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ÉticanaPesquisaEmCienciasHumanas DeboraDiniz PDF
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ARTIGO ARTICLE
Ética na pesquisa em ciências humanas - novos desafios
Debora Diniz 1
Abstract This paper aims to discuss how already Resumo O objetivo deste artigo é discutir como
established principles of research ethics can be princípios já consolidados da ética em pesquisa
incorporated to the ethical review of research podem ser incorporados à prática de revisão éti-
projects in Social Sciences, particularly ethno- ca de pesquisas em Ciências Humanas, em parti-
graphic studies or studies using the techniques of cular etnografias ou pesquisas que utilizem as
participant observation and open interviews. The técnicas de observação participantes e entrevista
discussion is guided by an analysis of the method- aberta. Para a discussão, o fio condutor será a
ological and ethical procedures used in the pro- análise dos procedimentos metodológicos e éticos
duction of the ethnographic documentary “Sev- utilizados na produção do documentário etnográ-
erina’s Story”. The analysis of the film shows the fico “Uma História Severina”. A análise do filme
urgent need to expand the horizons of the debate sugere como ampliar os horizontes do debate so-
around research ethics beyond the biomedical bre ética em pesquisa para além dos fundamen-
fundaments of this field. tos biomédicos do campo é uma tarefa urgente.
Key words Research ethics, Social sciences, Eth- Palavras-chave Ética em pesquisa, Ciências
ics commission, Abortion humanas, Comitê de ética em pesquisa, Aborto
1
Universidade de Brasília.
Caixa Postal 8011
70673-970 Brasília DF.
anis@anis.org.br
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Diniz, D.
que pelo menos 58 mulheres foram protegidas de que a entrevista seria filmada. Mas é exata-
pela liminar33. mente nesta aproximação pela confiança já esta-
O objetivo inicial do filme era contar a histó- belecida entre profissionais de saúde e mulheres
ria das mulheres protegidas pela liminar, por isso que residia o desafio ético: era preciso garantir
a equipe de produção saiu à procura de mulhe- que a aceitação de cada mulher era genuína e não
res usuárias de serviços públicos que interrom- resultado de um sentimento de gratidão pela
peram a gestação por anencefalia no feto duran- equipe de saúde que a atendera. A primeira tarefa
te a vigência da autorização. A técnica de entre- da equipe de pesquisa consistiu, então, em um
vista era a de história de vida com perguntas aber- esclarecimento metodológico – a entrevista era
tas que facilitariam a narrativa livre de cada mu- um ato de expressão livre e uma eventual recusa
lher. O pré-roteiro buscava resgatar as trajetóri- não traria qualquer conseqüência.
as reprodutivas das mulheres e o processo de Há um extenso debate ético sobre possíveis
tomada de decisão pelo aborto. Antes das filma- implicações emocionais de pesquisas qualitati-
gens, 58 mulheres foram entrevistadas, suas his- vas com técnicas de entrevistas abertas sobre te-
tórias gravadas em fita cassete e transcritas. Após mas com forte conotação afetiva para as partici-
a análise das narrativas é que a equipe iniciou as pantes, como doenças crônicas, violência sexual,
gravações em vídeo com uma amostra de doze infertilidade ou luto35. No exercício de transpor a
mulheres. O filme foi produzido por uma equipe matriz de riscos e benefícios das Ciências Biomé-
de pesquisa especializada no tema dos direitos dicas para as Ciências Humanas, a imputação de
reprodutivos, em particular sobre aborto. O possíveis riscos emocionais pelas entrevistas aber-
documentário “Quem são elas?” corresponde ao tas é o parecer mais comum recebido por pes-
projeto inicial de filme e apresentou a história de quisadoras ao terem seus projetos avaliados pe-
quatro dessas mulheres30. los comitês de ética em pesquisa. Se for verdade
O primeiro desafio da pesquisa surgiu na fase que há chances de que a entrevista desencadeie
inicial de recuperação das histórias de vida das fortes sentimentos, é também possível reconhe-
mulheres, ainda na etapa de construção do uni- cer o caráter quase-terapêutico da cena etnográ-
verso de mulheres a serem entrevistadas. O pro- fica para muitas pessoas.
