade Velloso, rel. p/acórdão Min. Cezar Peluso,
é processada originariamente naquele tribu- julg. 10/03/2004, DJ 05/08/2005, p. 007, investigations accomplished by magistrates
nal. Curiosamente, o regimento do tribunal Ement. Vol. 2199-01 p. 0074. in Brazil, in the light of the accusatory system.
trabalhista repetiu o parágrafo único do art. 43
10 BRASIL. STF. Pet 3248/DF, Rel. Min. Ellen Gracie,
do STF que trata justamente dos casos de
Julg. 28/10/2004, DJ 23/11/2004, p. 41.
crimes cometidos nas dependências do tribu- KEYWORDS
nal por pessoas não detentoras da prerrogati- 11 BRASIL. AgRg na NC 317/PE, Agravo Regi-
va de foro! mental na notícia-crime 2003/0071820-2, rel. Criminal Procedural Law; Constitutional
3 De forma diversa, e com maior rigor técnico, Min. Francisco Peçanha Martins, Corte Espe- Law; police inquest; criminal investigation;
o Tribunal Regional do Trabalho – 2º Região, cial, DJ 23/5/2005, p.118.
judiciary police; special venue; duty-related
previu em seu regimento a requisição da 12 O sítio da internet do Supremo Tribunal Fe-
autoridade policial para instauração de inqué- deral obviamente não fornece os dados fis-
privilege; lower court judge; accusatory
rito ou lavratura do auto de prisão em fla- cais e bancários do investigado (já denomi- system; Supplementary Law n. 35/79.
grante em casos de crimes cometidos em nado ali como “indiciado”), mas pode-se ler
suas dependências, sem prejuízo da instau- o nome de um número razoável de institui-
ração de procedimento disciplinar nas hipó- ções financeiras a quem foram requisitadas Eduardo Pereira da Silva é delegado da
teses cabíveis (art. 72). informações, além de se mencionar peti-
4 Em 2000, na região de Outreau, França, ini- ções do investigado e os crimes que estão
polícia Federal em Brasília e chefe do serviço
ciou-se uma investigação acerca de uma rede sendo investigados. de apoio disciplinar da corregedoria-geral.
Revista CEJ, Brasília, n. 36, p. 6-13, jan./mar. 2007

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