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Em seu capítulo sobre o aparelho formal da enunciação, Benveniste (1989: 81-90)

afirma haver uma relação direta entre gramática formal, semântica e pragmática e o momento
da enunciação, pois considera que a construção da língua se dá a partir do momento de sua
realização pelo falante. Distingue, ainda, três instâncias para a enunciação: uma seria a
realização fonética, a segunda, a transformação dos sons emitidos em palavras dotadas de
sentido e, a terceira, a própria situação de produção do discurso como ato individual e
colaborativo de que participam os falantes.

É sobre essa terceira instância que se tratará neste ponto, mais especificamente
sobre a dêixis, termo emprestado da palavra grega que significa apontar ou indicar e, como
afirma Levinson (2007: 67), diz respeito “à codificação de muitos aspectos diferentes das
circunstâncias que cercam a enunciação, dentro do próprio enunciado. As enunciações das
línguas naturais, portanto, estão diretamente ‘ancoradas’ em aspectos do contexto”.

Segundo o prof. Fiorin (2014: 167), “certos enunciados não têm por finalidade a
designação de um objeto ou um evento no mundo, mas referem-se a si mesmos, ou seja, não
têm uma função referencial, mas autorreferencial”, o que significa que existem determinados
fatos linguísticos que só são compreendidos quando se analisa o momento da enunciação.
Dela derivam, por exemplo, os pronomes (para se referir às pessoas do discurso), os tempos
verbais (sempre tomados a partir do tempo presente concomitante à enunciação), o espaço
(onde se situa o falante no tempo da enunciação) etc.

Essa (auto)referência também é explicitada por Benveniste (1989: 84):

A língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação


com o mundo. A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da
língua é, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o
outro, a possibilidade de correferir identicamente, no consenso pragmático
que faz de cada locutor um colocutor. A referência é parte integrante da
enunciação.

Nesse sentido, Levinson (2007: 74-116) descreve cinco categorias dêiticas: de pessoa,
lugar, tempo, discurso, e aquela que interessa para este trabalho, a dêixis social. Fillmore
(1975: 76, tradução nossa) afirma que esta se refere “aos aspectos das sentenças que refletem,
estabelecem ou são determinadas por certas realidades da situação social em que o ato de fala
ocorre”, incluindo os seguintes fenômenos linguísticos:

 os dispositivos para marcação de pessoa, por exemplo, pronomes;


 as várias maneiras de separar os níveis de fala;
 as distinções em declarações de vários tipos que são dependentes de certas características
dos participantes da interação;
 “as várias maneiras com que os nomes, títulos e níveis de parentesco variam em forma e uso
de acordo com as relações entre o falante, o destinatário, o público e as pessoas referidas”;
 as performances linguísticas que podem contar como atos sociais, por exemplo, insultos,
cumprimentos, expressões de gratidão;
 as performances linguísticas que podem acompanhar os atos sociais, como lá vai, etc.;
 e, finalmente, os vários mecanismos linguísticos que ajudam o falante a “estabelecer e
manter uma ancoragem dêitica com um determinado destinatário”.
Entretanto, para Levinson (2007: 110-111), esses usos só são importantes para a
descrição da dêixis social na medida em que forem gramaticalizados, por isso, restringe-as
àquelas que dizem respeito a aspectos da estrutura da língua que codificam as identidades
sociais dos falantes ou a relação social entre eles, ou entre um deles e as pessoas ou
entidades a que se fez referência.

O autor ainda classifica a dêixis social em absoluta e relacional. A primeira se dá


quando as formas dêiticas fazem referência a dois tipos específicos de participantes dos atos
de enunciação, definidos previamente por Fillmore, como falantes autorizados e destinatários
autorizados. É o que ocorre, por exemplo, nas línguas orientais, que possuem formas
específicas que só podem ser usadas por homens, com uma forma correspondente que só
pode ser usada pelas mulheres ou o que ocorre no Português com os pronomes de tratamento
vossa majestade, vossa santidade etc.

A segunda forma de dêixis social, definida por Levinson como relacional, e


considerada por ele como as mais importantes são aquelas que expressam a relação entre:

 falante e referente, por exemplo, possessivos e termos que designem relações de


parentesco, hierarquia, trabalho etc;
 falante e destinatário, por exemplo, os pronomes de tratamento senhor(a), doutor(a), dona
etc;
 falante e espectador;
 falante e ambiente.

Mais uma vez recortando o objeto descrito, dentre os dêiticos sociais relacionais,
aqueles que interessam para este trabalho são os que relacionam falante e referente.

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