jeto foi apresentado aos chefes dos serviços de Apesar de o aborto ser um tema afetivamen-
saúde pública que ofereciam atendimento às te intenso para muitas mulheres, a entrevista re-
mulheres com gravidez de fetos anencefálicos. O presenta uma oportunidade de ter sua história
contato com cada mulher foi feito pelo serviço ouvida, uma experiência de catarse confessional
de saúde, que intermediou o primeiro encontro já explorada por antropólogas do segredo36,37.
da equipe de produção com as mulheres. Quase Além disso, diferentemente de outras experiênci-
todas as mulheres atendidas aceitaram conceder as de aborto em que o silêncio sobre a interrup-
entrevistas para contar suas histórias. As entre- ção da gestação é uma medida de segurança, no
vistas foram gravadas, após a assinatura do ter- caso do aborto autorizado em lei, esta é uma
mo de consentimento livre e esclarecido e do ter- experiência reprodutiva continuamente elabora-
mo de concessão do direito de gravação de ima- da pelas mulheres. Muitas delas já haviam cons-
gem e voz. O primeiro encontro foi no hospital truído uma narrativa sobre a experiência anteri-
que realizou a interrupção da gestação, ao passo or às entrevistas. A novidade imposta pela cena
que as entrevistas filmadas foram feitas na resi- da pesquisa é que a escuta não era de alguém de
dência de cada mulher. sua rede de relações afetivas cotidianas, mas de
A apresentação do projeto às mulheres não alguém identificada como de sua rede de cuida-
foi feita pela equipe de pesquisa, mas pelos servi- dos em saúde.
ços de saúde. Esse recurso de intermediação para Superada a fase inicial de busca das mulhe-
a entrada no campo, metodologicamente conhe- res, foi na primeira rodada de gravações nos
cido como a figura do gate keeper, apresenta van- hospitais que a equipe de pesquisa encontrou
tagens e desafios34. A principal vantagem é ga- Severina. O serviço de saúde identificou um gru-
rantir a privacidade das mulheres, em especial po de mulheres protegidas pela liminar e tam-
daquelas que não desejam contar suas histórias bém um caso que considerava único: Severina,
para além dos muros do hospital e de suas rela- uma agricultora pobre e analfabeta de Pernam-
ções familiares. Além disso, por ser o aborto um buco, estava internada no mesmo dia que o STF
tema moralmente delicado, a intermediação de cassou a liminar. Desprotegidos pela lei, os mé-
um personagem de sua rede de cuidados é uma dicos concederam alta à Severina que, desde en-
garantia de confiança, em especial pelo anúncio tão, esperava uma nova decisão da Justiça para
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isto é, ao instante inicial das filmagens, onde foi ração pela participação em uma gravação não é
apresentada a idéia e grande parte dos aconteci- objeto de maiores controvérsias éticas48, sendo
mentos ainda estavam por ocorrer e (2) convi- até mesmo uma prática estimulada como forma
dou uma entidade do universo simbólico e soci- de retribuir a generosidade dos personagens e
ológico de Severina para garantir que as condi- para alcançar depoimentos mais genuínos. Mui-
ções do termo final de consentimento livre e es- to embora o filme tenha sido dirigido por uma
clarecido pós-edição do filme estavam claras e de antropóloga e uma jornalista, uma dupla identi-
acordo com os interesses de Severina. A adoção dade que permitiria a suspensão de vários dispo-
desses procedimentos impunha um risco à fina- sitivos éticos adotados no processo de filmagens,
lização do projeto: havia a possibilidade de mu- a equipe de pesquisa assumiu que a relação com
dança de opinião pelo casal no instante final da Severina seria a de um documentário etnográfi-
edição do filme. Apesar de representar uma ame- co, ou seja, as premissas éticas e metodológicas
aça à finalização do filme, este era também um seriam as mesmas de um projeto de pesquisa
pacto que redescrevia os termos tradicionais da acadêmico. O resultado é que Severina e Rosival-
pesquisa científica – as diretoras do filme não do jamais foram remunerados ou ressarcidos por
deteriam o poder absoluto de construção da nar- entrevistas concedidas ou pelo tempo dedicado
rativa, mas esse seria compartilhado com os pro- às filmagens. Mas e se o filme ganhasse prêmios?
