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O Executor

Guerra Contra a Máfia


Don Pendleton
Tradução de:
Roberto Raposo

Clube do E-book

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
O Executor

Guerra Contra a Máfia


A partir do 2 ° volume esta série será
vendida somente nas livrarias EDIOURO
ou pelo reembolso postal EDIOURO.
Endereços e cartão-resposta de reembolso no final do volume.

Título do original:
"The Executioner — War Against the Mafia"

® 1969 by Pinnacle Books. Inc.


® Da tradução — Editora Tecnoprint Ltda., 1983
Proibida venda em Portugal

Todos os personagens deste livro são fictícios. Qualquer


semelhança com pessoas ou acontecimentos da vida real é
mera coincidência.

As nossas edições reproduzem


integralmente os textos originais
"Apesar de toda a sangreira, O
Executor é uma das séries mais bem
escritas do gênero."
The Washington Star

Eis aqui o livro que deu origem a uma das


séries de maior sucesso dos Estados
Unidos e transformou a imagem do herói
norte-americano. Mack Bolan é o
Executor, um exército de um homem só.
convocado por ele próprio para uma
guerra sem fim contra o crime organizado.
É um homem implacável, selvagem... o
combatente duro, frio e inflexível dos anos
80.
CONTEÚDO

Introdução à nova edição de Guerra Contra a Máfia

Prólogo

1.ª PARTE

1. Quando o Destino Sorri

2. O Plano

3. Questão Legal

4. Um Dia de Sorte

5. Golpe de Mestre

6. Questão de Ponto de Vista

7. Operação Mulher

8. Nervos de Aço

2.ª PARTE

1. A Causa e a Campanha

2. O Terrorista

3. Incursão em Território Inimigo

4. O Entendimento

5. A Menina dos Olhos

6. O Conselho se Reúne

7. O Erro

8. O Esconderijo

9. A Trégua

3.ª PARTE

1. O Fim da Trégua

2. Toda a Verdade

3. Previsão: Tempo Quente Hoje e Amanhã

4. Prelúdio

5. A Reunião

6. O Morro da Execução

7. Grito de Guerra

8. O Grande Golpe

9. A Vitória

Epílogo
Introdução à nova edição de Guerra Contra a Máfia
Estou neste momento terminando de escrever o 27.° episódio da saga do
Executor — o que significa que já produzi, até agora, algo assim como 5.000
páginas impressas sobre a vida e os feitos de um certo Mack Bolan.
Biografia bem volumosa — resultado de oito anos de atividade como
escritor — e só Deus sabe quantos volumes ainda estão para vir.
Deveria, portanto, ser fácil redigir uma introdução de duas ou três
páginas para uma reedição especial do primeiro livro da série, e emitir meia
dúzia de opiniões particulares do ponto de vista do autor.
Mas não é.
Falta-me objetividade para tanto. Não conseguiria dizer em três páginas
o que venho tentando dizer nas últimas cinco mil. E essa mensagem que,
desde o início, venho procurando transmitir do ponto de vista de Bolan é
algo especialmente importante e urgente acerca das circunstâncias da vida
humana. Trata-se de uma mensagem que está contida em algum lugar de
cada um dos meus livros — sem, no entanto, estar inteiramente expressa em
nenhum deles, nem em qualquer combinação deles, e tampouco sob qualquer
forma tradicional de mensagem — principalmente, creio eu, porque eu
próprio não estou bem certo quanto ao seu conteúdo. É uma mensagem que
ainda estou elaborando e preparando até hoje. No dia em que eu vier a
compreender todo o significado da vida de Bolan, provavelmente porei fim a
esta série, uma vez que toda a história terá sido narrada. Talvez então eu
possa escrever alguma introdução introspectiva. No momento, não posso.
Bolan e suas peripécias causam tanta admiração a mim quanto a qualquer
um dos fiéis admiradores que mantêm minha mesa entulhada de cartas nas
quais relatam suas reações às aventuras desse Dom Quixote moderno.
A primeira obrigação de todo autor é entreter os leitores, não importa
qual o gênero de ficção a que se dedique. Tentei fazer disto a minha
prioridade número um. Procurei adaptar o estilo ao homem, adequar cada
história ao seu ambiente, e manter-me fiel ao caráter fundamental do herói.
Dito assim, isto parece mais simples do que é. Escrever é um contínuo
processo de solucionar problemas, de lidar com ideias, de buscar palavras
adequadas, de criar personagens e enredos, de estabelecer tramas e
conflitos, mantendo a coerência e passando de uma linha a outra, até o pé
da página, de modo que o leitor seja envolvido e se torne parte senciente do
processo. E, como parte integrante desse processo — de fato, como centro
dele — o autor deve sentir-se profundamente interessado e envolvido pela
história que vai narrando. Trata-se de algo muito emocional. Se eu não for
capaz de sentir, Bolan também não o será. Se a história não me inspira
indignação, cólera, simpatia ou compaixão, não poderia exigir tais reações
dos meus personagens. Como poderia entreter ou até mesmo emocionar
meus leitores se eu próprio me colocasse acima de tais sentimentos?
Meu "estilo" de escrever é, portanto, antes de mais nada, uma tentativa
de distrair-me a mim mesmo. Tentativa de auto-envolvimento, de
participação empática na vida de Mack Bolan. E, por ser um sujeito
bastante comum, presumo que o que me interessa interessará também aos
meus leitores. Quando rio, presumo que eles estão rindo comigo — e não de
mim. O mesmo sucede quando choro.
Assim, não poderia ser objetivo em minha visão pessoal das histórias de
Bolan. Elas têm sido a própria essência de minha vida nos últimos oito anos.
Transformei-me em Mack Bolan — e Mack Bolan se transformou em mim —
mas detestaria ser chamado a separar os fragmentos dessas duas
personalidades que se tornaram interligadas durante uma associação de
oito anos, determinar quem sou e quem é Mack Bolan. Tal como cresci como
escritor, Bolan cresceu como personagem. E, na mesma proporção em que
se desenvolve o personagem, aumenta para o autor o desafio de descrevê-lo.
Andy Ettinger, que tem sido o meu editor durante todos estes anos, deu-
me permissão de revisar como eu desejasse a história original para esta
edição especial. E, sem dúvida, há várias coisas que eu trataria de modo
diferente se estivesse agora escrevendo este livro pela primeira vez. Mas, no
duro, não desejo mudar nada. Esta apresentação original de Mack Bolan é a
matéria bruta da qual foram feitos o homem e a sua guerra particular, e
seria injusto, a esta altura, dar novo arranjo aos fatos e circunstâncias que
lhe marcaram o nascimento. Naturalmente, ele não é hoje o mesmo homem
que era então — nem eu sou o mesmo. Crescemos juntos e mudamos juntos
— e espero sinceramente que tenha sido para melhor. O que quer que
sejamos hoje decorre diretamente do que éramos então. Não tentaremos
reescrever o passado. Continuaremos a tentativa de entreter-nos um ao
outro, de desafiar-nos um ao outro, de inspirar-nos um ao outro. E espe-
ramos humildemente que os nossos leitores continuem a partilhar do prazer
que isso nos proporciona.
Aos que tomam conhecimento desta série pela primeira vez: sejam bem-
vindos, e esperamos que se interessem o suficiente para retornar de vez em
quando.
Aos que aqui voltaram para rever o nascimento do herói: acham que
realmente mudamos tanto assim?
Don Pendleton
Abril 1976
Prólogo
Mack Bolan não nasceu para matar, como secretamente acreditavam
muitos dos seus companheiros e superiores. Não era um robô mecânico e
assassino, como diziam abertamente os integrantes de sua equipe de
atiradores de elite. Tampouco era um exterminador frio e implacável, como o
chamou certa vez o correspondente de um jornal esquerdista. Mack era
apenas um homem dotado de pleno autocontrole Encarnava o ideal definido
por certo psicólogo do Exército, encarregado de selecionar e avaliar
candidatos à equipe de atiradores: "Todo bom atirador de elite deve ser capaz
de matar metodicamente, fleumaticamente e pessoalmente. Pessoalmente
porque, quando se pode ver até a cor dos olhos da vitima através da mira
telescópica e seu ar de surpresa e pavor quando percebe que foi alvejada, a
coisa muda inteiramente. Qualquer bom soldado pode ser um bom atirador
de elite uma vez; mas é somente na segunda ou terceira vez, quando a
lembrança desses extermínios pessoais vem à tona, que os 'exterminadores'
se distinguem dos 'soldados'. Para muita gente, matar dessa maneira é o
mesmo que assassinar. É óbvio que não queremos loucos ou tarados em
nossas fileiras. O que procuramos, simplesmente, são homens capazes de
distinguir entre o assassinato e o cumprimento do dever, que compreendam
que matar por dever não é assassínio. E, finalmente, que se mantenham
calmos e frios quando acuados ou feridos."
Sem dúvida, o sargento Mack Bolan era esse tipo de homem. Especialista
em armamentos e artilheiro experiente, era dententor de vários prémios como
perito atirador em toda categoria de armas pessoais. Não mantinha um
registro particular de suas "matanças", mas a contagem oficial acusava um
total confirmado de 32 altos oficiais do Exército regular do Vietnã do Norte,
inclusive o General Ngo An; 46 líderes de guerrilhas vietconguês; e 17
dignitários civis de cidades inimigas. A narração a seguir, típica de uma
missão de atiradores de elite, encontra-se num relatório redigido pelo cabo T.
L. Mortimer, descobridor de Bolan, refere-se à última missão em que
atuaram juntos:

Equipe chega à Estação B às 04:35 horas. Às 04:50, praças


Thomas e Yancey, encarregados do reconhecimento, informam que
tudo vai bem. Estação B recebe homens e armamentos às 05:00 ho-
ras. Às 06:30 começa o movimento de pessoas na vila. Patrulha de
reconhecimento vietcongue chega às 06:42 e passa em revista os
habitantes. Às 06:50, Tra Houng e comitiva chegam à porta da re-
sidência do prefeito. Este e um desconhecido saem para dar boas-
vindas à comitiva de Huong. Alvos confirmados com sargento
Bolan e guia vietnamita. O primeiro tiro do sargento Bolan mata
Tra Huong (bala no pescoço). O segundo tiro perfura a têmpora do
prefeito, e o terceiro atinge nas costas o ajudante do Coronel
Huong (não identificado). Deixamos Estação B aproximadamente
às 06:52 horas. Missão inteiramente cumprida. Chegamos ao
Campo da Base às 09:40. Nenhum ferido em nossa turma de
atiradores.

O Vietnã trouxe para o soldado americano uma nova concepção de


guerra. Foi lá que os rapazes americanos se exercitaram em várias
"especialidades" sinistras. E talvez nenhuma fosse mais sinistra e mais espe-
cializada que aquela representada pelo sargento Mack Bolan. Bolan sentara
praça no Exército quando rapazote. Aos 30 anos, já era um veterano com 12
anos de experiência e tinha estado no Vietnã duas vezes. Jamais se casou. A
mãe, Elza, de 47 anos, pertencente à segunda geração de poloneses-
americanos, escrevia-lhe invariavelmente às terças e sextas-feiras de cada
semana, e remetia-lhe guloseimas duas vezes por mês — pacotes contendo
deliciosas salsichas polonesas, biscoitos e meia dúzia de bolinhos. Suas
cartas eram sempre alegres, sem queixas, e quase sempre acompanhadas de
fotos de Cindy, a irmã de Mack, que contava então 17 anos de idade, e de
Johnny, que acabara de completar 14 anos. Sam Bolan, pai de Mack,
trabalhava na indústria siderúrgica desde a idade de 16 anos. Mack gostava
de ver no pai um homem tão digno de confiança e tão indestrutível quanto o
aço que ele ajudava a fabricar; e, embora os dois não se escrevessem
diretamente, as cartas entre mãe e filho frequentemente serviam de veículo a
mensagens entre os dois.
Em uma carta de Elza, por exemplo: "Teu pai manda perguntar se é
verdade o que dizem a respeito das mulheres orientais. Ha-ha!"
E a resposta de Mack: "Diga ao papai que as mulheres orientais têm
muita coisa a nos ensinar, e que eu pretendo aprender tudo antes de voltar.
Ha-ha-ha!"
Na época em que aconteceu a tragédia, Cindy Bolan acabava de terminar
o curso ginasial. Para ela, o irmão mais velho representava o ideal de
perfeição masculina. Escrevia-lhe todas as noites, à maneira de diário,
remetendo-lhe várias páginas uma vez por semana, quase sempre confiando-
lhe seus temores e problemas. Por exemplo: "Mary Ann já me convidou
várias vezes para ir a festinhas de embalo, onde se fuma maconha. Você já
fumou? Ouvi dizer que é muito comum no Vietnã."
A resposta do conselheiro Mack não tardou a chegar: "Quem tem amigas
como Mary Ann não precisa de inimigas. Quanto a mim, com todos os
inimigos que já tenho aqui, não preciso de maconha."
Em outra troca de cartas, Cindy dizia: "Acho que estou tendo um
problema. Quando é que as coisas entre um rapaz e uma moça começam a
passar dos limites? Nunca tive esse problema com Steve, mas Chuck me
deixa agitada o tempo todo. Acho que o problema dele são as mãos. Sabe o
que quero dizer? Sou doida por ele, mas não sei como dar um jeito nisso."
Mack tinha um modo típico de dar conselhos, e sua resposta foi: "O
problema não é de Chuck, meu bem, é seu. E você sabe muito bem como
resolvê-lo, se quiser. Certo?"
Por sua vez, a resposta de Cindy era típica dessas confidências entre
irmãos: "Por falar nisso, acabei com o problema de Chuck. Como o resolvi?
Foi simples: acabei com o Chuck."
Numa carta da Sra. Bolan, datada de fins da primavera, ela dizia ao filho:
"Agora que o pior já passou, acho que devo lhe dizer que seu pai tem
passado por certas dificuldades. Sofreu de um ligeiro ataque do coração em
janeiro último, e o médico proibiu-o de trabalhar durante algum tempo.
Andamos cortando despesas e conseguimos viver com o auxílio-doença.
Agora ele já voltou a trabalhar e tudo parece ter retornado ao normal.
Naturalmente, certas contas deixaram de ser pagas, mas acho que
conseguiremos pôr tudo em dia de novo. Cindy já havia decidido trabalhar
durante um ano antes de entrar para a faculdade, e acho que foi isso o que
mais aborreceu teu pai — ele não quer que ela interrompa os estudos. Como
você sabe, ele sempre teve remorsos de não ter podido matriculá-lo numa
escola superior. Mas, agora tudo está bem, e não quero que você se
preocupe. E não mande dinheiro para casa. Teu pai ficaria possesso!"
Pouco depois, no dia 12 de agosto, o sargento Bolan foi chamado para
uma entrevista com o capelão do campo em que servia, e ficou sabendo da
morte do pai. E da mãe. E da irmã. O comunicado oficial acrescentava ainda
que o menor Johnny Bolan estava em estado crítico, mas os médicos
esperavam que ele sobrevivesse. Bolan foi levado de volta aos Estados
Unidos num avião militar, a fim de providenciar os enterros e a guarda do
irmão órfão.
Foi um retorno pesaroso e traumático para ele. O trauma foi ainda maior
quando o sargento Bolan veio a saber das circunstâncias da morte de seus
três parentes por intermédio de detetive da delegacia de homicídios que o
recebeu no aeroporto. Aparentemente, o velho Bolan "perdera o juízo" e,
sem motivo algum, descarregara uma pistola contra a mulher, o filho, a filha
e, finalmente, contra si próprio. Somente o filho sobreviveu.
Quarenta e oito horas depois, o pequeno Johnny Bolan melhorara o
bastante para sair do CTI para uma ala menos crítica do hospital, e seu aflito
irmão mais velho pôde finalmente reconstituir os acontecimentos que haviam
motivado a tragédia. Na declaração que fez a uma estenógrafa da polícia, em
seu leito de hospital, Johnny disse:
O papai tinha estado doente e não pôde trabalhar durante
algum tempo. Algumas contas estavam atrasadas, e ele andava
preocupado com um dinheiro que tomara emprestado há coisa de
um ano. Depois voltou a trabalhar, mas não no mesmo cargo de
antes, por causa do coração, e no cargo novo ele ganhava menos.
Andava aborrecido, por causa das contas e por estar em atraso, e
foi aí que esses caras começaram a procurá-lo no local de trabalho
— os caras aos quais ele devia dinheiro. Uma noite, ouvi quando
ele disse à mamãe que aqueles sujeitos eram uns vampiros, que
queriam tirar-lhe quase todo o ordenado, deixando-o sem o mínimo
necessário para sustentar a família. E disse que podiam todos ir
para o inferno. Depois, certa noite, voltou para casa com o braço
deslocado. Tinha sido agredido pelos caras. A mamãe ficou
chocada. Tinha medo que o papai tivesse outro ataque do coração.
Queria chamar a polícia, mas o papai não deixou. Segundo ele, os
caras se vingariam nela e nos filhos. Ouvi quando a mamãe contou
tudo à Cindy. Depois, as coisas se endireitaram, faz poucas
semanas. O papai disse que não sabia por quê, mas os caras
tinham deixado ele em paz, assim sem mais nem menos. Ainda
bem. E aí outra coisa aconteceu. Não sei bem o que foi. Sei que o
papai começou a berrar e a subir pelas paredes. A mamãe e a
Cindy queriam acalmá-lo, com medo que ele tivesse outro ataque.
E logo depois, não sei como, ele estava com uma pistola velha na
mão, disparando um tiro após outro. Um dos tiros me pegou.
Depois o papai voltou para o quarto e eu ouvi mais um tiro, e aí
desmaiei. É tudo o que sei.

Era tudo o que Johnny estava disposto a contar à polícia, e seu


depoimento foi suficiente para encerrar o caso como "assassinato seguido de
suicídio". Para o sargento Mack Bolan, porém, o caso estava longe de ser
encerrado. Johnny não pretendia esconder do irmão certos detalhes e, numa
conversa particular com Mack, contou-lhe que Cindy tinha se envolvido com
os "caras" que andavam pressionando o pai.
— Ela foi procurar os caras — disse Johnny — e contou-lhes que o papai
sofria do coração, e pediu que eles deixassem ele em paz. Ela mesma me
contou. O que ela não me contou foi o tipo de transação que concordou em
fazer com eles depois disso. No começo, ela só entregava a eles todo o
ordenado que recebia por semana. Sabe, ela só ganhava trinta e cinco dólares
por semana, e era dinheiro que ela devia pôr no banco para pagar a faculdade
mais tarde. Depois, descobri que ela estava trabalhando para eles, Mack. Ela
estava... fazendo a vida. Não me olhe desse jeito, é a verdade. Houve uma
noite em que eu a segui e vi com meus próprios olhos. Eu sabia que ela
andava chateada com alguma coisa, não sabia o que era. Não tinha intenção
de espionar, só queria saber o que era. E descobri. Ela entrou num motel e eu
fiquei do lado de fora. Vi um sujeito entrar. Depois que ele saiu, eu entrei. A
porta nem estava trancada. Cindy estava na cama, nua, chorando. Quase
morreu de susto quando me viu. Disse que precisava resgatar logo a dívida
do papai, senão aqueles caras o agrediam de novo. Disse que eles tinham
dado a ela um mês, só um mês, para pagar quinhentos dólares, e deixaram
bem claro como ela podia ganhar esse dinheiro. Eles mesmos acertaram
tudo, e mandaram um cara chamado Leo para conversar com ela. Era Leo
que marcava os encontros. Depois telefonava a Cindy e dizia o local e a hora.
Naquele dia, ela havia acabado de ter seu terceiro encontro. Eu disse a ela
que aquilo não ia dar certo, que o papai não iria concordar. Ela respondeu
que não era uma questão do papai concordar ou não, era o que tinha de ser
feito. Não houve jeito de convencê-la. E aí eu fiz uma besteira. Resolvi
contar ao papai. Eu sabia que ele daria um jeito na Cindy. Quero dizer, sabia
que ele ia proibir que ela continuasse a fazer aquilo. Puxa, Mack, jamais
imaginei que ele fosse ficar tão furioso. Ficou completamente fora de si. Para
começar, me deu um soco na boca. Me derrubou. Eu vi estrelas. Eu ali,
deitado no chão, e ele gritando e esbravejando como se tivesse ficado louco.
Sabe o que eu acho? Acho que ele tinha alguma ideia de que algo estranho
andava acontecendo. Me lembro da expressão dos olhos dele quando eu
contei, como quem começa a ver a luz, sabe como é? Mas assim mesmo
nunca eu tinha visto ele reagir daquela maneira. Me segurou, me pôs de pé
novamente, e me esbofeteou com a palma da mão, gritando: "Isso é mentira,
não é? Diga que isso é mentira'" Johnny fez uma pausa e continuou: — Aí a
Cindy entrou correndo. Tratou de fazer com que o papai me soltasse, os dois
gritando, aos berros. Finalmente papai me largou, e os dois trocaram algumas
palavras, não me lembro o que foi, só sei que o papai repetia: "Isso é
mentira, isso é mentira", e que a Cindy me disse para não ficar preocupado,
que o que eu fizera não tinha importância. Ah, sim! Me lembro que ela disse
que seria capaz de vender a alma, se fosse preciso, que o papai era mais
importante para ela que qualquer falsa moralidade, e acho que foi isto que
deu aquela transformação nele. Ele se calou de repente. Só então a mamãe
chegou correndo. Veja bem, foi tudo uma questão de segundos. A mamãe
estava dormindo no quarto ao lado, e você sabe que ela tem o sono leve.
Quando ela chegou, a discussão já tinha acabado.
Com os olhos cheios de lágrimas, o garoto prosseguiu:
— Ela e Cindy trataram de cuidar de minha boca, de fazer parar o
sangue. Papai estava de pé num canto, de braços cruzados, nos olhando.
Acho que nunca mais vou esquecer aquela expressão no rosto dele, Mack.
Me lembro de que ele disse alguma coisa, alguma bobagem, daquele jeito
calmo que ele tinha de conversar com a gente, você sabe. Numa voz de quem
estava meditando nas coisas. Ele disse: "Cindy, quero que você se forme na
faculdade, meu bem." Acho que a Cindy nem ouviu. Ela estava tirando gelo
de uma bandeja para fazer uma compressa fria. De qualquer jeito, ela não
respondeu. Ele saiu da sala e foi para o quarto. E dali a pouco voltou e parou
no umbral da porta. Na mão dele estava aquela pistola velha, a Smith &
Wesson que o tio Billy tinha dado a ele. Eu ainda quis gritar, mas nem tive
tempo. A mamãe e a Cindy estavam cuidando de mim, debruçadas por cima
de mim. E ele atirou em mim primeiro. Eu cheguei a vê-lo puxar o gatilho,
quer dizer, vi o dedo dele se mexer. E ai era como se o mundo estivesse se
acabando. Ele apertou várias vezes o gatilho. Vi a mamãe e a Cindy caírem,
enquanto ele continuava a atirar. Ele ficou ali, de pé, olhando para mim,
depois de ter esvaziado a arma. A mamãe e a Cindy estavam meio por cima
de mim, um braço da mamãe em torno do meu pescoço. E eu olhando para
ele, como se somente nós dois estivéssemos ali. E ele disse: "Desculpe,
Johnny, por ter batido em você." Depois, voltou para o quarto. Em seguida,
ouvi outro tiro. E aí alguém começou a bater com força na porta da frente, e
eu desmaiei.
Como único comentário ao relato emocionado do irmão, Mack Bolan
deixou escapar um palavrão por entre os dentes. Mas uma anotação em seu
diário, datado de 16 de agosto, esclarece melhor sua reação àquela tríplice
tragédia: "Cindy apenas fez o que achava que devia fazer. O papai também, à
sua maneira, quer estivesse certo ou errado. A mim, portanto, não resta outra
coisa senão fazer o que acho que deve ser feito."
Datada do dia seguinte, vem outra anotação: "Pelo visto, andei
combatendo o inimigo errado. Para que defender uma frente de batalha a
13.000 quilômetros de distância, quando o verdadeiro inimigo está aqui
mesmo, destruindo tudo o que prezamos? Estive falando com a polícia a este
respeito, e aparentemente eles nada podem fazer. Os regulamentos estão
contra eles. Saber quem é o inimigo não é bastante. Eles precisam apresentar
provas à justiça, e ainda assim às vezes o inimigo escapa. O que precisamos
é passar à ação direta, estrategicamente planejada. No Vietnã, chamávamos a
isso de 'guerra de atrito'. Busca e destruição. Exterminar o inimigo. Acho que
é tempo de adotarmos aqui o mesmo tipo de guerra. Exatamente o mesmo
tipo de guerra."
No dia 18 de agosto, uma loja de artigos de caça foi arrombada durante a
noite. O proprietário declarou que um rifle de caça, de alta potência, além de
uma mira telescópica de grande alcance, meia dúzia de alvos e várias caixas
de munição tinham desaparecido. Sobre a registradora, ficara um envelope
com dinheiro suficiente para indenizar as perdas. "Para mim, é como se a
casa houvesse vendido essas coisas durante a noite, sem a presença do
vendedor," disse o proprietário à polícia. "Ninguém mexeu em mais nada e,
em minha opinião, não houve crime."
A 19 de agosto, o vigia de uma pedreira abandonada, nos arredores de
Pittsfield, escutou uns tiros que pareciam vir do fundo de um barranco das
redondezas. "Não cheguei a descer até lá para falar com o cara", disse ele
mais tarde. "Ele não estava causando dano a ninguém ou a coisa alguma.
Estava usando aquele local ermo como linha de tiro, e disparava contra o
alvo a uma distância de cem metros. A arma parecia de grosso calibre, algo
mais forte que um rifle 30-06, mas vocês sabem como essas grotas de pedra
produzem eco, e é difícil dizer que tipo de arma era aquela. Fiquei olhando o
sujeito durante um bom tempo. De vez em quando, ele parava e mexia na
arma, como se estivesse ajustando a mira ou coisa parecida. Disparava cinco
tiros, mexia na arma, disparava outros cinco, tornava a mexer. Deve ter
ficado lá umas duas horas, mas eu não cheguei a descer para falar com ele. O
local é perfeito para a prática de tiro ao alvo. Não havia mal nenhum. Até eu
pratico meus tiros lá, de vez em quando. Não faz mal a ninguém."
Outra anotação no diário de Bolan, com data de 19 de agosto:

Fiquei realmente surpreso com este rifle Marlin. Nunca tinha


usado um 444 antes. O impacto da bala, próximo ao cano, deve ser
coisa de uma tonelada e meia. Seja como for, é o bastante para
derrubar um urso das montanhas. Eliminar os ratos que tenho em
vista não deve ser problema nenhum. Exercitei a pontaria a cem,
cento e dez e duzentos e vinte metros, e marquei as correções na
mira telescópica. Foi sopa. Deixei-o também mais macio, de modo
a obter uma sucessão de tiros mais rápida. Mas pretendo voltar
amanhã ao barranco e tornar a verificar a mira, usando a luneta.
Quero evitar qualquer margem de erro.
A 21 de agosto, Bolan escrevia no diário:
Ótimo. Localizei e identifiquei o primeiro bando deles. O
tenente da polícia foi quem me deu o serviço sobre a TIF. Trata-se
da Triangle Industrial Finance, uma firma que empresta dinheiro,
legalizada e tudo, mas os caras arrumaram um jeito de burlar a lei
e cobrar juros exorbitantes. Contra a polícia estão protegidos, mas
não contra o Executor. Já fiz o reconhecimento, e também já
identifiquei os alvos. Laurenti é o número um, o comandante da
operação local. Toda tarde, às 17:50, um sujeito chamado Mister
Erwin estaciona o carro dele em frente ao escritório. O outro
Mister é um tipo chamado Janus — Mister Janus. Deve ser
alguma piada entre eles. Eles só chamam de "Mister" os que
andam armados. Carregam as pistolas em coldres debaixo do
braço. Tem um chamado Brokaw, que tem jeito de vendedor. Deve
ser o encarregado do escritório. O outro, com ar de universitário, é
Pete Rodriguez. É contador, e tão bandido quanto os outros. Os
cinco partem do escritorio às 18:00 horas, todo fim de tarde, e vão
fazer a ronda das agências a fim de apanhar o dinheiro coletado
por seus capangas. Em seguida, visitam pessoalmente alguns
clientes cujos pagamentos estejam em atraso. Mas não hoje à
noite! O Executor montou sua própria agência de coletas no
quarto andar do Edifício Delsey. É uma perfeita posição de tiro.
Estive lá ontem à noite, verificando meus ângulos e fazendo as
devidas correções. Vai ser mole, como matar ratazanas num barril.
A situação me lembra um pouco aquela de Nha Tran. Os alvos só
podem correr para um lugar: o chão. E é exatamente onde eu os
quero. Acertarei primeiro os dois "Misters". Com isto, fica
eliminada a possibilidade de responderem ao fogo, e haverá menos
balas perdidas ricocheteando em volta. Nenhum problema. Terei
todo o tempo que quiser para acertar o Laurenti. No ensaio de hoje,
cronometrei meus movimentos: seis segundos ao todo, isto
contando com a possibilidade de que eles se espalhem em todas as
direções depois do primeiro tiro. Acho que conseguirei reduzir esse
tempo amanhã, pois não creio que esses caras tenham estado em
combate antes. Acho que terei pegado a metade deles antes que a
reação comece. Enfim, veremos. Veremos, papai.
***
No dia 22 de agosto, oito dias depois do enterro dos parentes de Bolan,
cinco funcionários de uma financeira foram abatidos a tiros na rua, diante do
escritório da firma em Pittsfield, cidade natal de Bolan. Uma testemunha
ocular do incidente, jornaleiro cuja banca fica na esquina próxima ao local
do tiroteio, assim narrou o caso:
— Esses cinco sujeitos saíram da financeira, quase na hora de fechar.
Dois vinham como que discutindo um com o outro. Um deles trazia uma
espécie de maleta na mão. Os dois pararam junto ao carro estacionado no
meio-fio diante do escritório. Um outro cara pôs o pé no asfalto, acho que
para dar a volta por trás do carro e entrar pela porta da esquerda. De repente,
parou, torceu o corpo e girou a cabeça em minha direção. Cheguei a ver a
expressão dos olhos dele, de tão perto — estavam esbugalhados de medo. O
sangue esguichava do pescoço. Vi tudo isso antes de ouvir o primeiro tiro.
Veio do alto de algum edifício desses aí. Foi um estrondo, fez um eco
danado na rua, como um trovão, sabe, como o estouro de uma arma de matar
elefante. Não sei ao certo de onde veio, só sei que foi de algum edifício nesta
rua mesmo. E tudo se passou muito depressa, em menos tempo do que eu
levo para dizer estas coisas. Os caras ficaram tontos, abobalhados, parados
no meio-fio, enquanto o outro caía na rua. Depois foi a vez do segundo, que
ainda chegou a erguer a mão antes que a cabeça explodisse, espalhando
miolos por toda parte. Uma sangreira, cara. Os outros tentaram fugir. Um
abriu a porta do carro para se esconder lá dentro. Os outros dois ainda
quiseram correr para dentro do edifício. E os tiros comendo à solta, um atrás
do outro, sabe como é? Pá-pá-pá-pá-pá, assim mesmo. Cinco tiros. Tenho
certeza de que só foram cinco. E, no fim, cinco cadáveres, cinco presuntos
amontoados na rua, mortinhos da silva. Todos alvejados dos ombros para
cima. Um negócio de arrepiar, cara.
Um policial à paisana, num comentário sobre o incidente, disse a um
jornalista:
— Já se foi o tempo em que eu ficava abalado com esses tiroteios entre
bandos rivais. Pois é claro que não se trata de outra coisa. Há muito tempo
sabíamos que essa arapuca, a financeira, tinha ligações com a Máfia. Só que
jamais conseguimos ajuntar as provas para metê-los na cadeia. Enquanto for
uma guerra limpa, quero dizer, enquanto não matarem nem ferirem tran-
seuntes inocentes, tudo bem: podem se exterminar à vontade, que eu é que
não vou chorar. É isso aí, moço, um expurgo entre marginais. Pode crer.
Esse impassível representante da lei estava certo num ponto, mas
inteiramente errado em outro. O incidente realmente representou o começo
de uma guerra: mas, se num dos lados estava a Máfia, no outro estava um
homem só. Mack Bolan, o homem que matava no cumprimento do dever,
decidira prosseguir a sua velha luta num novo campo de batalha, e declarara
guerra contra o mais organizado sindicato do crime da história do mundo.
Em seu diário, com data de 22 de agosto, leem-se estas breves palavras:
Agora são cinco de menos. Missão bem-sucedida. Identidades
confirmadas em relato oficioso da polícia. A Máfia, vejam só! E
daí? Não hão de ser mais perigosos ou mais espertos que os
vietcongues. Cinco de menos. Quantos ainda faltam? Cem? Mil?
Dez Mil? Donde se conclui que tenho nas mãos outra guerra na
qual a vitória é impossível. Ganhar, porém, nem sempre é o mais
importante. O esforço que se faz é que é anotado no Grande Livro
— e lá constará que Mack Bolan lutou por uma boa causa. Isso é o
que importa. Agora, tratemos de localizar esse tal de Leo.
Bolan, o Executor, resolvera medir forças com a Máfia.

