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FICÇÕES DO ARQUIVO: O LITERÁRIO E O CONTEMPORÂNEO

Reinaldo Marques
UFMG/CNPq

Com o objetivo de decifrar as razões que levaram o jovem antropólogo norte-americano,


Buell Quain, a se suicidar entre os índios krahô, em agosto de 1939, um dos narradores de Nove
noites (2002), de Bernardo Carvalho, se envolve em pesquisa com arquivos pessoais, históricos e
antropológicos, alocados em ambientes acadêmicos no Brasil e nos Estados Unidos. Faz
entrevistas, consulta documentos vários – cartas, relatórios, diários, biografias –, sob o pretexto
de, com essa investigação, escrever um romance. Na trama narrativa, na medida em que a
investigação se desenvolve, fatos e personagens históricos – a existência e o suicídio do
antropólogo americano, por exemplo – são combinados com acontecimentos e personagens
fictícios. O relato desse narrador-escritor contém indícios autobiográficos que o aproximam do
nome do autor na capa; ao que narra, se associam, em contraponto, vozes de outros narradores e
personagens, empíricos uns, inventados outros, compondo um mosaico com diferentes versões e
visões dos acontecimentos narrados. Como resultado desse coral de vozes narrativas e pontos de
vista, dessa mescla de dados factuais e históricos com elementos ficcionais, são rasurados os
limites entre a ficção e a realidade, o acontecido e o imaginado, desestabilizando as noções de
verdade e mentira, de prova e evidência histórica contidas no arquivo. Também no romance
seguinte, Mongólia (2003), construído com base na mesma técnica narrativa, o relato se articula
a partir de pastas e documentos deixados pelos narradores, valendo-se de diários e cadernos de
notas. Na procura de jovem desaparecido no deserto do Gobi e de um manuscrito, seus
narradores realizam pesquisas em arquivos e museus localizados em espaços globalizados
(China, Brasil, Mongólia) e em sítios da internet. Ao final dessas incursões em arquivos,
resultam escritos os romances, que parecem denunciar a miragem do acesso a uma origem
primeira dos acontecimentos, os limites da busca de objetividade e certeza histórica. Tem-se
assim romances que, por isso mesmo e em contrapartida, desvelam uma relação mais
propriamente de suplementariedade entre realidade e ficção, entre fato e imaginação, ao
percorrer vias alternativas para se contornarem os impasses entre narração e experiência, arte e
vida instaurados pela modernidade.

1
Desses romances de Bernardo de Carvalho podemos aproximar as obras Berkeley em
Bellagio (2002) e Lorde (2004), de João Gilberto Noll. Em ambas, há um personagem-escritor
que usufrui de bolsa concedida por uma fundação ou instituição acadêmica internacional,
vivendo em outros países (Estados Unidos, Itália, Inglaterra), imerso num tempo de incertezas,
de crises e esperas inerentes à tarefa de escrever um novo livro. Nelas são dramatizadas, em
tempos de globalização, as condições materiais que permitem ao escritor a sua sobrevivência, o
exercício da literatura, da escrita de seus livros. Submetido a processos de desterritorialização e a
choques linguísticos e culturais, num ambiente multicultural, o escritor-narrador ora interage
com pares da vida intelectual, ora perambula pelas ruas, praças e parques de metrópoles globais,
convivendo com sujeitos imigrantes, em situação de marginalidade. Também frequenta
bibliotecas e museus, que o abastecem de imagens com que se identificar. Especialmente num
contexto de heterogênese, de vir a ser outros, propiciado pela atividade da escritura. Como no
caso do narrador de Lorde que, numa ida ao Museu Britânico, se identifica com o touro Apis,
divindade egípcia que simboliza a força vital e geradora da natureza, num claro gesto anacrônico.
Ao fim e ao cabo, é como se essas obras dramatizassem o próprio arquivo do escritor, os
procedimentos de construção da obra, ao mesmo tempo em que, valendo-se de dados
autobiográficos, evidenciam a vida do escritor como tema válido de observação e fabulação
literária.
Assim se pode caracterizar também um texto como Cujo (1993) do escritor e artista
plástico Nuno Ramos, que nos apresenta o artista em seu ateliê-arquivo, lidando com mistura de
seus materiais – água, alga, lama, vidro derretido sobre o breu, feltro... – e refletindo sobre
técnicas de composição. Em seu esforço de “arrancar a pele das coisas” para apreender a fala
íntima dos seus materiais, acaba revelando o caráter proteico e disperso da matéria, difícil de
nomear. Esforço que resulta em cansaço e descoberta: “Cansei de arrancar a pele das coisas. Dá
sempre no mesmo: atrás da madeira, a madeira, dentro do óleo, o óleo, no interior do plástico, o
plástico. A natureza é mais repetitiva do que gostaríamos de admitir”. 1 Em seu ateliê,
vislumbramos o caos que antecede a fatura da obra, que articula materiais díspares e
incongruentes – sal e breu, vidro e resina por exemplo – em equilíbrios instáveis, precários.
Numa tentativa de “historicizar e dar dignidade ao mundo material” sem remetê-lo a uma esfera