tagonistas do filme. Se fosse vendido para a televisão? A quem caberi-
Há particularidades na pesquisa qualitativa am as vantagens recebidas pelo filme?
por imagens quando comparada à pesquisa qua- No campo da ética em pesquisa biomédica, o
litativa por gravação de voz44, 45. A imagem im- tema do “benefício compartilhado” é uma ques-
plode qualquer possibilidade de promessa de si- tão emergente na agenda de debates internacio-
gilo ou anonimato no uso dos dados46. Não ha- nais49. No caso de novos medicamentos, por
via como oferecer à Severina a promessa de pri- exemplo, muitos protocolos de pesquisa têm sua
vacidade comum aos termos de consentimento aprovação condicionada à garantia de acesso
livre e esclarecido de pesquisas qualitativas. Sua pós-pesquisa aos sujeitos que participaram da
história seria pública e era preciso esclarecer o sig- investigação. Os comitês de ética em pesquisa
nificado do risco de espetacularização. E mais do exigem dos pesquisadores que explicitem como
que isso: o filme apresentava uma história de so- planejam devolver os resultados da pesquisa à
frimento intensa, de luto pelo filho não-nascido, comunidade ou às pessoas envolvidas na fase de
onde uma diversidade de símbolos culturais as- coleta de dados. No universo do filme etnográfi-
sociados à maternidade, à saúde e à doença esca- co estadunidense, os filmes de Napoleon Chag-
pava ao controle da construção da narrativa. Uma non sobre os índios Yanomami provocaram o
cena que demonstra a delicadeza do limite entre a debate na interface da Antropologia e da ética em
imagem autorizada e imagem espetacularizada era pesquisa 50, 51. Há uma demanda de lideranças
até onde exibir o filho natimorto de Severina na indígenas por receber parte dos lucros de Chag-
sala de parto. A decisão na fase de montagem foi non com os livros e filmes sobre os Yanomami, o
exibir o feto durante quatro segundos, sem qual- que provocou uma enxurrada de discussões so-
quer imagem detalhada na má-formação crania- bre direitos autorais nas pesquisas qualitativas51.
na. A opção de não o exibir não correspondia aos O fato é que este é um tema novo para as
rumos de construção do roteiro e soaria uma cen- Ciências Humanas, um campo onde tradicional-
sura moral à crueldade do real47. No entanto, é mente as pesquisas são pouco rentáveis e não
Severina quem decide mostrar uma foto em deta- alcançam públicos para além da comunidade
lhes do filho natimorto, a imagem que guardava acadêmica de origem da pesquisadora24. No en-
em sua casa. Por ser a imagem que ela tornou tanto, no caso de “Uma História Severina”, o con-
pública sobre o filho, essa foi uma cena adiciona- texto político nacional acenava para a possibili-
da à edição final e é onde melhor se visualiza o dade de o filme vir a ser conhecido e não de se
filho em um caixão branco. restringir a uma peça etnográfica, além de o fil-
Uma segunda razão motivava a decisão de me ter sido dirigido também por uma jornalista.
compartilhar as imagens com Severina e Rosi- A solução encontrada foi, após a assinatura do
valdo antes da finalização do filme. No Brasil, termo final de consentimento livre e esclarecido,
não é autorizada a remuneração pela participa- propor à Severina e Rosivaldo uma participação
ção em pesquisa, apenas pequenos ressarcimen- nos benefícios que o filme viesse a receber. É im-
tos são permitidos aos sujeitos de pesquisa8. No portante esclarecer que esse contrato somente foi
universo do documentário, o tema da remune- estabelecido após o encerramento das filmagens,
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