1.ª PARTE
1. Quando o Destino Sorri
Na porta de vidro fosco, um dístico em letras douradas: "Plasky & Cia."
Um homem alto, metido num uniforme do exército, deteve-se um instante, a
mão sobre a larga maçaneta de madeira, para em seguida entrar e fechar a
porta atrás de si. Era um escritório espaçoso, dividido em pequenos
compartimentos por um labirinto de gradis de ferro de meia altura. Em cada
compartimento, uma moderna escrivaninha com uma pequena mesa ao lado.
Junto a cada escrivaninha, duas cadeiras de estofo simples de plástico.
Àquela hora, o ambiente estava praticamente deserto.
Uma bonita garota de cabelos negros estava sentada à mesa da recepção.
Parecia entretida a desenhar num bloco de rascunho, a cadeira giratória
voltada na direção da porta de entrada, de sorte que, enquanto a parte
superior do corpo ficava debruçada sobre a mesa, a parte inferior exibia, para
quem chegasse ali de repente, um vistoso par de pernas, de pele macia e
sedosa, que espontavam provocantemente da minissaia justa e apertada. Sem
se dar ao trabalho de mudar de posição, ela dirigiu ao visitante um sorriso
forçado.
— Bom dia — disse o homem, num tom firme e cordial de quem está
habituado a dar ordens.
— Não chegou ninguém ainda — anunciou ela, voltando o olhar na
direção das mesas desertas, como a confirmar o que dizia. — Se quiser
esperar...
— Meu nome é Mack Bolan — disse ele, fitando com interesse as curvas
das pernas, desde o joelho até os tornozelos. — O Sr. Plasky marcou
entrevista comigo às nove. — E, olhando o relógio de pulso: — Já são nove.
— Bem, é possível que ele já tenha chegado, disse ela, passando a tratá-
lo com maior respeito.
E, enquanto o mirava com indisfarçável curiosidade, apertou o botão do
telefone da mesa e sussurrou:
— O Sr. Bolan está aqui — Logo em seguida, sem afastar o fone do
ouvido, disse para Bolan: — Pode entrar.
Este fez um gesto inquisitivo, apontando para uma porta ao fundo do
corredor. A garota apenas acenou afirmativamente com a cabeça, enquanto
soltava um risinho espremido ao telefone:
— Sr. Plasky!
Bolan sorriu e pôs-se a caminhar pelo corredor, ao longo das divisórias
devassáveis, e abriu a porta de madeira de uma sala reservada. Enquanto
entrava, tornou a olhar para a recepcionista, que ainda soltava risinhos
divertidos, o ouvido colado ao fone. Lá dentro, atrás de uma grande mesa,
um homem estava refestelado sobre uma poltrona giratória, de costas para a
porta, os pés acomodados sobre o batente da janela, o telefone preso
levemente entre a cabeça e o ombro. Pelo jeito, estava muito entretido em
contar alguma anedota picante à recepcionista.
Bolan sentou-se numa poltrona de couro e acendeu um cigarro. Plasky
terminou a anedota, explodiu numa gargalhada e passou imediatamente a
contar outra, girando a poltrona para encarar o visitante e elevando a voz
para que este também pudesse ouvir. Apesar de todo o bom humor e
hilaridade, Bolan sabia que Plasky o examinava de alto a baixo, e tratou de
examiná-lo também. Era um homem corpulento, porém enxuto, de peito e
ombros largos. A mão que segurava o fone era forte, de dedos grossos e
curtos e unhas bem tratadas. Bolan calculou que ele devia ter cerca de
quarenta anos. Os cabelos eram claros, quase louros. Completava-lhe a
aparência um rosto bem esculpido, saudável e cuidadosamente barbeado.
Definitivamente, não era antipático.
Bolan esboçou um sorriso ao ouvir o final da anedota, enquanto o riso
divertido da telefonista fazia vibrar o fone no ouvido de Plasky. Só então este
último depôs o telefone no gancho, reassumiu um ar grave e fitou o visitante:
— São coisas que ajudam a manter boas relações com os empregados,
disse ele, no tom comedido que convém a um homem de negócios. — E,
após uma ligeira pausa: — Então é o Sr. Bolan?
O visitante fez um gesto afirmativo de cabeça:
— Mack Bolan. Estou de passagem pela cidade, e achei conveniente vir
logo aqui e procurar resolver esse caso.
Os dedos de Plasky brincavam com um envelope fechado, de papel
pardo, que jazia sobre a mesa.
— Foi bom que tivesse entrado em contato conosco — disse ele. —
Naturalmente, compreende nossa posição. Somos... hã... uma firma de
auditoria. Entende, não? E aquele... terrível incidente com o pessoal da
Triangle...
— Não ficarei por aqui muito tempo — insistiu Bolan. — Disseram-me
que os senhores estão provisoriamente encarregados dos negócios da
Triangle.
— Coisa inacreditável, não? — comentou Plasky, em voz baixa. —
Cinco bons funcionários, veja bem, e aparece algum maluco, algum
alucinado, e lá se vão todos, fuzilados sem mais nem menos — soltou um
suspiro. — Tenho aqui... hã... os papéis referentes ao seu pai, Sr. Bolan —
abriu o envelope, examinou rapidamente o seu conteúdo e tornou a fechá-lo.
— Francamente, a conta-corrente do seu pai está uma bagunça. Pagamentos
atrasadíssimos.
Bolan tirou do bolso uma cadernetinha de mola espiral e atirou-a sobre a
mesa.
— Pelo que está anotado aqui, não há bagunça nenhuma — disse ele. —
São os apontamentos do meu pai. Há onze meses ele pediu emprestados
quatrocentos dólares. Devolveu quinhentos e cinquenta. E tenho motivos
para crer que outros pagamentos, não registrados nessa caderneta, foram
feitos por outros membros da família. Portanto, deve haver algum engano em
sua contabilidade, Sr. Plasky.
Plasky sorriu e abriu as mãos num gesto largo sobre a mesa, ignorando a
caderneta.
— As financeiras não são instituições de caridade, Sr. Bolan. E pode
estar certo de que a nossa contabilidade não erra. Toda conta é examinada
várias vezes e...
— Ele pediu emprestados quatrocentos e pagou quinhentos e cinquenta
— repetiu Bolan. — A dívida, portanto, já deve estar paga.
Plasky sorriu com condescendência:
— Compreendo sua confusão, sargento — falava como se os sargentos
constituíssem um grupo à parte, dotado de inteligência inferior. — Como já
disse, as financeiras não são instituições de caridade. Simplesmente alugam
dinheiro. Tudo não passa de um mero contrato de arrendamento. Quando se
aluga uma casa ou um carro, paga-se aluguel todo mês e ainda se de¬volve a
propriedade, toda ela, ao fim do contrato de aluguel. Certo?
Bolan limitou-se a fazer um leve gesto de assentimento.
— Alugamos certa soma de dinheiro ao seu pai por um período
específico de noventa dias. Se, ao cabo desse tempo, seu pai houvesse
devolvido a propriedade, tendo pago todos os aluguéis, a dívida teria sido
liquidada. Mas ele não devolveu. É claro que, em qualquer transação
comercial, existem certas penalidades, certas multas destinadas a punir a
parte que deixa de cumprir suas obrigações. Não é só o senhor: muita gente
não entende como funciona o mundo das finanças. Ora, seu pai mal
conseguiu pagar os aluguéis e parte das multas. Quanto à propriedade que ele
alugou, ou seja, o nosso dinheiro, ele não devolveu. É justo que a queiramos
de volta, não?
— Quinhentos e cinquenta dólares são um aluguel pesado para uns meros
quatrocentos — disse Bolan, calmamente.
— Não esqueça as multas — retrucou Plasky. E, abrindo um sorriso: —
Muito bem, o senhor é um homem inteligente, Sr. Bolan. Tem razão,
cobramos juros elevados. Acontece que os riscos que enfrentamos em nossos
empréstimos são tão altos que desencorajariam qualquer outra financeira. Por
que seu pai não recorreu a um banco? O senhor sabe muito bem por quê.
Nenhum banco arriscaria um níquel com o seu pai. Nós arriscamos. E não foi
um níquel, foram quatrocentos dólares. Para ser franco, sargento, seu pai era
um cliente duvidoso. É uma verdade cruel, mas as nossas taxas de juros têm
de levar em conta esse fato. Além disso, não forçamos ninguém a fazer
negócio conosco. Nós...
— O senhor não para de dizer nós — interrompeu Bolan. — Pensei que...
— Plaskv & Cia. é uma associada da Triangle, naturalmente — disse
Plasky. — Ora, muito bem. Podemos então encerrar esta conta? O senhor
está disposto a liquidar a dívida de seu pai?
— Para mim, já está liquidada — respondeu Bolan, com toda a calma. —
Vim aqui exatamente para lhe dizer isto
— Tratamos diretamente com o seu pai — disse Plasky, começando a
ficar vermelho. — Ele terá de vir aqui e falar por si mesmo.
— Seria ótimo, Sr. Plasky. Acontece que ele foi enterrado há dez dias.
Houve um momento de silêncio, durante o qual Plasky abriu e fechou o
envelope pardo diversas vezes. Finalmente disse:
— Então terei de enviar estes papéis ao nosso departamento jurídico.
Podemos requerer a venda de parte do espólio.
— Meu pai não deixou espólio, e vocês sabem disso muito bem —
replicou Bolan. — A dívida já foi paga, Plasky. Ele recebeu quatrocentos e
devolveu muito mais. Não há mais dívida.
E levantou-se para sair.
— Não sabe o que está dizendo! — grunhiu Plasky, erguendo-se
também.
— Por quê? O seu departamento jurídico vai fazer as malas, com soco
inglês e tudo, e me seguir até o Vietnã?
— Vietnã? — repetiu o outro.
— Deram-me licença especial para vir aqui enterrar o velho. Tenho de
retornar ao Vietnã dentro de alguns dias. Por falar nisso...
E Bolan tornou a sentar-se. A fúria contida deixava ainda mais rubro o
rosto de Plasky.
— Sim?
— Vi quando mataram aqueles sujeitos.
— De que está falando? Que sujeitos?
— Os rapazes da Triangle. Vi quando foram fuzilados.
— E daí? — rosnou Plasky, os punhos cerrados apoiados à borda da
mesa.
— Daí, vi quem disparou os tiros.
Fez-se na sala, de repente, um silêncio tenso e elétrico, durante o qual
podia-se ouvir o estalar das juntas dos dedos de Plasky.
— Deu parte à polícia? — quis saber ele.
— E envolver-me numa trapalhada daquelas? — disse Bolan, dando a
entender, pelo tom de voz, que jamais pensaria em fazer tal coisa.
— Meus associados — disse Plasky — gostariam muito de tomar
conhecimento de suas... observações.
— Como já disse, tenho de regressar ao Vietnã dentro de alguns dias —
disse Bolan.
— Eu... hã... poderia convocar rapidamente uma reunião.
— Minha intenção era distrair-me e divertir-me um pouco, antes de
retornar à selva — disse o sargento. — Não quero assumir compromissos.
— Posso garantir que você terá todo o divertimento que desejar —
atalhou Plasky, apressando-se a estender a mão ao telefone.
Bolan deteve-o:
— Neste caso, aquele outro assunto fica encerrado.
— Que outro assunto?
— A dívida. A dívida de meu pai fica liquidada.
— Claro! Claro que está liquidada!
— Então devolva-me a promissória.
Plasky meteu a mão no envelope, tirou de lá um papel semelhante a uma
promissória e entregou-o a Bolan. Este examinou-o detidamente; depois,
com um resmungo, dobrou-o e meteu-o no bolso. Plasky pôs-se a discar um
número.
— Acredita em destino, Bolan? — perguntou ele, obviamente satisfeito
com o rumo que as coisas tinham tomado.
— Se acredito! Nunca acreditei tanto no destino, Sr. Plasky — respondeu
Mack Bolan.
E um sorriso aflorou aos lábios do Executor.
2. O Plano
Mack Bolan não tinha ilusões quanto à tarefa que se impusera a si
mesmo. Não era nenhum idealista cheio de entusiasmo, como também não
era um fanático sedento de vingança. Tinha um lema bastante realista:
"Quanto menos responsabilidade, melhor." Não acreditava necessariamente
que se deva morrer por uma causa nobre; achava simplesmente que todo
homem deve cumprir o seu dever como melhor lhe pareça. Talvez isto fosse
uma característica de sua família, característica que poderia levar a certos
atos desastrosos, como os cometidos recentemente por sua irmã, seu irmão e
seu pai. Mas, no momento, o dever nunca parecera tão claro a Mack Bolan.
Via um tumor maligno na garganta de seu país, e via que as instituições
americanas não podiam ou não estavam dispostas a combatê-lo. Via também
que estava equipado e em excelente posição de desferir um golpe certeiro
contra pelo menos parte daquela excrescência maligna. Para um homem
como Mack Bolan, isto equivalia a ser convocado para a guerra. Mas, não
tinha ilusões. Conhecia os riscos, a reduzida possibilidade de sucesso. Ia
violar a lei, naturalmente. Aos olhos da sociedade na qual vivia, já era
culpado de cinco homicídios.
Caso viesse a ser preso, não poderia contar com a benevolência dos
tribunais. Era bem possível que a polícia já estivesse em sua pista àquela
altura. Após sua visita ao escritório de Plasky, verificara que "a organização"
também estava profundamente interessada na matança do pessoal da
Triangle Industrial. Convencera-se de que o poderoso grupo de mafiosos
tinha seus contatos dentro e fora da sociedade, e um serviço de informações
que, mais cedo ou mais tarde, os levaria inevitavelmente a desmascarar
Mack Bolan.
Sua visita à Plasky & Cia., porém, não fora uma bravata irrefletida nem
tolice de amador. Sabia exatamente o que estava fazendo ou tentando fazer.
Acercara-se do inimigo estritamente de acordo com um cuidadoso plano de
batalha. E o plano era: busca e destruição. Localizar, identificar para, depois,
executar — antes que o inimigo consiga se refazer e contra-atacar. No
momento, a vantagem estava do seu lado e ele precisava tirar proveito dessa
vantagem. Descobrira quem estava por trás da Triangle Industrial. O passo
seguinte era a infiltração na organização.
Infiltração!
Identificação dos alvos!
Confirmação!
DESTRUIÇÃO!
Era este o plano. Em algum ponto daquela trama havia um homem
chamado Leo. E Bolan teria de confessar que antevia esse encontro com algo
bem mais forte que o mero senso do dever. Leo também fazia parte do plano.
3. Questão Legal
O Tenente-detetive Al Weatherbee dirigiu um olhar vazio à pilha de
papéis que ocupava o centro exato de sua mesa, mordeu pensativamente o
lábio inferior durante alguns instantes e, em seguida, ergueu-se da cadeira e
caminhou, com todos os seus cento e poucos quilos, em direção à porta
fechada. Em meio à trajetória, porém, deteve-se, voltou à mesa, remexeu a
papelada e tirou de lá um relatório. Releu-o, resmungou alguma coisa, tornou
a colocar o papel no lugar e, desta vez, completou a caminhada até a porta.
Abriu-a e disse a um homem de pele escura sentado lá fora:
— Faça entrar aquele militar, Jack.
Deixou a porta entreaberta, retomou seu assento atrás da escrivaninha,
acendeu um cigarro, e mirava novamente a imponente pilha de papéis
quando entrou na sala um policial de uniforme, seguido de outro homem,
também uniformizado. Weatherbee fitou-o e fez um trejeito — um repuxar
de lábios e bochechas que poderia ser interpretado como um sorriso.
— Devo ficar, tenente? — indagou o policial.
Weatherbee abanou a cabeça, numa firme negativa, e estendeu a mão ao
homem alto que trajava um uniforme do Exército.
— Sou o Tenente Weatherbee — disse ele. — Sente- se, sargento Bolan.
O homem alto apertou-lhe a mão e acomodou-se numa cadeira ao lado da
mesa, fitando o tenente nos olhos. Weatherbee esperou que a porta se
fechasse, e só então sorriu genuinamente.
— Vejo aí no seu peito uma bonita salada de frutas — disse ele,
inclinando-se para ver melhor as condecorações que o sargento trazia ao
peito. — Este aqui é o Coração de Púrpura, esta outra é a medalha de atirador
de elite e... sim, esta terceira é a Estrela de Bronze. As outras não são do meu
tempo. É perito em quantas armas, sargento?
Bolan retribuiu, sem vacilar, o olhar penetrante do detetive:
— Praticamente qualquer arma de uso pessoal — disse ele.
— Suficientemente perito para disparar cinco tiros em menos de cinco
segundos, acertando, todos os alvos a uma distância de mais de cem metros?
— Depende da arma — disse Bolan calmamente. — Já consegui
— Um rifle de repetição, por exemplo?
— Não usamos rifles de repetição no Exército — respondeu Bolan.
— Hmm — Weatherbee levou o cigarro à boca e soltou uma baforada
ruidosa. — Andei conversando pelo telex com um amigo meu em Saigon.
Conhece o Major Harrington?
Bolan acenou negativamente.
— Da Polícia Militar de Saigon. Velho conhecido meu. Fiquei sabendo
de certas coisas interessantes a seu respeito, sargento — fez-se sério de
repente, largou o cigarro no cinzeiro e tornou a fitar o interlocutor. — Disse
ele que você tem um apelido lá no destacamento onde serve. "O Executor".
Por que motivo haveriam de chamá-lo assim, sargento?
Bolan descruzou as pernas, acomodou-se melhor na cadeira e percorreu
com o olhar o rosto do detetive antes de responder:
— Se isto é alguma espécie de jogo, tenente, gostaria de saber como se
chama.
— O nome do jogo é homicídio — retrucou Weatherbee.
— Não matei ninguém no Vietnã que não fosse no estrito cumprimento
do dever — disse Bolan, sem perder a calma.
— Não estamos no Vietnã! E não podemos permitir que um franco-
atirador ande solto por aí, decidindo quem deve morrer e quem não deve!
Bolan deu de ombros:
— Se o senhor está tentando estabelecer alguma ligação entre a matança
daquela tarde e eu, somente porque sou um perito atirador...
— Não somente por isso! — replicou o detetive. — Olhe aqui, Bolan,
você esteve aqui certo dia fazendo um escândalo com o Capitão Howard por
causa daquela financiadora, a Triangle, dizendo que eles eram responsáveis
pelo que aconteceu ao seu pai! Você...
— Não era o senhor que estava encarregado daquela investigação? —
interrompeu Bolan. — Refiro-me à morte de pessoas de minha família.
Weatherbee abriu a boca para dizer alguma coisa, tornou a fechá-la e fez
apenas um gesto afirmativo com a cabeça.
— Então o senhor sabe — disse o sargento. — Sabe muito bem por que
tudo aquilo aconteceu. E ninguém tomou providências contra aqueles
sanguessugas. Ninguém, até aquela tarde, quando alguém finalmente re-
solveu fazer alguma coisa. E daí? Segundo os jornais, foi uma desforra entre
bandidos. Que importa quem tenha tomado providências, contanto que
alguém as tenha tomado?
Weatherbee olhou-o em silêncio durante um longo tempo. Depois,
apagou o cigarro, acendeu outro, suspirou e disse em voz baixa:
— Eu me importo, Bolan. Pode ser que a justiça não seja perfeita neste
país, mas sem dúvida é a melhor justiça da Terra. Não se pode admitir que
qualquer pessoa se árvore em juiz e jurado e saia por aí com uma arma nas
mãos. Que diabos, rapaz, isto aqui não é o Vietnã!
— Se estou sendo acusado de um crime, parece que, num caso destes, a
lei exige o cumprimento de certas formalidades, não? — disse Bolan, com
um sorriso gelado no rosto.
— Não está sendo acusado — respondeu o tenente. — Por enquanto,
ainda não. Mas eu sei exatamente o que aconteceu, Bolan. Entenda isto. Eu
sei que alguém arrombou certa loja de artigos de caça na noite de 16 de
agosto, levou um rifle novinho em folha, marca Marlin, calibre 444, e uma
mira telescópica de longo alcance. Sei que o culpado fez prática de tiro ao
alvo com esse rifle numa velha pedreira abandonada. Sabemos que alguém
passou duas horas lá, na manhã de 19 de agosto, disparando metodicamente
rajadas de cinco tiros a três distâncias diferentes e bem determinadas: cem
metros, cento e dez e duzentos e vinte metros. O vigia da pedreira não deu
importância ao fato até ler os jornais de ontem de manhã, e seria tolice querer
convencê-lo de que ele seria capaz de identificá-lo. Estou lhe dizendo tudo
isto só para que você saiba que não estou usando de truques com você,
sargento.
Depois de uma pausa, continuou:
— Há coisa de dois dias, nosso perito atirador subiu ao quarto andar do
Edifício Delsey. Sentou-se diante de uma janela, num escritório vazio.
Fumou quatro cigarros Pall Mall, a marca que você usa, pelo que estou
vendo, utilizando uma garrafa de Coca-Cola como cinzeiro. Exatamente às
seis horas da tarde, disparou cinco tiros certeiros em direção à rua, com o
impacto de uma arma de caça, interrompendo temporariamente as atividades
da Triangle Industrial Finance Company. E deve ter dito consigo mesmo:
"Agora estou vingado".
O sargento mudou de posição na cadeira, fazendo-a gemer sob o seu
peso.
— Já que sabe tanto — disse ele — por que não me acusa formalmente?
— Gostaria de prestar depoimento?
— Não, a não ser que esteja preso.
— Sabe que não está preso.
— Então não tenho nada a declarar — disse Bolan, com um sorriso
nervoso.
— Que tipo de ideias malucas lhe entraram na cachola, sargento?
Bolan fez um gesto evasivo com as mãos:
— Ideias malucas? Não sei do que está falando.
— Pelo regulamento, quando deve voltar ao Vietnã?
— Não preciso voltar — disse Bolan, com um sorriso amável. —
Chegaram ordens ontem nesse sentido. Transferência por motivos
humanitários.
— Transferência para onde? — atalhou Weatherbee.
— Para o Centro de Treinamento de Reservistas, em Franklin High, ou
seja, aqui mesmo em Pittsfield.
— Essa não! — explodiu o detetive.
— Por causa de meu irmão caçula — acrescentou Bolan timidamente.
— Sou o único parente vivo.
Weatherbee levantou-se num ímpeto e pôs-se a caminhar de um lado
para outro, como que subitamente atingido por uma descarga elétrica.
— Pois isso complica tudo! — exclamou ele, finalmente. — Pensei que
eles iam pegar você e metê-lo de novo lá na selva, onde não poderia me
causar problemas. — E, com um dedo em riste: — Voltar à frente de guerra
no Vietnã seria o melhor que poderia lhe suceder!
— Não sei do que está falando — insistiu Bolan, nervosamente.
— Claro que sabe! Sabe perfeitamente do que estou falando. Estou
falando da Máfia, uma organização que não pode se dar ao luxo de esquecer
e perdoar. Estou falando de um sujeito chamado "O Executor", que pode ou
não ter executado cinco deles. E esses caras não perdoam em caso de dúvida,
como a Lei o faz. Estou falando do fato de terem as ruas desta cidade se
transformando num stand de tiro ao alvo, enquanto eu nada posso fazer a não
ser assistir a tudo como simples espectador, por não ter prova concreta
alguma a apresentar aos tribunais.
E, num tom abafado e urgente:
— Estou sendo leal com você, sargento. Entenda isso! Você já é um
homem marcado, quer seja culpado ou não! Para mim, parece culpado como
todos os diabos; talvez não o bastante para um tribunal de justiça, mas
certamente culpadíssimo para a lei da Máfia! Eles podem não pegá-lo hoje
nem amanhã, mas um dia o pegarão, pode crer. E eu não poderei fazer nada,
entendeu? Nada para ajudá-lo, mesmo que eu queira. E aí o que acontece
com o seu irmão caçula, hein? O que acontece com o seu irmão caçula,
quando o seu sangue estiver escorrendo nas sarjetas, Bolan?
— Tem alguma sugestão a fazer? — perguntou Bolan, olhando-o
fixamente.
— Preste depoimento. Confesse. Só assim poderá ter a proteção da lei.
Bolan riu com ironia.
— Grande proteção. Irei escoltado pelos guardas até a cadeira elétrica. E
aí o que acontece com o meu irmão caçula, Weatherbee?
— Não acredito que chegue a tanto. Há circunstâncias atenuantes.
— Claro, claro, circunstâncias! — Bolan ergueu-se. — Chega de
truques, tenente. Se me dá licença...
— Olhe aqui, sargento — disse o detetive, em tom furioso. — Não
tenho provas contra você. Estou sendo sincero, não? Nunca fui tão sincero
assim com ninguém. Não posso levar um herói de guerra as barras do
tribunal à base de palpites e suspeitas. Não tenho provas para indiciá-lo. Mas
não vou esquecer que há um sujeito como você rondando aí fora; era só o que
faltava: "O Executor" decidido a matar mafiosos! E não pense que eles vão
esquecer, tampouco.
— Obrigado pela franqueza — disse Bolan, com um sorriso. — Até a
vista.
Abriu a porta da sala e saiu, fazendo um aceno de cabeça ao policial de
plantão, e encaminhou-se para a rua. Antes de descer os degraus, voltou-se e
olhou para trás. O corpulento detetive, apoiado ao umbral da porta, de mãos
enfiadas nos bolsos da calça, mirava-o com tristeza. Um súbito arrepio
percorreu a espinha de Bolan e, por um instante, ele encheu-se de dúvidas.
Estaria por acaso superestimando a si próprio? Seria realmente capaz de
declarar algum tipo de guerra eficaz, sozinho, contra uma organização em
relação à qual o talento e a tecnologia de toda a polícia do mundo tinha se
mostrado impotente? Bolan deu de ombros e desceu para a rua. Agora não
era possível recuar. A guerra já estava declarada. O Executor tinha encontro
marcado, naquela tarde, com alguns membros da organização. A Lei fizera-
se ouvir na pessoa do detetive. Mas o Executor pensava de outra forma.
4. Um Dia de Sorte
Um observador incauto diria que aquilo era apenas uma reunião de
comerciantes prósperos, descansando num ambiente de clube de campo. O
rosto satisfeito de Nat Plasky estava quase tão vermelho quanto o calção de
banho que lhe separava o corpo cabeludo em duas massas iguais. Recostado a
uma cabana próxima à piscina, um copo de bebida gelada aparentemente
esquecido numa das mãos enormes, conversava tranquilamente com uma
loura exuberante, metida num biquíni quase inexistente. Várias outras garotas,
tipo Miss Universo, exibindo os mais variados espécimes de maiôs
minúsculos e semitransparentes, de malhas largas e indiscretas, tiras de
plástico e pedacinhos de tecidos nos lugares estratégicos, espreguiçavam-se
languidamente aqui e ali, à beira da piscina. Pelo jeito, ninguém havia ainda
entrado na água, nem pretendia entrar.
Um homem de boa aparência, de cinquenta e poucos anos de idade,
cuidadosamente vestido em calças de linho branco, camisa esporte e tênis,
estava sentado a uma mesa, sob um largo guarda-sol, na companhia de outro
mais jovem, de casaco esporte, camisa olímpica e jeans. Vários outros tipos
caminhavam pelos arredores, de um lado para outro, como que distraídos, sem
chamar atenção naquele cenário de cadeiras de sol, bóias de plástico e
barracas coloridas. Bolan logo os identificou como guarda-costas. E agora
estavam olhando para ele. Algum instinto ou sinal secreto fez com que todos
os rostos presentes se voltassem para Bolan assim que ele se aproximou da
piscina. Plasky fez um gesto com o copo na direção do sargento, murmurou
alguma coisa à loura, e adiantou-se para dar-lhe as boas-vindas.
— Que é isso? — exclamou uma garota, numa voz sonolenta, olhando
com interesse o militar espadaúdo à sua frente. — Patrulha do Exército?
— Não seja idiota — disse-lhe Plasky, ao passar por ela.
Estendeu a mão para Bolan, acolhendo-o como a um amigo de longa data,
e levou-o até a mesa onde estavam sentados os outros dois homens.
— Walt Seymour, este aqui é Mack Bolan — disse ele, em tom formal.
Dirigira-se primeiro ao mais velho dos dois, num respeito ao protocolo
que não passou despercebido a Bolan. Este sorriu e estendeu a mão, sabendo
estar falando com alguém cujo status na organização era, pelo menos, um
ponto acima do de Plasky. Recebeu um cumprimento firme, mas reservado,
de mera cortesia social. Já o outro, menos idoso, apressou-se a apertar-lhe e
sacudir-lhe a mão com grande mostra de afeto — o tipo de aperto de mão
franco ao qual Bolan estava habituado. Não pôde deixar de lançar-lhe um
olhar de simpatia.
— Meu nome é Leo Turrin — disse o tipo cordial, com um largo sorriso.
— Soube que você acaba de voltar do Vietnã. Seja bem-vindo. Em que
destacamento servia?
— Nona Infantaria — respondeu Bolan, esperando não ter deixado
transparecer sua emoção ao escutar aquele nome.
Pelo tom de camaradagem, não tinha dúvidas de que estava diante de
outro veterano de guerra. O rosto lhe eia inteiramente desconhecido, mas as
palavras do irmão caçula — um cara chamado Leo — ressoavam-lhe agora
dentro do cérebro com um barulho ensurdecedor.
— O meu regimento era o dos Boinas Verdes — dizia Turrin,
alegremente. — E eu também era sargento. Ou, pelo menos, o equivalente a
sargento: especialista de quinta classe.
Ao mesmo tempo, Bolan reconhecia a importância de ter um vínculo em
comum com aquele homem, que obviamente estava "por dentro" da
organização. Esboçou um leve sorriso e decidiu arriscar:
— Ouvi dizer que os especialistas mais valiosos dos Boinas Verdes no
Vietnã eram os aliciadores de mulheres.
A frase atingiu em cheio o alvo. Turrin voltou-se, como que surpreso, para
Seymour, que continuava impassível: depois, soltou uma sonora gargalhada:
— Isso mesmo, rapaz! Olhe, você nem faz ideia...
Mas logo tornou a calar-se, sob o olhar de fria reprovação de Seymour.
Piscou um olho para Bolan e tornou a recostar-se na cadeira.
No mesmo instante, uma garota seminua acercou-se deles e passou a
Bolan um copo de bebida. Este agradeceu-lhe e, convidado por Plasky,
sentou-se bem à frente de Seymour.
— Bela garota — murmurou Bolan.
— São todas bonitas — disse Plasky, num tom enfastiado. — Se quiser,
pode ficar com ela. Depois de termos tratado de nosso assunto.
Seguiu com o olhar o corpo ondulante da moça que se afastava em direção
à piscina, como a verificar se tinha perdido alguma coisa.
Bolan notou que os guarda-costas estavam agora imóveis, cada um
assumindo um posto diferente.
— Pois então tratemos de nosso assunto — disse ele, sorrindo.
Plasky pigarreou e mergulhou os olhos no copo que tinha na mão.
— Seymour, Turrin e eu éramos três sócios de Joseph Laurenti. Um dos
cinco que morreram. E, naturalmente, conhecíamos todos eles; éramos como
membros de uma mesma família, por assim dizer. Estamos muito interessados
em... ajudar a policia a prender o assassino. Já esteve em contato com a
polícia, sargento Bolan?
Bolan esperava aquela pergunta, principalmente por ter sido apanhado por
um carro da polícia, naquela manhã, quase em frente ao escritório de Plasky, e
estava preparado para respondê-la.
— Sim, eles vieram buscar-me hoje de manhã, pouco depois de eu ter
saído do seu escritório.
— Apresentou-se espontaneamente — disse Seymour.
Bolan sorriu:
— Não foi bem assim.
— Por que não? — quis saber Seymour.
— Como disse ao Sr. Plasky, não queria me envolver com algo que iria
estragar meus últimos dias de licença. — E, com um sorriso ainda mais largo.
— Agora parece que não vou precisar de voltar ao Vietnã. Fui transferido.
Vou ficar algum tempo aqui mesmo em Pittsfield.
— Por quê? — insistiu Seymour.
— Meu irmão caçula. É um menino de quatorze anos. Sou o único parente
que lhe resta.
— Muita consideração da parte do Exército — comentou Plasky.
Seymour não estava interessado na consideração do Exército:
— Então decidiu cooperar inteiramente com a polícia — atalhou ele. —
Assim que saiu do escritório do Sr. Plasky, hoje de manhã, e soube que não
precisava retornar ao campo de batalha, resolveu entrar imediatamente em
contato com a polícia, como qualquer bom cidadão.
Bolan continuava a sorrir:
— Pelo jeito, o senhor não escuta bem as coisas. O que eu disse é que eles
vieram buscar-me. Quando eu saí do escritório de Plasky hoje de manhã, um
carro da polícia encostou ao meu lado, no meio-fio. Um detetive da seção de
homicídios queria falar comigo.
— Por quê? — insistiu Seymour mais uma vez.
— Uma dessas estranhas coincidências — respondeu Bolan, pondo-se
sério. — O mesmo policial que investigou a morte de meu pai está também
encarregado do caso da Triangle. E ele...
— Seu pai também foi assassinado? — atalhou Seymour.
— Suicidou-se — disse Bolan. — Esgotamento nervoso ou coisa
parecida, não sei bem. Sentia-se muito infeliz, estava doente e cheio de
dívidas. O tal policial lembrou-se de que uma das firmas à qual ele devia
dinheiro era a Triangle. E lhe ocorreu que poderia haver alguma conexão, que
talvez eu pudesse ter disparado os tiros que mataram o pessoal da Triangle.
Foi para isso que mandou me chamar. — Bolan sabia que estava pisando em
terreno perigoso, e esperava não estar sendo ousado demais. Sorriu mais uma
vez: — Logo eu, que não sou do tipo de matar ninguém por causa de dinheiro.
Seja como for, acho que satisfiz a curiosidade do detetive de homicídios. Ele
me agradeceu por ter comparecido, e a coisa ficou nisso.
— Você está esquecendo um detalhe — disse Seymour, calmamente.
— Estou?
— Está. Sam Bolan matou a mulher e a filha antes de suicidar-se.
— Hei, cuidado com o que diz, Walt — murmurou Turrin.
— Não tem importância — atalhou Bolan, de olhos postos em Seymour.
— Não culpo o meu pai por nada que ele tenha feito. Sabe... saí de casa assim
que cheguei à idade de viver por minha conta. E quanto menos se falar das
mulheres de minha família, melhor. Está bem assim?
Seymour e Turrin entreolharam-se. "Eles sabem de tudo", pensou Bolan.
— Está bem, compreendo, sargento — disse Seymour. — Não fique
aborrecido comigo. Estava somente querendo ver que tipo de sujeito você é.
— Muito bem. E agora já sabe?
— Acho que sim. E agora, que tal contar-nos tudo o que viu no dia em
que os homens da Triangle foram mortos?
Bolan encarou-o fixamente:
— Se não contei nada à polícia, por que haveria de contar a você?
— Bom, afinal... — Seymour coçava o nariz, perplexo. — Afinal, foi
você mesmo quem levantou a questão no escritório de Plasky. E foi para isso
que veio até a minha casa hoje. Para contar tudo, não?
— Não.
— Não?
Seymour franziu as sobrancelhas e lançou um olhar na direção de Plasky.
Calmamente, Bolan acendeu um cigarro, soltou uma baforada para o alto, e
disse:
— A polícia fez-me mudar de ideia.
— Entendo — disse Seymour.
Era óbvio que não estava entendendo nada.
— Eu realmente vi alguma coisa. Estava no local quando começaram os
disparos. Vi um sujeito sair correndo do Edifício Delsey. Quase colidimos um
com o outro.
— E daí? — perguntou Seymour.
— Daí, não posso declarar oficialmente uma coisa dessas. Seria uma
prova de que eu estive no local do crime. E com as suspeitas que o
Weatherbee levantou contra mim, não posso nem pensar em dizer que estive
no local do crime.
— Quem é Weatherbee? — quis saber Seymour.
— Detetive da homicídios.
Seymour suspirou e sorriu para Plasky:
— Não precisa fazer nenhuma declaração oficial, sargento. Não
pretendemos transmitir à polícia as informações que você nos der.
— Sei disso.
— E então?
— Mas isso não faz diferença. Olhe, minha primeira intenção foi vender
essa informação a vocês. Mas agora a coisa mudou. A polícia me disse quem
vocês são. E isso muda tudo.
Seymour lançou um olhar rápido a Plasky:
— E exatamente quem somos nós?
— A Máfia.
O sorriso empalideceu nos lábios de Seymour. Plasky tossiu. Os dedos de
Turrin começaram a tamborilar sobre a mesa.
— Nós somos... o quê? — balbuciou Seymour.
— Ora, todo mundo sabe — disse Bolan. — Pelo menos, a polícia sabe.
Disseram-me que a Triangle está envolvida com a Máfia.
— E quais são as suas intenções, seu moço? — indagou Plasky furioso.
— Calma. Nat, calma — atalhou Seymour. E voltando um olhar de
curiosidade em direção a Bolan: — Suponhamos que a Polícia esteja certa
quanto a esse envolvimento. Em que é que isso muda as coisas?
— Muda meu preço — disse Bolan, retribuindo o olhar fixo de Seymour.
Turrin deixou escapar um muxoxo e refestelou-se na cadeira. Plasky
soltou um riso nervoso e disse alguma coisa ininteligível. Seymour
permaneceu impassível. Finalmente, suspirou e disse:
— Ou você é muito sabido ou muitíssimo tolo, Bolan. O que é que você
tem em mente?
— O que tenho em mente — respondeu Bolan, pausando bem as palavras
— é que posso identificar a pessoa que disparou aqueles tiros. E de repente
compreendi que essa é a última coisa que vocês querem que eu faça. Vocês
não querem que eu identifique ninguém. Olhem... não culpo vocês. Sei como
são essas coisas. Não sei de que vocês acusavam o Laurenti, mas sei que toda
organização tem de ter disciplina. Se o Laurenti estava querendo lhes passar a
perna, então vocês agiram direito. O que eu quero que vocês compreendam é
que eu não sou de dar com a língua nos dentes. Principalmente quando há
polícia por perto. De modo que... o preço mudou. Não há mais preço. Não há
declarações de testemunha ocular nenhuma. Não vi nada e não digo nada.
Plasky estava boquiaberto. Lançou um olhar de surpresa a Seymour e
rosnou:
— Esse cara pensa...
— Eu sei o que ele pensa! — retrucou Seymour. Mantinha os olhos no
rosto de Bolan o tempo todo. — É claro como água. Não acusávamos
Laurenti de coisa alguma — disse ele ao sargento. — Não obstante o que
disseram os jornais, Laurenti e seus homens não foram assassinados por
nenhuma organização criminosa. Portanto, você está desperdiçando seu tempo
e o nosso com esse seu joguinho. Se me faz o favor...
— E que tal jogar com as cartas voltadas para cima? — sugeriu Bolan.
— Que cartas tem na mão, sargento? — indagou Seymour, os olhos
brilhando na direção de Plasky.
— Estou procurando emprego. Cinco homens seus morreram anteontem.
Achei que vocês tinham alguma vaga.
Turrin remexeu-se na cadeira:
— E por que haveria um militar de procurar emprego?
— Uso este uniforme há doze anos — disse Bolan. — Aprendi uma
especialização, mas não ganhei dinheiro com isso. Estou sem tostão, e nunca
terei dinheiro algum com o que ganho com este uniforme.
Seymour começava a parecer interessado:
— Que tipo de especialização? — perguntou ele.
— Armas.
— Armas? — fez Seymour, rindo. — E acha que temos alguma coisa a
ver com armas?
Bolan fingiu não ter escutado:
— Sei construí-las, sei como modificá-las, sei como consertá-las, sei fazer
munição, e sei atirar muito bem.
Seymour continuava a rir:
— Mesmo que fôssemos quem você pensa que somos, seu calendário está
atrasado. Não estamos em Chicago, nem na década de 20. Isto aqui é
Pittsfield, e estamos nos anos 60. — E, abanando a cabeça: — Você está
inteiramente enganado a nosso respeito, sargento.
Bolan fez um gesto de cabeça na direção de um homem postado à sombra
de uma barraca à beira da piscina.
— Aquele ali está armado — disse ele. E, apontando o dedo para o
trampolim: — Aquele outro também. Contei cinco caras armados, assim que
pus os pés nesta casa. Vocês têm aqui nada menos que um exército à paisana.
E sei que têm vagas. E preciso de emprego.
— Pretende desertar? — indagou Turrin.
O sargento abanou lentamente a cabeça:
— Sabe o que é ser instrutor de um centro de treinamento de recrutas,
Turrin? Uma verdadeira sinecura.
— Conte como é que é — disse Seymour, interessado.
— Foi a transferência humanitária que me arranjaram. No Centro de
Treinamento de Recrutas, aqui em Franklin High. O Exército fornece os
instrutores. Para qualquer militar, é a maior moleza. Tem-se casa paga,
horário certo para trabalhar, como qualquer professorzinho de escola, e leva-
se vida de civil.
— E, com esse horário de trabalho, como acha que poderá manter dois
empregos?
Bolan sorriu:
— Não sou o instrutor efetivo. Me colocaram lá, apenas para que eu
tivesse um cargo oficial. Eles já têm instrutor. Eu serei uma espécie de
reserva. Talvez eu dê uma aula ou duas sobre o manuseio de armas, talvez
ajude nos exercícios de tiro. Mas me deram a entender que eu posso entrar e
sair à hora que quiser.
— Nem parece o Exército — disse Turrin, sorrindo.
— Pois é — disse Bolan. — Mas eu devo retornar à ativa no fim do ano.
Enquanto isso, tenho de tomar conta do meu irmão menor. Deram-me até o
fim do ano para decidir quanto ao futuro dele. Acho que pensaram: no fim do
ano, ou ele volta à ativa ou cai fora do Exército.
— Você devia estar bem satisfeito — disse Seymour.
— Bom, o negócio é que agora tenho de cuidar de meu irmão. E, como já
disse, não tenho um tostão no banco. Acho que pedirei baixa em dezembro.
Até lá, vou tratando de me habituar à vida de civil — tornou a sorrir. — E
vocês têm essa vaga.
— Acho que o sargento é um grandiosíssimo oportunista — disse
Seymour, como se falasse com os seus botões.
— Precisamos de oportunistas — disse Turrin. — É o tipo de homem que
queremos, não?
Seymour suspirou:
— É, é exatamente o que queremos. Pois bem... chame aquelas garotas
para cá, Leo. E traga aquele barzinho para perto da mesa. Pelo jeito, temos de
dar as boas-vindas a um novo empregado. — E com um sorriso azedo: —
Hoje é o seu dia de sorte, sargento. Aproveite-o.
Bolan mostrou os dentes num sorriso e apanhou o copo que deixara sobre
a mesa. A bebida estava quente e choca. Engoliu-a assim mesmo. O que
importava é que abocanhara o emprego. E, pelo jeito, estava prestes a
abocanhar mais alguma coisa. O nome dela, segundo lhe disseram, era Mara;
sua função era perfeitamente óbvia. Acomodou-se em seu colo sem esperar
convite, oferecendo-lhe um novo drinque, o traseiro espontando do biquini
minúsculo, tratando de se pôr à vontade.
— Gosto de militares — disse ela, numa voz macia, enfiando-lhe os dedos
sob a camisa.
O biquini, na frente, mal lhe cobria o monte de Vénus; duas faixas
estreitas de tecido elástico cruzavam-lhe as ancas bem-feitas e desciam por
trás, bem abaixo da divisão entre as nádegas. A parte superior do biquíni não
passava de umas tiras que, de vez em quando, lhe deixavam à mostra os seios.
Uma das mãos segurando o copo, Bolan pousou a outra na cintura da jovem,
deixando-a escorregar pela pele macia até a altura do umbigo. Lançou um
olhar em volta e, vendo que ninguém se ocupava com ele, deixou que a mão
caísse um pouco mais para o sul.
A garota soltou um risinho espremido, reteve-lhe a mão, ergueu o corpo o
suficiente para olhá-lo melhor e murmurou:
— Há muito tempo você não transa, hein? — tornou a acomodar-se sobre
o corpo rijo de Bolan, e levou-lhe uma das mãos ao seio. E, num tom de
malícia: — Aposto que nem se lembra mais como são os seios de uma
mulher.
Bolan afastou com as pontas dos dedos o tecido do sutiã e garantiu-lhe
que, realmente, não tinha esquecido. Ela riu, tirou-lhe o copo da mão,
colocou-o sobre a mesa vizinha, ergueu-se e puxou-o alegremente pelo braço:
— Vamos. Preciso arranjar um calção de banho para você.
E conduziu-o, abraçada a ele, até uma cabana próxima. Assim que ambos
entraram, ela trancou a porta e aninhou-se em seus braços, oferecendo os
lábios para um beijo. Bolan beijou-a avidamente, consciente de que, há muito
tempo, não acariciava uma garota americana como aquela. Dos lábios
carnudos subia um cheiro adocicado de álcool, um hálito quente e anelante,
muito agradável, enquanto a língua procurava a sua, úmida e provocante.
Mais provocantes ainda eram as ancas que ela movia de encontro ao seu
corpo, os braços em torno do pescoço de Bolan. As mãos dele deslizaram para
as nádegas retesas; depois, segurando-a pelos quadris, afastou-a, desfazendo o
contato quente entre as duas bocas.
Ela insistiu; queria mais. Ele se esquivou, enquanto a parte pensante do
cérebro, aparentemente adormecida, reagia instintivamente.
— Não quer tirar essas calças? — murmurou ela. — E, estendendo uma
das mãos: — Hmm, vejo que você anda mesmo atrasado.
Afastou-se e foi até a parede oposta, de onde pendiam vários tipos de
calção de banho para homem. Lançou um olhar a Bolan, como se procurasse
medir-lhe a cintura, e finalmente escolheu um dos calções.
— Vista este — disse ela, depondo-o sobre uma mesinha ao lado de
Bolan.
Este continuava a agir mecanicamente. Os dedos ergueram-se para o peito
e começaram a desabotoar a camisa. Ela tratou de desfazer-lhe o nó da
gravata; pouco depois, pendurava-lhe a camisa cuidadosamente num cabide,
fazia-o sentar-se e retirava-lhe os sapatos e as meias.
— Não faço estas coisas com todo mundo — disse ela, com um sorriso
suave nos lábios. — Você é diferente.
Ia tirar-lhe o cinto, quando as mãos dele a detiveram. Bolan levantou-se.

— Todos são diferentes — murmurou ele — voltava-lhe a faculdade de
pensar, enquanto seus dedos procuravam o zíper das calças. — Não levarei
mais de um minuto.
— Tão pouco assim? — disse a garota.
Com um rápido movimento das mãos, fez cair o topo do biquíni. Os dois
seios projetaram-se para a frente, livres da pressão do sutiã, os bicos rosados
levemente eretos. Erguendo as mãos para o busto, ela acariciou de leve as
duas rosas de nácar, que se empinaram ainda mais sob o contato dos seus
dedos, atraindo o olhar fascinado de Bolan.
— O sutiã de renda me dá coceira — explicou ela. — Você não quer
coçar um pouco?
Sem responder, Bolan estendeu as mãos e fez descer a calcinha do biquíni.
Ela ajudou-o, soltando um risinho gutural, para depois cair sobre ele,
aconchegando-se como uma gata. Bolan deixou escapar um gemido enquanto
a abraçava, deliciando-se no contato dos dois corpos nus. As mãos dela
afagavam-lhe o dorso, o ventre roçando no dele em movimentos febris. Bolan
desvencilhou-se dela, como se pretendesse recobrar o fôlego.
— Realmente, faz algum tempo — confessou ele.
— Não se preocupe — disse ela, obviamente satisfeita com o calor que
encontrava nele.
Não havia espaço para deitarem-se naquele pequeno vestiário; era
evidente, porém, que ela já havia passado por situações semelhantes. Puxou a
mesinha, fez com que Bolan se sentasse e acomodou-se em cima dele,
segurando-o e guiando-o com destreza profissional, para depois completar a
união com um movimento brusco e firme. Quase imediatamente, o corpo de
Bolan estremeceu; seus braços apertaram-na espasmodicamente, enquanto ele
tombava para trás, de encontro à parede de madeira. Ela tombou sobre ele,
murmurando-lhe coisas no ouvido.
Tudo acontecera tão depressa que ele mal podia crer que já havia
terminado.
— Suponho que você nem teve tempo de sentir coisa alguma — disse ele,
num tom de quem pede desculpas.
Ela permaneceu sobre ele, os seios amplos esmagados contra o seu peito,
mordiscando-lhe o pescoço, inteiramente relaxada.
— Não perco nada por esperar — disse ela. — Vocês, quando voltam do
exterior, parece que vêm cheios de dinamite ou coisa parecida.
Pôs-se de pé, e atirou-lhe uma toalha que apanhou numa prateleira.
— Você é prostituta? — perguntou ele, à queima-roupa.
Ela o fitou, surpresa; depois sorriu.
— Sou — disse ela.
— Então suponho que para você não faz diferença. Quero dizer...
— Sei o que quer dizer.
Apanhou o calção de banho que jazia no chão e atirou-o para ele, pondo-
se a vestir em seguida. Depois, fitou-o em silêncio durante algum tempo,
enquanto afivelava o sutiã; de repente, como se houvesse tomado alguma
nova decisão, tornou a pendurar o sutiã no cabide da parede.
— Mas está enganado. Para mim faz diferença. Você vai ver. Da próxima
vez será diferente. Agora que você descarregou a bateria... Vamos, vamos
tomar um banho de piscina. E depois... trataremos de encontrar um lugar
melhor que esta cabana apertada. Está bem?
Ele sorriu:
— Está bem.
Vestiu o calção, e ambos saíram para um mergulho "topless" na piscina.
Bolan antevia com prazer o próximo encontro, e era óbvio que Mara não
pensava em outra coisa. Nunca Mack Bolan nadara com tanto prazer em sua
vida.
5. Golpe de Mestre
Alguma coisa perturbava Walt Seymour. Não tinha sido fácil galgar sua
posição na organização. Não com um nome como Walt Seymour. Se se
chamasse Giovanni Scalavini ou coisa parecida, teria sido diferente. Até
mesmo Nat Plasky gozava de certa vantagem sobre ele, simplesmente porque
seu nome soava melhor aos ouvidos da velha-guarda — embora qualquer
idiota soubesse que Plasky não tinha um pingo de sangue italiano nas veias.
Seymour conseguira subir mais alto que Laurenti simplesmente porque,
sangue italiano ou não, Laurenti nunca fora e jamais teria sido outra coisa se-
não um criminoso barato. Tinha a inteligência e o coração de um bandido —
combinação perfeita e mentalidade perfeita para o tipo de negócio mesquinho
que era cobrar as prestações dos empréstimos em dia de pagamento. Seymour
nunca vira com bons olhos a atividade da Triangle. Era suficientemente
honesto consigo próprio para confessar que o que mais detestava na Triangle
era o próprio Laurenti. Como firma, a Triangle dava à organização um bom
esconderijo para um bocado de dinheiro ilegal, e Seymour ter-se-ia
contentado em vê-la operar como uma financeira perfeitamente legítima. Mas
Laurenti, com a sua mentalidade, transformara a Triangle numa companhia
em que os cobradores usavam soco inglês. Laurenti tinha a mentalidade do
pior agiota e, naturalmente, a Triangle tinha sido ideia dele. Era descendente
de italianos, e os outros da mesma raça gostavam dele; seus vínculos com a
organização datavam de muitas gerações, e tinha suas origens no Velho
Continente.
De modo quê, de certa forma, Seymour até que ficara satisfeito com a
morte de Laurenti. Não somente do ponto de vista pessoal, como ele dizia a si
mesmo, mas também do ponto de vista dos negócios. Laurenti, e os tipos de
sua espécie, eram nocivos à organização.
Ainda bem que ele estava morto, pensava Seymour. Ao mesmo tempo,
porém, sentia-se intranquilo com o atentado contra a Triangle. Quem, com
todos os diabos, decidira matar Laurenti e seus homens? Quem e por quê?
Seymour era realista. Sabia que o chefe da organização em Pittsfield
jamais o aceitara inteiramente. Seymour estava "sob observação" há mais de
dez anos, dez longos anos, e ninguém sabia disso melhor que ele próprio. Ora,
se esse tal militar, esse tipo chamado Bolan, era capaz de acreditar que tudo
não passara de um expurgo dentro da organização, e se a imprensa aparen-
temente pensava da mesma forma, e se até a polícia tinha a mesma opinião —
então sem dúvida o seu chefe e todos os homens "lá de cima", no país inteiro,
pensariam do mesmo jeito. Tinha havido atritos entre Seymour e Laurenti no
passado, e ninguém fazia disso muito segredo.
Sim, Walt Seymour andava inquieto. Andava inquieto por uma porção de
motivos. Aquele diabo de sargento era um deles. Embora tivesse sido
cuidadosamente investigado e dado como genuíno, ainda assim havia alguma
coisa estranha com aquele sujeito. Walt Seymour não estava disposto a
"engolir" Mack Bolan assim de cara, sem mais nem menos. Pelo menos, não
no momento. Havia muita gente intrometida por aí, interessada em saber
coisas sobre a organização. Comitês do Congresso, o Ministério da Justiça, o
Departamento do Tesouro, o FBI — todos querendo meter o nariz onde não
eram chamados, e com uma vontade danada de puxar o gatilho. Walt
Seymour gostaria de saber que tipo de nariz e de dedos tinha Mack Bolan.
Haviam tentado infiltrar-se de todas as maneiras possíveis. A polícia local
tinha tentado, os agentes federais tinham tentado, até mesmo outras
organizações tinham tentado — mas ninguém conseguira, ou pelo menos não
houvera nenhuma infiltração seria. E aquele tal de Mack Bolan o deixava
inquieto.
Havia alguma coisa — alguma coisa — de estranho em Mack Bolan. Na
opinião de Seymour, a melhor maneira de desmascarar um impostor era
submetê-lo a um bom exame. E a melhor maneira de examinar Mack Bolan
era colocá-lo na folha de pagamento. Soltar-lhe as rédeas, manter olhos,
ouvidos e instintos bem abertos, e deixar que o cara se revelasse. Mil pessoas
poderiam tê-lo enviado. Até o homem "lá de cima" poderia tê-lo enviado.
Naturalmente, caso não fosse um impostor, um sujeito como Bolan poderia
ser muito útil à organização. Poderia ser muito útil até mesmo a Seymour. Leo
Turrin começava a causar problemas a Seymour. Turrin era esperto,
maneiroso, ambicioso — e tinha o tipo de nome que soava bem na
organização. Por isso mesmo, Seymour andava preocupado com ele. Faria
Bolan trabalhar com Turrin. Seria uma manobra notável. Se Bolan era um
impostor, então o primeiro cara a ser prejudicado seria o que estivesse ao seu
lado. Sim, sim. Mandaria Bolan trabalhar com Turrin. Seria um golpe de
mestre.