1
RAMOS, Nuno. Cujo. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, p. 39.

2
mística, conforme acentua Rodrigo Naves.2 Talvez resida nisso a resistência das produções de
Nuno Ramos à reificação do olhar museológico.
Ampliando o foco para a literatura hispano-americana, é possível adicionar aqui La
literatura nazi en América (1996), de Roberto Bolaño, Museo de la Revolución (2006), de
Martín Kohan. E agregar História abreviada da literatura portátil ([1985], 2011), do espanhol
Enrique Vila-Matas. Em Bolaño, por meio de um inventário de escritores filonazistas nas
Américas, apagam-se as fronteiras entre o ficcional e o documental, o biográfico e o fictício,
num recurso perturbador do arquivo de nossa memória literária. Quanto ao texto de Kohan, a
figura do museu metaforiza as imbricações entre o ensaio teórico-crítico e o relato ficcional,
mobilizando documentos (cadernos de notas, diário, autobiografia) e objetos do espaço
museológico, como meio de lidar com as utopias revolucionárias e com a memória do trauma das
ditaduras latino-americanas. No texto de Vila-Matas, misto de ensaio e ficção, um narrador em
terceira pessoa, mais distanciado, revisita o arquivo da história das vanguardas da primeira
metade do século XX, com ênfase especial nos surrealistas, embaralhando evidências históricas e
enredos ficcionais. Personalidades artísticas das vanguardas interagem com personagens
fictícias, compósitas, articulando uma história literária que redunda na miniaturização do arquivo
literário e artístico, traduzido na metáfora da maleta, da caixa-valise de Marcel Duchamp. Maleta
capaz de conter toda obra, todas as coleções de pequenas coisas de Benjamin, dos escritores
portáteis, compondo uma crítica às memórias e histórias monumentais e canônicas da literatura.
Essas obras nos permitem discriminar uma tendência relevante no campo literário
contemporâneo, que proponho designar como ficções do arquivo. Meu intento aqui consiste
basicamente em caracterizá-las, ainda que de modo sumário, relacionando-as com a
contemporaneidade, bem como indicar algumas trilhas para o estudo delas.

******
De acordo com Arthur Danto, a arte contemporânea não constitui propriamente um estilo
ou período artístico, visto que se caracteriza por uma pluralidade de tendências e projetos, sem as
coerções e os limites impostos pelos períodos da arte histórica. Nela cabem todas as formas de
arte, sem critérios apriorísticos sobre como a arte deve ser ou que aparência ter, mas também

2
Cf. NAVES, Rodrigo. Nuno Ramos: um materialism invulgar. In: ______. O vento e o moinho: ensaios sobre arte
moderna e contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 378-386.

3
designa mais que a arte produzida no momento presente. Libertado do peso da história, o artista
contemporâneo não investe contra a arte do passado, nem a nega. Antes a considera disponível
para apropriações e usos variados, gozando de extrema liberdade para, em suas colagens, fazer
dela o que bem deseja, com ou sem propósitos definidos. Para o crítico e filósofo norte-
americano, a arte contemporânea iniciou-se no final da década de 1960 como uma arte pós-
histórica, que se desenvolve “após o fim da arte” histórica. Ela tem consciência da história da
arte, mas não lhe dá prosseguimento e nem pode ser enfeixada e explicada por uma narrativa
mestra, legitimadora, como no caso da arte moderna.3 Ressalta o desencontro entre a história da
arte e a realidade viva e dinâmica da própria arte, que resiste aos enquadramentos que aquela
estabelece sobre o objeto artístico.
Embora Danto esteja se referindo basicamente às artes visuais, suas considerações podem
ser estendidas, em boa medida, à literatura contemporânea. Observa-se nela também a existência
de manifestações e tendências heterogêneas, sem que uma narrativa totalizante possa legitimá-las
e definir-lhes uma direção ou sentido. Da mesma forma que o artista visual, o escritor não rejeita
a literatura do passado nem se dobra ao peso de suas convenções textuais e de gênero. Cultiva
sua biblioteca e frequenta diferentes tradições literárias com desenvoltura e liberdade,
apropriando-se de todos os gêneros e modelos textuais, para decompô-los e combiná-los em
novos esquemas e sínteses. Sem se submeter a restrições impostas pelos limites do que seja
próprio do literário, ou de que formato deva ter uma obra de arte literária. De sorte que os textos
da literatura contemporânea revelam-se então híbridos, instáveis e informes, escapando a formas
pré-definidas ou fixas, sem que se reduzam, porém, a mero pastiche de estilos. Assim, o escritor
contemporâneo mostra-se consciente do arquivo da literatura, de sua história, e cioso de seu
próprio arquivo, dele se alimentando para sua produção textual.
Nessas ficções do arquivo encontramos elementos significativos relacionados ao tema
mais geral do arquivo, particularmente às questões dos arquivos literários e artísticos, que são
presentificados, às vezes metonimicamente, por meio de algumas figuras: a biblioteca, o museu,
a coleção, o inventário, o catálogo, a lista, o álbum, a enciclopédia. Recorrem a essas figuras
como elemento potencializador de suas histórias, fabulações. Em muitos casos, o personagem-
narrador é um escritor imerso em seu arquivo, compulsando seus livros, papéis, documentos para
a composição de uma obra.

3
DANTO. Após o fim da história: a arte contemporânea e os limites da história, p.3-21.

4
Ao conjugarem o documental e o ficcional sob a forma às vezes de memórias,
autobiografias, diários, constroem textos híbridos, que combinam diversos modelos textuais,
difíceis de acomodar nas tradicionais gavetas dos gêneros. Com isso, desestabilizam as
classificações do arquivo, colocando em questão discursos e práticas hegemônicas. Uma possível
hipótese de trabalho é a de que essas narrativas contemporâneas que encenam o arquivo dos
artistas, explicitando operações e materiais utilizados na construção de suas obras – coleções de
textos, imagens e sons, listas de afazeres, interações com outros sujeitos e espaços –, evidenciam
a relevância dos arquivos de escritores, dos estúdios de artistas plásticos e compositores, na
composição desses relatos, como forma de lidar com as aporias do moderno. Ao performar, por
meio da escritura, os bastidores da produção de sua obra, seus procedimentos, o escritor de
algum modo constitui o seu arquivo pessoal, a memória de sua produção. De tal modo que os
arquivos literários se inscrevem no âmbito de uma “estética de laboratório”, nos termos de
Reinaldo Laddaga, como espaços em que o escritor se exibe e exibe suas operações de produção,
marcadas por hesitações, dúvidas, incertezas, em busca de interações colaborativas com seus
leitores, críticos.
Isso se torna mais claro sobretudo quando o arquivo pessoal do escritor, constituído no
espaço privado, da economia doméstica, se desloca para o espaço público, confiado à guarda de
bibliotecas públicas, de centros de documentação e pesquisa de universidades ou fundações
culturais, disponível para consultas e pesquisas. Nesse processo de desterritorialização e
reterritorialização, os fundos documentais do escritor são afetados em termos topológicos e
nomológicos, na medida em que são apropriados e tratados segundo princípios e métodos de
saberes disciplinares – a arquivologia, a biblioteconomia, a museologia, a par das disciplinas
próprias do campo dos estudos literários, históricos e culturais. São manipulados e rearranjados
por diversas subjetividades, de acordo com variados pontos de vista. Novos arcontes –
arquivistas, bibliotecários, museólogos, curadores, professores, pesquisadores – se
responsabilizam pelo arquivo do escritor, empenhados na tarefa às vezes interminável de
remanejar, classificar e expor seus documentos, examinando-os e os interpretando. Detentores de
certo privilégio hermenêutico, esses novos guardiões passam a falar a partir do arquivo literário e
em nome dele.
Com a noção de “arquivo literário”, quero nomear o arquivo pessoal do escritor ou da
escritora alocado nessa nova residência. Com ela assinalo uma metamorfose desse arquivo

5
pessoal, que passa a ter um estatuto ambíguo, uma vez que ainda é e já não é mais o arquivo
pessoal do escritor em sentido estrito, situando-se num espaço limiar, entre o público e o privado.
Em termos da arqueologia foucaultiana,4 consiste numa “figura epistemológica”: um construto,
um efeito de campos discursivos – os daqueles saberes que se apropriam do arquivo do escritor e
dele falam.
Uma investigação dessas ficções do arquivo pode nos ajudar a pensar questões tais como:
Quais as conexões dessas ficções com as questões do contemporâneo, sobretudo no contexto
latino-americano? Como se articulam com a racionalidade estatal e científica, a serviço de
regimes discursivos da verdade? Que usos e abusos do arquivo se fazem presentes nessas
narrativas? De que modo viabilizam pensar as articulações entre os arquivos artísticos e culturais
e os destinos da literatura e das artes na sociedade contemporânea? Que tipos de conexões
literárias e culturais explicitam, especialmente em termos interamericanos?
Ao levantar algumas características das artes do presente – literatura, música, artes
plásticas –, em Estética de laboratório, Reinaldo Laddaga destaca aquela da “apresentação do
artista em pessoa na cena de sua obra, realizando algum tipo de trabalho sobre si mesmo no
momento de sua autoexposição”.5 Trata-se do princípio da autoexposição, sem que implique uma
nudez definitiva, por meio do qual se explicita o que permanecia encoberto, a exemplo das
operações de produção e organização da própria obra. Expõe o artista no trato com os seus
materiais, como formador de coleções de peças de textos, sons e imagens, que lhe permitam
esboçar novas composições, valendo-se especialmente de materiais inferiores, marcados pela
fragilidade e volatilidade e em contraponto com as formas límpidas e estáveis: papelão, sons
impuros, imagens borradas, glossolalias. É um princípio moderno, o reconhece Laddaga, mas
cuja potência não se extenuou, fazendo-se presente ainda hoje nas artes.
Em termos da literatura contemporânea, o ensaísta argentino observa a peculiar
propensão de seus narradores para publicar memórias, autobiografias, opiniões pessoais. Assim,
um escritor costuma falar em nome próprio, descrever suas circunstâncias, emitir opiniões
pessoais ou prosaicas, tudo isso em contiguidade com fabulações exageradas, sem firmar
fronteiras entre essas elaborações. Daí, para Ladagga, a conformação de um subgênero, o da
“patética comédia do escritor”, em que ele “se nos apresenta semimascarado, em meio a seus