6. Questão de Ponto de Vista


— Tem duas coisas que você não pode esquecer — disse Turrin a Bolan.
— A primeira é que eu sou o Oficial Comandante. Banque o Primeiro
Sargento, se quiser, mas não esqueça: eu sou o Oficial Comandante. A
segunda é que nós nunca usamos a palavra "Máfia"! Entendeu? A gente
sempre diz: "A Organização". A gente trabalha para a organização e a
organização trabalha para a gente. A coisa funciona assim. Só que você não é
um membro da organização. Você jamais poderia ser membro. Não pertence à
panelinha de descendentes, entende? Nem mesmo o Seymour é considerado
membro.
— O sangue faz tanta diferença assim? — perguntou Bolan.
Estavam no automóvel de Turrin, um vistoso conversível amarelo-canário,
no qual Turrin oferecera ao seu novo protegido uma carona, à saída da
reunião em casa de Seymour.
— Claro que faz — apertou o isqueiro do carro e pôs-se a procurar os
cigarros no bolso, para finalmente aceitar um Pall Mall que Bolan lhe
ofereceu. — Olha, cara, a organização funciona há séculos. Começou na
Sicília, terra dos meus antepassados. Era um negócio assim do tipo Robin
Hood, só que não era historinha de crianças, era pra valer. Aposto que você
não sabe uma coisa: a Máfia é puro idealismo, pura democracia, sabe?
Democracia para os pequenos. Para os que estavam na pior. Era até melhor do
que Robin Hood, porque era um movimento de massa.
— Não sabia — confessou Bolan.
— Aposto que você nem sabia que a palavra "Máfia" tem a ver com o
nome "Mateus". Mateus significa "valente, ousado". Tinha de ser uma
sociedade secreta porque era contra o estabelecimento, entende, o sistema
social daqueles tempos. O sistema era uma tirania, entende, o dinheiro todo ia
para o bolso dos ricos, dos nobres, da aristocracia. A lei sempre dava um jeito
de fazer com que os pobres continuassem pobres e os ricos continuassem
ricos, sabe? Pra isso é que a lei foi feita. Isso em toda parte, e não só na Itália
e na Sicília. A lei foi inventada para proteger os caras que têm dinheiro,
entende? De modo que esses caras, ousados, valentes, se juntaram para formar
um movimento de resistência e criaram a Máfia. E de lá para cá o buraco é
mais embaixo.
— Hippies — murmurou Bolan.
— Como?
— Os primeiros hippies italianos — disse Bolan, sorrindo. — Qual era a
reivindicação deles? Uma pizza em cada prato?
Turrin assumiu um ar grave.
— Não me agrada esse seu senso de humor. Estou falando sério. A Máfia
representa um ideal muito democrata.
— Está bem, vamos falar sério — retrucou Bolan. — Mas... qual é a
moral disso tudo, Leo? Talvez há cem anos, na Itália ou na Sicília ou onde
quer que tenha sido; tudo bem, eu entendo. Mas não aqui. Pombas, aqui temos
democracia. Democracia sob o regime da lei.
Turrin soltou uma gargalhada.
— Conversa! Não me diga que você também entrou nessa. As coisas não
mudaram muito, cara. Os ricos continuam a ficar mais ricos, e os pobres
continuam a ficar mais pobres. Ainda há oportunidade aqui para quem for
ousado e valente.
— Não me entenda mal — disse Bolan. — Não estou sendo contra a
organização. Afinal de contas, agora sou parte dela. Mas quero ver as coisas
como realmente são.
— Pois então veja como elas realmente são. Não fique aí se sentindo
como se fosse um criminoso. Foi você mesmo quem disse que não tinha um
tostão no banco. Esteve lá no Vietnã, arriscando a vida para proteger a riqueza
dos ricos. Encare a realidade, sargento. O Seymour não disse que seu salário
inicial vai ser de duzentos e cinquenta dólares por semana? Isso parece coisa
de quem quer fazer com que os pobres continuem pobres?
O sargento sorriu:
— De agora em diante, meu nome é Bolan o Valente, capitão.
Turrin lançou-lhe um olhar de simpatia.
— Acho que você vai dar certo, sargento. Muito certo.
— Em que ramo você está metido, Leo? — perguntou Bolan.
— Meu negócio é mulher — respondeu Leo, com um ar divertido.
De repente, fez-se um vazio na cabeça de Bolan.
— Mulher? repetiu ele.
— Todo tipo de mulher. Mulher pra festa, mulher pra hotel, mulher que
atende por telefone, mulher de rua. Diga quanto quer pagar, e eu arranjo a
mulher que lhe convém.
— E aposto que são mulheres valentes e ousadas também, não? — disse
Bolan, sentindo um gosto amargo na boca.
— Claro que são, cara. A gente trabalha pra organização e a organização
trabalha pra gente. É uma maneira de redistribuir riqueza, morou?
Bolan deixou-se afundar no confortável assento do carro e fechou os
olhos.
— É. Não tinha encarado a coisa dessa forma — murmurou ele.
Pensava na irmã, e em como ela devia ter sido valente para enfrentar, na
solidão de um quarto, a ousadia dos clientes.

7. Operação Mulher
Bolan estava sendo iniciado num tipo de atividade que Turrin chamava de
"operação mulher". Recebera roupas caras e uma pistola calibre 32, cano
curto, além da respectiva licença e de um coldre discreto, do tipo que se
instala embaixo do braço. Tanto a roupa quanto os demais apetrechos ficavam
por conta de futuros ordenados; quanto à licença de porte de arma, viera de
fontes ignoradas.
— Tudo perfeitamente legal — garantiu-lhe Turrin. — Não é coisa que a
gente deva andar espalhando por aí, mas é tudo legal. E se algum dia alguém
quiser saber como é que você tem porte de arma, podemos mostrar a licença
devidamente registrada e tudo mais. Portanto, não se preocupe. Nós nos
encarregamos desses pequenos detalhes. Ninguém prova nada contra a orga-
nização.
O negócio de Turrin florescia sob uma fachada conhecida pelo nome de
"Escorts Unlimited" (Companhias Ilimitadas). O escritório era luxuoso e
convincente, e os aposentos "sociais" do "clube" eram irrepreensíveis. Turrin
dispunha até de um genuíno serviço de computador para marcar encontro
entre pessoas, completo com programador sindicalizado e respectiva equipe
de auxiliares.
— A fachada sempre rende um pouco de dinheiro — confessou ele a
Bolan — mas só o bastante para pagar o aluguel e os salários. Até aquele
computador maluco está no seguro — riu, como se aquilo fosse uma grande
piada. — Financiado pela Triangle Industrial Finance Company, a grande
amiga dos homens de negócio.
Bolan veio a saber que o seu cargo tinha a designação oficial de "guarda
de segurança". Seu nome constava da folha de pagamentos normal da Escorts
Unlimited, e seu salário semanal de 250 dólares estava sujeito aos descontos
legais de aposentadoria e imposto de renda.
— Mas não se preocupe com esses descontos — disse Turrin. — A gente
inventa esse negócio todo. Você recebe o dinheiro integral, isento de taxas.
Mas é tudo legal, entende? Estritamente legal.
A própria instituição que lhes servia de fachada tinha um ar absolutamente
insuspeito. Todos os detalhes da prostituição organizada da cidade e dos
subúrbios vizinhos estavam programados no computador, e codificados de
forma a evitar falhas eventuais de segurança ou atos deliberados de
espionagem. O código de programa para a operação "call girl", por exemplo,
fazia parte de uma listagem maior de "Companhias Femininas Mediante
Arranjo Prévio", e quaisquer dados específicos, sob a forma de "classificação"
ou "leituras", só podiam ser obtidos acionando-se um código alfabético
secreto. Quando acionado pelo código normal, o mesmo arquivo produzia
apenas uma listagem normal de serviço de encontros pessoais. Outra operação
tinha o nome de "Companhias Femininas por Seleção Espontânea", e outra
ainda era chamada de "Atividades Sociais Organizadas" — e referiam-se,
respectivamente, a prostitutas de rua e de festas particulares.
— Tiramos o melhor proveito possível daquela máquina — disse Turrin.
— E por que não? O diabo do computador é à prova de erros, e você não faz
ideia do tamanho desta operação. Tenho centenas de mulheres cuidando da
parte clandestina do negócio, e por que haveria de carregar todo esse troço na
cabeça ou registrado em algum livro secreto? A máquina tem até um botão de
apagar, que a gente aperta e, num segundo, elimina do arquivo tudo o que
possa nos incriminar, deixando só os dados "limpos". Por que não usar o
computador? É o progresso, sargento, o progresso, pombas! Meu
programador chama a coisa de SPPA — Sistema de Programação de
Prostituição Automatizada, e tem um orgulho danado do seu trabalho. É um
cientista, cara, um verdadeiro cientista. E o melhor é que nenhum funcionário
do escritório, a não ser eu e o meu programador, sabe do que realmente se
passa aqui. A máquina consegue enganar até eles. Nenhum deles poderia
prestar qualquer declaração à polícia. Para eles, o negócio é perfeitamente
legítimo. Daí aparece um cara, por exemplo, dizendo que é Fulano de Tal, da
firma Tal, e que está promovendo uma reunião de vendas. Quer que a gente
mande para lá uma dúzia de acompanhantes bonitas, para enfeitar a reunião.
Uma das funcionárias o atende. Se o cara tem crédito, muito bem, não é
preciso mais nada. A garota põe o pedido na máquina e o programa imprime
uma lista de nomes e números de telefone. Ela vai chamando uma por uma,
até completar o pedido. E todo mundo fica satisfeito. Os caras da reunião de
vendas recebem umas acompanhantes bonitas para enfeitar o ambiente, e a
Escorts Unlimited ganha mais um cliente satisfeito. Mas, veja bem, se esse
Fulano de Tal está por dentro da coisa e quer umas piranhas para alguma
festinha, então insere um código no pedido que faz com que o computador dê
uma listagem diferente. E nem ele mesmo sabe que código é esse: apenas
alguns algarismos que o meu representante inseriu no número de conta dele.
Entendeu? Não tem erro. Mudamos os códigos dos programas diariamente,
todo santo dia, de modo que mantemos absoluto sigilo e nunca deixamos de
saber com quem estamos lidando.
Entusiasmado, Turrin continuou:
— Outro caso. Digamos que um viajante está de passagem, em algum
hotel, e quer companhia para uma noite só. Diz isso ao sujeito da portaria, ou
a um garçom, ou a um mensageiro do hotel. Sabe como é. Em questão de
minutos, um dos nossos homens está no telefone, falando com uma das moças
do escritório. Pede um manequim, e sabe o número de código que deve usar.
Às vezes, em menos de dez minutos, a garota comparece, e satisfazemos mais
um cliente. Quanto ao pessoal do escritório, juraria em cima de dez Bíblias
que apenas chamou um manequim, uma "free-lancer" cujo nome consta do
nosso serviço de computador. Entendeu? Tudo muito limpo. E quanto à
garota, também estamos protegidos, caso ela se descuide ou não tenha sorte.
Já aconteceu uma vez ou outra, e ficamos muito indignados, entende?
Imaginem só! Uma prostituta, fazendo uso pervertido de nossos sacrossantos
serviços no exercício de sua vergonhosa profissão. Sabe como é? Fomos
ludibriados pela pequena, compreende? E não podemos ser responsabilizados
por uma coisa dessas.
— Pelo visto, as garotas não gozam de muita proteção — disse Bolan.
— Ora, num caso desses, elas somente passam algumas horas em cana.
Quando vemos que a coisa é mais séria, que elas vão ser processadas ou coisa
parecida, então fornecemos advogado, por trás das cortinas, entende?
Pagamos todos os honorários, ou pagamos parte, e adiantamos o dinheiro da
multa. Damos assistência à garota. A não ser que ela tenha feito muita
bobagem. Você trabalha para a organização e a organização trabalha para
você. Lembre-se disso, Bolan o Valente. Quando a garota está em condições
de voltar ao trabalho, pomos ela num novo distrito e ela recebe um nome
diferente no computador. E pronto. Vê como a coisa é segura, não? Temos
todo tipo de proteção, sargento.
Além de Turrin e do programador, havia outros cinco mafiosos na Escorts
Unlimited, respeitosamente intitulados "representantes de vendas" ou
"agentes". Era um título que soava melhor que "proxeneta", mas o efeito era o
mesmo, se bem que grande parte de seus contatos ocorriam nas altas esferas
do mundo dos negócios, das convenções e da política.
— São caras muito vivos — disse Turrin, com orgulho. — Quase todos
são mais instruídos que eu. São capazes de frequentar as melhores rodas.
Raramente têm contato pessoal com as garotas, e provavelmente muito poucas
os reconheceriam se os vissem na mesma festa, ou até mesmo na mesma
cama. Esses representantes trabalham à base de comissão, de modo que são
grandes promotores de negócios. Quase nunca entram em contato com as
garotas de rua, e lidam muito pouco com as que eles mesmos oferecem para
festinhas. Mais um exemplo do nosso sigilo, sargento.
— Já que tudo é assim tão impessoal — disse Bolan — suponho que você
jamais tem contato com essas garotas, tampouco.
Turrin piscou e repuxou os lábios num sorriso matreiro.
— Não se preocupe, sargento, terá quantas mulheres quiser. — E, depois
de uma gargalhada: — Entro em contato pessoal sempre que me dá vontade.
Não tanto com as garotas mais refinadas, sabe... — franziu as sobrancelhas.
— Às vezes é preciso dar certos retoques pessoais. Às vezes me interesso por
uma garota nova, quero fazer com que ela comece com o pé direito. Sabe
como é — tornou a rir. — Mas sou casado, tenho mulher e três filhos. Quer
dizer, não vou para a cama com prostitutas o tempo todo.
Bolan deu-lhe uma cotovelada brincalhona:
— Aposto que você tem meia dúzia de pequenas em sua lista pessoal
agora mesmo...
— Hmm, não diria isso — pôs-se sério, depois tornou a sorrir. — No
começo, o cara pode fazer tolices, se não tiver força de vontade. E isso é mau.
Ou as mulheres começam a não significar mais nada para a gente, ou então a
gente perde a cabeça. E aí a coisa realmente engrossa. Às vezes, recebo uma
garota de um grupo de fora. Nesses casos, interesso-me pessoalmente, trato de
registrá-la direitinho no computador... esse tipo de coisa. Fora da rotina
normal. Outra vezes, sinto certa simpatia pela pequena e procuro tornar o
período inicial mais fácil para ela, sabe como é.
Bolan sabia como era, e sentiu contraírem-se os músculos do rosto, mas o
outro não viu nada.
— O importante é que não me deixo envolver com elas, sabe? O cara que
se deixar envolver com essas pequenas está perdido. Entende o que eu quero
dizer?
— Creio que sim — disse Bolan.
— Além do mais, essas garotas que ganham cinquenta a cem dólares por
vez começam a pensar que o sexo delas é folheado a ouro ou coisa parecida.
Não gosto. Quando quero estar com uma mulher, prefiro ir a uma de minhas
próprias casas.
— Então você tem suas próprias casas — observou Bolan, contrafeito.
— Mas claro. Sabe, é o tipo de ambiente que eu conheço melhor — riu
um pouco. — E de que eu gosto mais. O negócio funciona de maneira
completamente diferente. Cada casa tem sua madame, como nos velhos
tempos. Ela mesma é que se encarrega da contabilidade. Nós mandamos as
garotas, ela administra o estabelecimento, faz a escrituração, e entrega o
dinheiro ao representante do distrito. Ganha comissão, como o representante,
que também tem direito a uma percentagem da receita de cada casa.
— Parece negócio graúdo — comentou Bolan.
— Não é coisa de crianças — replicou Turrin. — E você verá como é
graúdo se trabalhar direitinho comigo. Olhe, temos dez mulheres só para
recrutar as meninas. E você nem faz ideia de onde elas vêm. Universidades,
fábricas, escritórios... — e, arqueando as sobrancelhas: — Casas de família
dos subúrbios... No mês passado, admitimos uma que mal tinha completado a
lua-de-mel. Recebemos coristas, modelos, falsas atrizes, e até atrizes
verdadeiras que trabalham meio expediente. Sabe, toda mulher que é mulher
tem um pouco de prostituta. Muitas de nossas call girls só trabalham meio
expediente. Sabe, o resto do tempo estão ocupadas com outras coisas. Todas
as que vão a festinhas só trabalham meio expediente, fazendo serão. Garotas
incapazes de dizer um palavrão, mesmo num bacanal. O tipo bem-
comportado, entende? Mas não tão comportado assim que se recusem a
ganhar uma nota extra. — E, com uma careta: — Eu, por mim, prefiro a velha
prostituta profissional. Bem... — fez uma pausa, e prosseguiu em tom grave:
— Você nem imagina o rodízio que há num negócio como este, sargento. E
há uma coisa que eu quero que você fique sabendo: não temos concorrência
nesta cidade. Nem nos arredores. Qualquer garota, num raio de cem
quilômetros, que estiver indo para a cama por dinheiro, está trabalhando para
a organização, está trabalhando para mim. Nós...
— É bom que eu saiba disso — disse bruscamente o Executor.
— Pois é. Também não permitimos a interferência de amadores. Damos
em cima deles logo logo, e eles ou entram para a organização ou vão tratar de
outra coisa. Quer dizer, temos de satisfazer a procura, se não quisermos ter
um bando de cafetão de meia-tigela em nossa folha de pagamentos. Sabe, esse
tipo de coisa não dá dinheiro. Compreenda isso. E quero que me compreenda
também, sargento. Posso não falar bonito como esses caras de Harvard ou de
Yale, mas sou um homem de negócios, e conheço meu negócio, e administro
meu negócio de cabo a rabo. Entendeu? De cabo a rabo. Não quero vadios à
minha volta, e só porque às vezes eu sou um bom sujeito, isso não quer dizer
que eu seja um idiota. É bom que você compreenda isso. E só porque eu gosto
de você, isso não quer dizer que eu não o ponha no olho da rua se você fizer
alguma besteira. Está entendido?
— Está entendido.
— Muito bem. E há outra coisa que quero que você compreenda. Dá mais
dinheiro satisfazer a procura do que andar por aí dando porrada em amadores
e charlatães. Damos cobertura a quase tudo quanto é hotel e motel de
categoria com as nossas garotas de computador, e até certos clubes e
restaurantes de alta classe são nossos clientes. Mas também temos as
ambulantes, as rueiras. São autônomas e usam o próprio apartamento, e todas
contribuem direitinho para a organização. De vez em quando, damos uma
incerta, mas geralmente operamos com elas à base da confiança. Elas dão
cobertura aos pequenos bares e clubes, e algumas até são destacadas
permanentemente para certos hotéis de segunda. Deixamos que elas
trabalhem, e a organização as protege. Mas todas nos pertencem, entendeu?
Todas elas.
— Entendi — disse Bolan.
— Tratamos nossas meninas direitinho. Nada de brutalidade com elas,
contanto que não saiam da linha. E não bancamos os proprietários, sabe como
é? Se alguma quiser sair, saia; mas, depois de sair, não volta mais, e todas
sabem disso. Trabalham por conta própria, e todas sabem disso também. A
organização se encarrega dos contatos, exceto no caso das que trabalham na
rua, e elas têm toda a nossa proteção. Além disso, ficam com a maior parte do
dinheiro. Como já disse, nossa organização é uma democracia a favor dos
valentes e ousados.
— É, não esqueci — disse Bolan o Valente.
— Pois muito bem. Agora, vamos — disse Turrin, voltando a sorrir. —
Vou lhe mostrar como opera uma de nossas casas.
— Já estava na hora da gente ir ver umas meninas — disse Bolan.
— E você nem imagina o tipo de meninas que vai ver — disse o vice-
soberano de Pittsfield, bem-humorado.
— Vamos, vou levá-lo a uma das filiais que mantenho fora de casa. É para
lá que mando o que há de melhor em Pittsfield, e aposto que você vai querer
ver e tocar. Mas não pode, entendeu? Olhar não tira pedaço, mas tocar é
proibido, entendeu?

8. Nervos de Aço
A casa era uma mansão de subúrbio — nada muito especial pelo lado de
fora, nada que a distinguisse das outras residências localizadas em meio a
grandes terrenos, à margem de uma rua orlada de árvores. O portão de grade
de ferro estava aberto, permitindo a entrada para um pequeno caminho de
macadame. Um jardineiro trabalhava calmamente num dos canteiros de flores,
na parte fronteira de um terreno coberto de relva bem tratada. Havia um bom
número de árvores e caramanchões, que quase escondiam a casa para quem
passasse na rua. Para isolar ainda mais a mansão, uma cerca de quase dois
metros de altura erguia-se à sua frente, sem portões a não ser o da entrada da
garagem. Bolan tornou a olhar o "jardineiro", convencendo-se de que ele era
jovem demais, esperto demais, e estava postado demasiadamente próximo à
entrada da rua para ser outra coisa senão um guarda disfarçado. Turrin fez
com que os pneus fronteiros do conversível estacionassem temporariamente
sobre uma ligeira lombada que atravessava o macadame, e contou
silenciosamente até cinco; depois, sorriu para Bolan e arremeteu o carro para
a frente, contornando a curva em direção à casa.
— Segurança — disse ele. — Há um contato de pressão enterrado naquela
lombada. A gente deve sempre deixar o carro ali durante cinco segundos, do
contrário o pessoal da casa entra em pânico — fez um gesto de cabeça na
direção da estrutura pintada de branco que se erguia diante deles. — A casa
tem um nome. Chama-se "Pinechester". Está legalmente registrada como
clube privado.
— Parece bonita, mas deserta — disse Bolan.
— Ainda é um pouco cedo — rosnou Turrin. — De dia, o movimento é
pequeno. A maioria das garotas dorme até tarde, a não ser que pretendam
tomar banho de sol, nadar, ou coisa parecida. — E, notando o ar de surpresa
de Bolan: — Sim, há uma piscina lá atrás, bem bonita, por sinal. Esta é uma
de nossas casas de primeira. Na verdade, é minha favorita. As garotas daqui
me tratam muito bem. Não querem saber de ir para outro lugar, querem ficar
aqui. Um luxo, não?
Bolan teve de concordar. Os dois atravessaram um campo de tênis e um
pequeno relvado utilizado como campo de golfe.
— Quantas garotas? — indagou Mack Bolan.
— Temos vinte e dois quartos — disse Turrin, num tom de orgulho. — Às
vezes o número de garotas é maior, e assim podemos fazer rodízio e tirar
maior proveito da casa. Negócio estritamente profissional, sabe? — E,
encarando o companheiro: — Vendemos títulos de sócio. Já lhe disse que isto
aqui é um clube. Funciona como um clube. Mas as anuidades só dão direito à
entrada. E ao uso da piscina e de outras instalações externas, sem pagamento
extra. De vez em quando, promovemos uma festa, com entrada só por convite,
e aí o sócio tem de pagar um dinheirão. Sempre há gente na fila querendo
frequentar nossas festas.
Estacionou o carro numa garagem de cinco vagas, desligou o motor e
virou-se para Bolan com um largo sorriso:
— Metade dos vereadores de Gwinett fazem parte de nossa lista de festas,
e a outra metade está doida para entrar na lista...
Entraram por uma porta lateral, e os sapatos de Bolan quase afundaram no
tapete felpudo de um largo corredor.
— A biblioteca fica aqui — disse Turrin, batendo levemente na parede
com os nós dos dedos, enquanto caminhavam para o centro da casa. — É um
belo salão, mas um desperdício de espaço. Há lá dentro uns dois mil livros
que ninguém lê, e que só servem para apanhar poeira.
Chegaram a uma sala elegantemente decorada, de teto abobadado de onde
pendiam dois enormes candelabros de cristal. Aqui e ali, havia poltronas e
sofás estofados, em grupos de três e quatro, cada grupo com sua mesinha,
cinzeiros e bugingangas variadas.
— Este é o salão do clube — disse Turrin. — Procuramos fazer um
ambiente aconchegante. Com um salão deste tamanho, não foi fácil.
Parou diante de um fio grosso, ricamente trançado, que pendia ao longo de
uma das paredes, e deu-lhe um puxão. Bolan ouviu duas notas musicais que
ecoavam em algum lugar da mansão. Uma mulher de corpo escultural, os
cabelos ruivos penteados para cima, em estilo imperial, entrou na sala,
sorrindo afetuosamente.
— Leo querido! — exclamou ela, em tom alegre.
Avançou para ele, abraçou-o, afastando-se logo para olhá-lo
carinhosamente nos olhos. Bolan julgou que ela fosse bem mais alta que o seu
chefe; depois, porém, levando em conta os seus saltos absurdamente altos,
calculou que deviam ser ambos da mesma altura. Vestia calças compridas, do
tipo Saint-Tropez, que aderiam a cada uma de sua formas, e Bolan teve de
reconhecer que eram formas muito atraentes. Completava-lhe a indumentária
uma blusa de seda, com aberturas nas mangas amplas que lhe expunham os
braços a cada movimento. A blusa terminava bem acima da cintura e era
inteiramente aberta na frente, devendo ser fechada por três lacinhos
vermelhos, dos quais somente um estava sendo usado no momento, bem na
linha do busto. O efeito era estonteante, e Bolan mirou com interesse aquela
nudez frontal. A ruiva continuou a ignorá-lo, até que Turrin chamou atenção
para a sua presença.
— Quero apresentar-lhe meu novo assistente, Rheeda — disse ele. —
Mack Bolan, esta é Rheeda Devish.
Foi então que a ruiva o olhou — um simples relance de olhos
interessados, mas Bolan teve a sensação de ter sido inteiramente vasculhado.
Ela sorriu e disse:
— Oi, Mack. Como vai o tempo aí em cima?
— Quente — respondeu ele com um sorriso.
— É por causa do ambiente — disse ela. — Assim que você estiver
aclimatado, tratarei de conhecê-lo melhor.
Bolan sabia que estava pisando em terreno desconhecido, mas não podia
deixar de notar que havia um tom de convite naquela frase amável. Por um
momento, indagou-se que tipo de, abre aspas, envolvimento emocional, fecha
aspas, haveria entre aquela garota e Turrin.
— E garanto que, depois disso, você jamais será o mesmo — acrescentou
Turrin, com um risinho divertido, desfazendo qualquer dúvida que pudesse
haver na mente de Bolan.
— Aguardo esse momento com ansiedade — disse ele, fixando aqueles
olhos sedutores.
Uma onda de calor lhe percorreu o corpo, numa reação que ele esperava
que os dois não notassem. Nunca lhe havia ocorrido que uma mulher daquele
tipo pudesse estar exercendo a mais antiga das profissões.
— E terá mesmo de aguardar — disse Turrin, sempre sorrindo. —
Lembre-se do que eu lhe disse. Olhar pode, tocar não. — E, inclinando a
cabeça na direção de Bolan: — Olhe aqui, sargento, eu e Rheeda temos uns
negócios a tratar. Você fica aqui, no seu posto. Entendeu? Aqui mesmo.
Bolan fez um leve gesto de assentimento:
— Assumo o posto, capitão.
Turrin piscou um olho e deu um tapinha no ombro de Bolan:
— Pombas, foi ótimo termos encontrado um cara como você, sargento.
Em seguida, voltou-se para a ruiva e os dois saíram, atravessando o arco
dos fundos e subindo uma escada atapetada, ela abraçada a ele, rindo,
divertida com alguma coisa que ele lhe dizia.
Bolan deu de ombros e pôs-se a andar pelo salão, olhando os quadros que
adornavam as paredes. Em quase todas, havia estudos de nu artístico muito
atraentes; e, se as garotas que haviam posado para eles eram todas residentes
de Pinechester, então o mundo da prostituição certamente lhe reservava
algumas surpresas. O próprio salão do clube era suntuoso. Se o decorador
havia dedicado aos quartos a mesma atenção generosa ao conforto do corpo
humano que se observava por ali, então esses quartos deveriam ser
fantásticos. Todo o ambiente era consagrado à volúpia, o que significava
dinheiro com um "D" maiúsculo, e Bolan indagou-se qual o preço que a
aristocracia americana tinha de pagar para passar uma noite naquele palácio
de prazer. Podia quase compreender a imensa satisfação com que um
camponês siciliano, que havia conseguido tornar-se proprietário daquele
"Castelo das Transas", como Turrin o chamara, subtraía dos ricos parte de sua
riqueza para entregá-la a alguns dos nouveaux riches que agora se regalavam
no conforto daquela mansão de subúrbio. Bolan tratou de afastar aqueles
pensamentos, lembrando que Turrin era um criminoso, nada mais que um
criminoso, um bandido sem consciência que arrastava mocinhas para a
prostituição e levava honrados pais de família a cometer atos de violência.
Pensava nessas coisas quando surgiu uma loura — uma criatura capaz de
destruir num segundo todo o senso de autocontrole que ele tentava readquirir.
Era tão alta quanto Rheeda, e compensava em juventude e vivacidade a
vantagem que Rheeda levava sobre ela no tocante à pose e à beleza
sofisticada. Os cabelos dourados desciam-lhe numa cascata luminosa para trás
dos ombros, reaparecendo depois sob a forma de uma trança curta e frouxa
que lhe vinha da nuca até a garganta. Os olhos eram graúdos e de um azul
profundo, o nariz e o queixo bem esculpidos, o rosto de contorno suave e
indefinido. A boca sensual estava ligeiramente entreaberta, e dos dentes
brancos espontava o vermelho da língua.
— Que diabos está fazendo aqui? — inquiriu ela em voz baixa.
— Estou esperando o Sr. Turrin — respondeu Mack Bolan.
Podia parecer uma resposta idiota, mas naquelas circunstâncias, a frase
não deixava de ser apropriada. Para todos os efeitos, aquela deusa loura estava
despida. Uma estola de gaze fina descia, em queda livre, dos ombros para a
frente do corpo, passando por entre a juntura das coxas e subindo-lhe pelas
nádegas, para terminar num laço sobre a cintura. O efeito final era
absolutamente informal e indiscreto, e incrivelmente sedutor para olhos
masculinos. Dois seios redondos e túmidos, de bicos pontudos, transpareciam
inquietos sob o tecido diáfano. A pele branca e macia das ancas contrastava
com o tom obviamente mais escuro do púbis, que as pontas pendentes do laço
transparente apenas realçavam. As pernas e coxas eram divinamente bem-
feitas, e Bolan sentiu-se nervoso como um colegial que assiste pela primeira
vez um show de "strip-tease".
A loura examinava-o atentamente, como a estudá-lo, obviamente satisfeita
com o que via. Levou as mãos ao amplo decote, fazendo deslizar os dedos
para cima e expandindo ainda mais a generosa abertura. Bolan, o Inabalável,
não conseguiu desviar os olhos quando os bicos rosados escaparam do tecido
e apontaram para ele.
— Por que não vai lá para cima e fica esperando comigo? — disse a loura,
obviamente consciente do seu poder de sedução.
E repetiu tentadoramente, numa voz sensual:
— Hein? Que tal? O Leo sempre fica uma hora por aqui. Vamos. Vamos
levar uns drinques lá para cima.
— Lamento — disse Bolan, que já começava a desconfiar da
autenticidade daquele encontro "casual". — Ele me mandou esperar aqui.
Ela se aproximou, fazendo subir-lhe às narinas o efeito delicioso do seu
perfume. Automaticamente, ele estendeu as mãos para a frente, como para
tocar-lhe a pele macia do dorso, mas logo recuou-as, relutando em entregar-se
à forte atração que sentia. Ela arqueou os quadris na direção de Bolan, os
lábios acariciando-lhe as orelhas, e murmurou:
— Ele vai ficar aqui pelo menos uma hora. E nós só precisamos de cinco
minutos.
Com um movimento delicado, mas firme, Bolan afastou-a:
— Desculpe-me — disse ele.
Ela o fitou durante um segundo, lendo a mensagem que via em seus olhos.
E exclamou:
— A quem está tentando enganar? — parecia furiosa de repente. — Pensa
que não sei que está morrendo de desejo de me levar para a cama?
— Tem toda razão — disse ele, bem-humorado.
A garota deixou escapar um riso breve e nervoso, e afastou-se um pouco
mais, com um trejeito voluptuoso das ancas.
— Não sabe o que está perdendo — sussurrou ela.
— Eu imagino — disse Bolan, com um leve sorriso. — Agora, calma. O
lugar é apropriado, mas o momento não é. Portanto, tire esse corpo alucinante
da minha frente: estou trabalhando.
Mudando subitamente de expressão, ela o mirou com curiosidade e
respeito.
— Ora, vejam só! — murmurou ela, com um sorriso indeciso.
Um zumbido eletrônico de um alto-falante quebrou o silêncio, seguido
pela voz de Leo Turrin:
— Muito bem, sargento. Mais um ponto a seu favor. Pombas, que tipo de
homem é você? Tem nervos de aço, por acaso? Hein? Acho que nem eu seria
aprovado num exame desses — Turrin parecia estar se divertindo
enormemente com tudo aquilo. — Olha aí, rapaz, a prova terminou. Pode
agarrar essa lourinha deliciosa e levá-la lá para cima. Está ouvindo? Vá
divertir-se!
— Estou ouvindo, Leo — disse Bolan, olhando em torno na tentativa de
localizar o alto-falante, escondido em algum lugar da sala.
— Que está procurando? Isto aqui é um circuito fechado de TV. Mais
tarde eu mostro a você como funciona. Mitzi, cuide bem do meu amigo, está
ouvindo?
A garota sorria, divertida.
— Estou ouvindo, Leo — disse ela.
— E esta é mais uma transada que você fica devendo à casa —
acrescentou Leo, com uma sonora gargalhada.
O alto-falante emudeceu, e a loura lançou a Bolan um sorriso matreiro:
— Viu o que você me causou com essa sua dedicação ao trabalho? —
tomou-lhe uma das mãos e puxou: — Vamos, vamos para a cama. Ou você
ainda acha que o momento não é adequado?
— Agora é — disse Bolan, seguindo-a em direção à escada atapetada.
Mack Bolan, o homem de nervos de aço ou coisa parecida, sabia muito
bem que se sairia otimamente da próxima prova. Acompanhou a loura escada
acima, depois ao longo de um corredor lindamente decorado, até um quarto
espaçoso. Era um quarto de luxo, com um dossel sobre o leito, tapete felpudo
e rico mobiliário. Bolan soltou um ligeiro assobio.
— Bonito, não? — disse a loura, sorrindo para ele afetuosamente. Baixou
o olhar para examinar-lhe o corpo, que pulsava de desejo. — Como é que
você gosta?
— Que quer dizer? — indagou Bolan, enquanto lhe acariciava o ombro.
— Prefere de pé, sentado, deitado, de quatro, papai-e-mamãe ou outra
posição?
Bolan limitou-se a sorrir; afastou-a um pouco e pôs-se a desfazer
cuidadosamente o laço da cintura. Retirou lentamente a estola de gaze e
depositou-a no chão; depois fitou a companheira, apoiando o queixo na mão,
como se meditasse. Ela sorriu e executou uma lenta pirueta, os braços
erguidos graciosamente acima da cabeça, terminando a exibição com um
movimento convulsivo dos quadris, atirando o ventre para a frente.
— Aposto que você já trabalhou em teatro — disse ele.
Ela soltou um risinho nervoso, abaixando os braços e permanecendo
imóvel, na expectativa do que viria depois. Obviamente, era Bolan quem
comandava agora a situação. Ela tornou a rir, voltou-lhe as costas e caminhou
para a cama, hesitando um instante para olhá-lo por sobre os ombros, depois
afastando meticulosamente as cobertas. Deitou-se, acomodou um travesseiro
sob a cabeça, e girou o corpo languidamente para um lado, mirando o
companheiro de alcova. Bolan estava se despindo. Ela parecia examinar com
atenção cada músculo daquele corpo forte. Ele deixou as roupas sobre uma
cadeira e aproximou-se da cama, parando ao lado dela para lançar-lhe um
olhar penetrante, um leve sorriso nos lábios.
Ela sorriu também e deu umas leves palmadinhas no colchão, convidando-
o a deitar-se. Bolan segurou-lhe a mão e puxou-a para fora da cama. Ela mal
conseguiu ficar de pé, ante a surpresa do gesto.
— Você gosta desses trejeitos de dançarina de "strip-tease" — disse
Bolan. — Pois faça-os! Vamos, remexa-se!
— Ora, eu estava somente...
— Remexa-se!
Ela gingou o corpo, repetidamente, remexendo os quadris numa imitação
agradável de uma dançarina de teatro rebolado, mas logo cansou daquilo.
Bolan, que se afastara para melhor apreciar seus esforços, olhava-a divertido,
com as mãos na cintura.
— Isto é alguma tara sua ou é sua maneira de se desforrar de mim? —
disse ela, interrompendo os movimentos e lançando um olhar de súplica ao
companheiro.
Bolan riu e abraçou-a, o corpo contraído ao contato delicioso daquela
carne nua.
— Digamos apenas que foi um teste e que você foi aprovada — riu ele. —
Agora... como é que você gosta?
Ela soltou um risinho reprimido e relaxou o corpo.
— Se é que posso escolher, prefiro... deitada de costas e bem devagar...
— Muito bem — disse ele — pelo menos agora você não é mais aquela
boneca de vitrina.
— Como? — fez ela, deitando-se, as pernas pousadas na beirada da cama.
— Todos aqueles trejeitos e poses — disse Bolan. — Você faz isso com
todos os clientes?
— Ninguém nunca se queixou — disse ela.
Ele ajoelhou-se ao lado da cama, envolvendo com um braço aquele
delicioso corpo feminino, roçando os lábios pelo busto, parando um instante
sobre os seios, para depois colher-lhe os lábios num beijo.
— Assim está melhor — disse ela, suspirando e acariciando-lhe as costas
com os dedos.
Ele fez com que ela flexionasse uma das pernas, puxou-a para si e beijou-
lhe o joelho, apalpando-lhe a coxa com ambas as mãos.
— Hmm, você gosta de pernas? — disse ela, com um brilho novo nos
olhos.
— Gosto das suas — afirmou ele. — Mas provavelmente não da forma
como você pensa. Estou só procurando o seu ponto sensível.
— Eu sou toda sensível — disse ela.
Ele deslizou-lhe a mão pelo corpo, roçando de passagem os dois seios,
descendo para os quadris e para a juntura das coxas. Ela estremeceu e soltou
um profundo suspiro. Bolan sorriu.
— Está bem, sou mais sensível em certos lugares que em outros — disse
ela. — E você... não vai vir para a cama comigo?
À guisa de resposta, ele enlaçou-a, fazendo-a virar-se de bruços, as mãos
explorando-lhe o dorso à procura de outros lugares sensíveis. A lourinha
ofegava, ansiosa.
— Ei, ei — disse ela.
— Ei o quê?
Ela revirou o corpo e atirou os braços em sua direção, envolvendo-lhe o
pescoço, os lábios à procura dos dele. Ele deitou-se ao lado dela, estreitando-a
nos braços, as pernas entrelaçadas, os lábios unidos, o corpo dela buscando o
dele em movimentos rítmicos.
— Agora você está fazendo os movimentos certos — disse ele,
interrompendo por um instante aquele beijo profundo.
— Muito bem, professor — disse ela, arfando. — Então continue a aula.
Colou novamente os lábios nos dele, os seios firmes apertados de encontro
ao tórax cabeludo. Em seguida, desceu as mãos, tateando, desejando. Ele
negaceou o corpo:
— Ainda não. Você ainda não está bem no ponto...
— Puxa! — exclamou ela. — Estou quase ficando maluca.
Ele rolou o corpo para o outro lado, puxando-a para cima de si, beijando-
lhe o pescoço. Ela arfava, debatia-se, roçava o ventre no dele, gemia, pedia.
Finalmente, ele tornou a deitá-la de costas e saiu da cama, ficando de pé ao
lado dela. Ela ergueu os joelhos e os braços ao mesmo tempo, um ar de
súplica nos olhos:
— Por favor... por favor...
Bolan sorriu e murmurou:
— Agora você é uma mulher.
E caiu sobre ela. Ela ergueu o corpo para recebê-lo, envolvendo-o com
braços e pernas.
— Sim, sim, sim — murmurou ela, o corpo sacudido em movimentos
convulsivos.
Só dali a instantes pôde completar a frase:
— Sou uma mulher — disse ela, languidamente.
— E eu seria o último a negá-lo — disse Bolan, ofegante.