4
Cf. FOUCAULT. A arqueologia do saber, 1987.
5
LADAGGA. Estética de laboratório, p.18.

6
personagens, que vivem (como ele) em mundos sem forma e, ao se encontrarem, começam a
improvisar os mecanismos pelos quais edificam mundos comuns”. 6 Os antecedentes desse
personagem, encontra-os nas obras de Witold Gombrowicz e de Michel Leiris, mas sua
exemplificação se centra na obra do escritor sul-africano J. M. Coetzee, particularmente nos
livros Desonra [Disgrace] (1999) e Diário de um ano ruim [Diary of a Bad Year] (2008).
Laddaga enumera algumas motivações desse gênero que conjuga as maneiras do
documental e da ficção, produzindo formas textuais híbridas, que nos interessam particularmente
tendo em vista a compreensão do que estamos chamando aqui de “ficções do arquivo”. Uma
delas passa pelo reconhecimento das incertezas do narrador num mundo em mudança contínua e
cujas regras são indefinidas, de sorte que o escritor, em vez de ficar nos bastidores simulando o
controle total do espetáculo, é levado a se apresentar no palco em meio a seus personagens.
Distante da concepção de um eu coeso como algo pré-dado, o eu se constitui na medida em que
se exibe. Outra motivação encontra-a na opinião do escritor V. S. Naipaul, ao defender que a
vida do escritor constitui tema legítimo de investigação, de tal modo que um informe sobre ela
pode se transformar em matéria tão literária e iluminadora de momentos históricos e sociais
quanto os seus livros.
******
A emergência dessas ficções do arquivo na literatura contemporânea me parece
estreitamente associada a alguns fenômenos recentes em outras áreas da vida social, histórica e
cultural, que apenas indico aqui, para posterior aprofundamento. Em primeiro lugar conecta-se
com o que François Hartog, em Regimes de historicidade, designa como uma grande onda da
memória que se levanta nos anos 1980 e se caracteriza por uma preocupação acentuada com os
patrimônios, os memoriais, os museus, pela demanda por arquivos em busca de genealogias. São
sinais dela a noção de “lugares da memória” proposta por Pierre Nora em 1984, como forma de
se enfrentar a aceleração da história; o lançamento do filme Shoah (1985), de Claude Lanzmann,
fazendo insurgir o passado no presente; e, anteriormente, os debates sobre história e memória
decorrentes da publicação de Zakhor (1982) de Yosef Yarushalmi.
Alimentada pelos assassinatos em massa do século 20, com ritmos diferentes e
defasagens, essa onda da memória se espraia pelo mundo, atingindo a Rússia da Glasnost e os
ex-países do leste europeu, a América do Sul após as ditaduras e a África do Sul pós apartheid.

6
Ibidem, p.35.

7
De sorte que a memória ganha um alcance mais abrangente e se transforma numa categoria
meta-histórica; impõe-se um dever de memória, implicando usos e abusos. Na argumentação de
Hartog, essa hipertrofia da memória se desenvolve num contexto de mudança de regime de
historicidade, com a entrada em cena do presentismo, a partir da queda do muro de Berlim em
1989. Hartog o vê com extrema reserva, posto que, como um presente onipotente, revela um
problema de intransitividade: fechado em si mesmo, o presente não dialoga nem com o passado
nem com o futuro.7
No âmbito dessa preocupação com a memória, relacionado mais especificamente com os
saberes do arquivo, ocorre um outro fenômeno, o de uma archival turn. Essa virada arquivística
foi precedida por uma virada etnográfica nos anos 1980, promovida por uma antropologia pós-
moderna, empenhada em narrar experiências de choque cultural de um ângulo subjetivo, sem a
pretensão de objetividade e neutralidade. Por sinal, Diana Klinger insere Nove noites, de
Bernardo de Carvalho, no quadro dessa virada etnográfica, por sua vinculação com o “retorno do
autor” e a valorização da experiência da leitura e da escrita.8 A virada arquivística resulta de um
deslocamento na abordagem tradicional dos arquivos, operada no âmbito dos estudos filosóficos,
históricos, antropológicos e culturais nos inícios dos anos 1990, conforme anota Ann Laura
Stoler.
Com efeito, compreende-se o arquivo então como parte do processo de construção dos
discursos sobre o passado e lócus de produção de conhecimento, em vez de espaço inerte que
apenas guarda documentos com informações e conteúdos do passado, um depósito de “fatos” e
“provas”. Enquanto dispositivo de exercício do poder, compreendê-lo requer uma atenção maior
às formas de arquivamento, aos princípios que regem suas operações. Como experimento
epistemológico, torna-se necessário repensar a materialidade e o imaginário das suas coleções, os
critérios de validação do saber, o poder tanto sobre os arquivos quanto dos arquivos. Essa nova
compreensão do arquivo acarreta também um novo enquadramento do papel dos arquivistas, que
passam a ser vistos não como meros guardiões do arquivo, imparciais e objetivos, mas como
sujeitos que, com suas operações e escolhas, interferem na constituição do passado, agregam
valor ao arquivo.

7
Cf. HARTOG. Regimes de historicidade, p.17-26.
8
KLINGER. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica, p. 9-14.