2.ª PARTE
1. A Causa e a Campanha
Um visitante inesperado batera à porta do apartamento de Mack Bolan, no
bairro de Liberty, às primeiras horas da manhã de 31 de agosto. Bolan soltou
um resmungo de surpresa, escancarou a porta e fez entrar o Tenente-detetive
Al Weatherbee. Os olhos experientes do policial examinaram rapidamente o
belo apartamento, e voltaram-se para o atual inquilino, que parecia
ligeiramente enfurecido.
— Considere minha visita uma demonstração de amizade — disse o
policial, esboçando um sorriso. — Quero...
— Cinco horas da manhã é um pouco cedo para demonstrações de
amizade — interrompeu Bolan.
— Um amigo necessitado não deveria incomodar-se com a hora —
observou Weatherbee. — Resolvi dar um pulinho até aqui para passar-lhe
umas informações interessantes.
Bolan não estava sendo muito cortês como anfitrião. Deixou o tenente de
pé no meio da sala e foi para a Kitchenete. Colocou uma chaleira de água
sobre o fogão, tirou duas xícaras e um vidro de café solúvel de uma prateleira,
e voltou os olhos sonolentos em direção à sala.
— Venha cá para dentro — exclamou ele.
O corpulento detetive obedeceu. Bolan estava sentado a um tamborete
alto, diante do balcão onde costumava tomar o café da manhã.
— Daqui a pouco o café está pronto — disse ele numa voz engrolada. —
Disse que tinha alguma informação?
Weatherbee assentiu:
— É, vim bancar o alcaguete — acomodou-se precariamente sobre um
segundo tamborete, sentando-se de lado e examinando o rosto de Bolan à luz
fraca do ambiente. — Sua cabeça está a prêmio, Bolan.
Bolan pesou-lhe as palavras detidamente; depois disse:
— Não estou entendendo.
— Uns caras foram contratados para matá-lo — explicou o policial. —
Alguém quer executar você. Entendeu agora?
Bolan fitou-o durante um instante, acendeu um ci¬garro e lançou um olhar
à chaleira.
— Por que é que a água demora tanto a ferver de manhã cedo? — disse
ele, calmamente.
— Ouviu o que eu disse?
— Sim, ouvi — Bolan deixou-se escorregar para fora do tamborete,
apalpou cuidadosamente a chaleira, e em seguida dirigiu um olhar penetrante
ao detetive. — Está querendo me apavorar ou coisa parecida?
Weatherbee suspirou e abanou a cabeça negativamente.
— Não, a coisa é séria, Bolan. Olhe, há dias você vem sendo vigiado por
nós. Sei que você anda preparando alguma coisa contra aquela gente. Pois
bem, agora eles também o sabem. Você não pretendia mesmo fazê-los de
tolos o tempo todo, pretendia?
Bolan meteu a colher no vidro do café, tirou de lá uma colherada cheia e
passou o vidro a Weatherbee.
— Está falando daquele bando de Mateus — disse ele. A chaleira
começava a ferver. Bolan foi ao fogão, apanhou-a, derramou água quente na
xícara e pôs-se a dissolver o pó preto de café com uma das mãos, enquanto
enchia a xícara do visitante com a outra. — Para mim, não se mostraram
muito inteligentes.
— Muita gente que hoje está no cemitério teve essa mesma impressão
inicial — disse Weatherbee. Mexeu o café e experimentou um gole. — Eles
pegaram você, Bolan. Sabem quem você é e, é claro, sabem por que você está
interessado neles. E contrataram os caras certos para matar você.
— Que posso fazer? — indagou Bolan, como se falasse consigo mesmo.
Seus olhos cruzaram com os do detetive. Weatherbee ensaiou um sorriso e
disse:
— Fuja. Fuja o mais depressa para o lugar mais longe possível. Para o
Sudeste Asiático, se conseguir chegar lá.
Bolan abanou a cabeça:
— Não vou fugir para lugar nenhum. Esses... caras foram contratados há
muito tempo?
Weatherbee consultou o relógio de pulso:
— Há coisa de quatro horas, a acreditar no que disse o meu informante.
— E quanto tempo eles levarão para começar a agir?
Weatherbee encolheu os ombros largos:
— Não devem demorar. Provavelmente acham que a coisa vai ser fácil.
Ao que me disseram, o prêmio será apenas de cinco mil dólares. — E, com
um suspiro: — Para dizer a verdade, Bolan, eu receava que você já estivesse
morto quando cheguei aqui.
— E para que essa trama toda? — perguntou Bolan. — Há dias eu
frequento os mesmos lugares que eles. Para que brincar de gato e rato?
Tiveram mil oportunidades de me matar.
— E a sua trama, Bolan?
— Como assim?
O corpulento policial sorriu:
— Por que é que você deixou de agir até agora? Seu objetivo é matá-los.
Não tente negar ou confirmar isso, não espero que você o faça. É tudo uma
questão de método, não? O mesmo se aplica à Máfia. O método deles é
contratar gente para matar — empurrou para longe a xícara de café. — Este
café está uma droga. Você não deixou a água ferver direito.
Levantou-se, pôs as mãos na cintura e fez uma ou duas flexões de torso
para relaxar os músculos.
— Bom, já o avisei. Era meu dever, creio eu. Não posso fazer mais nada,
a não ser que você pretenda colocar-se sob a proteção da polícia.
Bolan fez um muxoxo de pouco caso.
— Qual a minha posição perante a lei, caso eu os mate primeiro? —
perguntou ele.
— Seria preso e acusado de assassinato — disse Weatherbee.
Calou-se e caminhou em direção à porta. Bolan seguiu-o.
— Eu teria agido em legítima defesa — argumentou ele.
— Você teria de provar isso no tribunal — disse o detetive — parou
diante da porta, com um sorriso tenso nos lábios. — Olhe, se lhe interessa
saber, você tem minha simpatia. Mas isso é uma coisa à parte. Se você usar
mais uma vez, nesta cidade, esse seu dedo de apertar gatilho, caio em cima de
você para valer. Não poderia agir de outra maneira. Quanto a você, acho que
está entre a cruz e a caldeirinha. Aconselho-o, em primeiro lugar, a confessar
os homicídios de 22 de agosto e entregar-se à polícia. É possível que um bom
advogado consiga convencer os jurados que se trata de um caso de insanidade
mental momentânea. Se não quer aceitar meu conselho, então só posso lhe
dizer isto: fuja. Fuja para bem longe. Você não pode com essa gente, Bolan.
Simplesmente não pode — abriu a porta e saiu para o hall. — Então? Quer
pôr uma roupa decente e me acompanhar ao distrito?
Bolan fez um gesto negativo com a cabeça:
— Obrigado, tenente.
E fechou a porta.
Imediatamente, foi para o banheiro, escovou calmamente os dentes,
depois fez a barba, tomou banho e vestiu-se. Examinou o coldre que lhe havia
sido fornecido por Turrin, inspecionou pela décima segunda vez a pistola de
cano curto, meteu-a no coldre e instalou-o no lugar certo, sob o ombro
esquerdo. Em seguida, foi à cozinha e tirou de uma gaveta quatro caixas de
munição, esvaziou-as e meteu as balas nos bolsos. Feito isto, voltou ao quarto,
trocou a posição dos móveis, colocando a cabeceira da cama de frente para a
janela, suspendeu as venezianas para deixar entrar a luz ofuscante do sol
nascente, enrolou dois cobertores sobre o colchão e cobriu-os com um lençol.
Percorreu depois o apartamento, fechando cuidadosamente todas as cortinas e
apagando as luzes, para finalmente voltar ao quarto de dormir.
Instalou uma cadeira dentro do amplo armário de vestir, foi até a porta do
quarto para fechá-la, e retornou ao armário. Sentou-se lá dentro e puxou as
portas deslizantes, deixando uma estreita abertura bem em frente à cadeira.
Examinou mais uma vez a pistola, e deixou-se ficar à espera do inimigo, com
uma calma e uma paciência que havia aprendido num campo de batalha muito
longe dali.
A segunda visita ao apartamento de Bolan, naquela manhã de 31 de
agosto, ocorreu quando faltavam apenas alguns minutos para as sete horas.
Desta vez, os visitantes eram dois, e não tocaram a campainha. Pararam um
instante diante da porta de entrada, enquanto um deles mexia na fechadura
com instrumento cheio de dentes e lâminas. Depois de experimentar várias
combinações, com grande cuidado e silêncio, murmurou: "Acho que agora
acertei." A porta abriu-se sem ruído, e os dois entraram, fechando-a
cuidadosamente atrás de si. O interior não estava inteiramente às escuras, mas
ambos se detiveram um instante junto à porta, enquanto os olhos se
habituavam à penumbra.
— Ele ainda está dormindo — sussurrou um dos visitantes.
O outro fez-lhe um gesto de cabeça, e os dois galgaram silenciosamente o
corredor. O mais forte deles parou diante da porta do quarto, apertando os
olhos no escuro para inspecionar a pistola de cano longo que trazia na mão, e
onde estava instalado um silenciador. O outro tocou de leve a pistola,
mostrando os dentes num sorriso:
— Não se descuide — ciciou ele. — Dizem que esse cara é bom de tiro.
O que trazia a pistola acenou afirmativamente e foi girando devagar a
maçaneta da porta do quarto. Abriu-a e entrou, seguido pelo outro. Ficaram
ambos momentaneamente ofuscados pelo clarão que entrava pela janela ao
lado da cama: mas logo o pistoleiro ergueu a arma e disparou rapidamente três
tiros em direção ao vulto sob as cobertas, em três estampidos abafados pelo
silenciador. Foi então que, no canto direito do quarto, ouviu-se o leve deslizar
de uma porta, e uma voz anunciou:
— Aqui, Charlie.
Os dois voltaram-se simultaneamente, quase esbarrando um no outro. Um
jorro de labaredas amarelas explodiu em sua direção, as paredes do quarto
vibrando com o estrondo de uma pistola de ação rápida. Um esguicho
vermelho aflorou ao pescoço do visitante que tinha a arma na mão. O outro
caiu de joelhos, umas das mãos dentro do casaco, numa imitação imóvel de
Napoleão, enquanto o próprio casaco tingia-se de vermelho na altura do
coração. Outro projétil alojou-se no rosto do primeiro, bem abaixo do olho
direito, a cabeça impelida grotescamente para trás pelo impacto da bala. Caiu
sobre o companheiro, segurando na mão trêmula a pistola, agora
completamente silenciosa.
O Executor saiu do armário e parou um instante ao lado dos dois, para
confirmar os resultados com um olhar profissional: em seguida, enfiou a
pistola no coldre e saiu rapidamente do apartamento. Foi de elevador até o
porão, depois subiu rapidamente a escada para a entrada de serviço da parte
traseira do edifício, atravessou a rua, meteu uma chave na porta de serviço do
edifício que ficava diante do seu, e entrou. Um minuto depois, entrou num
pequeno apartamento desse segundo edifício, dirigiu-se ao fogão e pós água a
ferver para fazer café. Feito isso, retirou as almofadas de um sofá e puxou de
lá um rifle de alta potência. O Marlin, calibre 444, estava equipado com uma
excelente mira telescópica; as peças metálicas da arma estavam protegidas,
revestidas de papel impermeável. Embaixo do sofá, havia uma caixa metálica,
cheia de munição, e um jogo de instrumentos de limpeza: e o Executor pôs-se
metodicamente a preparar seus instrumentos para entrarem em ação.
"Quem quer fazer quem de bobo?", murmurou ele consigo mesmo. Bolan,
o perito atirador das emboscadas do Vietnã, sempre acreditara que toda boa
ofensiva devia incluir um plano de retirada. "Só que isto agora não é uma
retirada", disse ele ao Marlin, enquanto removia carinhosamente o papel
impermeável. "Apenas me transferi para uma posição de resistência." Foi até
a janela e olhou a rua lá embaixo. De não muito longe, vinha o som de uma
sirene. Indagou-se como se sentiriam os mafiosos quando soubessem que ele
continuava vivo. Indagou-se também como o Tenente Weatherbee receberia
aquela notícia. Sabia que, de agora em diante, o Executor teria de agir com
extrema cautela. Todos estariam em seu encalço — a polícia, a Máfia, os
pistoleiros, e provavelmente o mundo inteiro. Bolan estremeceu, sentindo um
leve arrepio.
"O medo é uma reação natural", disse ele com seus botões. Use-o! Tire
proveito dele! Eram palavras de encorajamento que ele se dissera a si próprio
muitas vezes. Mas, naquelas ocasiões, nunca estivera completamente só. Tirar
proveito do medo! Claro! Apavorar aquele bando de Mateus. Botá-los a
correr, fazê-los sentir um medo bem maior do que o seu, e esperar exterminá-
los um a um. Mas... e a polícia? Como fugir da polícia? Quanto tempo de
liberdade lhe restava? Bolan era suficientemente realista para saber que não
tinha muito tempo. Talvez alguns dias, no máximo. Alguns dias. Pois bem:
teria de fazer, no espaço de alguns dias, tudo o que se propusera fazer. Abriria
um rombo no corpo da Máfia, faria correr de puro medo aqueles criminosos,
negacearia os pistoleiros e a polícia, ao mesmo tempo em que procuraria
manter-se vivo — tudo isso numa questão de dois ou três dias. Seria capaz?
Deixou-se ficar um instante acariciando o enorme rifle. Teria de ser capaz; do
contrário, morreria. Não havia outra saída. Um arrepio lhe percorreu a
espinha. Não havia outra saída.
Bolan descobriu uma verdade naquele momento sombrio de introspecção.
Começara tudo aquilo como um simples ato de vingança. Era uma verdade
que agora podia encarar calmamente. Uma vingança à qual fora levado pelo
seu forte senso de justiça, um enorme sentimento de frustração e a disposição
de tomar a iniciativa. Mas agora já não se tratava de vingança, nem de
legítima defesa — e ele estava plenamente consciente disso. Já não odiava
aqueles homens, aqueles mafiosos do tipo de Turrin, Plasky e Seymour.
Chegara quase a compreendê-los e ao fazê-lo. percebera que seu ódio se
dissipava. Passara a encará-los quase da mesma forma como aprendera a
encarar o inimigo no Vietnã.
Nada havia de pessoal entre Bolan e o inimigo — nenhum ódio, nenhuma
conta a ajustar. A vida era simplesmente uma brincadeira de caubóis e índios
entre gente adulta. Havia os mocinhos e os bandidos. Os bandidos tinham de
ser derrotados. Era isso, nada mais. O Executor passara a sentir-se como que
engajado numa guerra santa, por mais melosa e cediça que fosse tal ideia. A
luta era entre o Bem e o Mal. Era esta a causa, e o Executor sabia que jamais
abraçaria uma causa melhor. Era uma causa pela qual estava disposto a viver,
não a morrer. Não havia vitória na morte, como ele o sabia muito bem: a
vitória estava na morte do Mal, um objetivo ao qual Mack Bolan decidira
dedicar-se inteiramente. A Máfia era o Mal. A Máfia devia morrer. Era esta a
sua causa, era esta a sua campanha.
2. O Terrorista
Passava um pouco do meio-dia quando o sedã preto, conhecido dos
empregados da casa, avançou lentamente, cruzou o portão de entrada da
mansão suburbana e deteve-se alguns segundos com as rodas sobre uma
pequena lombada do caminho. O motorista acenou de leve para o rapaz
próximo à entrada, metido num macacão de caseiro, e prosseguiu em sua
trajetória, contornando a curva da aleia em direção às paredes brancas de
Pinechester. Deixou o carro na garagem e penetrou na mansão pela porta
lateral, indo diretamente ao salão do "clube" e puxando o cordão da parede a
fim de anunciar sua chegada. Segundos depois, surgiu a ruiva alta, novamente
vestida em calças Sain-Tropez — desta vez, de seda verde e brilhante, com
estratégicas aberturas laterais. O sorriso que ela havia armado no rosto
desapareceu quando ela reconheceu o visitante.
— S... sargento — gaguejou ela, olhando rapidamente em volta como se
procurasse ajuda. — O... o quê...?
— O que estou fazendo aqui? — disse ele, sorrindo. — Adivinhe.
Com um esforço, Rheeda conseguiu devolver ao rosto o sorriso
profissional, e deu alguns passos hesitantes na direção do recém-chegado.
— A Mitzi me disse que você é impossível — murmurou ela, procurando
controlar o mais possível a entonação de voz. — Suponho... suponho que
você gostaria de me domar um pouquinho também, não? Pois bem.
Chegou-se a ele, tentando abraçá-lo. Bolan recuou, segurou-lhe as mãos e
abaixou-as.
— Sabe muito bem que não se trata disso — disse ele.
— O que você quer? — perguntou ela, obviamente assustada.
— Quero que tire as meninas daqui — disse ele — a não ser que você
queira que elas virem churrasco.
Ela o olhou, sem compreender:
— A casa está pegando fogo? — gaguejou ela.
— Vai pegar — disse Bolan. — Diga a elas que saiam. Já!
Houve um brilho de fúria nos olhos dela, mas seu olhar não resistiu ao
olhar impassível de Bolan. Sem saber o que fazer, a ruiva recuou um passo,
depois acercou-se rapidamente de uma pequena escrivaninha junto à porta,
abriu uma gaveta e meteu a mão lá dentro. Bolan, porém, tinha-a seguido com
pés de gato: empurrou-a bruscamente e ela tombou sobre a cadeira, com um
grito de espanto. Pôs-se de pé, hesitante, mas sageando o pulso machucado e
lançando um olhar de ódio a Bolan, que retirava o pente da pequena pistola
automática que encontrara na gaveta.
— É melhor andar depressa — disse ele, em voz calma. — Vou tocar fogo
nesta casa dentro de trinta segundos. Faça as garotas saírem pela escada de
emergência lá de trás.
Atirou a pistola descarregada sobre o tapete, apanhou um jornal e
aproximou-o à chama do isqueiro. Rheeda soltou uma exclamação de pavor e
correu escada acima.
Bolan colocou o jornal chamejante próximo às cortinas da janela, e
rapidamente acendeu outro. Em questão de momentos, o salão do clube ardia
em chamas. Bolan saiu pela mesma porta por onde entrara, pegou o carro e
levou-o até o portão de entrada.
— A casa está pegando fogo — disse ele ao "jardineiro".
O homem mirou-o, surpreso, depois voltou o rosto na direção da mansão,
arregalou os olhos e saiu correndo em direção ao prédio em chamas.
— Essas casas velhas queimam rápido — disse Bolan consigo mesmo.
Sorriu e tornou a arrancar, cruzando o portão e avançando perto de cem
metros pela rua, paralelamente a cerca que isolava o vasto terreno. Estacionou
junto ao acostamento, desligou o motor. De sobre o assento traseiro, retirou o
Marlin; em seguida, saiu do carro e escalou a cerca, caindo suavemente lá
dentro, o rifle preso ao ombro por uma correia de couro. Havia em seu rosto
um sorriso sombrio quando ele atravessou o terreno em direção a uma
pequena elevação, de onde podia avistar a casa e a aleia de macadame, e
acomodou-se sobre a relva para aguardar pacientemente os acontecimentos.
Havia mulheres correndo e gritando, quase todas seminuas. Bolan pôde
facilmente distinguir o verde brilhante das calças de Rheeda. Observou-a pela
mira telescópica, um rosto colérico que lhe enchia todo o campo de visão.
Bolan sorriu. Rheeda era completamente biruta. As chamas envolviam agora
toda a velha mansão. O "jardineiro" andava lentamente de um lado para outro,
em meio às mulheres, um grande revólver inútil na mão. Ouvia-se ao longe a
sirene de um carro de bombeiros, e o carro do chefe dos soldados do fogo
logo surgiu na aleia de macadame, fez uma rápida curva sobre a grama e freou
bruscamente junto ao portão. Um homem uniformizado saltou do carro e
acenou para o caminhão de bombeiros que estava chegando, deu algumas
instruções apressadas a alguém que estava dentro da cabine, e afastou-se para
deixar que o caminhão prosseguisse em seu caminho. Bolan tornou a sorrir.
As ordens eram provavelmente para esquecer as mangueiras. Aquela casa
estaria em escombros antes mesmo que eles pudessem desenrolar as
mangueiras. Um grupo de mulheres, entre elas Rheeda, formara-se ao lado do
carro de bombeiros. Estes pareciam mais interessados nas garotas que no
incêndio. Outro carro de bombeiros chegou ao portão, mas foi despachado
pelo chefe, que tornou a entrar no automóvel e manobrou em direção à casa.
Bolan esperou. Ouviu-se uma explosão dentro do prédio em chamas, logo
seguida de outra. Bolan deduziu que ninguém se lembrara de retirar os carros
da garagem. As garotas, quase todas seminuas, começavam a mostrar-se
inquietas; uma delas, descalça e de penhoar, dirigia-se apressadamente para o
portão de saída. Devem estar preocupadas, pensou Bolan. Era compreensível:
a polícia logo iria começar a fazer perguntas sobre a presença de tantas
mocinhas praticamente despidas no local.
Um carro da polícia assomou ao portão, parou, apanhou a fugitiva e
dirigiu-se para o grupo de pessoas no centro do relvado. Bolan viu que
Rheeda se punha a falar com o policial. Observou-os pela mira, examinando-
lhes os rostos. Eram velhos amigos, obviamente. O policial sorria e abanava a
cabeça ao ouvir o que Rheeda lhe dizia.
Os bombeiros assistiam ao incêndio, vendo a casa ser reduzida a ruínas. A
maioria das garotas decidira sentar-se na grama. Rheeda e outras duas
haviam-se acomodado no carro da polícia. O chefe dos bombeiros recostara-
se ao carro de patrulha e examinava as mulheres. Uma limusine surgiu no
portão, dirigiu-se lentamente para a aleia, como que por força de hábito, e
deteve as rodas fronteiras sobre a lombada. Bolan já mantinha seus ocupantes
sob a mira do fuzil. Turrin estava sentado na frente, ao lado do motorista.
Bolan reconheceu neste último um dos guarda-costas armados da festinha da
casa de Seymour. Dois outros, cujos rostos Bolan não pôde ver, estavam no
assento de trás.
Bolan estourou os pneus fronteiros do carro, pousados sobre a lombada no
macadame, e disparou outro tiro rápido contra o vidro traseiro, entre os dois
homens. O rosto surpreso e assustado de Turrin cruzou rapidamente a mira do
fuzil, enquanto ele procurava agachar-se sobre o assento. Uma das portas
traseiras se abriu, e um sujeito corpulento cambaleou para fora, a mão de en-
contro a cabeça contundida, que sangrava, provavelmente cortada por algum
estilhaço de vidro. Bolan fez um muxoxo de satisfação. Não pretendia alvejar
ninguém com aqueles primeiros tiros, que haviam ecoado com um estrondo
pelo terreno da mansão. O policial pulou do carro e correu para perto da casa;
todos ali estavam concentrados no fogo que consumia a velha propriedade.
Bolan sorriu e tornou a enquadrar a limusine na mira telescópica. O motorista
tentava tirá-la dali, mesmo com os pneus esburacados. Bolan enquadrou um
ponto imaginário sob o capô, onde deveria estar o carburador, e disparou dois
tiros rápidos. O carro parou imediatamente; o capô se abriu e deteve-se, num
ângulo fora de prumo. Saíam labaredas do motor. As quatro portas se abriram
e três homens atônitos correram lá de dentro para protegerem-se sob as
árvores, a alguns metros de distância. Bolan esperava por aquilo; atingiu um
deles na perna e voltou a mira na direção do carro da polícia. O policial levara
a mão ao coldre e corria de encontro ao carro parado na aleia de macadame.
Era óbvio que a confusão no local do incêndio dava certa vantagem a Bolan:
até ali, ninguém percebera que os tiros vinham da pequena elevação onde ele
se instalara. Bolan decidiu tirar todo o proveito possível da confusão, e
disparou dois tiros contra o carro da polícia, inutilizando-lhe dois pneus. As
mulheres que estavam no interior do carro pularam para fora incontinenti,
tomadas de pânico, enquanto o carro se acomodava sobre dois dos aros das
rodas.
Em seguida, Bolan dependurou o rifle ao ombro e deslizou pela encosta
da elevação, do lado oposto à casa, satisfeito com o que havia conseguido até
o momento. Subiu a uma árvore para galgar a cerca e deixou-se cair sobre a
capota do carro. Guardou cuidadosamente o Marlin, sentou-se ao volante, fez
uma curva em "U" para galgar a rua, e passou tranquilamente em frente ao
local da confusão. Pôde ver de relance o ar surpreso do policial que, de arma
na mão, inspecionava o que restara da elegante limusine. Os ocupantes do
carro estavam escondidos em algum lugar. Alguns curiosos começavam a
assomar ao portão, e vários carros já haviam estacionado nas vizinhanças.
Bolan acelerou o motor do seu carro ao cruzar o portão da mansão, com um
sorriso satisfeito no rosto, e tomou a direção da casa de Leo Turrin, situada a
uns dez quilômetros dali, noutro subúrbio residencial.
Percorreu a distância em menos de vinte minutos, chegando à porta da
casa de Turrin exatamente às duas horas. Uma mulher bonita, de cabelos
negros, com cerca de trinta anos de idade, atendeu ao toque de campainha.
Reagiu com um sorriso cordial quando Bolan se apresentou, e convidou-o a
entrar. Bolan recusou o convite, preferindo dar o seu recado ali mesmo, de pé
no umbral da porta.
— Já ouviu falar de mim, então? — disse ele.
— Sim, sim — disse ela. — Leo fala muito bem do senhor. Tem certeza
de que não quer entrar? Não sei quando ele...
— Obrigado, mas realmente não esperava encontrá-lo aqui — disse Bolan
rapidamente. — Na verdade, acabo de deixá-lo em outro lugar agora mesmo.
Esqueci-me de dizer-lhe uma coisa importante e, como estava aqui por perto,
achei que podia deixar o recado com a senhora.
— Quer que eu pegue lápis e papel? — perguntou ela amavelmente.
— Não precisa, é um recado simples — respondeu Bolan. — Diga-lhe que
o homem de aço resolveu botar areia no contrato que ele assinou hoje de
madrugada com dois de seus auxiliares, e que eu o teria devolvido a ele hoje,
durante o incêndio, mas achei que ele não perde por esperar um dia ou dois.
— Acho... que entendi — disse ela, com uma expressão de curiosidade no
rosto.
— Ótimo. Lembre-o também de que eu poderia ter devolvido o contrato à
mulher e aos filhos dele — Bolan sorriu. — Essa parte também é importante.
Não esqueça, por favor.
O rosto dela fez-se sério.
— Sr. Bolan, acredito que...
— É uma espécie de código — interrompeu ele. — Leo compreenderá
perfeitamente o recado.
— Está bem — disse ela. Bolan dera-lhe as costas e pusera-se a descer os
degraus. Ela o seguiu. — Ahn... Sr. Bolan... desculpe a pergunta, mas...
exatamente que tipo de relacionamento o senhor tem com o meu marido?
Ele virou-se para ela com um sorriso agradável:
— Ele nunca lhe disse? Não sabe o tipo de atividade que o seu marido
exerce; Sra. Turrin?
— Sim, claro... — o brilho dos olhos pareceu apagar-se temporariamente
numa sombra de dúvida. Bolan imaginou que esse eclipse já acontecera
muitas vezes no passado. — Mas ele lida com tantas coisas. Queria saber o
que...
— O que eu tenho com tudo isso? — disse Bolan.
Ela fez que sim com a cabeça, com uma expressão mista de curiosidade e
acanhamento.
Bolan quase hesitou em dizer-lhe aquilo. Ela parecia ser boa pessoa. Mas
havia outras coisas mais importantes a considerar.
— Sou um dos capangas dele.
— Como?
Bolan afastou com naturalidade um dos lados do casaco, exibindo a
pistola 32, cuidadosamente colocada no coldre sob a axila.
— Não sabia que seu marido é um mafioso? — perguntou ele,
calmamanete.
— Um o quê? — exclamou ela em voz alta, o rosto contraído numa
expressão de choque e horror.
— Acredito que a senhora seja suficientemente latina para entender essas
coisas, Sra. Turrin — disse Bolan cordialmente.
Terminou de descer os degraus e entrou no carro sem olhar para trás. Ela
continuava de pé no umbral da porta quando ele deu partida — um vulto
rígido, imóvel, cobrindo o rosto com as mãos. Bolan sentiu-se como o maior
miserável do mundo. Não lhe dava prazer nenhum aterrorizar esse tipo de
pessoas. Suspirou e dirigiu o sedã no rumo da casa de Walt Seymour. Bom,
paciência, era uma guerra suja, não havia como negar isso. Amanhã aquela
mulher simpática estaria viuva. E hoje à noite iria dormir com um marido
muito assustado. Não há moralidade numa guerra santa. É simplesmente uma
questão de fins — e havia fins honrados e sórdidos. O bem poderia tornar-se
mau no decorrer de uma batalha, mas isso não fazia muita diferença. O
combate reduz tudo ao mal — a própria vida se torna um mal no calor da
batalha. Quantas vezes, nos últimos anos, repassara no cérebro essas ideias
chochas? Para que torturar-se com noções místicas de bem e mal? A Máfia
era um mal. Portanto, qualquer oposição à Máfia era um bem. As linhas de
batalha eram bem definidas. A única moralidade da batalha era estar do lado
certo, resistir com todas as forças contra o assalto, e contra-atacar sem
hesitação quando chegasse a hora. Era a moralidade dos militares. E Mack
Bolan era um bom militar.
Consultou o relógio. Se não tivesse problemas de tráfego, chegaria à casa
de Walt Seymour por volta das três horas. Seria um ato de terrorismo bastante
interessante. Talvez até mortal. E talvez tivesse repercussões na alta-roda da
Máfia, no alto conselho, entre os pais da "família". Talvez ele conseguisse
fazer estremecer a casa da "família".
3. Incursão em Território Inimigo
Bolan parou o carro numa rua estreita, de chão batido, perto da casa de
Seymour, tirou o casaco e vestiu um macacão verde. Retirou a pistola do
coldre e meteu-a na cintura; depois afivelou o cinto, do qual pendia um estojo
de ferramentas do tipo usado pelos homens que consertam linhas elétricas e
de telefone. Num dos compartimentos do estojo havia uma faca afiada, de
lâmina larga; nos outros, vários alicates, chaves de fenda, tesouras e
instrumentos diversos. Completava o equipamento uma bolsa de plástico, que
ele levava a tiracolo. Bolan deixou o Marlin no carro, atravessou uma área
arborizada, e transpôs facilmente a cerca que delimitava a propriedade de
Seymour, recorrendo ao simples expediente de afrouxar-lhe algumas tábuas.
Era óbvio que Seymour confiava mais em guardas humanos que em linhas
Maginot, e Bolan suspeitava que a maioria dos guardas estava àquela hora a
postos no incêndio de Pinechester.
De fato, o local parecia deserto. Atravessando ousadamente o terreno,
chegou até a piscina sem encontrar qualquer resistência e lançou um olhar em
torno, lembrando, quase com saudades, o dia em que estivera ali pela primeira
vez; em seguida, tirou um pacotinho da bolsa de plástico, abriu-o e atirou-o à
piscina. A água assumiu imediatamente uma cor vermelho-escuro sob a ação
de alguma anilina concentrada. Feito isto, Bolan derrubou duas das tendas que
estavam armadas à beira da água e atirou-as à piscina. Olhou-as durante um
segundo, indagando-se se elas iriam ou não flutuar, e convencera-se de que
iriam, quando um homem de blusão vermelho e calças brancas chegou
correndo, os olhos mirando alternativamente, em movimentos rápidos, a
figura de Bolan e a piscina.
— Que diabos...? — grunhiu ele.
Meteu a mão sob o blusão e tirou de lá uma pistola.
Bolan fingiu não ter visto a arma.
— Sei lá! — disse ele, calmamente. — Acho que aconteceu alguma coisa
com a piscina de vocês — tinha um ar de profunda inocência, e virou-se de
costas para o homem para examinar a água. — Veja só isto.
O homem acercou-se dele, olhando estupidamente para a água, a arma em
riste.
— Não estou ven...
As palavras terminaram numa golfada de sangue. A arma caiu dentro da
água, e ele ergueu as mãos, surpreso, para o pescoço, súbita e
inexplicavelmente degolado; em seguida, tombou para a piscina, um segundo
ou dois depois que a arma caíra, o sangue esguichando-Ihe do pescoço, porém
quase invisível na água tinta de vermelho. Bolan apoiou-se num dos joelhos e
lavou a faca rapidamente na água, enxugou-a, deixou escapar um suspiro, e
tornou a colocá-la na bainha. O corpo desaparecera sob a água colorida. Bolan
ergueu-se e caminhou em direção à casa, olhando para cima à cata de cabos
de luz e telefone. Localizou-os, seguiu-os até uma das esquinas traseiras da
casa, tirou do estojo um par de alicates de segurança e deixou a casa de
Seymour sem telefone. Em seguida, deu alguns passos adiante e cortou o cabo
de alimentação de força elétrica.
Imediatamente, ouviram-se ruídos dentro da casa. A porta traseira abriu-se
e surgiu uma mulher de meia-idade, enxugando as mãos nervosamente num
avental estampado. Lançou um olhar perturbado a Bolan e perguntou:
— O que é que está acontecendo agora?
— Consertando as linhas, minha senhora — disse Bolan, sorrindo como
quem pede desculpas.
— Escolheu uma hora ótima — disse ela, obviamente exasperada. —
Estou preparando o jantar. Quanto tempo a luz vai ficar desligada?
Bolan fingiu não ter escutado a pergunta: outro sujeito armado aparecera
de repente no umbral da porta.
— Está tudo desligado — rosnou ele, a onipresente pistola pendendo-lhe
da mão.
— Pra que essa arma? — disse Bolan. E, num tom de brincadeira: — Vai
me matar só porque eu desliguei sua luz?
O sujeito lançou-lhe um olhar colérico, mas guardou a arma no coldre.
— Quanto tempo vamos ficar sem luz? — perguntou ele, num tom azedo
de queixa.
— Se eu tivesse um cara ou dois para me ajudar, consertaria isso num
minuto — disse Bolan.
O homem fez um gesto impaciente com a mão.
— Eu ajudo — disse ele. — O que devemos fazer?
— Preciso de dois homens — insistiu Bolan.
— Há um outro por aqui, em algum lugar. Posso...
— Aquele já está ocupado. Pedi-lhe que fizesse outra coisa. O que eu
preciso é...
— Ora, não diga! — exclamou o pistoleiro, furioso. — Não temos mais
ninguém por aqui! Trate de chamá-lo, senão...
— Está bem, está bem — disse Bolan, puxando-o pelo braço e levando-o
em direção à piscina. A cozinheira voltara para a cozinha. — Acho que nós
dois conseguiremos resolver o problema. O negócio é aqui na piscina. Veja,
a...
Haviam contornado à casa e aproximavam-se da piscina, e o pistoleiro
estava visivelmente perturbado com o que via.
— Pombas, que diabo aconteceu aqui? — exclamou ele.
— Tempestade eletrônica, entende? — disse Bolan, com a maior cara de
pau. — Indutância da piscina nos cabos de força, entende? Venha, vou lhe
mostrar uma coisa.
Acercara-se da beira da piscina e mirava a água. O pistoleiro juntou-se a
ele, a mão direita pousada no cabo da pistola sob a axila. Parou ao lado do
Executor, a mão esquerda coçando a nuca, os olhos incrédulos examinando a
água vermelha e as tendas que flutuavam.
— Descarga eletrônica não é brincadeira — disse Bolan, num tom sério.
— Força atômica, entende?
— Não, não entendo — murmurou o pistoleiro.
A mão começava a retirar a pistola do coldre, mas as mãos de Bolan
também estavam em plena atividade. A faca de caça zuniu no ar, num
movimento brusco para cima, cortando veias, artérias e tendões. O homem
soltou um grunhido de surpresa, procurando afastar o corpo, mas a comprida
lâmina já lhe mergulhara no abdome e, em um movimento de ziguezague, ia
voltando para fora. Com a outra mão, Bolan empurrou de leve o dorso do
homem — e as águas vermelhas cederam para receber mais um corpo
agonizante.
Bolan tornou a limpar a lâmina, murmurando consigo mesmo que não se
podia pensar em moralidade numa guerra santa, e voltou à casa.
A cozinheira recebeu-o à porta.
— Continua desligado — queixou-se ela.
— Já devia estar funcionando — disse Bolan. — Preciso entrar e dar uma
olhada.
Ela assentiu e afastou-se para dar-lhe passagem. Bolan entrou e logo
lançou um olhar suspeitoso pela cozinha.
— Está sentindo esse cheiro? — perguntou ele.
— É a carne assada — respondeu ela, nervosa.
— Não. Há alguma coisa errada aqui. É melhor a senhora sair. Fique bem
longe desta casa.
Ela fez um gesto afirmativo e encaminhou-se para a porta.
— Tem mais alguém em casa? — indagou ele.
A mulher abanou a cabeça, negativamente, e apressou-se a sair. Bolan,
uma vez sozinho lá dentro, tratou de agir depressa. Passou da cozinha para a
sala de jantar, e de lá subiu para os quartos. De faca na mão, foi de quarto em
quarto, rasgando todos os colchões que encontrava, tarefa que lhe levou
menos de dois minutos. De volta à sala de refeições, notou um grande retrato
de Walt Seymour instalado sobre a lareira. Calmamente, Bolan mirou-o com a
pistola e descarregou-a no retrato, destruindo inteiramente ambos os olhos.
Em seguida, tornou a carregar a pistola, meteu-a na cintura e saiu para o
relvado, onde se encontrava a cozinheira.
— Ouvi uns estouros! — disse ela, assustada.
— Tem razão — disse Bolan, passando por ela sem dizer mais palavra
alguma.
Ela correu atrás dele, em passos miúdos.
— Devo chamar os bombeiros?
— Não, minha senhora — disse ele, voltando-se para olhá-la
pensativamente. — A... a senhora não faz parte da família, faz?
Ela abanou a cabeça.
— Eu trabalho aqui — exclamou, numa voz nervosa e esganiçada.
— Então sugiro que procure outro emprego, o mais depressa possível.
— Por quê?
— Porque o seu patrão não vai viver muito tempo. Diga a ele que eu disse
isso.
Bolan meteu a mão na bolsa de plástico, localizou um pequeno disco de
metal e colocou-o na mão da mulher.
— O que é isso? — indagou ela, confusa.
— Dê isso ao Sr. Seymour. Diga a ele que é da parte do Executor. Diga-
lhe que agirei com esta mesma facilidade quando chegar a vez dele. Com esta
mesma facilidade. Compreendeu?
Ela fez um gesto afirmativo, aproximando o objeto dos olhos para vê-lo
melhor.
— Meu filho tem um desses — disse ela. — É um alvo para prática de
tiro, não é?
— Exatamente. Dê isso ao Sr. Seymour, juntamente com o meu recado.
— O senhor não trabalha na companhia de eletricidade — disse ela,
começando a perceber que havia algo de estranho em Bolan.
— Não, minha senhora. A casa não oferece perigo, pode voltar se quiser.
Bolan deixou-a ali, parada, e percorreu o mesmo caminho por onde viera,
atravessando o terreno e a cerca até chegar ao carro. Tornou a guardar o estojo
de ferramentas e o macacão na mala do automóvel, sentou-se ao volante,
acendeu um cigarro, e examinou as mãos, para ver se estavam tremendo.
Tremiam um pouco. Tudo bem, pensou ele, não há nada de errado com quem
treme um pouco num momento destes. Ligou o motor e dirigiu
cuidadosamente ao longo da estrada de chão batido. Teria preferido ficar e ver
a reação de Seymour àquela incursão do Executor ao território defendido pelo
inimigo — mas isso podia ficar para mais tarde. Caso o Executor tivesse
tempo. Agora, sem dúvida, iria acontecer o diabo. A coisa certamente sairia
nos jornais, a polícia seria chamada a agir. Havia um louco à solta nas ruas de
Pittsfield. Bolan sorriu e acelerou o carro para galgar uma pequena elevação e
alcançar uma rua asfaltada. Um louco que abraçara uma causa. O importante
era que a Casa da Máfia iria tremer em seus alicerces. Ele mostrara o quanto
eles eram vulneráveis. Entrariam em combate, e a luta seria pessoal, muito
pessoal. Não seria uma questão de pagar pistoleiros para fazerem o serviço:
seria uma guerra de emoção e medo, de constante ameaça de morte súbita. Era
o tipo de guerra ao qual se habituara, o tipo de guerra no qual era perito. Os
Mateus teriam de reconhecer esse fato. Eram vulneráveis, e era bom que
soubessem disso.
4. O Entendimento
Bolan parou o carro junto a uma cabine telefônica, deixou cair um níquel
no aparelho e discou o número da central de polícia.
— Tenente Weatherbee, da Homicídios — disse ele à telefonista.
Aguardou, procurando trautear uma canção com a boca fechada, até que o
conhecido sotaque sulista do detetive soou-lhe ao ouvido.
— Weatherbee falando.
— Aqui é Bolan.
— Hã? De... de onde você está falando, Bolan?
— Esqueça isso, tenente — disse Bolan. — Quero apenas que saiba que
aqueles pistoleiros não conseguiram cumprir o trato com a Máfia.
— Sei, sei... E você tem andado ocupadíssimo, não?
Bolan riu por entre os dentes.
— Eles estão chiando?
— A plenos pulmões, nada mais. Tenho um mandado de prisão contra
você. Incêndio premeditado, agressão armada, assassinato, tentativa de
assassinato... quer que eu continue?
— Não precisa — disse Bolan. — Antes de encerrar o expediente, terá de
acrescentar uma porção de coisas a essa lista.
Havia um tom de preocupação na voz do detetive:
— Por que está telefonando, Bolan?
— Quero lhe pedir um favor.
— Ah, sim? Quer entregar-se? O melhor favor que posso fazer-lhe é
prendê-lo.
Bolan riu:
— Não é nada disso. Gostaria que transferisse o meu irmão para a
enfermaria da polícia no hospital.
— Já fiz isso hoje de manhã.
— Muita solicitude de sua parte — disse Bolan, surpreso.
— É, eu tenho de pensar em uma porção de coisas — disse o policial. —
Como, por exemplo... o fato de você ter-se isolado completamente do resto do
mundo. Sabe que está isolado, não?
— Talvez.
— Talvez uma ova. Você rompeu com tudo, sargento. Todos andam à sua
procura. Uns agentes do Departamento da Defesa acabam de sair daqui.
— O senhor não perde tempo, hein, tenente? — retrucou Bolan,
evidentemente aborrecido.
— Não fui eu. Provavelmente algum figurão da política local. O pessoal
está com medo, Bolan.
— Pelo tom de voz, vejo que não está zangado comigo.
— Não estou. Pelo contrário, estou torcendo por você. Oficialmente,
porém, não posso dizer isso. E, por trás das cortinas, tem muita gente aqui na
delegacia que está ao seu lado. Mas não espere receber cortesias oficiais,
Bolan. Do ponto de vista da Lei, você é tão perigoso quanto qualquer um
deles; diria até que... Hã, um minuto...
Bolan escutou um vago rumor de vozes na linha, até que o tenente voltou
a falar:
— Você esteve em Rolling Hills ultimamente? — perguntou, em tom
áspero.
— Quem sabe?
— Perto da casa de um certo Walt Seymour?
— Talvez.
— Hmm. Bem... — Mais vozes ao fundo. Depois: — Pode acrescentar
mais dois assassinatos à lista do mandado de prisão. É melhor você se
entregar agora, Bolan. Isto já está indo longe demais.
— Ainda não.
— Como assim?
— A coisa ainda não foi tão longe quanto eu quero. Trata-se de guerra
incondicional, Weatherbee. É bom que entenda isso. E olhe, não mande
nenhum policial à paisana à minha procura. Atirarei em qualquer sujeito que
avançar em minha direção, a não ser que tenha certeza de que se trata da
polícia.
— Não mataria um policial, hein?
— Prefiro não matar. Bom, tenho uma porção de coisas a fazer, vou ter de
desligar. Gostei do bate-papo.
— Bolan... aquele informante que mencionei no outro dia...
— Sim?
— Ele está agora mesmo no outro telefone. Não quer ouvir o que ele tem
a dizer?
— Adoro fofocas — disse Bolan, rindo.
Weatherbee pigarreou forte:
— Umas noticiazinhas de que você talvez não goste. O número de pessoas
contratadas para matar você aumentou muito há coisa de dez minutos. Foi
declarada aberta a temporada de caça... e a caça é você, Mack Bolan, o
Estripador. Todos os bandidos da costa leste querem participar da competição.
Seu cadáver, estendido na rua, está valendo agora cem mil dólares. Que tal
essa?
— É, parece que eles estão mesmo apavorados.
— Seu idiota! Não percebe o que fez? Atraiu para esta cidade tudo quanto
é bandido da região!
— Era exatamente o que eu pretendia — replicou Bolan. — Agora vocês
da polícia não podem mais ficar de lado, podem?
— Bolan, você é um louco! Você...
— Sou um catalisador, tenente! Expulsei uma ninhada de ratos do buraco
onde se escondiam, onde queriam passar por gente honesta, e agora vocês vão
ter que dar um jeito, não?
A voz irada do detetive fez vibrar o fone no ouvido de Bolan:
— E vamos dar um jeito em você também, Bolan.
— Agora estamos nos entendendo — respondeu o Executor, calmamente.
— Sim, estamos nos entendendo. Mas, olhe, Bolan...
— Estou ouvindo.
— Não mate um policial.
— Espero que não.
— É bom que não o faça! Como disse, há quem torça por você aqui, por
trás das cortinas, mas...
— Estamos entendidos — retrucou Bolan.
Repôs o fone no gancho e voltou ao carro. Consultando o relógio,
verificou que já eram 4:40. Tinha somente o tempo necessário para chegar até
a agência da Triangle. Sorriu com satisfação e pôs o carro em movimento,
juntando-se ao tráfego pesado da hora do rush. Pensou em Weatherbee,
sentindo um pouco de pena por aquele policial, tão bem-intencionado e tão
sério. Tivera com ele um entendimento útil — o tipo de entendimento
importantíssimo numa guerra. E agora precisava ter um entendimento com a
Máfia — um entendimento financeiro. Deixou a rua principal, dobrou à
direita e rumou diretamente para o escritório da companhia.
5. A Menina dos Olhos
Bolan abriu a porta de vidro quando faltavam cinco minutos para as cinco
horas. Fechou-a, trancou-a e fez descer a cortina. A moça da recepção olhou-
o, surpresa, e Bolan exibiu-lhe o cartão plastificado que Turrin lhe dera.
— O expediente está encerrado por hoje — disse ele. Lançou um olhar
inquisitivo em direção às salinhas de entrevista, separadas por divisórias de
madeira e plástico. — Quem está aí? — indagou rispidamente.
— S-só o Sr. T-Thomas — gaguejou a moça.
Outra garota surgiu por trás de um guichê, e Bolan imediatamente dirigiu-
se a ela.
— Você é a caixa?
— Sim, senhor — respondeu ela, ansiosa.
— Já pôs em ordem a escrita do dia?
— Sim, senhor, acabei agora mesmo.
Bolan passou para trás do guichê.
— Junte tudo isso e leve-o ao escritório do Thomas, e não esqueça o
dinheiro — fez a recepcionista levantar-se e empurrou-a em direção à sala do
fundo. — Entre aí e diga ao Thomas que prepare os livros para um exame de
auditoria. Quero tudo em cima da mesa, por favor — bateu na janela do
guichê. — Quer que eu a ajude?
A recepcionista voltou-se para ele com um ar embaraçado.
— Eu... esqueci o seu nome — disse ela.
— Diga ao Thomas que é uma pessoa do escritório do Sr. Plasky. Vamos,
vamos! Não posso ficar aqui a noite inteira!
A moça fez um gesto afirmativo e dirigiu-se a passos apressados para o
escritório dos fundos, bateu de leve na porta e entrou. Bolan apanhou uma
bandeja de madeira e começou a empilhar o dinheiro que a caixa retirava da
gaveta.
Instante depois, ele e ela entravam ruidosamente na sala do Sr. Thomas,
gerente do escritório, que franziu a testa, aborrecido:
— Penso que o senhor está sendo...
— Não pense — retrucou Bolan. — Com o tempo que tem de serviço,
ainda não adquiriu o direito de pensar — inclinou o polegar da mão fechada
para um enorme cofre de aço. — Abra esse cofre.
O rosto do jovem Thomas demonstrava hesitação.
— Gostaria de... ver sua identidade — disse ele.
Mais uma vez, Bolan apresentou o cartão plastificado, mantendo-o visível
durante alguns segundos, para depois tornar a guardá-lo no bolso. Depois
sorriu, mostrando-se subitamente cortês:
— Pombas, não precisa ficar nervoso. Plasky acredita que estas visitas de
surpresa, por parte de auditores, ajudam a melhorar o serviço. Por mim, não
precisa se preocupar. Abra o cofre, e vamos terminar logo com isso.
Ainda hesitando, Thomas dirigiu-se ao cofre e pôs-se a mexer no botão do
segredo, girando-o de um lado para outro. Finalmente, abriu a enorme porta
de aço.
— Quanto dinheiro vocês têm em caixa? — perguntou Bolan.
A caixa passou um pedaço de papel ao gerente.
— Quarenta e dois mil, seiscentos e oitenta e nove dólares e quarenta
centavos — murmurou ele.
— Pombas, não me refiro a isso — disse Bolan, exasperado. — Falo da
reserva, Thomas, não dessas ninharias.
O rapaz piscou os olhos, entrou no cofre, abriu um compartimento que
havia na parede de aço e tirou de lá uma bolsa de couro.
— Por que não disse logo? — resmungou ele, num tom de queixa.
— Abra-a — ordenou Bolan.
Thomas apanhou uma chave lá de dentro do cofre, meteu-a na fechadura
da bolsa, e voltou os olhos na direção das duas moças que permaneciam de pé
no meio da sala. Bolan compreendeu o que ele queria dizer.
— Vocês duas — disse ele — esperem lá fora.
As moças entreolharam-se e saíram. Thomas colocou a bolsa sobre a
escrivaninha, abriu-a e fixou os olhos em Bolan.
— Espero que você não vá contar isso tudo — disse ele, olhando o relógio
da parede.
— Qual é o total?
— Duzentos e cinquenta mil.
— Já foi conferido?
O gerente acenou afirmativamente com a cabeça, e exibiu uma folha de
papel que alguém deixara sobre a pilha de dinheiro. Bolan fingiu examinar
cuidadosamente os algarismos, soltou um "hmm" muito sério, e encaminhou-
se para o cofre.
— O que estava esperando encontrar? — indagou Thomas.
— Venha até aqui e eu lhe mostro — disse Bolan.
Empurrou o rapaz para dentro do cofre, batendo-lhe a cabeça, num golpe
violento, de encontro à parede de aço. Os joelhos de Thomas dobraram-se e
ele caiu ao chão. Bolan passou por cima dele e começou a atirar papéis e
registros no chão da sala. Esvaziou completamente o cofre, colocando o
dinheiro na bolsa aberta que ficara sobre a mesa do gerente. Em seguida,
trancou a porta do cofre e levou a chama do isqueiro até os papéis
amontoados no chão; feito isto, apanhou a bolsa de dinheiro e saiu. As duas
moças aguardavam lá fora.
— Ponham todos os seus registros aqui, aqui no chão — ordenou ele.
As duas tornaram a entreolhar-se, mas obedeceram; abriram um arquivo
de aço e puseram-se a empilhar as pastas sobre o balcão.
— Andem depressa, não é preciso esse cuidado todo — disse Bolan com
rispidez. — Trata-se de uma emergência.
Deu um safanão na pilha de pastas, lançando-as ao chão; em seguida,
dirigiu-se a outro arquivo e passou a esvaziar as gavetas. Minutos depois,
havia uma bela fogueira na sala; e, nos olhos das duas moças, a expressão
apavorada de quem tem diante de si um louco varrido.
Bolan voltou-se para a caixa e meteu-lhe na mão um disco metálico usado
para prática de tiro ao alvo.
— Diga ao Plasky que o Executor mandou dizer que isso aqui foi uma
moleza — murmurou ele.
— C-como?
— Apenas lhe diga isso. E, antes que me esqueça, é bom que vocês deem
um jeito de tirar aquele cara lá de dentro do cofre, antes que isto aqui vire
cinzas. E mais uma coisa: digam ao Plasky que eu fico muito grato pelo
dinheiro, vai me ajudar um bocado.
Apanhou a bolsa de dinheiro e abriu a porta. As duas garotas correram
para o escritório dos fundos. Bolan riu entre os dentes e dirigiu-se para o
carro, entrou e fechou a porta. Havia retornado à cena do crime e cometera
outro, e imaginava o que a Família iria dizer de tudo isso. Tinha uma vaga
ideia de que dinheiro era coisa muito importante para os Mateus — e de que
tinha acabado de mexer com a menina dos olhos da Máfia. Deu partida ao
carro e misturou-se ao tráfego da rua, cantarolando baixinho uma canção
antiga.

6. O Conselho se Reúne
— Escutem, temos de dar um jeito naquele desgraçado! — berrou
Seymour. — O cara está solto por aí, fazendo misérias por toda a parte,
queimando, matando, roubando e... e...
— Vejam só quem se queixa — disse Turrin, num tom amargo.
— Claro que me queixo! — Seymour tornou a gritar.
— Foi você quem nos apresentou aquele sujeito. Será que não percebeu
que o sacana era um impostor, até que recebeu a denúncia do pessoal lá de
cima? Seu verme, seu imbecil, seu... Pombas, qualquer italiano bastardo teria
percebido que o cara tinha outras intenções! Se você não andasse transando o
tempo todo com aquelas suas piranhas, teria...
Turrin pôs-se de pé num salto e desferiu um violento soco em direção a
Seymour. Este desviou o golpe, a mão tateando em volta à procura de alguma
arma e finalmente segurando uma garrafa de Coca-Cola.
Nat Plasky separou-os, gesticulando nervosamente.
— Parem com isso! Parem com isso! — exclamou ele.
— Não veem que é exatamente isto que aquele miserável quer, que nos
matemos uns aos outros? Parem com isso, já disse!
O rosto de Leo Turrin estava vermelho de cólera, mas ele encolheu os
ombros, desferiu um golpe com a mão fechada na palma da outra mão, e
tornou a sentar-se.
— Desculpe, Leo — disse Seymour com humildade. — Não tive intenção
de insultar os italianos.
Turrin limitou-se a fazer um aceno de cabeça, enquanto olhava
soturnamente para os bicos dos sapatos.
— O Homem vai ficar um bocado aborrecido com esse roubo de um
quarto de milhão de dólares — disse Plasky, após um breve silêncio.
Seymour concordou:
— Recuperaremos o dinheiro — disse ele.
— Claro — disse Turrin, com ironia.
— Eu nem me lembro direito da cara daquele sujeito — disse Plasky. —
Só o vi duas vezes, e ainda assim por pouco tempo. Como diabos ele soube
que o dinheiro da organização estava naquele cofre, hein? Como ele soube?
— Então você não sabe? Ele é o Fantasma, cara. O Fantasma sabe.
— Pensei que quem sabia era o Sombra — observou Plasky.
— Querem calar a boca, pelo amor de Deus? — gritou Seymour.
— Era só uma brincadeirinha para matar o tempo — respondeu Plasky,
humilde.
— Por que não estalam os dedos ou coisa parecida? — rosnou Seymour.
E, depois de consultar o relógio: — Os outros não devem demorar.
Turrin ergueu-se e foi até o bar, encheu um copo com Bourbon até a
metade, pôs lá dentro um cubo de gelo, e retornou ao seu lugar, sorvendo o
drinque em goles pausados e pensativos. Finalmente:
— O problema — disse, ele — é que vocês não conhecem esse cara. Eu
conheço. E tremo só de pensar, podem crer. Esse cara é uma máquina militar,
morou? Certa vez, conheci lá no Vietnã um sargento do mesmo tipo dele,
exatamente do mesmo tipo. Só de olhar para ele eu ficava gelado. É o que
acontece com esse tal de Bolan. Vou te contar...
— Cala essa boca, pô! — exclamou Seymour, irritado.
— Não vou calar coisa nenhuma — continuou Turrin, teimosamente. —
A gente precisa saber com quem está lidando. Veja só. Pense bem. A coragem
desse filho da mãe. Numa questão de... quantas? Três, quatro horas, ele nos
desfere uma série de golpes, pum! pum! pum! feito uma máquina. Toca fogo
na minha melhor casa, destrói completamente um automóvel que me custou
oito mil dólares, quase me mata de susto, mete uma bala na perna de Jake,
espalha o terror e reduz a cinzas meu palacete... — fez uma pausa para sorver
mais um gole do copo. — ...Depois desaparece e surge em minha casa, minha
casa, vejam vocês, enche os ouvidos de minha mulher com uma porção de
histórias... o quê, aliás, me causou um outro problema à parte... — riu,
nervoso. — ...E depois, pô! Aparece na casa de Seymour, tinge a piscina de
vermelho, derruba um par de tendas que a gente pagou caro para mandar
instalar, e joga na água dois homens nossos, Paul e Tony, devidamente
esfaqueados. Além disso, corta a luz e o telefone, retalha os colchões com a
faca só para mostrar o que teria acontecido se alguém estivesse deitado neles,
creio eu, e mete cinco balaços naquele retrato de Walt, tão bonito! Pombas,
para qualquer outra pessoa isso seria bastante por um dia, mas não para aquele
cara. Ele vai, invade o escritório da Triangle, queima os livros, a escrituração
dos empréstimos, tranca o Thomas no cofre e foge com duzentos e cinquenta
mil dólares nossos. Conheci uma vez um sargento assim. Um dia ele meteu na
cabeça que ia transar com tudo quanto era mulher em Cingapura, sem pagar e
quase conseguiu.
— Terminou seu discurso de louvor? — perguntou Seymour, num tom
gelado.
— Terminei. E acho que deveríamos sugerir ao Conselho que saíssemos
todos desta cidade por uns tempos. Pombas, estamos precisando de umas
férias. Há tempos venho prometendo à minha mulher um passeio até
Acapulco. A gente devia entregar as coisas ao pessoal miúdo, e só voltar
quando tudo estiver mais calmo.
Plasky deixou escapar um risinho nervoso. Seymour olhava com desdém
o rosto afogueado de Turrin. Nesse momento, as portas corrediças se abriram
e quatro homens entraram, formando uma espécie de guarda de honra para
outro homem mais velho que caminhava entre eles. Os três que estavam na
sala ergueram-se rapidamente. Os quatro guarda-costas dispersaram-se,
assumindo postos estratégicos nos cantos da sala, um deles permanecendo ao
pé da porta. O quinto, um homem de cerca de 60 anos, cabelos grisalhos e ar
bondoso, apertou a mão dos três, lançando-lhes um olhar amável e
tranquilizador. Depois, ocupou o seu lugar à cabeceira da mesa.
— Bene, o que está acontecendo por aqui, hã? — perguntou ele, mirando
alternadamente Seymour, Plasky e Turrin, para tornar a fixar os olhos em
Seymour.
— Um louco chamado Bolan — respondeu Seymour num tom abafado.
— O trato para matá-lo não deu certo. Vai ver, alguém alcaguetou os dois
pistoleiros que a gente contratou em Filadélfia. O fato é que, ao invés deles
matarem o Bolan, o Bolan matou os dois.

— Já me contaram isso — disse o homem grisalho, num tom calmo.


— E agora o cara parece que ficou alucinado — atalhou Plasky. — Anda
nos atacando nos quatro cantos da cidade. Assaltou minha firma e fugiu com a
grana, duzentos e cinquenta mil.
— Incendiou meu melhor bordel e ameaçou minha mulher — disse
Turrin, mirando as pontas dos dedos.
— Matou dois auxiliares meus — resmungou Seymour. — E fez o diabo
lá em casa.
— Fez o diabo?
— Derramou tinta em minha piscina. Destruiu duas tendas. Cortou os fios
da luz e do telefone. Cortou meus colchões a faca. — E, encolhendo os
ombros: — Pra mim, isso é fazer o diabo.
— E furou o retrato dele todo a bala — acrescentou Turrin, com um
esboço de sorriso. — Sabe, aquele quadro bonito a óleo que ele tinha em cima
da lareira, tipo de retrato de membro da diretoria.
— Ma, é um homem só ou um exército inteiro? — quis saber o homem
idoso, arqueando as sobrancelhas.
— É um doido só — interveio Seymour, mal-humorado. — Escute,
Sérgio, precisamos fazer alguma coisa!
— E já procuraram fazer alguma coisa? — inquiriu o homem chamado
Sérgio.
Os três trocaram olhares embaraçados.
— Além de se esconderem — acrescentou o velho, tossindo
delicadamente. — Nossa organização anda assim tão fraca? Tão fraca que um
homem sozinho, um único indivíduo, é capaz de fazê-la correr de medo?
— Não se trata de um homem comum — disse Turrin, em tom de defesa.
— Uma vez conheci um sargento lá no Vietnã...
— Pô, cara, para de falar desse sargento do Vietnã, pelo amor de Deus! —
exclamou Seymour.
Turrin pôs-se de pé e brandiu para o outro o punho cerrado:
— Se você continuar a falar comigo desse jeito, cara, eu enfio uma garrafa
no seu traseiro, entendeu? No seu traseiro!
— Sente-se e cale a boca, Leopold! — exclamou Sérgio. — Não adianta
estarem descarregando a raiva um no outro. Temos um inimigo comum, não
temos? — agitou o dedo na direção de Seymour. — E você, afinal, é o maior
responsável por tudo isso, Walt. Capisce? Foi você quem cometeu o primeiro
erro. Deixou que ele entrasse em nosso meio, deu-lhe a oportunidade de nos
conhecer. Entende? E agora ele está em melhor posição do que nós. Pode se
esconder, e como é que vamos achá-lo? Isto está nos custando um bocado de
dinheiro, um bocado de dinheiro.
— Eu suspeitei dele logo de inicio — grunhiu Seymour. — Quem trouxe
ele para cá foi o Plasky. Eu vi logo que havia alguma coisa errada. E decidi
dar-lhe toda a corda necessária...
— Seu cabeça de bagre! — exclamou Turrin. — E você pensava que ele
ia se enforcar nessa corda? Mais fácil enforcar a gente!
— Calem-se! — ordenou o velho, num tom imperioso de comando. — Os
erros já foram cometidos, e já terminaram. Entenderam? Já terminaram! Se
alguém cometer mais um erro, mais um que seja, reuniremos toda a Família e
alguém vai terminar no fundo do rio! Entenderam?
— Entendi, Sérgio — respondeu Turrin em tom submisso.
— E vocês dois? — insistiu o velho, fulminando Seymour e Plasky com
os olhos.
— Claro, claro, Sérgio — disse Seymour.
— Entendi, Sérgio — disse Plasky.
— Há vinte anos atrás, eu me recusaria a sentar à mesma mesa com uns
carneiros do tipo de vocês — disse o velho, impiedosamente. — Pois bem,
ouçam. Pus a prêmio a cabeça de Bolan em todo o país. Mas não há de ser por
isso que vocês vão cruzar os braços. Vocês têm dinheiro, são espertos, são
poderosos, são Mafiosos! Por que haveria Sérgio de se incomodar por esse tal
de Bolan, hã? Bolan está perseguindo Sérgio? Não. Bolan está perseguindo
Walt, Nathan e Leopold. Bolan nem conhece Sérgio. Certo?
Estalou os dedos na direção de um dos guarda-costas e fez um gesto de
que queria beber. O pistoleiro foi ao bar, encheu um copo de vinho e colocou-
o rapidamente em frente ao velho. Este apanhou-o, sorveu um longo trago e
enxugou os lábios num lenço vermelho. O pistoleiro retornou ao seu posto,
bem atrás de Sérgio. Este tomou mais um gole de vinho e encarou os três
mafiosos, que continuavam em silêncio.
— Ainda assim — prosseguiu ele — Sérgio investiu cem mil dólares para
salvar o pescoço de vocês. A Família, portanto, trata de vocês com todo
cuidado. Façam por merecer esse cuidado.
Nesse instante, a larga janela de vidro, a um canto da sala, pareceu
explodir em mil estilhaços. O homem que acabara de servir um segundo copo
a Sérgio soltou uma imprecação e tombou para a frente, fulminado. O copo
que continha o vinho desapareceu, mas o líquido espalhou-se sobre a mesa,
numa grande poça vermelha. O eco retardado do estampido de um fuzil de
alta potência ressoou aos ouvidos dos quatro homens em torno da mesa,
momentaneamente paralisados, fazendo-os recobrar o comando dos músculos
e procurar refúgio sob o móvel, uma expressão de pavor nos olhos
arregalados. Outros tiros seguiram-se, os projéteis, alojando-se com uma fúria
inquietante nos tapetes do chão e nas molduras dos painéis da parede,
enquanto as explosões continuavam, vindo de algum ponto distante lá fora.
A fuzilaria terminou tão depressa como havia começado. Turrin ergueu a
cabeça e fitou os olhos apavorados de Sérgio. Plasky e Seymour balbuciavam
coisas ininteligíveis. Em volta da sala, jaziam os corpos imóveis e
ensanguentados dos guarda-costas.
— Ele conhece você, Sérgio — disse Turrin, em voz trêmula.
Os lábios do velho crisparam-se sobre os dentes amarelos, e ele bateu no
soalho com o punho crispado:
— Matem-no! — disse ele, colérico. — Matem esse tal de Bolan!
Entenderam? Matem esse tal de Bolan!

7. O Erro
Estava na hora de trocar de alojamento. O Executor não podia dar-se ao
luxo de permanecer muito tempo no mesmo lugar. Vestira um uniforme de
tecido negro fosco, do tipo usado por patrulhas noturnas no Vietnã. A pistola
calibre 32 fora substituída por uma automática, calibre 45, do Exército,
afivelada a um coldre na cintura. Completavam-lhe a indumentária um casaco
e uma boina, ambos pretos. Mirou-se no espelho e riu. As vestes, quase
coladas à pele, davam-lhe um aspecto de herói de histórias em quadrinhos. Se
alguém desse com ele na rua, pensaria tratar-se de um convidado para algum
baile à fantasia. O Marlin e a bolsa com o dinheiro da Máfia já estavam
guardados no carro, juntamente com outros pertences pessoais. Percorreu o
apartamento pela última vez, para certificar-se de que não deixara ali sinal
algum de sua presença. Em seguida, apanhou a maleta e partiu.
Eram duas e vinte da manhã. O carro tomou o rumo da casa de Leo
Turrin, chegando lá quando passavam alguns minutos das três horas. O bairro
era um local chique, de ruas arborizadas e curvas, ladeadas de casas típicas da
alta classe média. Bolan deixou o carro numa rua que ficava por trás da casa
de Turrin, pulou uma cerca e atravessou o jardim de uma propriedade para
atingir seu objetivo pela porta dos fundos. A alguns metros de distância, um
cão se pôs a latir. Bolan galgou o telhado da garagem de Turrin, e escondeu-
se na sombra, estudando a disposição dos aposentos da casa. Uma luz brilhava
por trás do vidro fosco de uma janela do andar térreo, obviamente um
banheiro. Outra luz, mais fraca, vinha de um quarto do andar superior. Bolan
lembrou-se de que o casal Turrin tinha três filhos, e procurou identificar cada
um dos quartos pelos detalhes que podia distinguir. A luz fraca viria
provavelmente de um quarto de criança. Procurou idealizar o traçado do
interior da residência, mas o tipo de construção da casa, bastante moderno,
não ajudava muito. As janelas pareciam do tipo que se abre num ângulo
vertical, e todas as que ele avistava estavam fechadas.
Alguém saiu e aquietou o cão que latia. Bolan refletiu durante alguns
instantes e procurou em torno de si alguma coisa com a qual pudesse provocar
algum ruído. Encontrou um caco de telha e arremessou-o ao pátio. O projétil
atingiu uma mesa de metal com um barulho de gongo, e partiu-se com grande
estardalhaço sobre as lajes do piso. Os olhos de Bolan estavam fixos na casa,
procurando vigiar todas as janelas ao mesmo tempo. Seu esforço não foi em
vão. Viu uma cortina mexer-se atrás do vidro da janela de um quarto, num dos
cantos da casa. Bolan pressentiu que havia alguém ali, espiando para fora.
Apanhou outro pedaço de telha e repetiu os ruídos no pátio. Houve um
movimento súbito na cortina, ao mesmo tempo em que uma luz se acendia no
quarto. Num relance, Bolan viu que Leo Turrin afastava-se rapidamente da
janela; e, antes que a cortina voltasse a fechar-se, pôde ver o vulto de uma
mulher na cama, a mão ainda estendida para o abajur da mesinha-de-
cabeceira. Bolan sorriu, imaginando a decepção de Turrin quando a mulher
despertou e acendeu a luz. Permaneceu imóvel, esperando e vigiando — e
mais uma vez sua paciência foi recompensada. Turrin surgiu no pátio, de
pijama, esgueirando-se vagarosamente pelas sombras da casa. Aparentemente,
saíra pela porta da frente, num avanço cauteloso pelos flancos, em direção ao
pátio. Bolan sorriu ante aquela esperteza, e deixou-se ficar à espreita. Turrin
alcançara a esquina traseira da casa e parara, sem fazer o mais leve ruído. Sem
dúvida, estava armado. Ficaram ambos assim, imóveis, durante vários
minutos; depois, um objeto qualquer foi arremessado e chocou-se de encontro
à parede da garagem. O mesmo jogo, as mesmas regras, pensou Bolan. Em
seguida, perdeu de vista o homem que vigiava. Aguardou, imóvel, em
silêncio, dando-se por feliz por ter a vantagem da altura em que se encontrava.
Reconhecia também outra vantagem: uma mulher e três crianças, carne e
sangue do adversário, estavam naquela casa, constituindo uma arma a favor
do intruso. Bolan indagou-se vagamente por que motivo Turrin não fizera
evacuar a residência, mas não se demorou muito em tal detalhe. Turrin
reaparecera no canto oposto da casa, passando a explorar o outro flanco, como
um bom estrategista faria.
Bolan sentiu um certo respeito pelo siciliano. Pelo menos, viera até ali, em
campo aberto, a fim de levar a luta até o inimigo, ao invés de esconder-se lá
dentro com a mulher e os filhos. Turrin avançou e murmurou: "Bolan?" O
Executor sorriu e meneou a cabeça, impressionado. Turrin caminhava agora
lentamente em direção à garagem, detendo-se a cada dois passos, os ouvidos
atentos a qualquer ruído. Numa das mãos, Bolan pôde ver claramente uma
arma; na outra, uma lanterna de pilhas. Bolan meditou um instante nesses
detalhes, enquanto via Turrin passar pela garagem e encaminhar-se para o
outro lado do pátio. Sem ruído, Bolan abandonou sua posição no telhado
inclinado, desceu ao chão e, num movimento ousado, abrigou-se na escuridão,
junto à parede da casa. Ouviu Turrin murmurar novamente: "Bolan?" O
sussurro vinha de longe, do outro lado da residência, e Bolan agiu
rapidamente, alcançando a porta da frente e subindo os degraus. A porta
estava entreaberta, como ele esperava. Bolan sorriu. Não tinha visto bolsos no
pijama de Turrin e, se ele estava levando uma pistola numa das mãos e uma
lanterna na outra, era óbvio que não tirara a chave da porta nem a trancara
antes de sair. Bolan entrou e postou-se num canto escuro do hall, perto da
porta, à espera de que Turrin voltasse. Não queria matar Turrin à distância;
tinha havido uma certa amizade entre eles, e o mínimo que desejava era olhá-
lo nos olhos antes de meter-lhe uma bala no crânio. Talvez fosse um desejo
irracional, pensou ele, mas a guerra era irracional. Não teve de esperar muito.
Turrin entrou dali a um minuto, a respiração calma e inalterada. Fechou a
porta e trancou-a, voltando as costas ao visitante que ignorava estar ali. Bolan
gostaria de saber em que pensava ele — em que pensava a presa um segundo
antes de ser alvejada — em que pensava um homem a poucos instantes da
morte?
Bolan estendeu o braço para a frente e encostou o cano da 45 na nuca de
Turrin.
— Eu sabia — suspirou Turrin, desalentado. — No instante em que fechei
a porta, compreendi que você tinha entrado — fez uma breve pausa — Você
não vai querer me matar, Bolan, vamos conversar primeiro.
— Sua mulher vai ter um bocado de trabalho para limpar este chão, Turrin
— murmurou Bolan.
A escuridão era total, mas Bolan como que adivinhava a máscara de terror
que cobria o rosto do inimigo. Era uma máscara que já vira de perto muitas
vezes; ele próprio a usara em várias ocasiões, e sabia exatamente como era —
a contração grotesca dos feixes de pequenos músculos do rosto à espera do
golpe final, a paralisação do diafragma, a tensão dolorida no tórax. Não
desejava prolongar aquele sofrimento. Estendeu a outra mão para a frente.
— Entregue a arma, Leo — ordenou ele.
Relutantemente; a pistola de cano longo trocou de mãos. Bolan atirou-a no
chão, atrás de si.
— Não o culpo por estar agindo assim — disse Turrin, numa voz
carregada de emoção.
— Não me culpa?
— Não. Sua irmã era uma excelente menina, Bolan.
— Não devia ter tocado nesse assunto, moço — disse Bolan, enfurecido,
empurrando-lhe a base do crânio com o cano da pistola. — Agora abra essa
porta devagar, bem devagar...
— Aonde vamos? — indagou Turrin, quase sufocado.
— Um pequeno gesto de consideração em relação à sua mulher e seus
filhos.
Nesse mesmo instante, uma luz forte acendeu-se no teto. Bolan reagiu
imediatamente, atirando-se de lado de encontro à parede, apontando a pistola
para cá e para lá, tentando localizar a nova ameaça. A mulher de Turrin
entrara na sala, uma expressão de terror no rosto, uma das mãos estendida
para a frente, na direção de Bolan. Este manejou a pesada 45, a tempo de
disparar um tiro; a bala tingiu uma cadeira, fazendo-a rodopiar e cair na sala.
Os olhos de Bolan estavam ofuscados pela luz forte, e a ressonância do tiro de
forte calibre naquele hall apertado aturdia-lhe os ouvidos; talvez por isto não
visse a pequena pistola na mão estendida de Angelina Turrin. Os secos
estampidos que ela produzia pareciam nada ter a ver com a dor súbita que
sentiu no ombro e na têmpora, mas sabia instintivamente que tinha sido
alvejado. Turrin arrojara-se ao chão, rolando o corpo para afastar-se dali.
Bolan ainda detonou a pistola duas vezes para dentro da sala, antes de
arremeter porta fora, derrotado por uma mulherzinha com uma pistola de
brinquedo — não só derrotado mas também ferido. Sentia o contato morno do
sangue que lhe escorria pelo pescoço, ao contornar uma das esquinas da casa,
perguntando-se vagamente se estaria muito ferido. Correndo, meteu a 45 no
coldre e pulou a cerca sem esforço. Os ferimentos não eram tão graves assim,
pensou ele, embora o ombro lhe começasse a doer fortemente. Arremeteu pelo
pátio vizinho, e havia quase alcançado a rua quando ouviu o clamor de sirenes
que se aproximavam. Hesitou um segundo, e preferiu deixar o carro onde
estava, ao invés de desafiar a polícia para uma corrida de automóvel àquela
hora da madrugada. Qualquer carro em movimento seria um alvo certo para
os policiais. Atravessou a rua correndo, meteu-se por um quintal e, de lá,
numa diagonal, atingiu um campo aberto. O que precisava agora era manter
distância — a maior distância que pudesse atingir a pé, sangrando de dois
balaços. Bem merecido, pensou ele. Tentara confraternizar com o inimigo.
Isso nunca dava certo. Pombas, não havia moralidade na guerra. Mata-se o
inimigo quando e onde se pode. É matar ou ser morto. Aprendera essa lição
de cor nas matas do sudeste asiático. Por que decidira esquecê-lo ali, na selva
habitada pela Máfia? Chamou-se de idiota e tratou de alcançar o vulto distante
de uns edifícios, apertando a boina de encontro ao ferimento da cabeça para
estancar o sangue. Ouviam-se sirenes por toda parte. A polícia estava à espera
dele, naturalmente. Haviam identificado os alvos que ele pretendia atacar, e
ficaram à espera de que ele atacasse. Outro erro cometido pelo Executor.
Teria de rever seus planos de batalha. Não se tratava de combater contra a
astúcia dos vietcongues; agora estava lutando contra a astúcia da polícia
americana, e não lhe seria dada a chance de cometer muitos erros iguais
àquele. E, a julgar pelo zumbido que começava a sentir nos ouvidos, talvez
até aquele primeiro erro lhe fosse fatal. Fora alvejado, estava sangrando
muito, e sabia disso. Agora precisava ganhar distância. Fora tudo um erro, a
coisa não deveria ter terminado assim, mas terminara, e era com erros que se
perdiam batalhas. Precisava afastar-se dali. Precisava de um lugar onde
pudesse descansar, onde pudesse tratar dos ferimentos, onde pudesse refazer
as forças. Precisava de um esconderijo. Do contrário, o Executor terminaria
executado.

8. O Esconderijo
De olhos tontos de sono, o Tenente Weatherbee saltou do carro e dirigiu-
se a uma viatura de patrulha que estacionara no cruzamento, a alguns metros
da casa de Turrin. Cumprimentou, com um ar fatigado, o policial
uniformizado, de pé junto à porta aberta da viatura e indagou:
— Vocês levaram quanto tempo, após os disparos, para interditar esta
rua?
— Talvez menos de trinta segundos — respondeu o policial. — Eu estava
a postos a dois quarteirões daqui. Logo que ouvi os disparos, me mandei para
cá, e estou aqui até agora. Não vi ninguém, a não ser gente da própria polícia.
Weatherbee resmungou alguma coisa, fitou a rua durante alguns
segundos, e depois retornou ao seu carro. Um policial à paisana, sentado ao
volante, lançou-lhe um olhar de simpatia.
— Ele furou o cerco, não?
Weatherbee suspirou:
— Parece que sim. Turrin disse que ele estava vestido como guerrilheiro,
todo de preto. Anda silenciosamente como um gato, diz ele, e corre duas
vezes mais depressa. O Turrin escapou por pouco, e sabe disso.
— Não se pode deixar de admirar esse tal de Bolan — disse o policial.
— Talvez você o admire — resmungou Weatherbee. — Eu não.
— Não me entenda mal, Al. O que eu quero dizer é que... ele nem ao
menos revidou disparando contra a mulher de Turrin. E podia tê-la matado
facilmente, você sabe disso. Ao invés disso, preferiu fugir.
— Talvez tenha entrado em pânico — sugeriu Weatherbee. — Ela acha
que o alvejou. Não encontramos vestígios de sangue, mas isso não quer dizer
nada. E um homem ferido não vai conseguir chegar muito longe. Vou mandar
mais uns vinte guardas para policiar esta zona. Tenho de deter aquele sujeito
antes que... — apanhou o microfone do rádio do carro e ditou algumas
instruções rápidas ao pessoal de plantão. Depois, voltando-se para o
motorista: — Muito bem, vamos até a Perimetral Leste e voltar vasculhando
tudo isto por aqui.
O policial fez um gesto de assentimento, deu a volta com o carro e rumou
para a rua indicada.
— Atiramos para matar, certo? — disse ele.
— E se não o fizermos, quem morre somos nós — respondeu Weatherbee
em tom sombrio.
Depois de percorrer certa distância, o carro tornou a fazer a volta e entrou
por uma zona residencial, diminuindo a marcha para uma velocidade de
patrulha. Weatherbee retirou do suporte uma espingarda de cano curto e
examinou-a. O motorista tirou o revólver do coldre e colocou-o sobre o
assento, ao lado da coxa.
— Que maneira de ganhar a vida! — murmurou ele, com um suspiro.
— Como se eu não o soubesse! — disse Weatherbee. — Olhe... —
apontou na direção de um dos edifícios. — Alguém acaba de abrir uma porta
num daqueles edifícios residenciais. Apague os faróis!
***
Bolan sentia que as pernas iam-lhe ficando frouxas e que lhe era cada vez
mais difícil respirar. Alcançara um modesto bairro residencial e atravessava, a
duras penas, um comprido terreno de relva bem tratada que dava para um
conjunto de apartamentos, quando viu uma luz acender-se na janela do andar
térreo de um dos edifícios. Apoiou-se sobre um dos joelhos e examinou o
tampão de gaze que havia colocado entre a blusa e o ferimento do ombro.
Agora já não saía tanto sangue, talvez por já ter perdido sangue demais.
Levou um dedo hesitante ao ferimento da têmpora. Perdera um pouco de pele
ali, nada mais, e o sangue estancara definitivamente, mas sentia uma terrível
dor de cabeça.
De repente, estendeu-se ao comprido no chão e refugiou-se atrás de uma
moita de arbustos. Avistara os faróis de um carro que percorria uma das
curvas da rua, ao mesmo tempo em que, na direção oposta, e bem próximo a
ele, se abria uma das portas do edifício. Os faróis apagaram-se
instantaneamente, e Bolan quase sentiu-se perdido ao perceber que o carro
continuava a mover-se em sua direção. Sobre a porta escancarada, acendeu-se
uma luz, e um vulto de mulher veio lá de dentro. Trazia um avental na cintura
e um pano qualquer na cabeça. Fazia um gesto com as mãos, enquanto
chamava baixinho "Bichano, bichano".
O carro passou vagarosamente, quase rente a Bolan, e parou diante da
mulher. Esta recuou para o vão da porta, e ouviu-se a voz do motorista:
— Somos da polícia. Algum problema, minha senhora?
Bolan ouviu o riso nervoso da mulher, que deu alguns passos na direção
da calçada, sem deixar de sair do alcance da luz da entrada, parando quando a
porta do carro se abriu. Um homem corpulento saltou e dirigiu-lhe a voz, por
sobre a capota do automóvel:
— Sou o Tenente Weatherbee — disse ele, num tom cortês. — Estamos
procurando um homem. Queira nos dizer, por favor, o que está fazendo aí fora
a esta hora da noite.
— Bom — respondeu ela, com um riso ofegante. — Não estou
procurando homem nenhum. Estava dormindo quando o gato me acordou,
miando, e achei melhor levá-lo para dentro. Para evitar problemas com os
vizinhos, sabe?
— Sei, minha senhora... Bom, há um homem perigoso em algum lugar por
aqui. Convém darmos uma olhada.
Weatherbee contornou o carro e parou à beira da calçada, uma espingarda
dependurada ao braço. O outro policial saltou e olhava nervosamente em
torno, espreitando os recantos sombrios em ambos os lados do edifício. Os
três estavam tão perto que Bolan pôde ouvir a respiração ofegante da mulher.
Weatherbee pediu permissão para entrar e a mulher consentiu.
— Fique aqui com a senhora, Bob — disse ele.
Caminhou cautelosamente pela grama e entrou. O outro policial inclinou-
se para dentro do carro e apontou um refletor na direção do edifício.
Weatherbee tornou a surgir lá de dentro, para novamente desaparecer nas
sombras. Alguma coisa roçou o rosto de Bolan, que se conteve ao reconhecer
o ronronar de um gato; silenciosamente, passou um braço em torno do animal
e fez-lhe um carinho nas orelhas. O gato aconchegou-lhe ao colo, com um
suspiro de satisfação.
Weatherbee tornou a aparecer, sob o feixe brilhante da luz do carro, e
dirigiu-se, com ar de fadiga, ao local onde estavam o motorista e a mulher.
— Encontrou o meu gato? — indagou ela.
— Nem o seu nem o meu — disse Weatherbee. — É melhor esquecer-se
do gato, por enquanto. Volte para casa e tranque a porta. Esperaremos aqui até
vermos que está trancada e em segurança. E obrigado por sua atenção.
A mulher disse algo que Bolan não pôde ouvir, correu para a porta,
acenou para os policiais e entrou, fechando a porta. A luz da entrada apagou-
se. Um minuto depois, os faróis do carro da polícia acenderam-se e o veículo
começou a descer a rua.
Bolan manteve o gato no colo e correu para o edifício, meio agachado; em
seguida, passou os dedos pelo corpo do animal, mantendo-o de encontro à tela
de arame da porta. As unhas do gato roçavam a tela, no esforço de livrar-se de
Bolan: Quase imediatamente, a porta se abriu. Bolan entrou, depondo o gato
nos braços da mulher, que o olhava com um ar de espanto.
— Trouxe seu gato — disse ele sorrindo. Fechou a porta e amparou-se no
umbral. — Por favor, não faça escândalo. Se quiser, vou embora.
Ela o mirava como se não acreditasse que ele estivesse ali, como se
esperasse que ele se dissolvesse no ar e voltasse para o mundo invisível de
onde viera. Viu-lhe as roupas esquisitas, a pistola na cintura, o ombro
empapado de sangue.
— Está ferido — balbuciou ela.
Ele meneou a cabeça:
— Levei um tiro. Se me deixar ficar aqui um pouco, prometo não lhe
fazer mal algum.
O ombro começava a doer como se alguém lhe estivesse enfiando ali um
ferro em brasa.
— O homem da polícia disse que você é perigoso — murmurou ela.
— Não represento nenhum perigo para você.
O gato pulou dos braços da mulher e correu para a sala. Bolan lançou um
olhar anelante na direção do sofá.
— Há uma bala pequena alojada em meu ombro — disse ele. — Preciso
de uma pinça e um pouco de desinfetante.
— Claro.
A mulher dirigiu-se para o corredor. Bolan seguiu-a, na dúvida de se ela
iria ou não telefonar à polícia. Viu-a, porém, entrar no banheiro e suspirou de
alívio, retornando à sala para acomodar-se no sofá.
— Mora sozinha? — indagou ele, em voz alta.
Ela meteu a cabeça para fora da porta do banheiro:
— Não. Moro com o Tabata. — E, franzindo o nariz: — Tabata é o meu
gato. Dois solteirões, ele e eu.
Tornou a desaparecer no interior do banheiro, e Bolan pôs-se a retirar a
blusa apertada de jérsei. Quando ela tornou à sala, trazendo uma pequena
bandeja de metal, Bolan conseguira desvencilhar um dos braços e a cabeça do
traje inteiriço, e afastava cuidadosamente o tecido do ombro ferido. A mulher
tirara o turbante da cabeça, e era óbvio que se detivera um instante a remover
os bobs e a arrumar o penteado. Bolan verificou que era uma mulher bonita,
pequena e delicada, de olhos vivazes e rosto inteligente.
Ela depôs a bandeja sobre a mesinha do café e ajudou-o a terminar de
retirar a blusa, animando-o com algumas palavras enquanto expunha o
ferimento.
— Está sangrando um bocado — observou ela. — A bala ainda está lá
dentro?
Bolan fez um gesto afirmativo, olhando a bandeja que ela havia trazido.
Dentro de um copo que continha um líquido incolor, havia uma pinça de
retirar sobrancelhas. Ao lado, estavam um rolo de gaze, uma caixa de
curativos adesivos, e um vidro grande de mertiolate.
— Estou usando álcool para esterilizar a pinça — disse ela. — Acho que é
suficiente, não? — ele tornou a acenar afirmativamente, e estendeu a mão
para o vidro de mertiolate. — Quer que eu extraia essa bala?
— Não é preciso — disse ele. — Já fiz isso antes. Posso fazê-lo de novo.
Ela o fez deitar-se de costas e colocou-lhe uma almofada sob a cabeça.
— Não desta vez — disse ela em voz firme. E, apanhando a pinça: — Não
se mexa.