8
O arquivo logra alcançar um novo estatuto teórico, na esteira das reflexões de Michel
Foucault e Jacques Derrida. Em Foucault, ao tomá-lo não enquanto uma instituição ou
edificação, mas como metáfora do cruzamento entre memória, saber e poder, como sistema que
estabelece e legitima enunciados acerca do real. Em Derrida, ao ressaltar as implicações políticas
do arquivo, ao problematizar a noção de um registro original como matriz anterior e interior de
uma verdade, contribuindo para implodir com as dicotomias original/cópia, dentro/fora. Para
Stoler, apesar de tardio,9 em Mal de arquivo Derrida soube capturar esse impulso do arquivo,
dando-lhe um nome e provendo-o de um vocabulário apropriado para sua legitimação na teoria
crítica.
Com essa alteração no modo de se compreender o arquivo, supera-se uma distinção rígida
entre os conjuntos documentais de instituições públicas, vinculados a um entendimento do
Estado como “campo informacional”, e o estatuto da documentação acumulada por indivíduos.
Distinção responsável por uma visão dos arquivos pessoais como um arquivo menor e pela
carência de reflexões sobre a natureza teórico-metodológica de sua documentação. Dessa
maneira, os arquivos pessoais entram na agenda das pesquisas na área dos estudos históricos e
culturais, da teoria literária e da arquivologia. Associados à memória individual, situados entre o
registro do vivido e a escrita de si, os arquivos pessoais começam a ser objetos de pesquisas que
se interessam pelo seu processo de constituição desde a fase de acumulação dos documentos até
a sua disponibilização para consulta pública numa instituição de memória. O que tem iluminado
as operações próprias do arquivar a própria vida – o mise en archive – e contribuído para a
“desnaturalização” do arquivo.10

******
Ao pensar essa ficcionalização do arquivo, ocorrem-me algumas leituras ilustrativas. Um
caso flagrante de encenação do arquivo literário encontra-se em Possessão, uma fantasia
[Possession: A Romance] (1990), de A. S. Byatt, que narra o relacionamento de um casal de
acadêmicos contemporâneos envolvidos com a pesquisa do passado de dois poetas, um homem e
9
STOLER. Colonial Archives and the Arts of Governance, p.87-109. A autora considera a obra de Derrida tardia
em relação a essa virada arquivística, tendo em vista a existência de trabalhos anteriores, como os de Natalie Zemon
Davis (Fiction in the Archives: Pardon Tales and Their Tellers in Sixteenth-Century France, 1987), Roberto
Ecchevaria (Myth and Archive: A Theory of Latin American Narrative, 1990) e Thomas Richards (Imperial Archive:
Knowledge and the Fantasy of Empire, 1993) e Sonia Coombe (Archives Interdites: Les peurs françaises face a
l’Histoire contemporaine, 1994).
10
Cf. HEYMANN. O lugar do arquivo, p.13-84.

9
uma mulher, ambos fictícios mas construídos a partir de modelos históricos do século XIX. As
histórias paralelas servem como mote para investigações em bibliotecas e arquivos dos
escritores, representação crítica da vida acadêmica, cruzamento de gêneros discursivos (cartas,
diários, biografias), discussão de teorias críticas literárias e culturais, como as da crítica
feminista, da crítica (auto)biográfica. Anteriormente, na terceira novela do volume Trilogia de
Nova York [The New York Trilogy] (1987), intitulada “O quarto fechado”, Paul Auster já havia
tematizado a figura do escritor em meio a seus personagens e, de modo particular, o seu arquivo.
Nela o narrador se vê às voltas com o arquivo de Fanshawe, amigo de infância supostamente
desaparecido, com quem mantém problemáticas e ambíguas relações, num jogo de espelhamento
e duplicidade. O arquivo do amigo contém, além de cartas e fotografias, os originais de suas
obras – romances e poemas –, de cuja publicação se encarregará o narrador. Diante do sucesso
dos livros publicados, ele também se responsabiliza pela escrita da biografia do amigo,
empreendimento que, na verdade, resulta na pesquisa de si mesmo, de sua verdade mais íntima.
Ainda em termos da literatura britânica, pode-se incluir nessa relação a obra O papagaio de
Flaubert [Flaubert’s Parrot] (1984), de Julian Barnes.
Como esclarecedores das questões do arquivo em geral, da forma como são
representados, de seus usos e articulações com a evidência histórica, pense-se romances como
Todos os nomes (1997), de José Saramago, em que se narram as peripécias do Sr. José,
funcionário da fictícia Conservatória Geral do Registro Civil. O personagem é um colecionador
de recortes sobre pessoas famosas, mas que se põe a investigar a existência de uma pessoa
comum, colocando em questão a ordem do arquivo. Num tom kafkiano, essa obra de Saramago
trai uma visão extremamente hierarquizada e mesmo disfórica do arquivo, visto como
instrumento de poder e controle dos indivíduos. De outra parte, já em Aqueles cães malditos de
Arquelau (1993), de Isaias Pessotti, tem-se uma narrativa que gira em torno de um grupo de
pesquisadores, na Milão dos anos 1960, envolvidos na investigação da vida de um bispo do
século XV, admirador de Eurípedes e suas tragédias, a partir de um manuscrito inédito. Espécie
de romance histórico marcado por refinado recurso à erudição, na obra de Pessotti a pesquisa em
arquivos visa a decifrar um enigma, culminando na comprovação da verdadeira identidade do
bispo, na vitória da razão sobre as trevas da ignorância. Compõe-se, assim, uma representação
que chamaria de eufórica do arquivo, em contraponto ao romance de Saramago.