9. A Trégua
Bolan estava deitado de bruços num sofá forrado de seda, nu da cintura
para baixo. Angelina Turrin, metida num par de calças justas e apertadas,
acomodara-se sobre ele e metia-lhe um ferro em brasa no ombro.
— Você é um homem de nervos de aço, sargento — disse Leo, que devia
estar por ali perto. — E tem uma mulherzinha bem bonita.
— Não importa — respondeu Bolan, calmamente. — Ainda assim, vou
matar você. Assim que eu me acordar.
E realmente acordou dali a instantes, com a luz do sol a ofuscar-lhe os
olhos, enquanto uns diabinhos de fogo dançavam-lhe dentro do ombro. Havia
uma jovem em pé junto à janela do quarto, mexendo nas venezianas, de costas
para ele. Uma cascata de cabelos negros caia-lhe sobre os ombros nus; ela
estava somente de sutiã e anágua, fato que lhe causou bastante
constrangimento quando ela percebeu que ele estava de olhos abertos.
Apanhou um robe que se encontrava ao pé da cama e vestiu-o
apressadamente.
— Você é a mulher do gato — disse ele, ainda tonto.
Ela sentou-se à beira da cama e meteu-lhe um termômetro na boca.
— Pensei que ia dormir o dia todo — disse ela. Impediu-o de responder,
fazendo um gesto na direção do termômetro. Os dois se olharam em silêncio
durante algum tempo, e ela sorriu. Em seguida, retirou-lhe o termômetro da
boca, examinou-o e declarou: — Você deve ter a força de um touro. Nem
sinal de febre.
— É só o meu ombro que está quente — respondeu ele, sorrindo.
— Sei quem você é — disse ela, pondo-se séria.
— E isso é bom ou mau? — indagou ele, fitando-a.
— Mau, creio eu. Só falam de você no rádio e na televisão, e o jornal de
hoje traz o seu retrato. Chamam-no de O Executor. O senhor é um executor,
Sr. Bolan?
— Deixe-me ver — disse ele. — Aposto que tem um nome bem exótico.
Carmencita. É isso. Deve chamar-se Carmencita.
Ela corou:
— Meu nome é Valentina. Valentina Querente. Pode chamar-me de Val.
— Valentina lhe assenta melhor — disse ele. — Que horas são?
— Quase meio-dia.
— O que significa que você teve todo o tempo necessário para chamar a
polícia e livrar-se de mim. Por que não o fez?
— Quase o fiz — disse ela, espreitando-o por sob as pálpebras abaixadas.
— Mas não o fez. Por quê?
— Bom... Você confiou em mim, não? Além disso, toda pessoa é inocente
até que se prove o contrário.
— No meu caso, estou cheio de culpa.
— Eu sei.
— E o que mais sabe?
— Acredito que sei tudo. Você matou onze pessoas em menos de duas
semanas. É uma tragédia ambulante, Sr. Bolan. Acho que foi por isto que não
o denunciei.
Ele sorriu:
— Vê minha causa com simpatia, então?
Ela abanou firmemente a cabeça:
— De maneira nenhuma. Ninguém tem o direito de tirar a vida de
ninguém. Nenhum assassínio é justificado.
— Você está brincando.
— Não estou brincando. Não há como justificar um assassinato.
Bolan fez um muxoxo com os lábios e mudou o corpo para uma posição
mais confortável.
— Não preciso justificar nada — disse ele. — O que eu fiz se justifica a si
mesmo.
Ela colocou-lhe outro travesseiro sob o corpo, para deixá-lo mais à
vontade.
— O fim justifica os meios, hein? — disse ela, com um leve sorriso.
— Não. Os meios justificam o fim. É a velha luta de sempre, Valentina. O
bem contra o mal. O bem se justifica a si próprio, não?
— Deixaremos esta discussão para mais tarde — disse ela, calmamente —
para depois que houvermos definido o "bem". No momento, vou tratar de
alimentá-lo. Como quer os ovos?
— Preparados ao fogo — disse ele com um sorriso.
— Fale sério.
— Estou falando sério. Só não gosto de ovos crus. Prepare-os como achar
melhor. E onde estão minhas roupas?
Ela fingiu uma careta:
— Roubei-as. O senhor se meteu com uma solteirona perigosa, Sr. Bolan.
Quando consigo meter um homem na minha cama, não o deixo sair mais.
— Você não tem idade para se chamar de solteirona — disse ele, fitando-a
longamente nos olhos.
Ela tornou a corar e pôs-se de pé:
— Mexidos, então.
— Hã?
— Por mais que eu tente fazê-los diferentes, eles sempre acabam mexidos.
Espero que consiga comê-los.
Sorriu e saiu do quarto. Imediatamente, Bolan afastou as cobertas e
sentou-se à beira da cama. Estava inteiramente nu. Mirou-se durante algum
tempo, depois tornou a proteger-se sob as cobertas.
— O que disse que fez com a minha roupa? — perguntou ele, erguendo a
voz.
— Eu disse que as roubei — respondeu ela da cozinha. — Se vai ficar
aborrecido, pode roubá-las de volta. Estão no banheiro, se você conseguir
chegar até lá.
Bolan achou que conseguiria. Pôs os pés fora da cama, procurando
dissipar uma leve sensação de tontura, levantou-se e cambaleou, nu, na
direção do banheiro. O uniforme de jérsei estava dependurado, num cabide, à
travessa da cortina do banheiro, obviamente lavado e posto ali para secar. A
cueca de "lycra" estava no porta-toalhas, igualmente lavada e seca. Vestiu-a,
apanhou o uniforme e voltou para o quarto. Assim que se sentou na cama,
ouviu o toque de Valentina à porta.
— Só vista a camisa depois que eu trocar o curativo.
— Do jeito que estou me sentindo, talvez nunca mais vista essa camisa —
resmungou ele.
— Você está vestido?
— Acho que sim — disse ele.
Ela entrou no quarto, assustou-se ao vê-lo quase nu, olhou-o nos olhos e
disse:
— Bom, está quase vestido. Deixe-me ajudá-lo a pôr essas calças.
Francamente, que roupa mais ridícula! Quem você pensa que é, o Capitão
Marvel?
Ajoelhou-se aos pés dele, e procurou enfiar-lhe as calças pelas pernas.
— São muito práticas para quem quer ir de um lugar para outro sem ser
visto à noite — disse ele.
— Aposto que são. E o Fantasma deslizou silenciosamente para dentro do
castelo, hein?
Bolan sentiu-se embaraçado, o que de certo modo o surpreendia.
— São... são muito práticas, pode crer. Da próxima vez que você tentar
pular uma cerca vestindo roupas folgadas, vai entender o que eu quero dizer.
— Estou certa disso — conseguira enfiar-lhe as calças até acima dos
joelhos. — O resto você terá de fazer sozinho — disse ela. — Aposto que os
ovos estão queimando.
— Já que você me despiu da outra vez, por que não termina de me vestir
agora? — observou ele.
— Já disse, os ovos podem estar queimando — parou no umbral da porta
e fitou-o impudentemente. — Além disso, tirei sua roupa quando você estava
coberto com o lençol, de modo que não vi nada.
Bolan ia dizer alguma coisa, mas ela já se afastara. Sorriu, levantou-se, e
conseguiu terminar de vestir-se, usando o braço que ficara ileso. Uma garota e
tanto, pensou ele, sentindo o cheiro inconfundível de ovos queimados que
vinha da cozinha. Uma garota e tanto.
***
A residência de Sérgio Franchi destacava-se entre o resto do casario de
South Hills, bairro elegante de Pittsfield. O local fora escolhido em virtude de
sua semelhança com o litoral do Mediterrâneo, embora o mar ficasse a muitos
quilômetros de distância. A própria casa seguia o estilo arquitetônico do
Mediterrâneo, de pedra e cal, com janelas amplas, varandas e pátios situados a
meio nível entre os andares, o andar inferior semi encaixado na colina,
explorando ao máximo a topografia natural. Quem visse uma foto da
propriedade dos Franchi, julgaria que o local fosse isolado: na verdade, era
parte de um bairro exclusivo de milionários. Sérgio Franchi, porém, chegara
ali primeiro e escolhera para si o terreno maior e mais elevado; os outros
tinham vindo depois.
Havia quem dissesse que ele amealhara sua fortuna no ramo de
importação e exportação; outros diziam que ele tinha sido um dos magnatas
do transporte marítimo. A primeira versão era mais próxima à realidade: a
fortuna de Sérgio Franchi devia-se em grande parte ao tráfico internacional de
drogas. Além disso, ele tinha muito a agradecer à prostituição organizada, ao
jogo e a vários outros passatempos ilegais. Ultimamente, e especialmente sob
o impacto da administração de Robert Kennedy como Procurador Geral da
República, Franchi vinha procurando imprimir às suas atividades o caráter
mais "legal" possível. De fato, possuía agora uma pequena frota de navios; e,
entre os seus interesses mais recentes, havia uma cadeia de financeiras e
várias firmas pequenas, todas agrupadas sob a denominação geral e vaga de
"Franchi Enterprises".
Antes de mais nada, porém, ele era e sempre fora um homem de "família"
— a família da Máfia. Não se tratava de uma família que ele pudesse deserdar
ou ignorar, ainda que o quisesse. O voto de lealdade à família era válido por
toda a vida; tudo o mais — até mesmo casamento e paternidade era
secundário. O próprio Deus e a própria Igreja tinham de entrar na fila e
aguardar até que os sagrados interesses da Máfia fossem servidos. Sérgio
estava casado com a mesma mulher há mais de quarenta anos, mas não
produzira filhos; não deixaria uma estirpe para imortalizá-lo. Tendo o seu
lado bom e afetuoso, Sérgio compensava essa esterilidade com o produto de
outros casamentos à sua volta: para muitos, era o "tio" Sérgio; para alguns
escolhidos, era o "papai" Sérgio — e Leopold Turrin era um destes últimos.
Os filhos do casal Turrin sentiam-se tão à vontade naquele palácio
mediterrâneo quanto em sua própria casa; Angelina Turrin, que ficara órfã aos
dez anos de idade, passara a ver no velho Sérgio o avó de seus próprios filhos.
Quanto à Sra. Franchi, passara grande parte da última década viajando pelo
mundo: era sempre mencionada nas conversas da mansão, mas raramente
vista em carne e osso.
Naquela hora avançada de uma manhã de setembro, a mansão de Sérgio
Franchi parecia inalterada aos olhos de Angelina Turrin, exceto pelo número
incomum de carros estacionados na alameda. Os filhos do casal pularam do
conversível da família e correram alegremente para o terraço que dominava o
panorama da piscina, satisfeitos por estarem ali novamente. Leo fez um
ligeiro carinho na mão da esposa e deixou-a ali, de pé ao lado do carro,
enquanto se dirigia por uma aleia até a parte traseira da mansão e desaparecia
de vista.
Engraçado, pensou ela, como a vida de uma pessoa pode mudar da noite
para o dia. O casarão de que ela tanto gostara, durante tantos anos, parecia-lhe
agora ameaçador e ominoso. Indagou-se se conseguiria enfrentar novamente
aquela gente com naturalidade, como se nada houvesse mudado em sua vida,
como se o "papai" Sérgio fosse ainda o mesmo nonno afetuoso que sempre o
julgara ser. Um arrepio percorreu-lhe o corpo, apesar de estar exposta ao sol,
e foi juntar-se às crianças no terraço.
O marido viera ter ali para conspirar contra a vida de um homem. Estava
sentado à mesma mesa com bandidos e assassinos, enquanto os filhos
brincavam ali fora, para acertar os detalhes da perseguição, captura e
eliminação de um ser humano. E claro que ela mesma estivera bem perto de
matar aquele mesmo ser humano, mas, em seu caso, apenas agira em pânico,
numa situação desesperadora. Ainda não podia acreditar que houvesse
apertado o gatilho — e graças a Deus o apertara, graças a Deus tivera aquela
reação de pânico. Mas, sentar-se a uma mesa e conspirar... Estremeceu
novamente e esforçou-se por continuar a caminhar como se nada estivesse
acontecendo. Talvez a reação fosse uma coisa relativa, pensou ela. Talvez a
reação daqueles homens não fosse tão diferente da dela — era uma questão de
sobrevivência, e eles estavam reagindo da única maneira racional que
conheciam. E talvez algum dia ela perdoasse Leo por suas ligações com
aquele submundo. E talvez ela terminasse como a Sra. Franchi, viajando
constantemente de um lado para outro, a fim de não ter de encarar a realidade
em sua própria sala de estar. Pois que aproveita ao homem granjear o mundo
todo, e perder-se a si mesmo...? Afastou bruscamente aqueles pensamentos,
enxugou uma lágrima furtiva, e foi juntar-se aos filhos.
***
Aparentemente, aqueles homens tinham aprendido a lição. A reunião
estava sendo realizada por trás de cortinas fechadas. Um destacamento de
vinte guardas estava encarregado da segurança da casa, e uns outros doze
estavam postados em vários pontos do terreno.
— Então a pequenina Angelina quase fez o serviço que um pequeno
exército foi incapaz de fazer, hã? — dizia Sérgio, num tom de sarcasmo. —
Com uma pistolinha que até parecia brinquedo, hã? — riu abertamente, e
lançou um olhar de reprovação a Leo Turrin. — Fez um bom casamento,
Leopold. Cuide daquela mulherzinha. Algum dia, ela ainda o transformará
num homem.
— Ainda bem que ela estava lá — murmurou Turrin. — Salvou-me a
vida. Sabe lá o que é sentir o aço frio de uma pistola na nuca? Ainda bem que
ela estava lá.
— E não precisa pedir desculpas — observou Sérgio calmamente.
— Pombas, já contei como a coisa aconteceu. De repente, puft! lá estava
ele. E não fui eu quem chamou a polícia. Os caras andavam lá por perto, acho
eu. O que me surpreende é que Bolan tenha conseguido escapar. O local ficou
cheio de carros da polícia. Era como se a polícia estivesse promovendo um
baile lá em casa...
— Já disse que não precisa pedir desculpas. Sabem o que eu penso? —
acrescentou Sérgio, sob o olhar de expectativa dos outros. — Penso que esse
sujeito está trabalhando para a polícia. Não a polícia local, a polícia local não.
Ele veio de fora, acho que é federal. Talvez da CIA ou coisa parecida, com
licença para matar. Sabe como é?
Um homenzinho, baixote, assentado à outra ponta da mesa, mexeu-se,
inquieto, pigarreou e disse:
— Não me parece lógico, Sérgio. Eu teria sido avisado num caso desses.
Pode crer, todo o ministério está empenhado em capturar esse sujeito.
Sérgio olhou-o com ar severo:
— E você não seria deixado para trás num caso desses, hã? Você é
importante demais para não ser informado de alguma trama secreta de agentes
federais, hã?
O outro fez um gesto afirmativo:
— Sou. Sei que sou. Ao que eu saiba, jamais lhe dei uma informação
errada.
— Eles já tentaram tudo para nos pegar! — exclamou Sérgio, subitamente
furioso, batendo na mesa com o punho fechado. — Por que não haveriam de
experimentar isso também, hã?
— Os homens da lei nos Estados Unidos não agem assim — respondeu o
baixote, em tom conciliatório. — Simplesmente não agem assim. Pelo menos,
não contra cidadãos americanos.
— Mas veja quem foi morto! — insistiu Sérgio. — Não foi nenhum de
nós. Nenhum tiro foi disparado contra nós. Um cara que quase me tira o copo
de vinho das mãos com um tiro, certamente podia matar Sérgio se quisesse!
Hã? Podia ou não podia?
— E, em sua opinião, quais as intenções dele, Sérgio? — indagou Plasky.
— Guerra psicológica! — retrucou o velho. — E isto que ele pretende. E
talvez... — apertou os olhos, como se fitasse alguma coisa distante. — Talvez,
bambini, esse Bolan não seja um homem só.
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual todos permaneceram de olhos
postos em Sérgio. Este sentou-se à cabeceira da mesa, os dedos dobrando e
desdobrando um guardanapo de papel, enquanto ele dava curso a seus
pensamentos.
— Reparem bem — disse ele. — Reparem. Cinco homens são
assassinados na rua, em frente ao escritório da Triangle. Ninguém vê o
assassino. Esse militar aparece na casa de Nathan, onde é visto pela primeira
vez e consegue convencer um homem esperto e instruído como Walt a dar-lhe
um lugar na organização. Assim que ele teve o tempo de conhecer alguns
rostos e alguns locais de negócio, somos avisados pelo nosso serviço de
espionagem... — alçou os olhos, franzindo as sobrancelhas, para o baixote no
outro lado da mesa. — ...nosso serviço de espionagem, de que foi esse mesmo
militar que matou o pessoal da Triangle, e que pretende nos matar a todos.
Pois bem! Mandamos matá-lo, e ele está à espera de nossos pistoleiros, há?
Mais uma vez, deixa de ser visto por qualquer um de nós que tenha ficado
vivo até hoje. Aparece em uma das casas de Leopold, mas só é visto
momentaneamente: e quem garante que o homem que pôs fogo à casa é o
mesmo que disparou à toa contra o carro de Leo, hã? Por outro lado, na casa
de Walt, um homem cuja descrição corresponde mais ou menos à do nosso
militar tem uma conversa com a cozinheira; mas quem me garante que não
havia outros no mesmo local, há? Veem o que começa a transparecer disso
tudo, bambini? Uma imagem. A imagem de um fantasma invencível que
caminha entre nós, sem ser visto ou tocado, matando e destruindo à vontade.
Uma imagem de medo, hã?
Os homens sentados à volta da mesa, que eram exatamente doze,
começavam a mostrar-se inquietos. Houve murmúrios e ranger de cadeiras.
Vários charutos e meia dúzia de cigarros foram acesos.
Sérgio parecia estar satisfeitíssimo com o papel cerebral que estava
representando. Tinha um sorriso espalhado em todo o rosto:
— Estão começando a entender, há? Nosso serviço de espionagem não é
tão bom assim, há? A Máfia anda amolecendo, dizem eles. Excesso de
dinheiro e conforto. A nova geração é um bando de trouxas. Vamos apertá-los
ao máximo e ver se eles cometem algum erro, hã? Vamos brincar de assustar
a Máfia, e talvez eles entrem em pânico e o teto lhes caia na cabeça, hã?
— Detesto esta situação tanto quanto vocês — disse Seymour, aborrecido.
— Um sujeito sozinho, mesmo que seja um fantasma, não me tiraria tanto o
sossego quanto um ataque concentrado do governo federal, sem nenhum
respeito às regras do jogo.
— Sossego? — berrou Sérgio. — É sossego que você quer? Pois fique
com o seu sossego, professorzinho de meia-tigela! O que Sérgio Franchi quer
é ver Bolan morto! Não um fantasma, não um inimigo invencível, mas um
cadáver!
— Mas você acabou de dizer...
— Disse que vocês deviam deixar de ser uns vermes medrosos — interpôs
o velho com severidade. — Parem de chorar e de falar num fantasma
chamado Bolan. Transformem-no num fantasma, e digam aos agentes federais
que nos mandem outro! Transformaremos também em fantasma esse segundo
agente. Hã? Quem são os valentes e ousados em nossa família, há, Leopold?
Serão as nossas mulheres?
— Vamos matar aquele desgraçado — disse Turrin, raivoso, evitando o
olhar implacável do velho.
— Sim, sim, vamos matá-lo. E aqui está o nosso plano. A primeira coisa
que você tem a fazer, Nathan, é...
E assim teve início o Conselho de 1.° de Setembro, Mack Bolan, o
Executor, bem poderia ter compartilhado dos maus presságios de Angelina
Turrin — dela que, com o seu gesto, tornara possível aquela trégua. A Máfia
recuperara o fôlego, e agora a balança pesava contra o Executor.

3.ª PARTE
1. O Fim da Trégua
Bolan estava hospedado no apartamento de Valentina Querente há mais de
48 horas. Sabia agora que ela ensinava História no ginásio local, por
coincidência uma das mesmas escolas para as quais Bolan fora nomeado
instrutor militar — cargo que ele jamais viria a exercer. Ficara sabendo ainda
que Valentina tinha 26 anos de idade, era solteira, dada a súbitas mudanças de
temperamento, passando da maior seriedade ao humor mais hilariante, e que
parecia ser ao mesmo tempo virginal e experiente, facilmente agastada ante
uma piada inocente e perfeitamente à vontade com as mais francas sugestões
sexuais. Dormiam na mesma cama, separados apenas por um cobertor
enrolado, Bolan somente de cueca, ela enrolada num robe caseiro. Valentina
tocava-o, sem reservas, ajudando-o a vestir-se e despir-se, e, em várias
ocasiões, ele a vira somente de calcinha e sutiã. Ainda assim, os dois corpos
jamais se haviam tocado, nem os seus lábios — nem mesmo as suas mãos.
Na terceira manhã que passava ali, Bolan despertou com a presença de
Valentina, sentada ao seu lado, fitando-o em silêncio.
— Oi — disse ele.
Ela afastou os olhos, embaraçada.
— Você sempre me apanha olhando para você — queixou-se ela.
— Não há maneira mais agradável de acordar — garantiu ele.
Tomou-lhe a mão nas suas, pela primeira vez.
— Não faça isso — suplicou ela, tentando desvencilhar-se.
— Por que não? É uma mão gostosa, macia, e segurá-la me dá prazer.
— Esse é o braço machucado...
— Já não dói tanto. Talvez até eu pudesse abraçá-la.
— Não brinque, Mack — disse ela, num tom sério. — Eu estava aqui...
pensando. Quero dizer, acho que é hora de você bater as asas, não?
— Está me mandando embora? — indagou ele.
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça.
— Especialmente se você está se sentindo assim tão forte.
— Assim tão forte como?
— Tão forte que seria capaz de me abraçar.
— Deite-se aqui e vamos ver se eu consigo — sugeriu ele.
— Não que eu não queira — respondeu ela, com um olhar hesitante. — É
por isso que acho que...
— Que eu devo ir embora?
— Ah-han.
Desprendeu a mão que Bolan segurava, e cruzou as duas sobre o colo.
— Você já amou alguém na vida, Valentina? — perguntou Bolan em voz
baixa.
— Não me venha com isso, Mack.
— Estou falando sério — disse ele. — Não é conversa fiada. Já amou
alguém?
— Claro — respondeu ela. — Duas ou três vezes.
— E como é que agente se sente quando ama alguém?
Houve um breve silêncio.
— Você está mesmo falando sério, não?
— Já lhe disse que sim.
— Bom, não sei bem. Quero dizer, não sei se era mesmo amor que eu
sentia. Tive minhas gamações. No momento, acho que estou gamada por
você.
Ele preferiu ignorar aquela declaração, que não o surpreendia muito.
— Já fiz trinta anos de idade — disse Bolan, com um ar pensativo.
— Sei disso.
— Há muitos anos, muitos anos, eu pensava que algum dia iria me
apaixonar por alguma mulher.
— Há quantos anos?
— Já faz um bocado de tempo que não penso nessas coisas. Um bocado
de tempo. Agora, de repente, voltei a pensar. Como se explica isso?
Olhava-a fixamente, como se esperasse encontrar a resposta nos olhos
dela.
— Não, Mack... por favor...
Ele abraçou-a e puxou-a de encontro a si. O rosto dela estava a um palmo
do seu, uma expressão de medo nos olhos.
— Mack, por favor, não devemos nos apaixonar um pelo outro —
sussurrou ela. — Não quero me apaixonar por um assassino.
Os olhos dele mudaram de expressão, como se uma nuvem pesada
descesse sobre eles. Soltou-a, e ela ergueu-se, dirigindo-se para a porta. Bolan
murmurava alguma coisa consigo mesmo. Pós os pés no chão e olhou em
volta, procurando as roupas. Escutou o pranto de Valentina, vindo de outro
aposento.
— Obrigado — murmurou ele. — Obrigado por me lembrar.
Foi até o banheiro, encontrou as roupas dependuradas no lugar de sempre,
colocou-as sobre o armário, abriu a torneira e pôs-se a tomar banho. Retirou o
curativo do ombro, abriu a cortina e examinou o ferimento no espelho. Certo
de que não haveria mal em molhá-lo, fechou a cortina e prosseguiu em seu
banho. Em seguida, vestiu-se e foi até a cozinha. Valentina servira-lhe o café
da manhã, mas não ficara para fazer-lhe companhia.
Bolan comeu, pensativo, fazendo gestos mecânicos. Havia terminado um
cigarro e estava ingerindo a terceira xícara de café, quando ouviu abrir-se a
porta da frente. Valentina surgiu um instante depois, ofegando ligeiramente,
muito bonita num short escuro e blusa amarrada acima da cintura.
— Fui ligar novamente o motor do seu carro — disse ela, acomodando-se
numa cadeira em frente a ele e olhando-o com ar sonhador.
— Obrigado — disse ele em voz baixa. — Será condecorada por serviços
muito acima do que exige o dever ou coisa parecida. Ou acho quê, ao invés
disso, lhe darei um prêmio de vinte mil dólares.
— Vinte mil o quê?
— Há um bocado de dinheiro na mala daquele carro. Deixarei vinte mil
com você.
— Não quero dinheiro — disse ela, com um ar sombrio. — E de onde
veio esse dinheiro todo?
Ele sorriu e acendeu outro cigarro.
— Bom, além de ser um assassino, sou também ladrão, embora ninguém
tenha dado parte de meu roubo. Não podiam dar parte, entende? Roubei um
quarto de um milhão de dólares que a Máfia andava escondendo.
— Nossa! — exclamou ela. — E tudo isso está lá no carro?
— An-han. E não pretendo devolvê-lo. Não sei quanto tempo vai durar
esta guerra, e guerra custa dinheiro. Portanto, decidi combatê-los com o
dinheiro deles mesmos. Vê? Eu não só mato, como também roubo, minto e
trapaceio.
— Eu... no duro, não vejo você como assassino, Mack — disse ela, como
a desculpar-se. — Não... não sei por que disse aquilo.
— Ora, você tem razão — disse ele. — As aulas começam amanhã e você
volta a ensinar, enquanto eu volto ao campo de batalha. É assim que tem de
ser, e não há lugar para mais nada — olhou-a e sorriu. — Desculpe-me por ter
perdido a cabeça.
— Eu... realmente não penso em você como assassino — repetiu ela,
evitando o olhar inquisitivo que ele lhe dirigia. — E... não vou pôr você para
fora de casa, tampouco. Pode ficar o tempo que quiser, contanto que durma no
sofá de agora em diante. A não ser que...
Bolan arqueou as sobrancelhas:
— A não ser o quê?
— A não ser nada — gaguejou ela. — Acho que pode continuar a dormir
em minha cama — mudou de expressão de repente, sorrindo maliciosamente,
um brilho novo nos olhos. — Vinte e seis anos, moça direita, sem ter jamais
levado um homem para a cama. Acha que vou deixá-lo escapar assim tão
facilmente?
— Você merece uns tapas, sabe disso? — murmurou ele, baixando os
olhos para a xícara de café.
— E até deixarei que você me dê uns tapas.
Uma lágrima escorreu-lhe pelo canto do rosto. Os olhos fitaram
novamente os de Bolan, que não pôde mais conservar-se impassível.
— Deus meu, Val! — gemeu ele.
Ergueram-se ao mesmo tempo e caíram nos braços um do outro. Sem dar
atenção à dor que ainda sentia no ombro, Bolan apertou-a de encontro a si.
Ela ergueu o rosto para o dele, os lábios úmidos, levemente entreabertos, e
colou a boca na dele num beijo sôfrego, o corpo pequeno entregando-se
totalmente. As mãos de Bolan desceram automaticamente para a faixa de pele
nua entre a blusa e o short, e ela suspirou de desejo. As duas bocas separaram-
se, e ela sussurrou-lhe ao ouvido:
— Não aguento, Mack, não aguento mais.
Sem dizer palavra, ele a ergueu nos braços e levou-a para o quarto, os
braços dela em torno do seu pescoço, o rosto colado ao seu. Bolan colocou-a
sobre a cama e despiu-a, plantando um beijo em cada uma de suas ancas. Ela
passou-lhe a mão pelos cabelos, estremecendo de prazer; depois, pondo-se de
joelhos sobre o colchão, enlaçou-lhe o pescoço, os lábios à procura de um
novo beijo. Bolan beijou-lhe o pescoço, descendo em seguida para o delicado
contorno dos seios, cujos bicos endurecidos pareciam vibrar de encontro aos
seus lábios.
— Deixe... deixe-me ajudá-lo — disse ela, os dedos tentando
desajeitadamente desabotoar-lhe a cintura da calça.
Bolan afastou-lhe a mão, com brandura, e despiu-se. Ela estendeu-se na
cama quedando-se imóvel, olhando-o com um brilho nos olhos.
— Eu amo você, Mack Bolan — sussurrou ela.
— Obrigado — disse ele, num murmúrio, deitando-se ao lado dela.
— Não há de quê — disse ela, ofegante.
— Você terá de... fazer assim, Val — disse ele, instruindo-a.
— Oh, Mack!
— Como gosto de você, Val!
— Eu... te amo... Mack.
— Eu também te amo, Val.
— Mack! Oh, Mack!
E assim terminou a trégua para o Executor.
2. Toda a Verdade
Ela deixou-se ficar aninhada em seus braços, semi-estendida sobre o seu
corpo, num intenso e profundo repouso. Após um prolongado silêncio, ela
ergueu a cabeça e murmurou:
— Sabe em que estou pensando?
— Hmm...
— Estou pensando que um dia como o de hoje jamais deveria acabar. Mas
sei que tem de acabar. No entanto, não importa o que aconteça agora, sinto-
me feliz e grata por tudo isto...
Ele girou a cabeça para dar-lhe um beijo.
— Lamento que tenha de ser assim, Valentina. Você merecia coisa
melhor, bem melhor.
— Acho que não suportaria se fosse muito melhor — respondeu ela, com
um sorriso.
— Você deveria ao menos ter a chance de amar um homem a quem não
reprova.
— Não se deve resistir ao mal — murmurou ela.
— Hã?
— Afaste-se de tudo isso — disse ela, num ímpeto, pondo-se sobre ele
para olhá-lo nos olhos. — Vá embora e esqueça essa gente. Deve haver muito
lugar no mundo onde você pode viver em paz e segurança. Eu vou com você,
Mack. Vou para onde você quiser.
— Espere um pouco — disse ele.
— Não se deve matar — insistiu ela. — Mesmo que você os derrote,
mesmo que você os extermine, no fim você é que sairá perdendo. Não se deve
responder ao mal com violência.
Bolan fitou-a, serio e pensativo.
— Você acha que... deveríamos viver num mundo de amor fraterno, e
estender a outra face a quem nos agride, esse tipo de coisa, não?
Percorria-lhe a espinha dorsal com os dedos; ela estremeceu, como se
sentisse cócegas.
— Não faça isso — pediu ela. — Estou falando sério...
— O que uma garota frágil como você pode saber acerca da violência e do
mal que os homens cometem uns contra os outros?
— O mal não se recebe, Mack. O mal é para quem o comete, e só pode
prejudicar a quem o comete.
— Não deixa de ser uma teoria interessante — respondeu Bolan. — Você
diria que os judeus não receberam o mal das mãos de Hitler?
— No fim, foi Hitler quem recebeu todo o mal que havia criado.
— Sim, mas o que teria acontecido se o mundo inteiro continuasse a
oferecer a outra face ao velho Adolf? Ele teria dilacerado essa outra face
também, e onde estaríamos agora?
— E o que aconteceu com o mundo? — perguntou Valentina, numa voz
triste. — Revidamos o mal com o mal e, agora, somos herdeiros do mal.
Ele assestou-lhe uma leve palmada no traseiro.
— De onde você tirou essas ideias malucas? Olhe, Val, só existem duas
forças, duas forças básicas neste mundo. O bem e o mal. Pô, eu não sou
nenhum missionário, mas creio que o bem é algo mais do que o mero fato de
não resistir. O bem deve ser mais enérgico, mais... imperioso que o mal, se é
que vai vencer este último.
Ficaram longo tempo em silêncio. Valentina desceu o rosto para o dele e
mordiscou-lhe os lábios, esquivou-se do revide e desvencilhou-se das mãos
que procuravam acariciá-la.
— Quantas pessoas — disse ela pensativamente — você acha que
procuraram deliberadamente fazer o mal? Até mesmo o exemplo que você
deu, Adolf Hitler... ele próprio agiu como parte de um movimento que, a seu
ver, representava o bem supremo.
— Sem dúvida — concordou Bolan. — Mas os outros tinham uma noção
diferente do que era bom e do que não era bom para eles, e se opuseram a
Hitler. O bem, Val, é uma coisa muito pessoal e individual. Pelo menos, para
mim. Sou uma criatura instintiva, entende? Veja essa guerra do Vietnã. Muita
gente acredita que ela é um mal. E é claro que é. Mas, que diabos! Não fomos
nós que começamos esse mal, simplesmente decidimos opor-lhe resistência,
resistir ao mal. Pessoalmente, penso assim, e é por isso que acredito estar do
lado do bem ao participar dessa guerra. Pessoalmente, me sentiria muito mal
se me recusasse a tomar o partido dos bons. Entende? Trata-se de uma coisa
pessoal e instintiva. E agora, aqui, estou mais ou menos na mesma situação,
nessa pequena guerra particular em que me envolvi. Não fui eu quem
começou essa sujeira. A Máfia vem fazendo o que bem entende neste país há
muitos e muitos anos. Pois bem, eu finalmente percebi o mal que a Máfia
representa. Percebi o que eles vinham fazendo, e senti que era preciso
oferecer-lhes resistência. É só isso, e mais nada. Você pode pegar tudo quanto
é filosofia e religião bonita e movimentos de pacificação e empilhá-los todos
na minha frente, e ainda assim a minha reação instintiva e individual em
relação à Máfia falará mais alto. Essa gente é um cancro, um tumor fétido que
ameaça corroer tudo quanto existe de bom neste país. Vou fazer o possível
para impedir que ele cresça. Mesmo que, no fim, o diabo ganhe o jogo.
— Deve ser bom ter uma visão do mundo assim, tão simples — comentou
Valentina.
— Ora, deixa disso, Val — disse Bolan, meio irritado. — As pessoas
gostam de brincar com ideias filosóficas, e terminam todas enroladas. Veja
toda essa gente biruta e confusa, promovendo manifestações neste país contra
o que consideram uma guerra "imoral". Se é assim que se sente, por que não
vão para lá, por que não tomam o partido do Vietcongue e não lutam pelo que
acreditam que seja bom?
— Você está inteiramente comprometido com a ideia de violência e
derramamento de sangue, não? — observou ela, pondo-se séria.
— Não, não estou. Meu compromisso é no sentido de fazer alguma coisa.
Enquanto eu ficar sentado, contentando-me em discutir a diferença entre o
bem e o mal, não estarei fazendo nada. Enquanto debato a questão, o mal vai
ganhando vantagem. Não, Val. Se eu achasse que poderia percorrer o
submundo tocando uma flauta para fazer com que todos os ratos e bandidos
me seguissem até a cadeia, faria exatamente isso. Mas não acho. Afinal, por
que estamos discutindo? Quem deu início a toda esta sujeira não fui eu. Foi a
Máfia, simplesmente por ser o que é. O mero fato de serem o que são
representa um desafio para mim. Aceitei o desafio, é só. E neste caso, sim,
tenho um compromisso de violência e derramamento de sangue.
— Guerra sem fim — suspirou ela.
— Sim, guerra sem quartel — ele percorreu-lhe o corpo nu com ambas as
mãos. — E, agora, já não há saída. Agora, é Bolan contra o resto do mundo,
Val. Você sabe disso. Jamais serei livre de novo, jamais. A lei deste país se
sente no dever de me fazer responder por meus "crimes". Como vê, minha
guerrinha particular é também uma guerra imoral. De modo que a lei quer me
pegar. O Exército quer me pegar, e logo irá me chamar de desertor. O
submundo quer me pegar. E agora, até você, minha idealistazinha, até você
quer me pegar. E isso aí: Bolan contra o resto do mundo.
— Você aceita recrutas? — murmurou ela.
— Hã?
Ela passou-lhe os braços em volta do pescoço e abraçou-o num esforço
quase desesperado. Tinha o rosto molhado de lágrimas.
— Eu gostaria de me alistar ao lado de Bolan — disse ela. — Aceita
recrutas?
Ele virou-se para um lado, fazendo-a tombar sobre o colchão. Ela gemeu
de prazer, enlaçando-o agora também com as pernas.
— Seria desperdiçar o seu dinheiro — disse ele — apostando em quem
vai perder.
— Não sei, não sei — retrucou ela, sorrindo entre lágrimas. — Você me
parece bastante competente.
— Sua confiança me desarma — disse ele, unindo-se agora inteiramente a
ela.
— A sua também — respondeu ela, com um suspiro de satisfação.

3. Previsão: Tempo Quente Hoje e Amanhã


A noite havia caído. O Executor estava equipado e pronto para entrar em
combate. Valentina o abraçava, dando-lhe um beijo de adeus. A mão roçou de
leve na coronha da pistola 45 e ela a afastou, ansiosa.
— Tome cuidado — murmurou ela. — Volte para mim.
— Voltarei — disse ele. — Talvez não hoje à noite. Talvez nem mesmo
amanhã. Mas eu voltarei.
— Foi uma linda lua-de-mel — suspirou ela.
— Um tanto curta — disse ele, sorrindo.
Ela concordou, com um aceno de cabeça.
— Curta demais — passou-lhe levemente o dedo sobre a têmpora
esquerda. — Será que o cabelo voltará a crescer aí?
— Ainda bem que não perdi a orelha — disse ele.
— E o ombro? — perguntou ela, pousando a mão em seu ombro
esquerdo. — Acha que já está bom?
— Teria sido pior se fosse o ombro direito — respondeu ele.
— Você sempre vê o lado bom de tudo, não? — riu ela, franzindo o nariz.
— Se você tivesse de aparar o recuo de um rifle pesado com o ombro,
diria a mesma coisa — disse ele, pensativo.
— Mack Bolan, acho que você é um sanguinário. Está doido para voltar à
luta, não está?
— Para falar a verdade, não estou — disse ele, com um novo sorriso. —
Sempre é um pouco mais difícil depois que a gente leva um tiro.
Ela o atalhou rapidamente:
— Então por que você não...?
Bolan cobriu-lhe os lábios com a palma da mão.
— Não vamos começar isso de novo — disse ele ternamente. — Olhe... se
acontecer alguma coisa inesperada, e eu não puder voltar, tentarei pelo menos
lhe telefonar. Mas não fique desesperada se não tiver notícias minhas. Na
guerra, o silêncio é às vezes parte da coragem. Entende? Fique calma.
— Ficarei calma — prometeu ela.
Bolan apagou as luzes, foi até a porta, abriu-a, voltou-se para olhá-la mais
uma vez, e partiu. Ela correu até a porta para vê-lo afastar-se, mas ele já
desaparecera na escuridão. Valentina fechou a porta, abatida, os ombros
encolhidos, e pôs-se a chorar. Sua vida mudara tão drasticamente em tão
pouco tempo! Tornou a acender as luzes e olhou em volta, como a procurar os
sinais daquela mudança. Tudo continuava como sempre fora. O único sinal de
mudança havia partido dali momentos antes. Endireitou-se, dirigiu-se à
televisão e ligou o aparelho, aprontando-se para a longa espera. Ele voltaria.
Tinha de voltar.
***
Bolan fez uma parada na primeira cabine telefônica deserta que encontrou
e discou o número do Tenente Al Weatherbee.
— Engraçado — disse ele — sempre que telefono, você está aí, não
importa a hora do dia ou da noite. Afinal, você é casado com a polícia?
— Bolan? — indagou Weatherbee, alteando a voz na última sílaba.
— Eu mesmo. Acabo de regressar de umas férias que passei na Riviera
Francesa. Sentiu saudades de mim?
— Pombas! — exclamou a voz colérica de Weatherbee. — Justamente
quando eu pensava ter-me livrado de você para sempre! Bolan, por que não
foi para o México?
— O México é calmo demais — respondeu Bolan — Por sinal, andei
vendo televisão ultimamente, e fiquei sabendo dos boatos. Não fui para o
México nem para a América do Sul. Fiquei aqui o tempo todo. O que é que os
nossos amiguinhos andam aprontando desta vez?
— Isto aqui não é uma agência de detetives particulares, Bolan —
resmungou Weatherbee. — Não sei como você ainda tem a coragem de me
telefonar. Entre outras coisas, está sendo procurado por onze homicídios.
— Sei, e me sinto muito envergonhado por isso — disse Bolan, rindo. —
Mas não se preocupe, tenente. Daqui para amanhã, farei aumentar essa
contagem.
— Bolan, pelo amor de Deus, deixe as coisas como estão. Ouça, o público
e muita gente importante vem manifestando simpatia por você. Se andou
vendo televisão, deve saber disso. Venha para cá. Ou então me diga onde está
e eu o apanharei pessoalmente. Dois dos melhores advogados do país já se
declararam interessados no seu caso, e...
— Poupe o fôlego, tenente — atalhou Bolan. — Sei que ninguém ficou
quietinho enquanto eu descansava, especialmente a Máfia, certo?
— Você nem faz ideia de como está certo — retrucou o policial. — Eles
tiraram todo o proveito possível desses dias de repouso. Agora estão prontos e
à sua espera, Bolan.
— Foi o que eu pensei. Por isso telefonei. Talvez você tivesse alguma
informação útil para me dar.
Durante um instante, ouvia-se apenas a respiração pesada do detetive ao
telefone. Finalmente:
— E por que haveria eu de lhe dar alguma informação?
— Porque sabe que estou do seu lado, só por isso.
— Do meu lado uma ova!
— Claro que estou — disse Bolan. — E posso agir com maior liberdade
que você. Fiz tremer aqueles caras como eles nunca tinham tremido antes. E
você, Weatherbee, de que lado está?
— Não se trata de lados! — berrou o policial, exasperado. — É... é...
— Sei, sei, um mero detalhe técnico. Apegue-se aos detalhes técnicos, se
é isso que prefere. Mas eu certamente gostaria de saber o que é que eles
andam aprontando.
— Eles julgam que você trabalha para nós — disse Weatherbee,
contrafeito.
— Então, está vendo? Eles não se perdem em detalhes técnicos.
— Formaram uma verdadeira equipe de guerrilheiros. Da próxima vez
que você os atacar, eles responderão com tudo quanto é arma, com exceção da
bomba atômica.
— No duro?
— No duro. Não adianta, Bolan. Você conseguiu acertá-los uma vez, mas
eles já se refizeram do susto. No primeiro ataque que você desfechar,
revelando sua posição, estará perdido. Você está simplesmente pondo tudo a
perder, como qualquer amador. Quase que me destruiu uma operação
clandestina que venho montando contra esses caras há mais de cinco anos.
Bolan ficou mudo durante algum tempo.
— Você montou uma operação clandestina contra a Máfia?
— Claro que sim. Como acha que obtenho todas essas informações que
passo a você?
— Cinco anos, hein! E pretende continuar agindo clandestinamente
durante muito tempo?
— Pelo tempo que for necessário. Estamos interessados em apanhar esses
caras de uma vez, Bolan. Estamos só aguardando o momento certo.
— Há cinco anos? Você faz ideia das misérias que essa gente cometeu
nesta cidade nestes últimos cinco anos?
A voz de Weatherbee assumiu um tom grave e urgente:
— Sabemos o que estamos fazendo.
— Eu também sei o que estou fazendo — disse Bolan. — E não vou levar
cinco anos. Diga a seus policiais que me deixem em paz, Weatherbee. Vou
atacar novamente hoje à noite.
— Tratarei de impedi-lo, se puder!
— Mas não pode. A única coisa que pode fazer é ajudar e favorecer nosso
inimigo comum. Diga a seus policiais que mantenham distância. Vou atacar
hoje à noite.
Bolan repôs o fone no gancho, voltou ao carro e deixou-se ficar um
instante, meditando sobre a conversa que tivera com Weatherbee. O policial
tinha razão, naturalmente. A luta assumira tais dimensões que mal lhe restava
alguma chance de vitória.
Mack Bolan via as coisas com o realismo da mente militar. Na tática
tradicional da guerra, possuir uma força superior era garantir a vitória. Mas a
superioridade nem sempre era uma questão de quantidade. Um pelotão de
elite podia facilmente derrotar uma companhia inexperiente; um único tanque
era capaz de devastar um batalhão de infantaria. No Vietnã, o segredo da
superioridade era o poder de fogo e a mobilidade. Bolan aprendera de cor as
lições da sobrevivência militar. Não era nenhum idealista, e jamais tivera
muito respeito pelo tipo de guerra desesperada dos guerrilheiros vietcongues.
Precisava de algo que restaurasse o equilíbrio. Até ali, sua estratégia tinha
dado certo, e ele atingira seu objetivo. Forçara o inimigo a revelar sua
posição. Expulsara-o da trincheira da respeitabilidade social, fazendo com que
ele tivesse de se reorganizar e reforçar suas defesas, expondo-se ainda mais.
Mas, reconhecia ter atingido esse objetivo inicial às custas de uma
necessidade vital na guerra: perdera a vantagem da superioridade que
mantivera em sua campanha até então.
Weatherbee analisara muito bem a situação. Desta vez, os mafiosos
estariam de olhos abertos, provavelmente lançando mão de recursos
inesperados para defenderem-se. A próxima ofensiva de Bolan seria um
pouco mais que um ataque de guerrilheiro desesperado, a não ser que... Um
homem sozinho, armado com um fuzil, não podia esperar derrotar toda uma
companhia de soldado, a não ser que... Bolan sorriu, pós o motor em
movimento, e rumou para um bairro da cidade que deveria estar deserto
aquela hora. A superioridade, repetiu ele com os seus botões, não é somente
uma questão de quantidade.
Tendo alcançado o distrito industrial, na zona norte de Pittsfield,
enveredou por um conjunto de velhos armazéns, com os quais travara
conhecimento há muitos anos. Naquela época, Bolan passara várias semanas,
a serviço do Exército, num daqueles depósitos. E era este que ele estava
procurando agora.
Localizou-o sem dificuldade. Era uma estrutura baixa, de aço, teto chato,
à frente do qual havia uma placa corroída pelo tempo, onde se lia, em letras
maiúsculas "SURPLUS EXPORTS, INC.". Logo abaixo, um logotipo em
letras menores — DIM — que Bolan reconheceu como o símbolo da
Distribuidora Internacional de Munições.
Como perito em armamentos, Bolan fora temporariamente designado pelo
Exército para ajudar a firma a catalogar e armazenar um grande carregamento
de excedentes de armas e munições vendido pelo governo. Grande parte dos
artigos que Bolan examinara naquele tempo estavam novinhos em folha,
embora o carregamento incluísse também artigos usados, que datavam da
Segunda Guerra Mundial. A mercadoria não podia ser vendida a cidadãos
particulares nos Estados Unidos, mas a exportação daquele material estava
bastante em voga na época. A esperança de Bolan é que a escalada da guerra
no Vietnã não houvesse estancado a fonte supridora daquelas armas e
munições. Sempre suspeitara que grande parte dos chamados excedentes
resultavam de erros de cálculo do governo em seus programas de produção e
abastecimento. Ainda assim, quase todos os artigos que ele ajudara a catalogar
eram excedentes genuínos de armas obsoletas. E ele ficaria muito satisfeito se
pudesse pôr as mãos em três ou quatro daquelas armas "obsoletas".
Bolan encostou o carro na escuridão da plataforma de embarque, e fez a
volta, a pé, em torno do edifício, numa cautelosa operação de reconhecimento,
enquanto rebuscava na mente os detalhes da segurança do depósito. Em
seguida, voltou ao carro, apanhou um estojo de ferramentas e retirou do
estepe vazio um maço de notas. Resolvera como haveria de entrar.
Dez minutos depois, esgueirava-se ao longo de um duto de ventilação.
Pouco depois, localizava a seção de "armas especiais" e escolhia
metodicamente o equipamento necessário, anotando num pedaço de papel o
nome e o preço estimativo de cada artigo.
Terminada a lista, conferiu-a, somou as parcelas, acrescentou-lhes um
"fator de erro", e deixou a lista e o dinheiro em local bem visível. Ladrão não
era, pensou Bolan. Além disso, convinha que tudo aquilo fosse pago com o
dinheiro do próprio inimigo.
Desligou o sistema de alarme, abriu a porta que dava para a plataforma de
carga, empurrou o equipamento para o carro; depois, tornou a voltar para
trancar o depósito, saindo por onde tinha entrado. Ao afastar-se, Bolan avistou
o carro do guarda particular de segurança, encarregado de vigiar o conjunto,
que se dirigia no rumo oposto. Bolan sorriu e acelerou o motor, alcançando a
estrada de asfalto. Restava-lhe agora executar o plano.
4. Prelúdio
Bolan estacionou o carro na porta traseira do edifício de apartamentos,
subiu pelo elevador de serviço até o quinto andar, caminhou pelo hall até uma
porta onde se lia o número "511" e tocou insistentemente a campainha. Uns
quarenta segundos depois, ouviu sons dentro do apartamento, e uma voz
masculina que berrava:
— Já vou, já vou, espere um minuto!
Soltou o botão da campainha e apoiou o ombro direito de encontro à
porta. Assim que ouviu o girar da chave na fechadura, empurrou-a para
dentro, quase derrubando o homem que viera atender.
— O que... é isso? — gaguejou ele.
— Você me conhece — disse Bolan. — Vista-se. Vamos sair.
O homem voltou-se e saiu correndo para os fundos do apartamento, mas
Bolan alcançou-o. Segurou-lhe um braço, fê-lo girar em sua direção e
desferiu-lhe um forte soco no estômago. O homem caiu sobre uma cadeira, o
corpo mole, ofegando, com falta de ar. Bolan evitou que ele caísse ao chão,
esperou que ele se refizesse um pouco, depois empurrou-o rispidamente para
o quarto.
Momentos depois saíam ambos do apartamento, desciam pela entrada de
serviço e entravam no carro de Bolan. Não haviam trocado outras palavras
senão aquelas pronunciadas à porta minutos antes. Agora, o homem olhou
espantado para um enorme volume colocado na traseira do carro e coberto por
uma lona parda:
— Que é isso aí atrás?
— Cadáveres, talvez — respondeu Bolan friamente. — E o mesmo pode
acontecer com você, se fizer alguma tolice.
O homem desviou o rosto e fitou os olhos à frente, obviamente
preocupado. Dali a pouco, paravam diante do escritório da Escorts Unlimited.
O homem abriu a porta, sem demonstrar relutância, e Bolan entrou
— Que viemos fazer aqui? — indagou ele.
— Há um serviço que quero que você faça — disse Bolan. — Vai me
fornecer uma listagem completa do serviço de prostituição. Quero tudo: call
girls, prostitutas finas, mulheres de rua, tudo. E ande depressa.
— Sim, senhor — apressou-se a dizer o programador.
— Se apertar o botão errado, nunca mais programará coisa alguma neste
mundo. Mando-lhe uma bala no focinho. Se me fornecer o que quero, deixo-o
ir em paz. Entendido?
— Sim, senhor — repetiu o homem.
Vinte minutos depois, saíam pela porta dos fundos. Na mão de Bolan,
havia um grande envelope cheio de papel de computador.
— Isto fica somente entre nós dois — disse Bolan. — Se eu descobrir que
você mencionou a alguém este incidente, terá de ajustar contas comigo.
Entendeu?
— Entendi, sim, senhor — respondeu o programador num tom humilde.
Bolan deixou-o ah na calçada, entrou no carro e partiu. Na verdade, não
fazia muita diferença se o programador botasse ou não a boca no mundo. Mas,
depois que tivesse usado aquela listagem, mandá-la-ia pelo correio ao Tenente
Weatherbee. Talvez tivesse algum valor para a polícia, se chegasse a tempo.
Bolan consultou o relógio. Passava um pouco de uma hora da manhã. A noite
mal tinha começado. Torceu os lábios num sorriso amargo. Aquela ia ser uma
noite infernal.
***
Bolan atravessou um hall mal iluminado, parou diante de uma porta e
encostou o ouvido na madeira durante um segundo; em seguida, inclinou o
corpo na direção oposta e abriu a porta com um rápido pontapé. A cena que
divisou lá dentro lembrava uma foto pornográfica. Uma jovem bonita estava
nua, de quatro, em cima de uma cama desarrumada, colocada de través sobre
o colchão, as pernas e os pés apontados para fora do leito. Por trás dela, de pé,
um homem nu mexia vigorosamente as ancas, as mãos apertando os quadris
da mulher. Tanto ele quanto ela olharam espantados para Bolan, cuja intrusão
não chegou a fazer com que o homem interrompesse o violento exercício. A
cena parecia irreal, grotesca em sua crueza e silêncio. Bolan acercou-se do
homem, desferiu-lhe um forte soco no rosto, que o fez soltar a mulher e
cambalear para um dos cantos do quarto. Não sentia prazer nenhum em fazer
aquilo, mas lembrou-se mais uma vez de que não havia moralidade na guerra.
A mesma mão que separava o casal assestou uma sonora palmada no traseiro
exposto da mulher. Ela soltou um berro e tombou para a frente; depois,
encolheu-se a um canto do leito, dirigindo-lhe obscenidades. Seu ex-
companheiro de cama apanhou rapidamente as roupas numa cadeira e tratou
de dar o fora do quarto. No hall, uma porta abriu-se violentamente e um
moço, de cerca de 25 anos de idade, entrou correndo no quarto, com uma faca
na mão. Bolan tirou-lhe a faca e atirou-o violentamente de encontro à parede.
A mulher parou de gritar e pôs-se a olhar, abobalhada, a figura do moço
estatelado no chão. Bolan voltou-se para ela.
— Há outras garotas trabalhando aqui? — rosnou ele.
Ela abanou a cabeça, numa negativa enfática:
— As... as outras estão lá embaixo, no bar — exclamou ela.
— Veremos — disse Bolan.
Saiu do quarto e pôs-se a abrir todas as portas que davam para o corredor.
Eram seis quartos ao todo, sendo que somente o último estava ocupado. Havia
duas mulheres nuas na cama, como que formando um só corpo na confusão de
braços e pernas. Onde estavam as cabeças, ele não sabia.
— Não ouviram o barulho? — exclamou ele, agarrando-as e separando-as.
O rosto de uma mulher, de cerca de 45 anos de idade, mudou rapidamente
de expressão: o sorriso de prazer apagou-se e, em seu lugar, surgiu um ricto
de cólera.
— O que é isto? Saia já daqui! — exclamou ela.
— Qual de vocês duas é a prostituta? — perguntou Bolan, sorrindo.
A outra, mais jovem e de corpo benfeito, pôs-se lentamente de pé e olhou
para Bolan, assustada.
— Onde está o seu chicote? — disse ela.
— Aqui mesmo — respondeu Bolan calmamente.
Com a mão aberta, desferiu-lhe uma pancada no traseiro, fazendo-a
tombar sobre a cama. Em seguida, apanhou as roupas da mulher mais idosa e
foi empurrando-a para fora do quarto, dependurando-lhe as vestes em torno
do pescoço.
— É bom que saia daqui bem depressa — disse ele, crispando os lábios.
— Vim aqui fechar o estabelecimento.
A mulher pusera-se a chorar. Pôs-se a correr pelo hall e desapareceu na
porta, ainda nua. Bolan sorriu e retornou ao quarto que acabara de invadir. A
garota permanecia encolhida na cama, a coberta repuxada para cobrir-lhe o
corpo da cintura para baixo.
— Diga ao Leo que não gostei deste bordel — disse Bolan, atirando para
ela um disco de metal usado em exercícios de tiro ao alvo. — Não esqueça!
Em seguida, saiu e desceu silenciosamente a escada de serviço até a rua,
entrou no carro e partiu. Dez minutos depois, estacionou por trás de um
conjunto de casas residenciais consultou uma das listas que havia dentro do
envelope, sorriu e caminhou para a porta dos fundos. Voltou ao carro logo
depois, apanhou um pé de cabra que estava na mala, e retornou à porta
traseira da casa. Esta cedeu sob a ação de alavanca, e o Executor entrou.
Encontrou-se numa pequena área de serviço; através de uma portinhola de
vidro, podia ver a cozinha, e havia outra porta à direita. Lá dentro, o bacanal
estava em pleno andamento; o som do aparelho estava ligado no máximo, e as
vozes abafadas eram acompanhadas de gritinhos de prazer. Bolan atravessou a
porta da cozinha, tirou a pistola 45 do coldre, e imediatamente colidiu com
uma garota nua que, vagamente bêbada, estava debruçada ao tanque de roupa,
tentando extrair cubos de gelo de uma bandeja.
— Cuidado para não congelar esses seios — disse ele ao passar por ela.
— Não tem perigo — balbuciou ela, sem lhe dar maior atenção.
A sala de estar era espaçosa, ricamente ornada de tapetes orientais e
atopetada de carne humana, de uma parede a outra. Todos estavam espalhados
pelo chão, na penumbra, e um som de vozes animadas vinha do centro do
salão. Ninguém dava a mínima atenção a Bolan. Este retornou à cozinha,
deteve-se junto ao tanque o tempo suficiente para ajudar a loura a recolher os
cubos de gelo, recebeu um beijo de agradecimento, passou à área de serviço e
examinou os apetrechos que havia numa prateleira da lavanderia. Lembrou-se
de ter visto uma mangueira de jardim ao entrar; saiu, trouxe-a para dentro,
atarraxou-lhe a extremidade à torneira do tanque, dobrou a outra extremidade
para estancar a água, e abriu ao máximo a torneira de água fria; em seguida,
voltou à cozinha, e encaminhou-se para o salão, arrastando a mangueira atrás
de si. Chegou lá ainda a tempo de dar uma palmada no derrière da garota que
levava os cubos de gelo dentro de um balde de metal. Localizou o interruptor
da luz a um canto da parede, e iluminou inteiramente a sala. Ouviu-se um
murmúrio de insatisfação, e alguém reclamou em voz alta;
— O que houve com as luzes?
Bolan calculou que deviam estar ali umas trinta pessoas, todas nuas, todas
agarradas umas às outras de várias maneiras, numa enorme confusão de
corpos e membros. No centro, uma garota se pusera a gritar e gemer; Bolan
localizou-a com os olhos e verificou que ela era alvo de múltiplas atenções,
qualquer uma das quais seria, por si só, o bastante para produzir os gritinhos e
gemidos.
Outra pessoa exclamou um palavrão, protestando contra as luzes acesas.
Bolan abanou a cabeça, consternado, e gritou:
— De pé, todos vocês! O Executor está aqui!
Mesmo assim, somente três ou quatro ergueram a cabeça para vê-lo
melhor. Bolan soltou o fecho de segurança da pistola 45 e meteu uma bala no
aparelho de som, que emudeceu antes mesmo que cessasse o reverberar
ensurdecedor do disparo dentro da sala. Todos agora fitavam-no,
aparvalhados. Desfazendo a dobra da mangueira, Bolan banhou-os a todos
com um vigoroso jato de água fria, detestando-se por estar fazendo uma
maldade daquelas.
Os gritos e exclamações assumiram um tom diferente. Os homens
praguejavam e corriam de um lado para outro, enquanto as mulheres gritavam
histericamente. Bolan atirou a mangueira para dentro da sala, voltou à
cozinha, deu um abraço e um beijo na pequena do gelo, depositou-lhe sobre o
seio empinado um pequeno disco de metal, e saiu.
Bolan pretendia fazer uma última visita a mais um local elegante da
Máfia. Passava um pouco das duas e meia da manhã quando ele estacionou
sob o arvoredo, próximo a um palacete, nos arredores da cidade. Do assento
traseiro do carro, retirou três pequenos bujões, cada um deles do tamanho de
uma lata de ervilhas. Meteu-os nos bolsos e enveredou pelo mato, em direção
à casa. Viam-se luzes em todas as janelas, luzes mortiças e semi-ocultas pelas
cortinas. A julgar pelo número de automóveis estacionados no pátio, a noite
devia estar animada lá dentro. Ao aproximar-se, ouviu música e, de quando
em quando, um riso feminino. Caminhava cautelosamente, parando a cada
cinco passos para olhar em torno e escutar. Numa dessas paradas, ouviu duas
vozes masculinas, vindas de perto; um dos homens ria baixinho. Bolan
localizou-os facilmente e esgueirou-se pelas sombras, acercando-se deles. Os
dois estavam postados de costas para ele, a uns cinquenta metros da casa. Do
braço de cada um pendia uma carabina de cano curto; ambos pareciam muito
tranquilos. Um era corpulento e espadaúdo; o outro, de peso e altura
medianos, dizia:
— Esses caras são doidos. Eu jamais pagaria duzentos e cinquenta dólares
por uma festinha dessas.
— Ora, rapaz, duzentos e cinquenta, para eles, são como dois vinténs para
nós. E eu seria capaz de pagar dois vinténs para estar lá dentro.
— Pensei que o Leo ia vir — disse o outro, passando a arma para o outro
braço e metendo a mão no bolso.
Tirou de lá um cigarro e acendeu um fósforo, riscando-o contra a coronha
da arma.
— Eu não o vi por aqui, você viu?
O sujeito corpudo deu de ombros.
— Qual! Ele hoje não aparece, aposto. Não com o tal de Roupa Preta
andando solto por aí.
— Sabe? Teria grande prazer em enfiar esta carabina no traseiro do Leo.
Este troço é um bocado pesado.
— Então coloque-o no chão — disse uma voz baixa atrás deles. — Mas
com cuidado, muito cuidado. O primeiro ruído que fizer será o último.
Os dois entreolharam-se. O menor deles estendeu a arma para a frente e
abaixou-se, depondo-a no chão com a maior cautela. O outro, mais forte,
parecia disposto a debater o assunto.
— E quem é você para dar ordens? — disse ele, tomando o cuidado de
não olhar para trás.
— Vocês falavam de mim agora mesmo — disse Bolan. — De vez em
quando, costumo usar uma certa roupa preta.
— Como é que eu...?
O impacto de uma coronha de pistola 45 interrompeu-lhe a frase. Ele
dobrou os joelhos e caiu para a frente, enquanto um braço, vestido numa
manga negra, avançava para colher a espingarda. Com um gesto rápido, Bolan
quebrou a arma ao meio, sobre a coxa, e atirou-a ao chão. A ponta aguçada de
uma faca veio tocar de leve o pescoço do outro.
— Não tenho nada contra você, irmão — disse uma voz, baixa e
controlada. — Basta dar-me certos informes úteis, e poderá viver ainda muito
tempo.
Os lábios do homem entreabriram-se, mas de sua boca não saiu som
algum. Ele pigarreou e fez nova tentativa:
— Você é quem manda — balbuciou ele.
— Quantos guardas?
— Nós e mais dois, só mais dois.
— Espingardas?
— Sim. Devíamos ficar bem longe um do outro, ao invés de parar aqui
para bater papo — era evidente que estava disposto a falar. — Eu devia estar
lá na frente, enquanto Charlie ficava aqui. Charlie é o cara que você acaba de
derrubar. Matt fica postado lá atrás, e o Andy se encarrega do outro lado. Lá
dentro há mais dois caras, um em cima, no hall, o outro embaixo, junto à
porta de entrada. Não usam espingardas, só pistolas debaixo do braço.
— Para que tantos guardas num bordel só? — perguntou Bolan.
— Antes eram menos. Depois que você começou a atacar... — pelo tom
de voz, parecia esforçar-se para entrar nas graças de Bolan. — Você deixou os
caras assustados, eles até aumentaram nosso salário.
— E ofereceram um prêmio a quem me pegar?
— Claro, pô! Um prêmio e tanto. Cem mil pacotes.
— E você não quer ganhar o prêmio?
— Quem? Eu? — tornou a pigarrear. — Que é isso, cara? Não tenho nada
contra você. Upa, essa faca daqui a pouco me corta. Está quase me cortando,
pô!
— Então fique bem quietinho. Agora, diga-me...
— Harry.
— Hã?
— Meu nome é Harry.
— Diga-me, Harry, o que há por trás daquela janela grande, neste lado da
casa?
— Ah, aquilo ali... é uma espécie de bar. A gente empurra as paredes lá do
meio e elas se abrem para um salão do clube. No momento, as paredes estão
fechadas. Estão promovendo uma festinha lá dentro. Agora mesmo.
— Que tipo de festinha, Harry?
— Sabe, uma bruta farra.
— E o que há lá em cima.
— Quartos, só quartos. Ah, e também um corredor e uma sala de estar. O
guarda lá de cima fica a postos no corredor, à entrada da sala.
— E o que é que fica neste outro lado do salão, cá embaixo?
— Já lhe disse. O bar. Quando a gente empurra as paredes, vira tudo um
salão só.
— Quantas pessoas você diria que estão lá dentro, Harry?
— Bom, não sei direito. Enquanto eu estive lá na frente, contei trinta e
dois caras.
— Nenhuma garota?
— Claro, uma porção de garotas. Há as vinte e cinco que costumam
frequentar a casa, mais umas quinze de fora. Especiais.
— Especiais?
— É, contratadas especialmente para a festa. Elas fazem rodízio, indo de
uma festa para outra. São especialistas.
— Especialistas em quê?
— Em tudo quanto é coisa de sexo.
— Entendo. Obrigado, Harry. Você foi muito útil. Se eu verificar que me
deu alguma informação errada, volto aqui e o esfolo vivo.
— Não dei nenhuma informação errada.
— Veremos — disse o Executor.
Guardou a faca e imediatamente brandiu a coronha da pistola, logo abaixo
do ouvido do homem. O loquaz informante caiu para um lado, sem ruído.
Bolan apanhou-lhe a espingarda, certificou-se de que estava carregada e
pronta para atirar, e levou-a consigo na direção da janela que mencionara a
Harry. Tirou do bolso um dos bujões e deixou-o cair ao chão. Em seguida,
desferiu uma forte pancada contra os vidros da janela e pulou para trás, para
desviar-se do vidro partido. As vidraças desintegraram-se com grande
estardalhaço. Bolan empurrou para dentro o cano da arma, apontou-a para o
teto e puxou os dois gatilhos. O estrondo deve ter soado como um sinal do fim
do mundo para os que estavam lá dentro. Bolan apanhou o bujão, puxou um
pino que havia no bocal e, afastando novamente a cortina, arremessou-o lá
dentro. Um grosso rolo de fumaça negra veio lá de dentro, pondo-se a subir
entre a cortina e a moldura da janela. Fez-se um pandemônio no interior da
casa, enquanto Bolan voltava para junto dos dois guardas estendidos no chão.
Recarregou a espingarda, exatamente quando um homem apareceu, vindo dos
fundos do prédio. Bolan apontou a arma em sua direção e apertou o gatilho. O
homem deu um salto no ar, como um boneco de pano, atingido em cheio no
peito. Bolan voltou-se ao ouvir passos na direção oposta, e puxou o outro
gatilho. Desta vez, a vítima tombou, levando as mãos ao ventre dilacerado.
Bolan atirou de lado a espingarda, agora inútil, e empunhou a pistola 45, no
instante em que se abria uma janela no andar superior da casa e um homem
inclinava-se para fora, com uma arma na mão, o vulto bem visível contra a luz
intensa do fundo.
A pistola 45 do Executor apontou para ele e explodiu uma só vez. A
cabeça do homem foi arremessada para trás, e ele tombou para dentro. Bolan
atingiu rapidamente a porta da frente, no instante em que outro homem, de
arma pronta para entrar em ação, arremetia pela varanda, disparando em sua
direção enquanto corria. Bolan apoiou um joelho no chão, o dedo do gatilho
trabalhando automaticamente para disparar dois tiros; o homem parou de
atirar, parou de correr e estatelou-se no chão. Bolan tornou a aproximar-se da
casa e atirou outra bomba de fumaça através de uma janela aberta lá em cima;
deixou cair no soalho a terceira bomba e afastou-se, evitando os rolos de
fumaça que cresciam rapidamente.
Voltou ao carro, deu a volta na estrada e rumou para South Hills. O
prelúdio de pequenas escaramuças tinha terminado. Agora, era a hora do
ataque principal. Esperava somente não ter-se demorado demais no prelúdio.
5. A Reunião
— Pô, o cara endoidou novamente! — exclamou Plasky, entrando
tempestuosamente no quarto de Sérgio. — O Leo está vindo para cá e...
— Um momento, um momento! — disse o velho. — Acalme-se, homem.
Fez um gesto para o guarda-costas, que inclinou a cabeça, como quem
entendia, e foi apanhar o telefone interno da pequena antessala. Sérgio,
sentado à beira da cama, voltou sua atenção para Plasky:
— Fale, Nathan. O que houve?
— O Bolan atacou novamente — respondeu Plasky, espaçando bem as
palavras, obviamente aborrecido por não ter recebido atenção imediata. —
Fez o diabo em três casas do Leo em menos de uma hora e matou quatro
guardas que estavam a serviço em Meadows. O Leo está vindo para cá neste
momento, trazendo Walt.
— Era exatamente isto que estávamos esperando, não? — respondeu
Sérgio calmamente, com um sorriso.
— Sim, mas... você vai ficar aí sentado?
— Preferia-me ver subindo pelas paredes?
— Pombas, Sérgio, precisamos mandar cercar a casa, colocar os homens a
postos...
— Terry está dando ordens neste sentido agora mesmo — disse Sérgio,
com um olhar para o guarda-costas que falava ao telefone na antessala. —
Agora, fique quieto e controle-se. Vá até a sala de reuniões e veja se está tudo
preparado, hã?
Plasky assentiu nervosamente:
— Claro, claro, Sérgio. Deixe comigo.
Retirou-se, passando pelo guarda que ainda dava ordens pelo telefone, e
caminhou pelo corredor até o grande salão, próximo ao patamar da escada que
levava ao andar inferior.
A mesa de reuniões estava pronta, as cadeiras em seus lugares — todas
ocupadas. Plasky esboçou um sorriso nervoso, satisfeito com a
meticulosidade com que tudo fora arranjado. Corrigiu a posição do braço de
um dos manequins e aproximou-lhe um pouco mais da mão a garrafa de
vinho. Caminhou em torno da mesa, examinando tudo com atenção, as mãos
cruzadas às costas, como um orgulhoso diretor teatral; em seguida, deteve-se
junto à janela para inspecionar a posição da nova cortina, de tecido fino,
recém-instalada após o conserto da janela. Caminhou lentamente pela sala,
verificando a iluminação, tornando a examinar cada detalhe, e imaginando
como aquela cena seria vista, no escuro, através de uma mira telescópica a um
quilômetro de distância. Depois, apertou um botão de um aparelho,
apressadamente instalado a um canto, destinado a iluminar a cena,
alternadamente, de várias posições, de modo a ir mudando a projeção de
sombras na cortina da janela. Plasky sorriu por dentro ao observar a perfeição
com que a sombra de um braço atingia a cortina, uma cabeça parecia inclinar-
se para a frente e um corpo dava a impressão de recostar-se à mesa.
Teve ganas de ver tudo aquilo de novo lá de fora. Saiu da sala, desceu as
escadarias e saiu para o pátio, onde assentou-se a um pequeno muro, os olhos
voltados para a janela do segundo andar. Perfeito, perfeito. Seria capaz de
jurar que havia gente lá dentro, que uma reunião do conselho estava sendo
realizada. Plasky grunhiu de satisfação, e pôs-se a andar de um lado para o
outro, sobre as lajes do pátio, à espera do grande momento, da recepção que a
Família reservara ao maior celerado de todos os tempos.

***
Walt Seymour estava a ponto de explodir de impaciência.
— Como vamos saber que ele não vai atacar South Hills hoje à noite? —
indagou ele, nervoso, olhando o rosto de Turrin à luz mortiça do painel do
carro.
Turrin sorriu, enquanto manobrava o carro, abandonando a pista de alta
velocidade e metendo-se por uma saída à direita, que o levaria até o bairro
elegante ali perto.
— É o que a polícia chama de modus operandi — disse ele. — Bolan não
está interessado em fechar nossos bordéis, ele só quer nos perturbar. A coisa
deu certo uma vez, e ele espera que dê certo de novo. Ele ataca, entende? e faz
o diabo em dois ou três locais para nos forçar a convocar uma reunião. Assim,
espera nos pegar a todos reunidos e nos matar como quem mata ratos dentro
de um barril. Este é o momento que estávamos esperando, Walt.
— Gostaria de saber onde ele esteve esse tempo todo.
Turrin franziu as sobrancelhas:
— Bem... acho que andou tratando dos ferimentos. Tenho certeza de que a
Angelina o acertou naquela noite. — E, num tom sombrio: — Mas, sabe...
pelo que aconteceu hoje à noite, acho que ele não ficou muito ferido.
— Provavelmente está esperando por nós — disse Seymour, visivelmente
agitado. — É bem capaz de estar escondido lá, em algum canto, à nossa
espreita — um tremor percorreu-lhe a espinha. — Com aquele rifle dele.
Aquelas miras são boas mesmo, Leo? Você esteve no Exército, deve saber.
— São boas demais — respondeu Turrin. — Dão para você enxergar até
um piolho na cabeça de uma mosca a mil e quinhentos metros.
Seymour explodiu num riso nervoso.
— Piolho de mosca! Essa é muito boa!
Turrin sorriu, e Seymour continuou a rir baixinho durante algum tempo,
enquanto se lhe dissipava a tensão nervosa. Finalmente:
— Se aquele cara cometer a tolice de nos atacar novamente — comentou
ele — vamos pegá-lo de uma vez por todas.
— Acho que sim — concordou Turrin.
Mas havia um ar soturno em seu rosto, e ele ainda franzia as sobrancelhas
ao cruzar o portão da mansão de Sérgio Franchi.
***
Bolan parou o carro perto de um telefone público, num local escuro junto
a um posto de gasolina, deixou cair um níquel lá dentro e discou um número.
Antes que terminasse o primeiro toque de campainha, alguém do outro lado
atendeu.
— Alô — disse uma voz trêmula de mulher.
— Quem está falando aqui é o seu último inquilino
— Mack! Oh, Mack! Está tudo bem?
— Tudo bem — disse ele. — Mas a noite ainda é jovem. Estou
telefonando somente para dar sinal de vida. É possível que tenha muito o que
fazer antes do dia clarear. Você... estava esperando meu telefonema?
A resposta veio numa torrente de palavras:
— Mack, eu só voltarei a dormir quando tiver você ao meu lado, tentei,
tentei, mas não consigo me ajeitar na cama. Não... estou acordada, no sofá...
Oh, Mack, não deixe que lhe aconteça alguma coisa.
— Se acontecer, não estava em meus planos — disse ele, procurando
tranquilizá-la. — Eu... sabe, Val, sempre há uma possibilidade de que algo dê
errado. Esqueci de lhe falar acerca do dinheiro. Está numa bolsa de couro, na
prateleira de cima do armário do seu quarto. Se acontecer alguma coisa...
— Não quero saber dessa porcaria de dinheiro! — exclamou ela.
— Escute, escute. Se acontecer alguma coisa, quero que você fique com o
dinheiro. Estou falando sério. É a herança que lhe deixo. Esse dinheiro é tão
meu quanto de qualquer outra pessoa.
— Mack, você trate de voltar para mim. Tem de voltar!
— Desculpe estar falando nessas coisas — disse ele, meio desajeitado. —
Sabe... tenho um irmão caçula. Você já ouviu falar nele. Ele também poderia
usar parte do dinheiro e...
— Mack, se você não parar, vou começar a gritar!
— Não faça isso — atalhou ele. — Não se preocupe, tudo sairá bem.
Achei que devia mencionar o assunto, no caso de...
— Quero você — disse ela, soluçando. — Desista disso, Mack. Volte para
cá. Volte agora mesmo.
— Val, não torne as coisas mais difíceis para mim — disse ele. — Você
sabe o que eu preciso fazer.
Ela procurou controlar-se:
— Está bem. Procurarei ser corajosa. Assim está melhor?
— Bem melhor. Agora, seja boazinha e vá deitar-se. Quero encontrá-la
bonita e descansada quando chegar em casa.
— Vou tentar.
— Eu amo você, Val.
— Oh, Mack, eu estou louca por você!
— É maravilhoso, não?
— É ótimo, querido.
— Bem... tenho de voltar ao trabalho. Mantenha-se calma.
— Prometo. Ficarei calma. Você também. E Mack...
— Sim?
— Não me importa quantas pessoas você tenha de matar. Trate de voltar
para mim.
— Voltarei — disse ele, sorrindo.
Desligou, e o sorriso desfez-se, enquanto ele mirava em silêncio o
telefone. Estranho, pensou ele, como as coisas acontecem de repente, sempre
no momento errado. Agora, que tinha tanto motivo para viver, estava
enfrentando a hora mais perigosa de toda a sua existência. Suspirou e repetiu
consigo mesmo: "Voltarei, Val".
Em seguida, afastou-se em direção ao carro. Ligou o motor e partiu. O
Executor tinha de comparecer a uma reunião.
***
O Tenente Al Weatherbee, da polícia metropolitana, apanhou
sonolentamente a garrafa térmica e o pacote de sanduíches e caminhou para a
garagem da polícia, seguido por um jovem sargento chamado John Pappas.
— A crer em nosso informante — disse ele, num tom cansado — a coisa
vai acontecer hoje à noite, Johnny.
— Você disse que ele atacou três bordéis hoje? — indagou Pappas,
sorrindo.
— É verdade, e não sei por que isso o deixa tão feliz. Esse cara está
deixando a polícia em má situação, sabe?
Saltaram do elevador e pararam à saída da garagem, enquanto meia dúzia
de automóveis da polícia arremetiam, roncando, rampa acima até a rua. Em
seguida, ocuparam o veículo usado pelo tenente para patrulha. Pappas sentou-
se no lugar do motorista e voltou-se para apanhar o pacote e a garrafa térmica
das mãos de Weatherbee.
— Pretende comer tudo isso numa noite só? — indagou ele.
— Cá entre nós, acho que os dois seremos capazes de consumir tudo isso
— respondeu o tenente. — Vai ser uma noite comprida, Johnny.
— Já são três da manhã, e eu comi às duas.
— O café da manhã pode demorar.
Weatherbee acomodou-se no assento e fez um gesto ao companheiro. O
carro subiu a rampa.
— Quantas unidades foram destacadas? — disse Pappas, como se
estivesse pensando em voz alta.
— Haverá uma dúzia de carros nos arredores, oito diretamente sob nosso
comando, os outros quatro de reserva. O xerife também vai cooperar conosco
hoje à noite. Prometeu colocar pelo menos dez homens próximo ao barranco
da estrada, e talvez algumas unidades da polícia montada. Creio que é
suficiente para cercar nosso homem. Se ele aparecer, e penso que aparecerá,
não vejo como vai escapar desta vez. A não ser que... — Weatherbee coçou o
queixo, pensativo, e sorriu. — A não ser que ele seja mesmo um fantasma,
como dizem os jornais.
Atingiram a estrada de asfalto. Pappas ligou o pisca-pisca de alarme, e
levou o carro para a pista da esquerda, acelerando aos poucos, até passar dos
oitenta.
— Mas não precisa tanta pressa assim, Johnny — disse Weatherbee.
— Nunca se sabe — respondeu Pappas, lançando um olhar de satisfação
ao superior. — E eu não quero perder o espetáculo de hoje.
O tenente suspirou, tornou a coçar o queixo, e murmurou em voz baixa:
— E ele os reuniu num lugar que em hebraico se chama Har-Magedon.
— Como? — disse Pappas, olhando-o de relance mais uma vez.
— Está no Apocalipse — disse Weatherbee. — É uma frase que me
pareceu adequada ao que está acontecendo hoje à noite.
Pappas estremeceu involuntariamente e apertou com mais força o volante.
— Har-Magedon — repetiu ele, pensativo. — É uma espécie de inferno,
não?
— Não — disse Weatherbee, segurando-se, por cautela, à maçaneta da
porta do carro. — É o lugar onde deverá ser travada a batalha final entre as
forças de... Jesus, Johnny, dirija com mais cuidado, sim?
Pappas ziguezagueara entre dois veículos que seguiam a baixa velocidade,
fazendo com que o tenente se agachasse, alarmado, praguejando entre os
dentes.
— Que forças? — indagou ele, ignorando a queixa de Weatherbee.
— As forças do bem e do mal. Pombas, e esta estrada vai ser o nosso Har-
Magedon se você não dirigir mais devagar. Estou lhe dizendo, Johnny! Isto é
uma ordem!
Relutantemente, Pappas afrouxou um pouco o pé sobre o acelerador.
— Estou somente querendo chegar lá mais depressa. Não quero ficar de
fora do Har-Magedon.
— Espero que você não esqueça de que disse isso — resmungou
Weatherbee.