10
Importa ainda registrar que já existem alguns estudos dessas narrativas do arquivo.
Menciono aqui o trabalho de Suzanne Keen, Romances of the Archive in Contemporary British
Fiction (2001). Nele, a autora examina representações do arquivo na ficção britânica
contemporânea, incluindo subgêneros como a ficção de detetive, gótica, trillers e fantasias. Num
contexto pós-moderno, são estudadas obras em que personagens acadêmicas e amadoras
pesquisam documentos em espaços de arquivos, bibliotecas, livrarias, casas, museus, detendo-se
em coleções de livros, papéis, objetos. Essas personagens buscam interpretar o passado a partir
de seus vestígios materiais, configurando às vezes um “documentarismo” por meio ora de
arquivos inventados, ora de repositórios de fatos sólidos, de evidências incontroversas, de
memórias bem preservadas e fidedignas do passado, apesar da existência de toda uma crítica
pós-moderna da verdade. Seu corpus é constituído por narrativas escritas num período marcado
pelo declínio pós-imperial e encolhimento do status global da Grã-Bretanha. Daí que invoquem
períodos históricos nos quais era central e influente a história britânica. Entretanto, não quer isso
dizer, conforme observa a autora, que adotem uma filosofia da história rasa, levando a
celebrações acríticas do passado nacional, visto que não deixam de questionar os objetivos do
conhecimento histórico, os modos de leitura que direcionam a imaginação na maneira de
conceber o passado. Entre os autores estudados por Keen, estão Peter Ackroyd, Kingsley Amis,
Julian Barnes, A. S. Byatt, Lindsay Clarke, Stevie Davies, Peter Dickinson, Margaret Drabble,
entre outros. Em termos metodológicos, ela trabalha com pressupostos dos estudos culturais, da
crítica literária feminista, recorrendo à teoria narrativa e crítica de gênero, sendo seus
referenciais extraídos das obras de Edward Said e Raymond Williams.
Anteriormente, já havia sido publicado o importante estudo de Thomas Richards, The
Imperial Archive: Knowledge and the Fantasy of Empire (1993), em que o autor se dedica ao
estudo de narrativas do século XIX, marcadas por fantasias sobre a unidade do império,
construída antes pela informação, preservada em arquivos, que pela força. Seus pressupostos são
os de que um império é em parte uma construção ficcional e de que as instituições produtoras de
conhecimento, como o British Museum, a Royal Geografical Society, a India Survey, além das
universidades, constituem instâncias fundamentais para a administração e o controle à distância
do Império. A partir de uma concepção foucaultiana do arquivo, marcada pelas articulações entre
informação e poder, Richards se detém no exame de algumas importantes narrativas
novecentistas, tais como: Alice in Wonderland (1865) e Through the Looking Glass (1871), de

11
Lewis Caroll, Flatland (1884), de Edwin Abbott, Dracula (1897), de Bram Stoker, Kim (1901),
de Rudyard Kipling, Lost Horizont (1933), de James Hilton.
Por fim, devo assinalar o estudo mais recente de Marco Codebò, Narrating from the
Archive: Novels, Records and Bureaucrats in the Modern Age (2010), em que o crítico se
debruça sobre o relacionamento entre o romance e o arquivo desde os albores da modernidade
até o surgimento da era digital. Também baseado em Foucault, abriga a tese de que o romance do
arquivo e a epistemologia arquivística compartilham a ideia de que o conhecimento resulta do
arranjo sistemático de dossiês de documentos, informações, tendo em vista construir
legitimações. Seu corpus abrange A Journal of the Plague Year (1722), de Daniel DeFoe, Tom
Jones (1749), de Henry Fielding, I promessi sposi (1840), de Alessandro Manzoni, La Comédie
humaine (1976-1981) de Honoré de Balzac, Bouvard et Pécuchet, (1979), de Gustave Flaubert,
La Vie mode d’employ (1978) de Georges Perec, e Libra (1988), de Don DeLillo. Ao trabalhar
com esse conjunto de narrativas, Codebò detecta dois paradigmas presentes nos romances do
arquivo. Um deles, hegemônico no século XIX e a serviço da consolidação do Estado-nação
moderno, empenhado em identificar seus cidadãos, é o “paradigma de legitimação”, em que a
validação da verdade do texto ficcional se dá pelo recurso ao arquivo como fonte de evidência
histórica, visível na prática de cópias de registros, moldar o relato como um dossiê, por exemplo.
Manzoni e Balzac constituem expressões desse paradigma. Em contraponto, no século XX
desponta o “paradigma do desafio”, em que os romancistas recorrem a práticas arquivísticas não
para conferir verossimilhança ao relato, mas o caráter arbitrário e convencional do arquivo,
detectando erros e fraudes no armazenamento de registros e documentos. Isso se vê em romances
pós-modernos, as metaficções historiográficas segundo Linda Hutcheon, mas está antecipado no
Bouvard et Pécuchet de Flaubert.
Os estudos mencionados acima podem constituir pontos de partida válidos para uma
abordagem das ficções do arquivo que tenho em mente aqui e oferecer contribuições relevantes
em termos das teorias do arquivo, do exame de procedimentos narrativos, das articulações entre
saber e poder. Todavia, e essa é uma diferença importante, o objeto mais central de nosso
interesse diz respeito às encenações do arquivo do escritor num contexto latino-americano, das
operações de produção das obras, com foco mais na questão da literatura e das artes, justificando
um diálogo mais apurado com a estética, a filosofia, a crítica de arte, além da história, da
antropologia.