6. O Morro da Execução
O Executor estacionara o carro num local cuidadosamente escolhido, atrás
de uma moita cerrada, próximo à crista de uma pequena colina arborizada de
onde podia avistar a casa de Sérgio Franchi, e estava fazendo a quinta viagem
desde o carro até sua "casamata" na encosta do morro. O "Mono da
Execução", como ele o chamava agora, era praticamente desabitado, com
somente duas ou três residências em toda a elevação, sendo que, na encosta
onde ele se encontrava, não havia edificação alguma Ainda assim, detectara
vários sons de vozes em suas idas e vindas do carro até sua posição de
combate, e ruídos distantes de passos; em uma das vezes, um homem
praguejava violentamente; noutra, um sujeito a cavalo havia-lhe cruzado o
caminho a uns trinta metros de distância, o cavalo escorregando e
resfolegando na encosta íngreme, enquanto o homem lhe dirigia palavrinhas
de encorajamento.
O Executor agia com a maior cautela, mas havia um bocado de
equipamento a transportar, e ele decidiu levar a cabo seus planos apesar do
óbvio policiamento em torno de sua posição. Escolhera uma pequena
reentrância na encosta, sob uma formação rochosa, com uma inclinação de
cerca de trinta graus para o leste e situada a uns dez degraus acima da casa de
Franchi, bem oculta pelos galhos que pendiam de um pinheiro próximo Havia
calculado antes a trajetória dos tiros, à base de um alcance de cerca de
quinhentos metros. Agora, com um telêmetro do Exército, conferiu seus
cálculos e verificou que havia acertado quase em cheio. Corrigiu a alça de
mira para 530 metros e, consultando o gráfico que traçara para o Marlin,
decidiu que teria de apontar cerca de quinze polegadas acima do alvo, a fim
de compensar a queda da trajetória. Fez cálculos semelhantes para as outras
armas que havia "confiscado" do armazém, dedicou outros quinze minutos
para fazer as "marcações" e ajustes e, em seguida, acendeu um cigarro,
ocultando cuidadosamente a chama na concha da mão.
Enquanto fumava, cedeu ao velho hábito que tinha de fazer anotações
num livrinho de capa de couro preto. Feito isto, levantou-se e tratou de livrar-
se de qualquer acessório ou peso desnecessário, deixando à cinta somente a
pistola 45 e a faca, chegando mesmo a retirar dos bolsos da calça a munição
sobressalente da pistola. Finalmente, esgueirou-se em volta, fazendo um
último reconhecimento do local.
Weatherbee lhe dissera que a Família estava à espera de que ele atacasse
novamente. Isto só podia significar um contra-ataque planejado, que teria de
ser altamente pessoal e concentrado para que tivesse sucesso. Bolan não se
sentia desmedidamente preocupado, a não ser que o exército convocado pela
Máfia fosse composto de veteranos de alguma guerra recente. Pintara o rosto
de preto, e até o tempo parecia estar do seu lado: uma grossa formação de
nuvens cobria o céu, tornando a noite ainda mais escura. As nuvens, porém,
não eram uniformes, interrompendo-se aqui e ali; e Bolan abrigou-se sob os
galhos do pinheiro quando a luz do céu penetrou por uma dessas brechas,
deixando passar um tênue clarão que, por um instante, iluminou os detalhes
do terreno. Enquanto aguardava, imóvel e retendo a respiração, percebeu a
chama de um fósforo a alguns metros de distância, encosta acima, e sentiu
claramente o cheiro da fumaça de um cigarro. A treva da noite havia descido
novamente, e Bolan avançou lentamente pela encosta, visando a brasa do
cigarro que brilhava na escuridão. Fez a volta para atacar de cima e por trás,
postando-se a poucos metros do fumante. O homem estava só, de costas para
Bolan, assentado a uma pedra e ligeiramente inclinado para a frente. Bolan
desembainhou a faca, apanhou um graveto do chão e arremessou-o para o ar,
por cima da cabeça do homem. O graveto colidiu com alguma árvore, e o
homem ergueu o corpo, alerta.
— Hank? — disse ele em voz baixa.
Bolan arremeteu sobre ele, prendendo-lhe o pescoço com um dos braços,
a faca descrevendo um arco rápido em direção ao peito do homem. O corpo
cedeu, um rifle escorregou para o chão e deslizou até uma moita logo abaixo,
e Bolan depositou sua vítima no chão, evitando qualquer ruído. Apagou o
cigarro que havia caído ao seu lado e tornou a descer para sua posição inicial,
prosseguindo em sua missão de busca e destruição.
Os homens da polícia montada, que patrulhava o pé do morro, fazendo
grande ruído com os cavalos, não o preocupavam muito, mas não podia
permitir a presença de sentinelas inimigas no Morro da Execução. O plano de
assalto que tinha em mente, uma vez posto em ação, não lhe dava muita
mobilidade; o local, portanto, devia estar em perfeitas condições de segurança
antes que o primeiro tiro fosse disparado. Os ouvidos treinados captaram
outro ruído, vindo da direita, e ele esgueirou-se para lá, fundindo-se na treva,
como um mensageiro da morte súbita e silenciosa.
As linhas a seguir foram redigidas por Bolan naquela noite, em seu
pequeno diário:
Acho que a principal diferença entre eu e a maioria das pessoas
é que não fujo ao desafio que a vida representa, e acho impossível
não fazer o que deve ser feito. Não posso deixar a outros a tarefa de
matar por mim, de manchar as mãos de sangue por minha causa,
nem de ir a julgamento em meu lugar. Se é preciso lutar, eu próprio
vou lutar. Se algum sangue tiver de ser derramado, eu mesmo o
derramarei. Se alguém tem de ser julgado por isso, eu mesmo serei
julgado. Acho que não sou verdadeiramente civilizado. Talvez
esteja vivendo no passado, em outro lugar, fiel a outros ideais. Mas
de uma coisa estou certo: se estou vivo hoje a noite, isto se deve à
violência que reina na terra. Cada batida do meu coração se deve a
coisas que estiveram vivas e que foram mastigadas e digeridas. A
violência é o modo de vida deste mundo, porque a concorrência é a
forma de perpetuar a vida. Sem violência não pode haver
competição, e sem competição não pode haver vida. Para cada coisa
que vive há outra que está morrendo.
Ocorre-me que posso estar sendo mórbido — e por que não? A
própria vida é uma coisa mórbida. Toda espécie de vida brota do
canteiro da morte; cada corpo é um monumento vivo erigido em
honra da morte e é, ele próprio, um cemitério ambulante. A vida é
assim, até mesmo — ou melhor, principalmente — numa
civilização. Mas, numa civilização, os carrascos são previamente
designados, para bem ou para mal. Se eu próprio me designei
executor, isso não altera minhas responsabilidades.
Valentina, que Deus a proteja, morreria se tivesse de matar um
novilho — no entanto, delicada como é, gosta de comer seus
churrascos. Um executor de novilhos foi nomeado em lugar de
Valentina, um executor encarregado de matar os novilhos que
fornecem os filés que chegam à mesa de Valentina.
Valentina, que Deus a proteja, sente enorme repulsa e
indignação ante o mal cometido nesta terra por homens da espécie
destes mafiosos, mas seria capaz de submeter-se a qualquer
violência, até mesmo à violência final da morte, antes de empunhar
uma arma e procurar acabar com o mal. Um executor de homens
maus foi nomeado no lugar de Valentina — no lugar de todas as
Valentinas. Eu próprio me encarreguei de nomear-me a mim
mesmo, e não posso fugir às responsabilidades do meu cargo.
A vida é uma competição, e eu sou um competidor. Tenho os
instrumentos e sei manejá-los, e devo aceitar as responsabilidades.
Travarei minha batalha, derramarei sangue, sujar-me-ei com esse
sangue, e serei arrastado ao tribunal para ser esmagado e mastigado
e ingerido por aqueles aos quais servi. O mundo é assim. Não há
saída. Estejam prontos, mafiosos: o Executor chegou.

7. Grito de Guerra
Sérgio Franchi, sem dúvida, gostava de uma boa refrega. Os olhos idosos
brilhavam de impaciência, e ele parecia transmitir aos outros o seu
entusiasmo. Toda a Família da região estava presente, incluindo um bom
número de cidadãos supostamente respeitáveis. Quase todos os ramos do
comércio e de profissões liberais estavam representados naquela reunião.
Havia banqueiros, advogados, um médico, contadores, executivos de
companhias de seguros, dois eminentes professores — todos em meio a
magnatas de jogos de azar, politiqueiros e malfeitores de todos os matizes.
Era a primeira reunião geral à qual Leo Turrin tinha o privilégio de
comparecer. A quantidade e o gabarito de grande parte dos presentes o
impressionava. Leo acercou-se de Nat Plasky para dizer:
— Não estou entendendo. Para que reunir todo o mundo a uma hora
destas?
O próprio Sérgio respondeu à pergunta, como se esperasse por ela,
erguendo os braços para pedir um pouco de silêncio.
— Quando a Família está em dificuldades — disse ele — toda a Família
se reúne — sorriu e olhou em volta do salão. — Além disso, muitos de vocês
jamais tiveram de enfrentar uma verdadeira ameaça. Vocês perderam a fibra.
Vejam essas unhas bem cuidadas, esses charutos de dois dólares. Como
pensam que conseguiram todo esse conforto e segurança, hã? Conseguiram-
no porque homens como eu, que nunca tiveram tempo de descansar e fazer as
unhas e fumar um bom charuto, estávamos na luta, cavando a vida e
trabalhando enquanto vocês ainda estavam na barriga da mamãe.
— Vamos ouvir uma lição de moral — sussurrou Seymour.
Sérgio prosseguia:
— Vocês não têm ideia do que seja levar um tiro, e...
— Quem disse que eu nao tenho? — gracejou Plasky.
— ...e talvez seja verdade o que andam dizendo a respeito da organização,
hã? Talvez estejamos mesmo ficando frouxos por causa desses negócios
legais em que andamos nos metendo. Não esqueçam a origem de todo o nosso
dinheiro! Não esqueçam que foram esses primeiros dólares sujos que nos
levaram ao ponto em que chegamos! Ouçam! — e estendendo o braço num
gesto dramático para um pequeno grupo assentado à sua direita: — Estou
sabendo que há, entre nós, certos elementos que veem com desprezo homens
como estes. Leopold, por exemplo, com suas casas de mulheres. Algum dos
cavalheiros faz ideia de quantos milhões rendeu o negócio de Leo este ano,
até agora? Hã? Pois é coisa para meter num chinelo qualquer um de vocês!
Estão ouvindo? Num chinelo! — com o dedo em riste, apontou para um
homem bem vestido, à sua esquerda. — Você, Scali, de onde você pensa que
vieram aqueles cinco milhões de que precisou para reforçar suas reservas da
companhia de seguros, há? Do céu? — E, vibrando o dedo na direção do
executivo: — Vieram de bordéis, está ouvindo? E como é que vocês pensam
que mantemos as garotas trabalhando nesses bordéis? Através de nossos
contatos na Câmara de Comércio? Hã? Vou lhes dizer uma coisa: vocês todos
perderam a fibra! E eu...
— Há muito tempo eu não o via levantar tanto a voz — murmurou
Seymour.
— Quisera que ele a diminuísse um pouco — disse Turrin, inquieto, sem
tirar os olhos do imponente e velho guerreiro que esbravejava à cabeceira da
mesa. — Nos tempos antigos, deve ter sido um cara e tanto!
— Conseguiu sobreviver, não? — disse Seymour. — E vai sobreviver à
esta outra batalha. Alguém quer apostar?
— Nem um tostão — disse Plasky, em voz baixa.
— Ali, perto da porta, temos uma fileira de armas — continuava Sérgio.
— A maioria de vocês provavelmente nem chegará a disparar um tiro, mas é
melhor que cada um pegue a sua ao sair desta sala. Não se exponham,
mantenham-se abaixados e não façam tolice. A verdadeira sala de reuniões, lá
em cima, foi arrumada para fingir que estamos lá. Ninguém se exponha até
que ele comece a disparar, e mesmo assim só atirem se estiverem vendo em
quem. Pelo amor de Deus, não vão atirar uns nos outros! E outra coisa:
quando...
Sérgio prosseguiu em seu sermão durante outros cinco minutos, para
depois permitir que seus ouvintes se retirassem. Estes saíram em grupos de
três e quatro, alguns fazendo piadas ante à enorme quantidade de pistolas
penduradas na parede. Turrin foi ficando para trás, na esperança de trocar
algumas palavras com o "papai" Sérgio. Plasky e Seymour saíram com os
outros, Seymour inicialmente olhando para trás, a ver se Turrin o seguia,
depois desistindo.
Sérgio reteve o braço de Turrin.
— Tudo como nos velhos tempos, Leopold. Quisera que o seu tio Augusto
estivesse conosco!
— Seria ótimo — disse Turrin, sorrindo. — Eu... andei pensando... a
respeito daquele morro que fica do outro lado do barranco. Temos homens a
postos ali?
O velho sorria, com ar matreiro.
— Não, ali não, Leopold. Não se preocupe. Sérgio está pronto para o
combate.
— Estive pensando — insistiu Turrin. — Esse cara é militar, como sabe.
Raciocina como militar, e eu estive pensando...
Sérgio deu-lhe umas palmadinhas afetuosas no braço:
— Não se preocupe com aquele militar — disse ele, magnânimo. —
Sérgio também já andou metido em várias guerras.
— Gostaria de ir até lá e dar uma olhada — disse Turrin.
— Ah, é? — Sérgio arqueou as sobrancelhas. — Você quer ir lá sozinho
para tentar achar aquele sujeito no escuro, hã?
— Exatamente — disse Turrin, procurando desviar os olhos daquele olhar
perscrutador. — Apesar de todo o armamento que temos aqui, ele ainda pode
escapar. Eu gostaria de ir até lá e cortar-lhe a retirada.
— Por que está tão certo que ele atacará daquele morro? — disse Sérgio,
em tom de brincadeira.
— Já disse: ele raciocina como um militar. Eu também.
O velho riu:
— Você é um bom militar, Leopold, e um bom mafioso. Certo, certo, vá
até lá e pegue esse tal de Bolan sozinho. Acredito que você seja capaz.
Ainda sem saber se o velho estava falando sério ou gracejando, Turrin
decidiu aceitar aquelas palavras como uma decisão final. Deixou-o, subiu as
escadas para o andar térreo, correu para o estacionamento e saiu a plena
velocidade em direção ao portão.
— Para onde vai o Leo? — indagou alguém, ouvindo o cantar de pneus lá
fora.
Sérgio permaneceu de costas para a parede, os braços cruzados sobre o
peito, sorrindo.
— Foi buscar o leão na toca e trazê-lo para cá — disse ele, com um tom
de orgulho. E acrescentou, em voz baixa: — Assim espero.
***
O alto-falante soltou um estalido e uma voz tensa anunciou:
— Há um carro saindo em disparada da casa dos Franchi.
Weatherbee apanhou o microfone e disse:
— Deixe-o passar. Nenhuma unidade abandone seu posto antes que eu dê
ordem.
— O que acha que está acontecendo? — indagou Pappas.
— Uma porção de coisas — resmungou Weatherbee. — Daria um bom
dinheiro para poder estar lá dentro, olhando aquelas caras. Aposto que veria
uma porção de expressões interessantes.
— De onde acha que Bolan vai atacar?
— Boa pergunta. É como querer adivinhar se o centroavante vai chutar
com a direita ou com a esquerda. Para ser franco, não invejo essa turma da
Máfia. São forçados a esperar que Bolan ataque primeiro, sem saber ao certo
como vão reagir nem de onde. No caso do Bolan, é como ficar à espera de um
ataque nuclear.
Pappas sorriu:
— Bem, é bom que a Máfia se acostume a esse novo papel. Parece que
alguém virou a mesa, não?
— É... Que horas são?
— Três e quarenta.
— Viu? Eu lhe disse que a noite ia ser comprida. Quer um sanduíche?
Pappas abanou a cabeça, numa negativa vigorosa:
— No momento, eu não seria capaz de comer nem um canapé de caviar.
— Nervoso?
— Diria que sim. Já estive em muitas batidas antes, mas esta...
— É que nesta você está torcendo pelo cara errado, não?
Pappas não respondeu; ao invés disso, acendeu um cigarro.
— Não é isso? — insistiu Weatherbee.
— É, pombas, e daí? Admiro aquele sujeito.
— Não precisa ficar acanhado, Johnny. Eu também. Só espero que ele não
dispare contra a polícia ao tentar escapar do cerco.
— E por que pergunta então se eu estou nervoso? — disse Pappas, rindo.
— Não podemos nos deixar levar por sentimentalismos, Johnny.
— Sei disso.
— Um policial sentimental é um policial morto.
— Pombas, também sei disso.
— A ordem é atirar para matar.
— Sei disso também!
Weatherbee esboçou um sorriso pesaroso:
— Pois então não esqueça — acrescentou ele.
8. O Grande Golpe
O Executor verificou seu equipamento pela última vez e ensaiou
mentalmente a sequência de eventos, para depois voltar a estudar o alvo
através da luneta. Fazia agora meia hora que aquela gente repetia exatamente
a mesma sequência de movimentos, a julgar pelas sombras que ele via
projetadas na cortina da janela. Ou estavam rezando, ou celebrando algum rito
estranho, ou então...
Manteve os olhos na luneta, afastando-os somente para consultar o relógio
de pulso, e pôs-se a cronometrar o que via. Um — o cara à cabeceira da mesa
ergue o braço no mesmo instante em que o outro se debruça... dois — três
segundos depois, alguém atravessa a sala lá nos fundos... três — cinco
segundos, e o braço se abaixa, o outro cara se endireita... quatro — três
segundos, e o sujeito que atravessou a sala passa na direção oposta... cinco —
cinco segundos e...
Bolan estudou os movimentos daquelas sombras durante cinco minutos;
depois sorriu e tratou de ocupar-se com outras coisas. Bem bolado, não podia
negar, muito bem bolado — mas, agora, onde realmente estava sendo
realizada a reunião? Além daquela janela lá de cima, mal se via outra luz na
casa. As poucas que podia avistar eram todas no andar térreo.
Conseguia ver um dos cantos do estacionamento; e, enquanto observava,
um automóvel atravessou rapidamente seu campo de visão. Bolan seguiu-o,
viu os faróis acesos em luz alta e o carro descer a alameda rumo ao portão.
Indagou-se o que estaria havendo, mas voltou a inspecionar a casa. No
telhado, não podia ver nada, a não ser o vago perfil das telhas de encontro ao
céu. Voltou a luneta para o andar térreo, e divisou o vulto de um homem de pé
no pátio, junto a um muro baixo, parcialmente oculto nas sombras. O homem
mexeu-se, esfregando o ombro com alguma coisa. Uma pistola — o homem
estava esfregando o ombro com o cano da pistola. Perfeito idiota. Que tipo de
gente se havia reunido ali — um bando de idiotas? Percorreu a parede com a
luneta, procurando outros sinais de vida. Uma porta se abriu de repente, e um
jorro de luz forte fez reluzir as lajes do pátio; quase em seguida, a porta
fechou-se apressadamente. Manteve a luneta no mesmo lugar e, dali a pouco,
viu abrir-se a porta novamente — desta vez sem o jorro de luz — e dois
homens correrem na direção de uns degraus próximos a uma das esquinas da
casa. Bolan sorriu. Eles estavam aprendendo — mas muito devagar. Os
homens desapareceram nas trevas, e Bolan indagou-se mais uma vez o que
haveria lá em cima, próximo ao teto.
Bolan consultou o relógio e esperou. Havia planejado uma sequência
cronológica, e preferia ater-se ao programa. Seria dali a alguns minutos.
Pensou em Valentina, pensou na mãe e no pai, em Johnny — o irmão caçula
que ele mal conhecera e que, agora, jamais viria a conhecer — em Cindy, a
quem ele julgara conhecer melhor do que ninguém, sem realmente a
conhecer...
Um minuto para começar. Prometera a Val que voltaria. Promessa vã, que
ele sabia não poder cumprir. Bolan era um soldado — conhecia o risco que
corre um soldado, sabia a pouca chance que tinha de sair dali vivo. Havia
policiais por toda parte, talvez até com cães. Se a Máfia não o pegasse, a
polícia o pegaria. Doce Val. Garota carinhosa, terna, apaixonada — que
guardara seu amor durante tanto tempo para entregá-lo a um homem
condenado a morrer. Triste, não?
Deixou de lado a tristeza e acercou-se do longo objeto em forma de cano,
fixado ao lado do telêmetro; verificou mais uma vez os cálculos de trajetória e
iniciou a contagem final. O longo tubo explodiu, expelindo um projétil que
cruzou os ares com um silvo maligno. O grande ataque começara.
***
— Nossa mãe! — gritou Pappas. O que foi isso? De onde veio?
— Algum tipo de foguete — gritou Weatherbee.
O projétil havia cruzado o ar, com um ronco alto, para explodir de
encontro aos alicerces da casa, com um estrondo ensurdecedor. Todas as luzes
se haviam apagado ao mesmo tempo, e o local atingido era iluminado
somente pelas chamas amarelas que começavam a propagar-se. Um homem
gritava, obviamente sentindo grande dor, e podiam-se ouvir as vozes
excitadas de outros, numa terrível confusão.
Weatherbee e Pappas estavam de pé, fora do carro, olhando para a casa lá
embaixo, a uma distância de cerca de 100 metros.
— De onde será que veio esse troço? — repetiu Pappas, nervoso.
— De lá daquele morro — retrucou Weatherbee. — Passe-me esse
binóculo!
— Acha que devemos ir até lá, talvez dar uma mãozinha ao cara?
— Você está maluco? Eles nos matariam tão depressa quanto matariam
Bolan. Além disso, ele ainda não terminou, pode crer. Isto é só o começo.
***
— Santa Maria de Deus! — exclamou Plasky. — Ele está nos
bombardeando!
— Cale a boca e abaixe a cabeça, seu idiota! — gritou Seymour. — Pode
vir mais foguete!
— Foguete? Então foi isso? Onde está Sérgio? Que diabos estará fazendo
o Sérgio?
— Fiquem todos abaixados e mantenham-se calmos! — gritou a voz de
Sérgio, vindo do topo da escada que levava ao nível do chão. — Alguém viu
de onde veio o disparo?
Um coro de vozes afobadas tentou fazer-se ouvir a um só tempo.
— Do céu — gritou alguém.
— Da direita! — gritou outro.
— Veio da Lua! — exclamou outra voz, junto de Seymour.
— Pombas, vocês são mesmo umas bestas — gritou Sérgio. — Abram os
olhos e tentem ver alguma coisa! Estejam atentos para qualquer clarão,
fumaça, ou coisa parecida! Mantenham os olhos abertos!
— Quem diria! — murmurou Seymour. — O Sérgio até parece um cabo
dando ordens!
O Executor estava terminando uma segunda contagem regressiva. Ao
chegar a zero, acendeu o foguete de iluminação, que logo disparou pelos ares.
Apanhou o Marlin e colou um olho à luneta. Segundos depois, o foguete
estourou no ar, diretamente acima da mansão de Franchi, e uma luz muito
clara veio descendo lentamente, iluminando todo o local com um clarão de sol
do meio-dia. A luneta do rifle de Bolan já esquadrinhava o telhado da casa
quando a luz se acendeu; um rosto surpreso voltou-se para aquele sol que
flutuava lá em cima, e o dedo treinado de Bolan apertou o gatilho
espontaneamente. O poderoso rifle deu um forte recuo, que ele amorteceu
com o ombro; sem tirar os olhos da luneta, Bolan viu seu alvo cair do telhado,
as mãos comprimindo o ventre. Bolan fez o cálculo mentalmente: do queixo à
barriga iam cerca de 15 polegadas, exatamente a distância que ele previra.
Desviou a arma ligeiramente à esquerda e mirou outro alvo; outro apertar de
gatilho e outro corpo que caiu; mais alguns graus à esquerda, outro alvo, outro
apertar de gatilho; e mais outro, e mais outro, antes que ele conseguisse
chegar à contagem de cinco segundos. Deixou o fuzil de lado e pôs-se a olhar
pelo telêmetro que lhe dava um maior campo de visão. Havia um magote de
homens no telhado, alguns ainda de pé, mirando estupidamente o fogacho que
brilhava no céu, outros aparentemente paralisados de surpresa e medo; um
deles tentava levantar um corpo ensanguentado e obviamente morto; mas
quase todos estavam escondidos atrás do baixo parapeito à beira do telhado.
Era claro que nenhum deles havia localizado a origem dos tiros, uma vez que
não respondiam ao fogo.
Bolan abanou a cabeça, com tristeza, pensando: "Quem é o amador?" E
iniciou outra contagem regressiva.
***
— Temos quatro mortos e um ferido aqui em cima — gritou uma voz do
telhado.
— Sérgio! Sérgio! O que vamos fazer?
— Quanto tempo fica aceso um foguete desses?
— Abaixem-se! Abaixem-se todos e mantenham os olhos abertos! —
gritava Sérgio, em tom de comando. — Pete! Barney! Comecem a disparar
contra aquele morro!
O pipocar súbito de uma metralhadora interrompeu aquela balbúrdia,
seguido do matraquear de outra. Ninguém se importava se havia ou não um
alvo naquela direção, mas sentiam-se reconfortados pelo ruído de suas
próprias armas. Nesse instante, outro clarão veio se aproximando, cruzando o
céu como um relâmpago.
— Deus meu, olhem, outro foguete!
O foguete explodiu de encontro ao telhado com um fragor sinistro,
espalhando chamas por toda parte, no mesmo instante em que se apagava o
fogacho lá em cima; no pátio, caiu uma chuva de pedras, homens e
argamassa. Seguiu-se lhe um clamor de gritos de terror e agonia; depois,
novamente o silêncio e as trevas. Uma metralhadora voltou a pipocar, em
rajadas esporádicas, mas impotentes, que não chegavam a reconfortar
ninguém. Homens corriam às tontas pela escuridão. As imprecações abafadas,
a respiração entrecortada e as exclamações de dor e medo indicavam que ali
estava um bando de combatentes sem treino algum; e a batalha mal havia
começado. Ouviu-se então uma série de explosões, calculadas para semear o
terror; da casa de Franchi não restou uma pedra intacta. E até mesmo as
metralhadoras se calaram quando começou o êxodo incontrolável da grande
Família.
***
— Ele está usando morteiros! — exclamou Weatherbee, chocado. — Meu
Deus, aquela casa deve ter virado um inferno.
— Onde esse cara arranjou os morteiros? — indagou Pappas, em tom de
espanto e admiração.
— Isto não vem ao caso. O caso é que ele sabe usá-los. Pombas, isto é
guerra total. Guerra de um homem só. E imaginar que eu estava sentindo pena
desse homem. Nossa mãe!
As explosões faziam-se sentir até ali onde eles estavam, e um fragmento
de projétil veio alojar-se na porta do carro da polícia, quase atingindo Pappas.
— Abaixe-se — disse ele, calmamente, atirando-se ao chão ao longo do
carro.
— Acho que o localizei — disse Weatherbee. — Perto do topo do morro,
quase bem em frente à casa.
Quando ele dispara os morteiros, não se vê nada, mas espere até ele lançar
outro foguete.
Mas os olhos do sargento miravam outra coisa — o horror de som,
vibrações e explosões lá embaixo, na casa de Franchi. Nesse momento, outro
fogacho iluminou o céu, e o sargento protegeu os olhos contra o brilho da luz,
voltando-os agora para o morro distante.
— Que cara! — murmurou ele baixinho. — Que cara fantástico!
***
O cara fantástico também se sentia um tanto atordoado. A coisa fora fácil
demais. O inimigo estava em debandada, sem que ele tivesse sido exposto a
qualquer tipo de risco. Ou os tinha sobrestimado, ou então... Colou o olho à
luneta do Marlin e disparou cinco tiros, em rápida sucessão, contra um
automóvel que tentava sair do estacionamento da mansão destruída. O carro
perdeu a direção, rodopiou e virou de lado, como um automóvel de brinquedo,
para em seguida explodir em chamas. O carro que vinha atrás não teve tempo
de parar e chocou-se com o primeiro; logo em seguida, nova explosão. A cena
que se via ao clarão do fogacho no céu era um dantesco panorama de morte e
destruição. Da casa, quase inteiramente destruída, restavam duas paredes
altas, grotescamente de pé em meio à poeira e à fumaça. Grande parte dos
carros, no estacionamento, estavam cobertos pelos escombros; havia corpos
humanos atirados por toda parte.
— Devem ter algum trunfo escondido em algum lugar — murmurou
Bolan consigo mesmo. — Deve haver alguma coisa.
Disparou para o céu outro foguete luminoso, e pôs-se a examinar os
escombros através do telêmetro; e foi então que ouviu um ruído que conhecia
muito bem, e que não ouvia tão de perto desde que deixara o Vietnã. Era um
helicóptero, e estava bem perto, perto demais. Polícia? Pensou ele. Ou o
último trunfo da Família?
Apressadamente, Bolan escolheu um foguete luminoso de pavio curto,
reajustou a mira do lança-foguetes, e disparou. O clarão se fez quase
imediatamente, iluminando o morro e o barranco, e expondo o helicóptero em
voo rasante. Estava tão perto que Bolan pôde ver o gesto do piloto,
protegendo os olhos contra o intenso brilho do foguete, enquanto o rosto
surpreso de um homem de cabelos grisalhos surgia claramente à janela.
Pairando no céu, o fogacho iluminava também a posição de Bolan; e o
helicóptero afastou-se rapidamente para um ponto mais escuro, enquanto
Bolan estendia a mão para o Marlin. Ouvia o ruído da aeronave, enquanto o
piloto descrevia um círculo no ar. Logo depois, o helicóptero retornou à zona
iluminada, e uma rajada de metralhadora riscou o terreno perto de Bolan,
disparada por alguém no assento traseiro. O telêmetro voou da mão de Bolan,
impelido por uma bala de aço; e o Executor rodopiou pelo terreno, em busca
de cobertura, agarrado ao Marlin. Sentou-se, agachado atrás de um grande
tronco de árvore e esperou, olhando por fora da luneta na direção de onde
vinha o ruído das hélices.
De súbito, o helicóptero voltou, aproximando-se exatamente na direção
onde Bolan estava. Passando a olhar agora através da luneta, Bolan pousou o
dedo no gatilho, enquanto procurava um alvo. Em seu campo de visão, surgiu
uma cabeça grisalha, suficientemente nítida para que Bolan pudesse ver-lhe o
brilho dos olhos sob as grossas sobrancelhas. O dedo fez o seu papel; a arma
tombou para a frente, o brilho apagou-se nos olhos do homem grisalho,
enquanto alguém atrás dele disparava uma rajada de metralhadora.
***
— Estou vendo! — exclamou Pappas, alvoroçado. — E eles também o
estão vendo! Epa! Há uma metralhadora naquele helicóptero!
— Dê-me esse binóculo — ordenou Weatherbee.
— Tome! Pombas, nem se precisa de binóculo. Isso até parece aquelas
reportagens da TV sobre a Guerra do Vietnã.
— Isto aqui não é o Vietnã, rapaz — murmurou Weatherbee.
— Pois se não é, parece.
— Que filho da mãe! Mas que grandíssimo filho da mãe!
Ouviu-se o forte espoucar do tiro do Marlin, bem acima dos outros sons,
seguido pelo matraquear da metralhadora, respondido por novos disparos do
Marlin. De repente, houve uma mudança no som das pás do helicóptero, e
este emborcou e girou, descontrolado, plenamente iluminado pelo fogacho
que continuava lá no alto.
— Parece que ele os acertou — disse Weatherbee.
— Tem razão, o helicóptero está caindo! — gritou Pappas.
Weatherbee abaixou o binóculo e murmurou:
— O Executor escapou ao Apocalipse.
***
O Executor ter-se-ia recusado a concordar com aquela conclusão
apressada do Tenente Weatherbee. O ombro ferido voltara a sangrar, e o
sangue empapava-lhe a camisa. Viu o helicóptero desaparecer por entre um
bosque de árvores, murmurou alguma coisa ao ouvir a explosão, e retornou
coxeando à sua posição original, pondo-se a procurar uma caixa de curativos.
Alguma coisa acontecera-lhe com o tornozelo durante aquela última
escaramuça, e agora podia ouvir claramente certos ruídos que vinham lá de
cima, dentre a folhagem. Apressadamente, colocou um chumaço de gaze
sobre o ombro e, mancando, procurou refúgio sob uma árvore, deixando o
Marlin para trás e desejando que o fogacho lá no alto se apagasse mais
depressa.
Alguém descia a encosta, obviamente procurando agir com rapidez e
silêncio, dois objetivos difíceis de se atingir ao mesmo tempo naquele terreno
acidentado. Uma pedra do tamanho de uma bola de futebol desprendeu-se e
veio pulando encosta abaixo, chocando-se de encontro a outra maior, a alguns
metros da árvore sob a qual estava Bolan. Instantes depois, surgiu Leo Turrin,
a respiração ofegante de cansaço e tensão, as cordoveias do pescoço
nitidamente marcadas sob o colarinho aberto da camisa esporte.
— Bolan? — disse ele, em voz baixa. — Bolan, você está aí?
Bolan abanou a cabeça, penalizado.
— Será que você nunca vai aprender, Leo? — disse ele aproximando-se-
lhe por trás, com a 45 na mão, pronta para disparar.
— Pombas, então você está bem! — exclamou Turrin, num tom sincero.
— Procurei vir logo para cá, a fim de avisá-lo a respeito do helicóptero, mas
não havia jeito de encontrá-lo.
— A quem está tentando enganar? — indagou Bolan, surpreso e enojado
ao mesmo tempo.
Turrin, mantendo as mãos à frente do corpo, bem visíveis, tratou de
assentar-se no chão.
— Pombas, rapaz, eu devia deixar de fumar — disse ele. — Mal consigo
respirar.
— Vai ter de deixar de fazer uma porção de coisas, moço — disse Bolan.
— Posso tirar um sapato?
O ombro de Bolan começava a doer terrivelmente.
— É seu último pedido? — indagou ele, impaciente.
— Pense como quiser. Posso tirar?
O fogacho no céu começava a apagar-se, caindo por trás de umas árvores,
a distância. Bolan acercou-se de Turrin, apoiando um joelho no chão, a pistola
45 firmemente apontada para o desafeto.
— Se está tentando algum truque, é melhor desistir — disse ele.
Turrin havia retirado o sapato e estava descolando a palmilha. De sob ela,
tirou um pequeno cartão plastificado e estendeu-o a Bolan.
— Dê uma olhada nisso, por favor — disse ele, calmamente.
Bolan examinou o cartão sob a luz mortiça que ainda vinha do céu,
enquanto procurava manter seu prisioneiro sob vigilância. Depois, soltou um
muxoxo e devolveu o cartão.
— Por pouco você não é agora um agente secreto morto — disse o
Executor.
— Pombas, já rezei tanto que sou capaz de voltar a frequentar a igreja —
respondeu Turrin, com um largo sorriso.
— Não vai me prender? — inquiriu Bolan, com um ar de curiosidade nos
olhos.
Levou a mão ao ombro ferido e apertou a compressa de gaze. A pistola
continuava apontada para a frente.
— Esta parte do município escapa à minha jurisdição — disse Turrin, com
um leve sorriso. — Puxa, você quase acaba com todos aqueles bandidos. Será
que sobrou alguma coisa para a lei?
— Duvido — disse Bolan, enquanto outro pensamento se formava em seu
cérebro. — Quanto à minha irmã, Leo...
— Sou culpado — disse Turrin, com toda a calma.
— Faz parte do papel que tenho de desempenhar junto a Máfia,
naturalmente. Deus sabe como sinto pena dessas garotas, garotas como a sua
irmã. Procuro facilitar as coisas para elas, sabe... arranjar bons encontros para
elas no início, mas... Estou trabalhando neste caso há anos, sargento. E há
coisas mais importantes a cuidar do que garotas desgarradas. Espero que
consiga entender isso.
— Acho que entendo — disse Bolan, numa voz rouca. — Muito bem.
Trate de dar o fora daqui, e dê minhas lembranças à sua mulher. E... por sinal,
Leo. Essas dicas quentes que tenho recebido através de Weatherbee... vêm de
você?
Turrin fez um gesto de assentimento:
— Durante todo o tempo em que você queria me matar.
— Pombas, devia ter arranjado um modo de me avisar — disse Bolan.
— Contra você só tenho uma coisa, sargento — disse Turrin, franzindo a
testa. — Acho que nunca lhe perdoarei ter-me denunciado à minha mulher.
Agora, terei para sempre em minhas mãos uma mulher preocupada.
— Todo homem deve manter a mulher preocupada — disse Bolan —
pensava em outra mulher ansiosa, e não estava gostando da maneira como o
ferimento lhe sangrava no ombro. — Agora, volte por onde veio. Eu tenho de
dar o fora daqui.
Turrin tornou a calçar o sapato, levantou-se, fez uma saudação militar a
Bolan e desapareceu por entre o vulto das árvores. Bolan resmungou alguma
coisa e pôs-se a caminhar penosamente para a "casamata". Reuniu alguns
itens que não desejava deixar ali, fez outra tentativa de estancar o sangue da
ferida, e desceu lentamente para o fundo do barranco.
De ambos os lados, no alto do barranco, passavam automóveis em alta
velocidade, e Bolan sabia que a polícia estava cercando o local, tentando
vasculhar os escombros. Da direita de Bolan, veio um relinchar de animal.
Com uma coragem que somente se explicava pelo fato de estar perdendo
sangue, ele exclamou:
— Aqui! Hei, venha para cá!
Escondeu-se atrás de uma touceira alta e esperou.
Um minuto depois, foi recompensado pelo aparecimento de um homem
que puxava um cavalo pela rédea. Bolan vibrou a coronha da 45 contra a
cabeça do policial, apanhou-lhe as rédeas da mão, cavalgou o animal, e partiu
a trote pelo campo aberto. Faltava uma hora para o raiar do sol. Não lhe
restava muito tempo para voltar aos braços de sua mulher apreensiva. Sabia
que não conseguiria chegar lá a cavalo. Tudo o que desejava agora era um
pouco de distância, um pouco de tempo, e um bocado de sorte. Talvez não
fosse engolido desta vez, afinal de contas. A vitória não era assim tão doce
para o Executor. A vitória era um ombro em fogo, uma náusea no estômago e
o doloroso anelar por uma mulher que esperava, cheia de ternura. Mas, pelo
menos ainda não fora engolido.
9. A Vitória
Bolan despertou, agitado, para encontrar diante de si os olhos castanhos e
profundos de Valentina.
— Puxa! — disse ela — você sempre me apanha olhando para você,
quando desperta.
Bolan piscou os olhos.
— Foi tudo um sonho? — disse ele, numa voz fraca. — Ou tudo isto já
aconteceu antes?
Havia um curativo novo em seu ombro, e, por estar nu, sentia o contato
macio das cobertas de encontro à pele.
— Sim, já aconteceu antes — murmurou ele, respondendo a pergunta que
ele mesmo fizera.
Valentina inclinou-se e beijou-o levemente nos lábios.
— Você desmaiou ao entrar — disse ela. — Não se lembra?
— Só sei que me sinto fraco, muito fraco — balbuciou ele.
— Bem feito — disse ela, com um ar alegre. Estendeu-lhe um jornal que
jazia ao lado da cama. — Consta aqui que você matou vinte e três homens, na
noite passada, e feriu gravemente outros cinquenta e um.
— É isso que está ai?
— An-han. Não está vendo a manchete?
Ele focalizou os olhos nas letras garrafais na primeira página do jornal.
— "Executor derrota Máfia" — leu ele em voz alta. Fechou os olhos e
estendeu a mão para segurar a dela. Era uma mão pequenina, quente, macia.
— Meu Deus, Val, pensei que não ia escapar.
Ela deitou-se ao seu lado, com cuidado para não machucá-lo, e colou o
rosto no dele.
— Eu jamais o perdoaria se você não escapasse — sussurrou ela.
— Agora teremos um pouco de paz — disse ele.
— Eu sei. A guerra acabou, e nós ganhamos.
— Não ganhamos a guerra, meu bem. Ganhamos somente uma batalha.
Precisa entender isso. A guerra continua.
Ela pôs-se momentaneamente tensa, depois tornou a colar-se a ele.
— Enquanto você dormia, murmurava que não tinha havido vitória. O que
queria dizer?
— Não sei — respondeu ele.
— Não tem uma sensação de vitória?
Bolan enlaçou-a cuidadosamente com o braço ferido, que logo foi seguido
pelo outro, são e desejoso de tocá-la. Claro que tinha uma sensação de vitória
— agora, só agora que estava ali.
— A gente luta pelas coisas, não contra as coisas — disse ele.
Ela afastou-se um pouco para fitá-lo melhor. Ele abriu os olhos,
retribuindo-lhe o olhar inquisitivo.
— Às vezes você diz coisas muito profundas, sabe? — disse ela. — O que
significa isso?
Ele sorriu, esquecendo por um instante a dor que sentia.
— Numa tradução livre — respondeu ele — significa que eu sou louco
por você.
— E isso é uma vitória? — indagou ela, com um brilho nos olhos.
— Nenhum homem precisaria de outra vitória melhor — garantiu ele.
Ela afastou-se, ergueu-se, despiu o vestido caseiro — única peça que
vestia — afastou as cobertas e tornou a estender-se ao seu lado, apertando-se
de encontro a ele.
— Assim que você recupere as forças — disse ela — quero que me
demonstre essa vitória.
— Pombas, e quem disse que eu perdi as forças? — disse ele, sorrindo. —
Minha força não fica nos ombros.
— Sei onde fica sua força — murmurou ela. — A lua-de-mel não foi tão
curta assim. Além do mais, nem chegou a acabar. Ou acabou?
— Certas coisas, como a guerra e o amor, nunca acabam — disse ele,
puxando-a de encontro a si.
— E agora, do que se trata... guerra ou amor?
— Agora — respondeu ele — é a vitória... na guerra e no amor.
Ela suspirou, uniu o rosto ao dele e murmurou:
— Como é doce a vitória...
Epílogo
A batalha de Pittsfield havia terminado. Para Mack Bolan, a vitória não
duraria uma eternidade: era apenas um minúsculo ponto no tempo que já
recuara para o passado, absorvido e neutralizado pelos perigos do presente e
em constante risco de ser anulado pela incerteza do futuro. Bolan não
destruíra uma ideia nem um sistema: mal roçara a superfície da mais poderosa
organização do submundo. Sabia que todos os recursos dessa organização já
estavam sendo reunidos para esmagá-lo — como um leão esmaga um inseto
que lhe morde a pata. Bolan não tinha ilusões: sabia ser o homem mais
marcado na história do banditismo da América. Da noite para o dia, tornara-se
uma lenda nos Estados Unidos; uma bela presa para qualquer policial do país;
uma mercadoria a ser trocada por uma bela soma de dinheiro por qualquer
pistoleiro disposto a matá-lo pelas costas; uma dívida a ser cobrada por todos
os membros da enorme família da Máfia em todo o mundo.
Mack Bolan estava marcado para morrer, tanto quanto qualquer
condenado à cadeira elétrica. E estava decidido a aproveitar ao máximo o
tempo que lhe restava, a lutar até o último alento, a "devorar-lhes as entranhas
enquanto eles tentam me devorar".
Bolan tomara certas medidas para reduzir o risco que corria. Mudara a cor
do cabelo, deixara crescer o bigode, e passara a usar óculos sem grau, com
aros de tartaruga. Com tais disfarces, esperava chegar em segurança à Costa
Oeste. Um disfarce melhor o aguardava ali, no talento de um ex-cirurgião do
Exército que devia a vida a Mack Bolan — um cirurgião cuja experiência no
campo de batalha o induzira a explorar um campo especializado: a cirurgia
plástica. Bolan assumiria um rosto novo na Costa Oeste. Deixou para trás, em
Pittsfield, o irmão órfão, um bocado de dinheiro e uma garota bonita para
administrá-los a ambos. Deixou para trás também uma identidade que talvez
jamais pudesse reassumir.
Bolan rumou para o oeste, pela estrada de alta velocidade, na noite de 12
de setembro, pegando o tráfego de Pittsfíeld na hora do rush, comovido ainda
pelo pranto de Valentina no instante da despedida. Para trás ficou tudo o que
lhe era caro. À sua frente, aguardava tudo o que ele havia aprendido a temer.
Procurou esquecer tudo aquilo, esquecer até mesmo a imagem de Valentina, e
lançou um olhar para o lado do poente. À sua frente, só havia o inferno. E ele
estava preparado para o inferno. E era bom que outras pessoas também se
preparassem. O Executor estava decidido a tirar o maior proveito da vida que
lhe restava.
Digitalizado em Julho de 2013.
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