12
******
Quero finalizar essa exposição com duas breves considerações de cunho mais
especulativo, mas que vislumbram algumas direções para a abordagem do corpus ficcional em
tela. A primeira insinua uma conexão das ficções do arquivo com uma crise do saber histórico
especialmente a respeito do tempo, do tempo passado. Conforme nos esclarece Roger Chartier, a
capacidade de o discurso histórico representar o passado foi posta em questão pela distância
introduzida entre o passado representado e as formas discursivas mobilizadas para sua
representação. Particularmente com os trabalhos de Paul Veyne (Como escrever a história,
1971), Hayden White (Meta-história: a imaginação histórica do século XIX, 1973) e Michel De
Certeau (A escrita da história, 1975), que realçaram as dimensões retórica e narrativa da história.
Nessa fissura entre o passado e sua representação instaurou-se uma crise da história nos anos
1980 e 1990.11 O que exigiu rever toda uma epistemologia da verdade incrustada na operação
historiográfica, suas etapas e as relações entre memória e história, como se pode ver em A
memória, a história e o esquecimento [2000], de Paul Ricouer.
Ora, para a compreensão dessa crise, Chartier recorre à ficção como contraponto válido.
Se a ficção nos informa a respeito de algo do real, ela o faz sem a pretensão de representá-lo ou
de se fundamentar nele; diversamente da história, que visar fornecer uma representação
adequada de uma realidade que já passou, tomando o real como objeto e fiador do seu discurso.
Contudo, a empreitada da história se vê ofuscada pela literatura, posto que certas obras literárias
são capazes de plasmar representações do passado de forma mais convincente e poderosa que
escritos dos historiadores. E a razão disso, segundo Chartier, se deve ao fato de as ficções
literárias se apoderarem não apenas do passado, mas também de documentos e técnicas que
constituem a condição do conhecimento produzido pela disciplina histórica, a exemplo das
técnicas de prova. Mais ainda: “Ao abandonar o verossímil, a fábula fortaleceu mais sua relação
com a história, multiplicando as notações concretas destinadas a carregar a ficção de um peso de
realidade e a produzir uma ilusão referencial”.12 É o que demonstram as biografias imaginárias
escritas por Borges, Marcel Schwob, Max Aub. E, acrescentaria, mais recentemente as biografias
imaginárias de escritores filonazistas de Roberto Bolaño.

11
CHARTIER. A história ou a leitura do tempo, p.21-24.
12
CHARTIER. A história ou a leitura do tempo, p.28.

13
Do meu ponto de vista, as ficções do arquivo na literatura contemporânea, simulando
narrativas detetivescas, relatos etnográficos, biografias e autobiografias, emulam a pesquisa
histórica do passado, a busca científica da verdade, se apropriando de documentos, de técnicas de
prova. Mas o fazem de um modo mais radical e crítico, na medida em rasuram as fronteiras entre
realidade e imaginário, arte e vida, denunciam o caráter construído de documentos e provas,
explicitam as relações de força e interesses que se cruzam no arquivo, colocando em xeque a
própria ideia de verdade, de certeza. Mimetizam regimes discursivos da verdade, suas estratégias
argumentativas, corroendo-os por dentro, ao controverter a racionalidade arcôntica, estatal e
científica, centrada na evidência histórica, que normalmente rege o arquivo Não por acaso, é
exatamente quando abandona a busca da verdade a respeito do suicídio do antropólogo, que o
narrador-escritor de Nove noites ingressa no mundo da ficção para escrever seu romance. Um
romance que já está escrito.
Quanto à segunda consideração, ao encenarem o arquivo do escritor, penso ser possível
articular as ficções do arquivo com questões do contemporâneo, com o intuito de pensar
politicamente a literatura. Para tanto, importa aqui tomar o arquivo dos escritores como zona de
contato entre distintas temporalidades e subjetividades, capaz de ativar anacronismos que
promovem descontinuidades e estranhamentos em relação ao tempo presente. Carece de ter em
conta uma poética temporal do arquivo, relacionada ao caráter heterogêneo dos materiais que o
constituem, particularmente no caso dos arquivos literários e culturais, compondo uma mescla de
arquivo, biblioteca e museu. Ao consignarem signos de variada natureza e em distintos suportes,
abrigam imagens diversas: verbais, icônicas, indiciais, grafemáticas, fotográficas, videográficas,
cinematográficas, analógicas, digitais. No espaço do arquivo, essas imagens são portadoras de
memória e abrigam tempos heterogêneos e descontínuos. Estão crivadas de sobrevivências e
anacronismos, de sintomas e latências; estar diante delas é estar diante do tempo, conforme
postula Didi-Huberman. Devem ser vistas como imagens dialéticas, na esteira de Benjamin.13
Como limiares, passagens que articulam a um só tempo o gesto de fechamento ao de abertura,
nelas colidem o instante presente com o tempo passado e suas latências, abertos ambos para o
futuro com seus desejos. No arquivo há uma promessa de futuro, conforme nos lembra Derrida.14

13
Cf. DIDI-HUBERMAN. Ante el tiempo. História del arte e anacronismo de las imágenes, “Apertura” e Cap. 2,
especialmente.
14
Cf. DERRIDA. Mal de arquivo, p. 31.

14
Espaço de heterocronias, zona de contato entre distintas subjetividades, o arquivo pode
se constituir assim em instância capaz de ativar um pensamento por imagens, no qual a
objetividade do passado se esmaece em função do movimento que o recorda, realizado no aqui e
agora do presente. Movimento de recordação acionado por uma memória tanto voluntária quanto
involuntária, ativado por anacronismos capazes de, ao produzir estranhamentos em relação ao
nosso presente, possibilitar tomarmos consciência dele. Estamos aqui diante do passado não
como um fato positivo acabado em sua anterioridade, mas como virtualidades do arquivo, na
iminência de irromper no presente pelo recurso à imaginação. Nessa perspectiva virtual e
imaginária de percepção e apreensão dos rastros do passado é que podemos nos situar nas bordas
do arquivo e vislumbrar o seu fora, sua exterioridade. Enquanto dobra simultaneamente espacial
e temporal que nos permite pensar o próprio arquivo.
No pensamento teórico-crítico da atualidade, observa-se a disseminação da categoria do
contemporâneo pelos discursos que buscam dar conta da representação do presente histórico,
deslocando as noções de moderno e pós-moderno. Fenômeno que Lionel Ruffel articula a
algumas transformações significativas que ocorrem após a Segunda Guerra. Uma delas diz
respeito à democratização do acesso ao saber, à cultura e aos processos criativos, implicando
alterações profundas nos processos de transmissão e nas estruturas de acolhimento do público:
escolas, universidades, museus, salas de concerto. Outra refere-se à ocorrência de processos de
descentramento, a exemplo da transferência do eixo cultural de Paris para Nova York no pós-
guerra, recompondo o campo artístico, perceptível num momento norte-americano da história da
arte e da cultura, ligado ao acadêmico e que se globaliza. Ocorre também um descentramento
pós-colonial, relacionado à descolonização da Índia, da África do Norte, Caribe e Oriente Médio,
estimulando releituras da história da arte, da literatura e das ideias, evidenciando as relações
entre o moderno e a colonial. Uma terceira transformação destacada por Ruffel remete ao
aparecimento de estéticas contestatárias, que não se veem forçosamente como modernas, como
no caso do boom da literatura latino-americana nos anos de 1960 a 1980 e do pós-moderno,
enquanto uma teoria inventada para dar conta do momento americano.15
Mas se o contemporâneo parece resultar da conjunção desses momentos — americanos,
pós-colonial e pós-moderno —, essa circunscrição de caráter mais histórico do fenômeno não dá

15
Cf. RUFFEL, Lionel. Introduction: Qu’est-ce que le contemporain?. In RUFFEL, Lionel. Qu’est-ce que le
contemporain? Nantes: Cécile Defaut, 2010, p.9-35.

15
conta da sua complexidade, de suas linhas de força, visto que constituído por diversas
temporalidades, sobrevivências, ritmos e sequências. Torna-se oportuno então retomar o ensaio
de Giorgio Agamben sobre o contemporâneo. Ao relacioná-lo ao intempestivo nietzschiano, o
contemporâneo constitui para Agamben uma tomada de posição em relação ao presente, ou seja:
ao que está diante de nós, em presença, e nos afeta, toca. Comporta uma desconexão, uma
inatualidade e discronia na medida em que a contemporaneidade consiste numa “singular relação
com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distância; mais
precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação,
anacronismo.”16 Estar colado e plenamente identificado ao seu tempo impossibilita melhor vê-lo.
Ora, essa não-coincidência com o tempo é inseminada e potencializada pelo anacronismo, como
sobrevivências no presente de imagens dialéticas provindas do passado e abertas ao futuro. Esse
movimento ambivalente de distanciamento e adesão ao tempo presente explicita a existência na
contemporaneidade de uma relação eminentemente temporal: do presente com o passado e o
futuro como camadas heterogêneas que se misturam possibilitando a simultaneidade de
elementos não simultâneos. Estamos aqui distantes do tempo homogêneo e vazio do progresso,
com seu caráter evolutivo e causalista. De sorte que pensar o contemporâneo opera uma
desomogeneização do tempo que permite surpreender o presente como dimensão de um ainda
não-vivido no já vivido.
Isso se torna possível a partir apreensão do arquivo literário como espaço de
sobrevivência, dotado de caráter heteróclito em razão da diversidade de seus documentos,
linguísticos e icônicos, materiais e virtuais. Ele solicita um modo peculiar de ler os rastros do
passado presentes em seus acervos, nas coleções dos escritores, especialmente nos seus resíduos
inclassificáveis. Mas o que resta nos arquivos literários é, sobretudo, a língua, a língua que
sobreviveu aos sujeitos que a falavam em outros tempos, nas ruínas de suas inúmeras e
heterogêneas textualidades. Essas ruínas da língua, em sua dimensão anacrônica, nos
possibilitam distanciar do nosso tempo presente e ser contemporâneos de nós mesmos. Como
não cessam de dar testemunho as ficções do arquivo na literatura contemporânea de que trato
aqui.

16
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó,
SC: Argos, 2009, p.59.

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